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Cartagena e a premonição do Fim

Em Cem Anos de Solidão, diante do pelotão de fuzilamento, de braços amarrados nas costas, mas de olhos desvendados, encarando a fila de soldados de espingardas apontadas, no que pensava o Coronel Buendia?

Afinal escapou do fuzilamento. Como escapou de atentados, de emboscadas e de uma tentativa de suicídio. Ele que fora um herói de tantas causas como de batalhas perdidas (trinta e duas no total), que encabeçara tantas revoluções, que teve dezassete filhos com dezassete mulheres diferentes, afinal haveria de morrer já velho, entretendo-se a fazer peixinhos de ouro.

E seu pai, José Arcádio, que lhe mostrara entre prodígios e muitos delírios o gelo, que afiançara ser “o grande invento do nosso tempo” e que haveria de morrer também velho, louco, amarrado a um carvalho e só, “enfiando a cabeça entre os ombros, como um franguinho, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco da castanheira. A família não ficou sabendo até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofia de la Piedad foi jogar o lixo baldio dos fundos e reparou que os urubus estavam baixando”. No que teriam ambos pensado antes de morrer?

É a solidão que acompanha várias gerações dos fundadores não de um local mas de um mito, Macondo. Mas também a solidão dos personagens e das relações entre si, a solidão nos conflitos que se estabelecem com quem eles se relacionam, nas lutas políticas entre os que são favoráveis à liberdade e os defensores da ordem estabelecida, nos jogos do poder, corrupção e opressão. Os acontecimentos fantásticos como aquelas centenas de carruagens necessárias para transportar poucas mais centenas de mortos em combate ou a criança que nasce com um rabo de porco e morre devorada por formigas por ter nascido filha de pais consanguíneos. E também das galinhas cujas moelas apareciam cheias de pepitas de ouro, quando da expedição no norte do México à procura do Eldorado.

Este é o universo de Garcia Márquez, na solidão de cada um e na de todos, da Colômbia, de Cartagena, de Medellín, Bogotá, mas também de toda a América Latina. Visitar Cartagena é entreabrir esse universo e ler a sua obra é descobrir um mundo mágico onde os prodígios se sucedem, onde mesmo sem os avanços da ciência da América do Norte ou da Europa, a poesia, a imaginação e os sonhos preenchem a vida de muitos. Como é preciso que nos habitem para sentirmos que vale a pena viver.

Da América Latina conhecemos muito do seu percurso desde as lutas pela libertação, com um cortejo de ditadores, caciques, assassínios, horrores de toda a ordem – temporariamente intervalados por eleições, muitas vezes fraudulentas, para legitimar uma aparente democracia. Nos seus dois séculos de existência, enquanto países independentes, na grande maioria a pobreza é grande, os cuidados de saúde são precários, há fome, ausência de saneamento básico, o desenvolvimento tecnológico não chegou. Em compensação, o narcotráfico, sobretudo, na Colômbia e México é um negócio altamente rentável que abastece o vício dos países mais ricos. E a luta contra ele é cada vez mais dececionante. Haverá mesmo vontade política consistente para acabar com os grandes traficantes?

Pensamos no Caribe e evocamos a África atraiçoada. Mesmo que o racismo se tenha mitigado, persistem atropelos aos direitos humanos, que seguramente irão perdurar. Os computadores poderão substituir até os cérebros humanos, mas coexistirão com gente a morrer de fome, com gente a fugir com o único delito de querer sobreviver. E há quem lucre com isso, quem se escude em boas práticas, quem se refugie em engenharias financeiras, leis do mercado e códigos de conduta para inglês ver. E, como se pode falar em democracia, se não houver políticas que promovam igualdade no acesso escolar e se apoiem os mais capazes, ricos ou pobres?

E quando ocorre uma calamidade, seja onde for, essa gente “exemplar”, de repente perde a compostura. Abusa dos desprotegidos, abandona os mais fracos, muitas vezes velhos e doentes, cria regras para lhes garantir, a eles, privilégios e regimes de exceção, contrata mercenários que, a troco de uns favores, praticam as vilanias convenientes. Não se pode ficar cego com as aparências, os olhos têm de olhar e ver, para proteger o futuro dos mais novos, os nossos filhos e netos.

Disse Saramago ao receber o Nobel: …”Estamos cegos”, e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante.”…

Dos políticos exige-se que deixem de ser cegos diante dos interesses dos cidadãos. Talvez tudo isto seja uma utopia. Mas é imperioso não esquecer a História. É em momentos graves, como os que estamos a viver em quase todo o mundo, que se iniciam as guerras ou as revoluções.

Diante do pelotão de fuzilamento o Coronel Buendia não terá pensado nisto, mas ocorreram-lhe certamente memórias avulsas, talvez não ordenadas, farrapos da sua vida. Haveria certamente mais frustrações, segredos. Como de recordações vivas de amores, filhos, amigos, momentos felizes. Mas uma vida de solidão.

FM

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Caminhar pelo centro histórico de Cartagena das Índias (a cidade amuralhada) com as suas coloridas casas coloniais de imponentes varandas de madeira e as suas fortificações, é sentir a época distante que vai desde o século XVI até principalmente à independência (1821), o esforço dos espanhóis para defender o seu Império das Américas e a importância do comércio, das riquezas que por ali circularam e dos numerosos combates da sua história.

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Mas é também como folhear alguns dos livros de Gabriel García Márquez, em que são descritos, mesmo com toponímias diferentes, locais ainda hoje identificáveis. Em todos é este ambiente da Colômbia que nos conduz para textos mágicos sobre a solidão e a natureza humana, não só de Garcia Márquez, como de outros, p. ex. Saramago.

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Esta é a casa da Garcia Márquez, em Cartagena. Prémio Nobel em 1982. É uma das maiores referências da corrente literária conhecida por  Realismo Mágico, onde se funde a realidade a um universo fantástico. Em Garcia Márquez alguns exemplos: a eclosão da peste de insónia e esquecimento, a morte e regresso à vida de um cigano, além da inclusão de pormenores assombrosos que rompem com a tradição realista do romance.

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Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.” A frase inicial de Cem anos de Solidão de Gabriel Garcia Márquez, o seu livro maior e o mais lido escrito em língua castelhana, depois de Dom Quixote de la Mancha. Romance que narra a saga de uma família – de cada um dos seus membros, das suas extraordinárias aventuras, todos eles acometidos pelo estigma da solidão.

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Ao visitar a Colômbia, como o México, onde Garcia Márquez viveu grande parte da vida, percebe-se o grande orgulho que ambos os povos sentem por Gabo, assim é conhecido. Mas visitou e fez amigos em vários pontos do mundo como Barcelona, Buenos Aires, Havana, Nova Iorque, Praga. Entre eles, Julio Cortázar,  Reinaldo Arenas, Mario Vargas Llosa ou o próprio Fidel Castro. Até em Lisboa permaneceu em 1975, onde conviveu com Cardoso Pires ou Gomes Ferreira, para sentir o cheiro da liberdade como se o chão seco da ditadura exalasse aquele perfume intenso da chuva de quem acreditava ser dono do seu destino.  Morreu em 2014, mas desde 5 anos antes deixara de escrever por estar demenciado. Só recentemente as cinzas de Gabo foram trasladadas para Cartagena.

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Em Cem anos de Solidão, Macondo é “uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”. É aí e a partir daí que tudo se desenrola. Mas como aconteceu?

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26 meses de travessia da serra em busca de uma saída para o mar foram um esforço inglório. Para não fazer o caminho de volta, José Arcádio Buendía fundou o povoado de Macondo. E assim nasceu “a aldeia mais arrumada e laboriosa que qualquer outra que seus habitantes tivessem conhecido. Era de verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém tinha morrido”.

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Macondo: local mítico, ancestral, equivalente da aldeia natal de Garcia Márquez – Aratacara.

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É a vida da família Buendia, ao longo de 7 gerações, desde que José Arcádio e Amaranta chegaram ao lugarejo que haveria de se transformar em Macondo. São as peripécias extraordinárias por que passam todos os sucessores – como uma população que perdeu a memória, mulheres que se trancam por décadas num local escuro, uma caminhada de homens que arrastam atrás de si um cortejo de borboletas…

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Os Aurelianos terão ao longo do livro a missão de desvendar os misteriosos pergaminhos de Melquíades, um cigano amigo de José Arcadio Buendía.  Aquele aparecera na aldeia no meio de um grupo que trazia mercadorias e inventos e que regressaria anualmente. Melquíades anunciara um instrumento mágico a “oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedónia” e que atraía todos os objetos metálicos – lingotes metálicos, tachos, fogareiros, tenazes… «As coisas têm vida própria», «é tudo uma questão de lhes acordar a alma”. José Arcádio, a partir daí congeminou o plano de extrair ouro da terra com aquele prodígio, do que foi dissuadido por Melquíades, que era homem honesto.

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No ano seguinte regressariam os ciganos com novo prodígio, a última descoberta dos judeus de Amesterdão – um óculo de longo alcance e uma lupa, capaz de trazer uma cigana do fim da aldeia para tão próximo que a punha ao alcance da mão. Para não se perderem nas suas idas a Macondo os ciganos orientavam-se não por bússolas ou estrelas, mas pelo canto dos pássaros.

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Em Cem anos de Solidão relatam-se as histórias delirantes dos membros das várias gerações, mas que repetem sempre os mesmos nomes; onde gente perde o sono e passa anos sem dormir; que vagueia à volta de um pântano; em que as disputas entre vizinhos ou amigos têm fins cruéis. Como liberais e conservadores se envolvem em guerras e por vezes já não sabem quem são uns e outros, nem sequer o que defendem; histórias de ciúmes, adultérios, atentados, abuso de poder, prostitutas, enganos, fanatismo religioso, distúrbios mentais…

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Mas todos nós trazemos na espessura da memória o nosso Macondo – a vila ancestral, onde tudo parece que começa e acaba, sejam frustrações, guerras, utopias, delírios,  magia, amores e desamores. A vida e a morte, o início e os prenúncios do fim. Cem anos? Os que forem, os que deles tivermos recordação.

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E em momentos que o que nos prende à vida é um ténue cordão umbilical, pronto a fazer-nos regressar à não-existência, se estamos lúcidos, ocorrem acontecimentos, uns aparentemente esquecidos, mas que afinal ficaram impressos para toda a vida. Quantos sonhos desfeitos…Naquilo em que acreditámos, na ingenuidade de imaginar que o nosso contributo poderia ter alguma importância…

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Deitado na maca, entra naquele cilindro que parece uma nave espacial. Vai ficar imobilizado uma hora, ouvindo ruídos estranhos que confirmam que o estão a prescrutar. Pressente-se actividade perto, mas não a vislumbra. A distancia para o teto que o envolve é curta. Como será a morte?  Assim, sem dor, pacífica ? Os sons modificam-se, por vezes breves interrupções. A solidão, sempre a solidão, de si para consigo, naquela imobilidade forçada.

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Da doença escondida terá notícias em breve. As fotografias desde menino na moldura digital, onde percebe a precaridade do futuro. Não encara um pelotão de fuzilamento. O gelo não foi a sua maior descoberta. Não é um Buendía, não vive cem anos de solidão , mas traz a solidão primordial. Viu de perto uma guerra, melhor, algumas tragédias de uma guerra, como a de um soldado com as pernas decepadas e os testículos meio destruídos a pedir que acabassem com ele.

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Não foi guerreiro, viu alguns sim, mas a maioria a ver se escapava ilesa. Hoje, a paisagem será idêntica. Muitas famílias continuarão a reunir-se debaixo de uma árvore a comer à mão a farinha amassada e o peixe seco. Já houve outras querrras, minas que deceparam inocentes e os meninos que continuam a ser transportados às costas das mães com mamas caídas como sacos de café quase esgotados.

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Houve, pois, guerras, continuam a existir guerras, mas o trágico é que os inimigos deixaram de ser os colonialistas. Agora, a côr da pele é a mesma, só que os novos senhores exploram o petróleo e os diamantes ou servem de intermediários a estrangeiros que se escudam em regras que os impedem de vender armamento ou receber comissões de quem detém poder (mas lhes faculta sub-repticiamente as comissões que os enriquecem). Grande parte do povo continua a viver miseravelmente.

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Na Europa, na América, nas “civilizações democráticas”, brancos ricos, de negócios, alguns filhos de boas famílias, aí se instalavam para esta “janela de oportunidade” . A nova burguesia negra, a do partido único, que estudara pelo catecismo marxista, que transformara a Reforma Agrária num modo de expropriar as melhores terras que estavam nas mãos da escassa minoria dos brancos, mas que as tratavam e com elas produziam riqueza e criavam emprego, como no Zimbabwe. E depois de os expulsarem, entregaram-nas aos membros e amigos do partido, que deixaram as fazendas (farms) ao abandono. Quantas gerações serão precisas para eliminar ou atenuar estes abusos? Foi só para isso que se fez a guerra contra o colonialismo? Mudar apenas a côr dos exploradores?

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Não foi, com certeza. Mandela provou isso mesmo. Mas, também, há que entender que os valores europeus não são facilmente aplicáveis a África como à América Latina. Que a justiça social que europeus progressistas gostariam de ver implantados é também um desígnio de intelectuais africanos ou latino-americanos, mas vai demorar seguramente muito a implantar-se. Como atenuar a ideia crescente da diferença entre o norte virtuoso e o sul pecador? Como encarar, na Europa,  que a riqueza esteja na mão de poucos milhões de agiotas que castigam sem piedade a larga maioria que não cumpriu os seus ditames? E, já agora, como assistir à tragédia dos milhares que do Médio Oriente se afoitam no Mediterrâneo na busca da esperança, da sobrevivência? Só isso.

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…É compreensível que insistam em medir-nos pela mesma bitola  com que se medem a si próprios [Europa], sem recordar que os estragos da vida não são iguais para todos , e que a busca da identidade própria é tão árdua e sangrenta para nós [América Latina] como foi para eles. A interpretação da nossa realidade segundo esquemas alheios só contribui para nos tornar cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários …. (fragmento do discurso A solidão da América Latina, pronunciado em Estocolmo em 1982, durante a atribuição do Prémio Nobel)

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Como não perceber a indignação de tantos colombianos de, quase constantemente terem de fazer prova que são gente normal, que não fazem narcotráfico ou se entregam a outras atividades ilícitas? Como não perceber as semelhanças na evolução política da América Latina  desde as independências do poder colonial até à exploração dos senhores dos carteis da droga e da corrupção obscena de tantos governos? Dois séculos?

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Hoje, aqui, em Portugal, olhamos para a calamidade da nossa vida, a precaridade do nosso futuro, os escândalos a rebentarem debaixo dos pés, as pessoas honradas a serem consideradas exceções… A perceber que, em toda a parte, é o poder, o dinheiro, a corrupção, o nepotismo, os interesses. Valores, o que é isso? Só dólares ou euros ou outra moeda cotada.

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São estes pensamentos que ocorrem a quem sente mágoa, desilusão e frustração. De se sentir atraiçoado, não por este ou aquele. Mas na crença de que valeria a pena lutar por ideias que ajudassem quem mais precisa, os deserdados da fortuna, os explorados. Os Portugueses, feitos uns Buendia, têm sido uma espécie de ciganos que abandonaram este pântano há várias gerações à procura de comer e trabalho. Agora, dos que ficaram, – depois de uma revolução atraiçoada e apropriada por arrivistas sem sombra de vergonha, os mais capazes, os mais jovens, a quem lhes prometeram futuro risonho que a instrução promoveria, são convidados a partir. No future. E em nome de quem se criaram universidades-fantoches para justificar fundos europeus.

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Os velhos analfabetos de há 60 anos muitos regressaram, agora, os mais novos, é duvidoso que o façam. Portugal: no future.

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Nesta aldeia, como noutras desertificadas, onde apenas se vislumbram velhos sem forças para partir, onde as escolas fecharam à míngua de alunos, como os centros de saúde, as maternidades, quase tudo o que apoia a vida e ficam só os velhos à espera da sua hora. Talvez ainda haja uma taberna para beber um copo e aqueles que restam e se podem mexer entre tremores e esquecimentos, podem recordar aventuras, rixas. Memória, vivem da memória, aqueles a quem a doença os não priva. Reconhecem já os outros? Identificam os amigos, os parentes que só vêm por vezes?

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Havia em tempos festas, namoricos, no Verão regressavam de férias emigrantes e até havia turistas. Hoje é a desolação do granito, das culturas que foram abandonadas. Atribuíram-se subsídios para desistir de alguma agricultura, por ser mais barato comprar o que vinha de fora, ou para destruir os barcos de pesca. Hoje, as aldeias estão vazias, umas couves galegas plantadas por mãos calosas ou umas galinhas para evitar morrer de fome, e é tudo. Os filhos desertaram. Talvez agora muitos nas periferias das cidades no desespero do desemprego, na insolvência da vida. Nem filhos nem netos. Deserdados da família e da vida.

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O Macondo da nossa infância pode ser um jardim, onde um fotógrafo enfiava a cabeça numa espécie de saia da máquina fotográfica suportada por tripé e, depois de mandar olhar para o passarinho, acabava na laboriosa revelação de um retângulo a preto e branco que nos registava para a posteridade.

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E aqui ficava o registo desse cenário com uma rocha feita fonte e algumas árvores centenárias.

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“Nas duas grandes horas da Vida — a nascer e a morrer — o homem bebe sózinho o seu cálix. No trajecto entre os dois pólos, acobardado pela maior consciência da espessura da bruma, arregimenta amigos e companheiros. Mas a sua unidade é ele. Mesmo que consiga ter à volta a maior multidão — vai só.”  (Miguel Torga)

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Há, pois, momentos em que muitas peripécias ocorrem como num filme rápido da vida. A memória guarda e hierarquiza factos e emoções. Alguns soterrados, mas que as circunstancias reavivam. Garcia Márquez define Macondo como um estado de espírito. Pois, usemos as palavras de Gabo, como também as de Saramago, para exprimir prenúncios do fim, a maldade, a solidão e a decadência. A vida, com a lucidez trazida pela alvorada.

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Lisboa numa fresta de luz. Cidade linda, a ser agora leiloada expeditamente. Ver o rio, imaginar o estuário, deslumbrarmo-nos com a baixa pombalina e percebermos porque tantos nos visitam. Mas durante décadas enxotaram-se os moradores para a Buraca, Cacém ou Barreiro. Construíram-se mamarrachos e demoliram-se edifícios históricos. A política de reabilitação é tímida. Mas a luz persiste, indiferente, o que contrasta com a solidão e aviva a saudade. Duma casa, duma história, dum tempo. Saudade, solidão.

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Saudade é solidão acompanhada, / é quando o amor ainda não foi embora, /mas o amado já… //Saudade é amar um passado que ainda não passou, /é recusar um presente que nos machuca, /é não ver o futuro que nos convida…//Saudade é sentir que existe o que não existe mais… //Saudade é o inferno dos que perderam, /é a dor dos que ficaram para trás, /é o gosto de morte na boca dos que continuam… /Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: /aquela que nunca amou. //E esse é o maior dos sofrimentos: /não ter por quem sentir saudades, /passar pela vida e não viver. //O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido. (Pablo Neruda)

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Como se reage a um infortúnio que nos deixa dependentes dos outros? O que sucede quando tudo se torna adverso? E quando uma calamidade, uma doença, um desastre se abate sobre alguém, e se generaliza a toda a gente (ou quase)? Há solidariedade, rastos dela? E autêntica ou hipócrita? Ou só indiferença?

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Saramago retrata magistralmente a natureza humana no que tem de mais hediondo. A cegueira gradualmente atinge toda a gente, exceto uma mulher. O governo decreta quarentena e durante ela ocorrem atos ascorosos deste salve-se quem puder – ganância, abusos de poder, lutas pela comida escassa, violência e abuso sexual, mortes. É a animalidade à solta. Por vezes ainda uma réstia de compaixão pelos mais desprotegidos – idosos e crianças.

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Os olhos estão mortos, o tato e os ouvidos desdobram-se. Os mais frágeis ficam ainda mais dependentes. O isolamento dos doentes leva-os ao internamento num hospício. Mas quase toda a gente acaba por ser atingida – é uma comunidade cega.

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A exceção misteriosa é a mulher do primeiro doente. É ela que testemunha as reações do ser humano às necessidades. A máscara que cai, provavelmente de muita gente antes considerada exemplar e que escondera desde sempre condutas repugnantes, as quais, se a adversidade não ocorresse, passariam despercebidas. Agora, a revelarem-se em toda a sua extensão. Mas, ainda em alguns, a compaixão pelos doentes, pelos idosos e crianças.

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“Uma terrível atroz imensa/ Desonestidade/ Cobre a cidade// Há um murmúrio de combinações/ Uma telegrafia/ Sem gestos sem sinais sem fios// O mal procura o mal e ambos se entendem/ Compram e vendem// E com um sabor a coisa morta/ A cidade dos outros/ Bate à nossa porta “ (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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É Saramago que nos fala no Ensaio sobre a cegueira sobre o comportamento humano. É através dessa mulher que percebemos a imensidade da devastação. Além dos cadáveres amontoados, dos incêndios, é a falta de escrúpulos, o desprezo, o abandono. Não é uma reflexão sobre qualquer cidade em particular, mas sobre a nossa sociedade, que reage de modo idêntico nas dificuldades. E quem são os mais frágeis, os mais desprotegidos, nesta sociedade que vive da ostentação e que não olha a meios para atingir os seus fins?

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– Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. (José Saramago)

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“A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. (José Saramago)

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As imagens da América Latina, da Colômbia e de Cartagena evocam Garcia Márquez como também a escultura e pintura de Botero que, nascido em Medellín, é dos artistas plásticos mais importantes da América Latina. Muitas afinidades, como o empenho social e político. E em ambos a ligação ao México de Diego Rivera.

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Visitar Cartagena (ou Cartagena das Indias) é, pois, também revisitar Garcia Márquez. É cenário de várias das suas obras “Memórias das minhas putas tristes”,  “Amor em tempos de cólera” e “Ninguém escreve ao Coronel”. Virada para o Caribe, a arquitetura, flores, profusão de cores e artesanato impressionam.

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Calcorrear o centro histórico (declarado Património da Humanidade em 1984, pela Unesco), sobretudo se acompanhado por um guia culto, pode ajudar-nos a reconhecer alguns lugares descritos por Garcia Márquez, mesmo que ele tivesse usado outras designações.

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Cartagena foi fundada em 1533 por Pero de Heredia, embora esse não tivesse sido o seu nome original, porém Isabel a Católica autorizou a alteração atendendo às semelhanças com a baía da Cartagena espanhola. Dada a sua localização e características, Cartagena constituíu um ponto de defesa importante.

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Monumento a Pedro de Heredia (Madrid – Cádiz, 27 de Janeiro de 1554)

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Cartagena das Índias foi na época colonial o porto estrategicamente mais importante do Caribe. Por aí escoava o ouro e prata, provenientes do que hoje é a Bolívia, o Chile e o Perú, que em trânsito por Cuba chegavam aos portos de destino – Cadiz, Sevilha e a Cartagena de origem. Por lá chegavam os escravos africanos oriundos sobretudo da Guiné. Das muralhas e fortificações que a protegiam das investidas inimigas, algumas resistem.

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O Castelo de San Felipe de Barajas, a maior obra militar espanhola da América do Sul. À entrada uma estátua do militar espanhol Blas de Lezo, que em 1741 defendeu a cidade de um ataque por uma armada de forças inglesas e americanas, largamente mais poderosa e bem equipada do que os meios dos sitiados. Terá sido a armada mais numerosa alguma vez reunida, só superada pelos navios envolvidos no desembarque da Normandia.  Porém, os atacantes depararam com uma defesa tenaz e tiveram que debandar com importantes baixas. Foi um enorme desastre que consolidou o poderio espanhol.

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Todavia, ao longo da História foram numerosos os ataques que Cartagena sofreu. De piratas a tropas regulares inglesas, francesas e holandesas. E de todos os assaltos, destaca-se a campanha de reconquista e cerco comandados pelo General Morilo, em 1815, após a declaração de independência feita 4 anos antes. Os combates foram tremendos com os sitiados a decidirem lutar até à morte. Resistiram mais de 3 meses, mas acabaram por ser derrotados. Cartagena ficou conhecida por Heroica.

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Os espanhóis haveriam de permanecer até 1821, quando finalmente foram expulsos pelas tropas republicanas, comandadas pelo General Montilla. Cartagena foi a última cidade colombiana a ser libertada do poder espanhol. Porém, estava quase em ruínas.

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Tudo começara com Símon Bolívar em 1805, que, durante o consulado de Napoleão, se comprometera a libertar a América do domínio espanhol. Bolivar tinha outro desígnio: fazer da América Latina uma única nação. Mas, pelos anos seguintes os interesses dos caciques locais sobrepuseram-se. Ele, que recusara recompensas pelo que correspondeu à libertação de toda a América Latina do império espanhol e ser nomeado presidente com poderes ilimitados, sofreu um atentado. Desiludido e doente, decidiu exilar-se. Aqui começa outro romance de Garcia Márquez – O General em seu labirinto.

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Mas façamos uma pequena digressão pelo Centro Histórico.

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As ruas estreitas da Cartagena histórica, as suas praças e pracetas, por onde poderiam ter passado as personagens fictícias de Gabriel Garcia Márquez ou ele próprio. Imaginamo-las no Portal dos Dulce ou na Plaza de los Coches. Mas noutros locais que se transformaram e onde, hoje, existem hotéis.

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Amor em tempos de cólera narra o amor entre dois jovens Fermina e Florentino que durante três anos se correspondem por cartas, mas por questões de preconceito interrompem o namoro. A acção decorre em Cartagena no final do século XIX, durante um surto de cólera e a guerra civil. Fermina casa-se, então, por conveniência com Juvenal Urbino, um médico rico e de boas famílias, que se mostrará homem magnânimo e empreendedor .

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Foi ali, sob as arcadas do Portal de los Dulces (na ficção o Portal dos Escrivães), que Fermina Daza decidiu que não ia casar com Florentino Ariza, adiando esse amor exatamente por 51 anos, nove meses e quatro dias.

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Florentino  era um simples  empregado dos correios,  jurou amor eterno a Fermina, aguardando pacientemente pela morte do rival. A sua promessa de amor verdadeiro persistiu, não obstante variadas aventuras de ocasião com solteiras, casadas e viúvas em casos cómicos uns, trágicos ou comoventes, outros. E quando, finalmente o seu rival morreu, ele reafirma, no primeiro dia da viuvez, o seu amor por Fermina.

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Aqui, na Plaza de la Artilleria,  ficava a residência  da mãe do doutor Juvenal Urbino, marido de Fermina. Mas, de facto, a imponente porta de madeira  era  a entrada da mansão do marquês de Valdehoyos, o maior traficante de escravos da região, que García Márquez apelida de marquês de Casalduero.

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A alguns quarteirões de distância fica o Parque dos Evangelhos (na realidade, o Parque Fernández de Madrid), onde Florentino “a partir das sete da manhã” via Fermina passar sentado “no banco menos visível” e “fingindo ler um livro de versos à sombra das amendoeiras”. Frente ao parque estão as paredes brancas da casa de Fermina Daza, conhecida como a “casa de Don Benito”, que é uma das mais antigas da cidade. “Foi aqui que Gabito me disse que tinha mudado o nome à sua personagem principal. Chamava-se Josefa Cárcamo, mas eu tinha-lhe dito que não gostava”, recorda Jaime García Márquez, que costumava passear com o irmão por Cartagena para encontrar os locais onde decorria o seu próximo romance.

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Porta do Relógio, ex-libris da cidade.

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Museu Herédia

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“Não é verdade que as pessoas param de perseguir os sonhos porque estão a ficar velhas, elas estão a ficar velhas porque pararam de perseguir os sonhos.”  (Garcia Márquez)

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“Como provar aos homens quanto estão enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem, justamento, quando deixam de se apaixonar’”? (Garcia Márquez)

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Monumento dos Sapatos Velhos ou Botas velhas, situado atrás do Castelo San Felipe de Barajas. É uma homenagem a um dos maiores poetas de Cartagena, Luiz Carlos López. Flota en el horizonte opaco dejo /crepuscular. La noche se avecina/ bostezando. Y el amor, bilioso y viejo,/ duerme como un sueño de morfina.//Todo está en laxitud bajo el reflejo/ de la tarde invernal, la campesina/ tarde de la cigarra, del cangrejo/y de la fuga de la golondrina… //Cabecean las aspas del molino /como con neurastenia. En el camino, /tirando el carretón de la alquería. //Marchan dos bueyes con un ritmo amargo /llevando en su mirar, mimoso y largo,/ la dejadez de la melancolía…”

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“Todos temos três vidas: A vida pública, a vida privada, e uma vida secreta.” (Garcia Márquez)

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Escultura de Fernando Botero, um dos grandes artistas plásticos da América Latina. Pintor, escultor, aguarelista. Esta mão esquerda, sapuda, disforme, pode traduzir a ganância.

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As prostitutas no universo de Garcia Marquez – ele que foi um frequentador assíduo de bordeis: “Vem cá, você também — disse ela [a prostituta] — São só vinte centavos. Aureliano jogou uma moeda na caixinha que a matrona tinha nas pernas e entrou no quarto sem saber para quê. A mulata adolescente, com suas tetinhas de cadela, estava nua na cama. Antes de Aureliano, naquela noite sessenta e três homens tinham passado pelo quarto”.

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“No ano dos meus noventa anos quis oferecer a mim mesmo uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei-me de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar os seus bons clientes quando tinha uma novidade disponível.”… (Garcia Márquez)

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…”Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma das suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza dos meus princípios. A moral também é uma questão de tempo, dizia com um sorriso maligno, tu dirás” (Garcia Márquez)

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”O alívio caiu-me do céu. Na superlotada caranguejola de Loma Fresca, uma vizinha de assento que não tinha visto entrar sussurrou-me ao ouvido : Ainda fodes? Era Casilda Armenta, um velho amor baratucho que me tinha suportado como cliente assíduo desde que era uma adolescente altiva. Uma vez retirada, meia doente e sem um chavo, casara com um hortelão chinês que lhe deu nome e apoio, e talvez um pouco de amor. Aos setenta e três anos tinha o peso de sempre, continuava bela e de carácter forte, e conservava intacta a desenvoltura da profissão” in Memória das minhas putas tristes

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“Desde então comecei a medir a minha vida não por anos mas por décadas. A dos cinquenta tinha sido decisiva porque tomei consciência de que quase toda a gente era mais nova do que eu. A dos sessenta foi a mais intensa pela suspeita de que já não tinha muito tempo para me equivocar. A dos setenta foi terrível por uma certa possibilidade de que fosse a última…” (Garcia Márquez)

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Os corpos pintados ou esculpidos de Botero são opulentos, excessivos e muitos deles transmitem sensualidade. Muito embora tivessem tido percursos de vida diferentes, existiram em Botero e Garcia Márquez preocupações políticas e sociais comuns. E o México, sempre o México, e a influência de Diego Rivera, no caso de Botero.

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“O  mais importante que aprendi a fazer depois dos quarenta anos foi a dizer não quando é não” (Garcia Márquez)

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Como Garcia Márquez escreveu em Memória das Minhas Putas Tristes, pode imaginar-se o final da vida e a evocação dos bordeis, das mulheres a quem se pagou, daquelas com quem se partilhou um sexo rápido e de quem se despediu entre o aliviado e o arrependido.  Esta escultura podia perfeitamente representar uma dessas matronas.

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O sexo é o consolo que a gente tem quando o amor não nos alcança.” (Garcia Márquez)

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Em Ninguém escreve ao Coronel, Garcia Márquez relata a história do militar que se batera na guerra aos 20 anos de idade e que pretendia receber a pensão que o governo decretara 33 anos antes aos veteranos de guerra. Já velho e pobre, com a mulher doente, vê como únicos recursos a máquina de costura e um galo de combate, deixados por seu filho, alfaiate e grande amante da luta de galos, que, entretanto, morrera.

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Mas, as finanças do governo eram escassas e os muitos candidatos tinham de aguardar a sua vez…Todas as 6ªs feiras aí ia ele receber a lancha à espera que no correio viesse a carta que trouxesse a almejada carta. O galo, porém, valeria muito mais do que a oferta que dele fazia o ricaço da terra. Na miséria extrema, abdicar do sonho de seu filho em fazer do galo um campeão, mentir à mulher para a poupar à sua penúria? Só a esperança nessa pensão, que teimava em não chegar. Vender, aguentar? Como sobreviver?

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 ”Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz…”, José Saramago, in O Ano da Morte de Ricardo Reis

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“O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão” (Garcia Márquez)

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 – É que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos. (José Saramago). E pode ver-se, perceber o que escapa à maioria.  A solidão de países da América Latina, de África, da Europa do sul, de gente entregue a si própria, na luta pela sua sobrevivência e a indiferença de todos os que preocupam  apenas em salvaguardar o seu bem-estar.

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A infâmia de enriquecer à custa da desgraça alheia, dos empréstimos que apenas servem para pagar juros  e aumentar a dívida. Os salários de miséria que cada vez empobrecem mais, mas aumentam os lucros de especuladores e agiotas.  A nível individual, a proximidade da morte a trazer a consciência da solidão e da inutilidade da própria vida.

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…O tempo depois de morrermos é sempre pior do que o tempo antes de nascermos. Ninguém sobrevive. Nascemos, vivemos e morremos. Sobreviver é tão estúpido como anteviver.  A grande diferença entre estar perto da nascença e estar perto da morte é que a proximidade da morte é necessária e suficientemente boa conselheira. Antes de morrermos convém-nos despirmo-nos até estarmos nus; só com os nossos verdadeiros amores. (Miguel Esteves Cardoso)

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Leituras aconselhadas:

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Agradecimentos a Paulo Cunha

Lugares, encontros e memórias

“A política e os destinos da humanidade são forjados por homens sem ideais nem grandeza. Aqueles que têm grandeza interior não se encaminham para a política.”

Albert Camus

Todos falamos de cafés, de lugares que conhecemos, uns mais relevantes que outros. Que evocam acontecimentos ou figuras que nos marcaram a vida ou, pelo menos, são referências maiores. Como sucede com o Martinho da Arcada e Fernando Pessoa ou o Nicola e Bocage.

Deambular por esta ou aquela cidade e vir-nos à memória uma história de que por vezes falamos ou que, de repente, desperta do esquecimento. Como darmos conta de locais que se transformaram, dos cafés de estudante travestidos em lojas de vestuário ou balcões de um qualquer banco. Ou terem desaparecido de todo.

O que sabemos do Chave d’Ouro no Rossio e do Gen. Humberto Delgado, quando na campanha eleitoral de 58, ao perguntarem-lhe qual seria a sua atitude referente a Salazar, se vencesse, respondeu: “Obviamente, demito-o”? Ou, já agora, olhar a placa que na Estação de Santa Apolónia, evoca o regresso do General da visita triunfal ao Porto, onde fora aclamado por 200000 pessoas?

O tempo (nem sempre, o progresso) segue o seu curso e, mesmo que haja políticas de recuperação ou manutenção de locais históricos (que são raras), cada um dará sempre pela falta dum espaço, onde uma carícia, um sorriso, um abraço como uma lágrima, uma revolta ou a saudade de alguém, ocorreram. Como da escola onde um professor teve a capacidade de determinar as nossas escolhas. São esses locais, espólio da memória de cada um, os quais terão sempre lembranças que, por poucos, serão partilhadas.

Evidentemente, os espaços, como nós, envelhecem e morrem. Alguns perdurarão. São património da cultura e matriz de civilizações, ou marcos de tragédias, as quais, piedosa e ingenuamente, aspiramos a que não se repitam.

Um campo de concentração nazi, visita para imaginar os horrores, a maldade, crueldade exercida sobre gente indefesa, cujos crimes eram ser judeus ou ciganos ou inválidos ou homossexuais, ou por expressarem ideias opostas aos dogmas nacional-socialistas. Os campos, onde milhões de seres humanos foram exterminados. Porém, não só na II Guerra Mundial, como os arménios por turcos e otomanos, como nas ditaduras mais ou menos recentes de Staline ou Mao, por exemplo, a pretexto de não se integrarem na nova ordem social que defenderia os interesses dos oprimidos (mas antes, a oligarquia do partido ou o poder pessoal). Genocídios. Ou, actualmente, pelo fanatismo religioso a conduzir a atentados e a assassinar quem não pensa do mesmo modo. O horror dos atentados suicidas que dizimam inocentes, a repulsa pelos que mutilam as jovens, que as impedem de frequentar a Escola, que lhes tapam o rosto e as obrigam a baixar os olhos em presença de um homem…

Ceder aos hábitos reaccionários, à castração física e intelectual é o regresso à barbárie, à Idade Média. Das Cruzadas ao Estado Islâmico, muito foi o progresso, as liberdades conquistadas. Do esplendor da civilização islâmica temos bem perto Alhambra e Córdova, de que nos orgulhamos, como património da humanidade. Como nos orgulhamos da arte – música, literatura, arquitectura, etc., das civilizações hebraico-cristãs.

Por que horrores e agonia passaram todos aqueles prisioneiros? O universo de cada um de nós está formatado cada vez mais para o cumprimento de tarefas, para a sobrevivência a qualquer preço. A economia, a crise financeira, os escândalos, o nepotismo, a corrupção, calúnias, preenchem o quotidiano. O que nos dizem os sorrisos de alívio de quem fugiu a tempo do horror nazi ou o menino de braços no ar ameaçado pelas espingardas do ocupante no ghetto de Varsóvia, que seria depois destruído pelos alemães? Talvez um imediato sentimento de pena e horror, rapidamente esquecido. É pouco. Visitar Varsóvia e ver as suas largas avenidas planas e perceber que é uma cidade nova, reconstruída sobre escombros. Como tantas outras, arrasadas pela Guerra.

A memória é curta e apenas a aproximação da História nos leva a desconfiar das promessas e dos propósitos demagógicos de tantos politicozinhos fabricados na proveta das Juventudes partidárias, como sucede em Portugal. Por isso, políticos há muitos, estadistas raros. E ética, isso as famílias não ensinam, as escolas não têm tempo.

Mas em momentos de opressão onde as liberdades estão impedidas ou censuradas, há, houve e haverá quem se não resigne e gradualmente se vá opondo, juntando vozes, cimentando as convicções, dando combate. São forças crescentes que são ou destruídas ou, mais cedo ou tarde, contribuirão para o derrube da opressão. Foi assim em Portugal na década de 60, e de que damos testemunho. De reivindicações académicas, aparentemente singelas, a cegueira totalitária com levantamento de processos disciplinares, cargas policiais, prisões e expulsões, potenciou uma consciência política que haveria de contribuir para politizar os oficiais do Quadro Permanente que entendiam que a “Guerra do Ultramar” não poderia continuar sem uma derrota militar que, no mínimo, os iria pôr em cheque.

Da Guerra Colonial já falamos noutro caderno deste blog, mas não do que se viveu em Portugal entre 74 e 75. Período fascinante, em que tudo foi posto em causa, onde se misturavam desde revolucionários que tinham vivido na clandestinidade até oportunistas filhos-de-família tornados extremistas de esquerda por má consciência, houve de tudo. Felizmente, também gente equilibrada capaz de entender o razoável. Luta de quase todos os dias, em que os acontecimentos, manifestações e contramanifestações se sucediam, discursos delirantes, intentonas, provocações, ataques à liberdade de imprensa. A Revolução em Lisboa, transformada em zoo da política mundial.

O Cinema Novo, rompendo com as velhas tradições, focou-se no homem, na análise dos seus conflitos, do ambiente real em que se movimentava ou asfixiava. Se uma foto é um flash dum momento, o filme retrata em continuidade uma história. Eu lembro, porque me é próximo, porque me identifico, porque aborda experiências que conheci, “Os Imortais” de Antonio-Pedro Vasconcelos – tornado filme de culto. A guerra, a solidariedade, a marginalidade, a crueza e, ao mesmo tempo, lirismo e impiedade. Filmes não de uma época, que contam histórias sejam elas quais forem, servindo-se da estética que o realizador perfilha. O cinema que apareceu nos anos 60 mostra essa metamorfose. O filme “D.Roberto” de Ernesto de Sousa, estreado no ex-cinema Império (que saudade de tantos Visconti que ali vi…) até este “Os Gatos não têm vertigens!” também do Antonio-Pedro Vasconcelos, são uma amostra da evolução do Novo Cinema português.

A memória de cada um pode ser avivada pelos factos, encontros e lugares mais insólitos ou inocentes. É desses, de alguns desses, de que agora falo.

FM

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Após a ascensão ao poder pelos nazis (1933) e durante toda a 2ª guerra Mundial, Lisboa foi uma porta de saída para os refugiados que conseguiam escapar à ocupação nazi. Muitas foram as personalidades que por lá passaram como Calouste Gulbenkian e Antoine de Saint-Exupéry. Mas, se Lisboa era uma saída para a liberdade, muitos outros locais alojaram refugiados que conseguiam escapar. E, simultâneamente, era porta de entrada para espiões de ambos os lados, diplomatas e militares…

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Eis uma placa que assinala o local onde muitos refugiados ficaram alojados, na Vila da Ericeira

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Também em Sintra, neste Hotel, hoje à espera de reabilitação, ficaram alojados refugiados, cujo objectivo principal era seguir para os Estados Unidos.

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A chegada ao Hotel Netto e a alegria (ou alívio) dos que haviam escapado.

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Porém, foi pequeno o número daqueles que conseguiram escapar. Dos 340.000 judeus que deixaram a Alemanha e a Áustria, no início da guerra, quase 100.000 deles encontraram refúgio em países que, posteriormente, foram conquistados pela Alemanha, e onde as novas autoridades deportaram e mataram a grande maioria dos que tentaram fugir.

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Figueira da Foz, numa fotografia da época, outro local de acolhimento.

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Relembrando o filme Casablanca, não se sabe se algum dos refugiados sentados nesta esplanada do Rossio, em Lisboa, teria uma carta de trânsito obtida por um qualquer Ugarte (pequeno delinquente no filme, que matara dois mensageiros alemães, para as obter) . Essas cartas eram uma espécie de passe que permitia ao titular o livre trânsito pela Europa controlada pelos nazis e chegar a Lisboa, cidade neutra, e, daí partir para os  Estados Unidos.

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As pessoas cujos dias estão impregnados pelo horror do que vêm – os doentes, os moribundos, o fumo que sai dos fornos crematórios e anuncia a morte massificada; como as humilhações infligidas pelos algozes, metamorfoseando-as em números tatuados na pele; a cobardia de alguns prisioneiros como elas, mas que as vigiam e denunciam para melhorar as suas condições de vida; os comboios que chegam consecutivamente com mais escravos, uns para trabalharem, outros para serem liquidados de seguida. Mas, até matar dá trabalho. E, talvez por isso, à entrada desses campos de ignomínia sempre se leia a mesma frase “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta).

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Dachau (perto de Munique) foi o primeiro campo de concentração mandado construir por Hitler e um dos maiores. Albergou inicialmente oposicionistas ao nazismo, mas depois, judeus, polacos, homosexuais, ciganos, testemunhas-de-Jeová, sem-abrigo. As condições de vida no campo eram inimagináveis. Os presos serviram para experiências “médicas” (transformados em cobaias – muitas morreram vitimados por doenças, principalmente tifo e cólera), perdiam a sua dignidade dentro de uniformes listados e com estrelas de 6 pontas. Eram submetidos a trabalho-escravo sobrehumano que os matava também por exaustão e fome. Dachau chegou a albergar 200.000 prisioneiros, dos quais foram exterminados cerca de 30000. Muito do esforço de guerra alemão assentou neste trabalho-escravo. Os bens dos judeus (eram considerados como tal, desde que houvesse desde os seus avós pessoas com essa origem) foram confiscados. E até os dentes de ouro dos mortos eram removidos e fundidos.

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Dachau possuia uma câmara de gás, embora não haja provas de que tenha sido utilizada. Mas, além dos campos de concentração como este, os nazis criaram campos de extermínio para conseguir a solução final (assassinatos em massa), como foi o caso de Auschwitz. Estava previsto exterminar os judeus até dos países neutrais como Portugal, ou Inglaterra e Estados Unidos. Os campos de concentração serviram principalmente para centros de detenção e de trabalho forçado, enquanto os campos de extermínio eram “fábricas de morte”.

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Cerca de 20000 campos de concentração albergaram prisioneiros, tanto para trabalhos forçados, como de passagem para os campos de extermínio. Uns foram construídos na Alemanha, mas também nos países que iam sendo ocupados, como foi o caso da Polónia ou da União Soviética. O transporte dos presos por comboio prensados em vagões de transporte de gado, era inimaginável e muitos prisioneiros morriam pelo caminho. O primeiro campo de extermínio foi aberto em Dezembro de 1941, e nele, judeus e ciganos foram mortos por envenenamento em furgões com tubos que soltavam gás para o seu interior.

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Mas, a partir daí, a metodologia foi sendo refinada e constituía verdadeira linha de montagem. Os nazis construíram câmaras de gás para tornar o processo de assassinato em massa mais eficiente, rápido e menos pessoal para os executores. As câmaras de gás eram aposentos fechados que recebiam o gás letal que matava quem lá metiam. Havia quatro câmaras de gás no campo de extermínio de Birkenau, localizado no complexo de Auschwitz. No auge das deportações para o campo, mais de 6.000 judeus eram diariamente executados. Os seus corpos, muitos eram cremados.

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As SS e a polícia alemã assassinaram cerca de 2.700.000 judeus nos campos de extermínio, fosse utilizando câmaras de gás ou fuzilamento.

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Ghetto de Varsóvia (esta imagem que vi reproduzida em revistas já depois da guerra acabada nunca a esqueci). Após a invasão e rapidamente, aos judeus que ocupavam uma zona reduzida da cidade juntaram-se mais, trazidos pelos alemães, e provindos de outras cidades. Um ano depois ergueram um muro para os separar do resto da cidade. As condições de vida eram insuportáveis. Cada morador tinha direito a alimentação cujas calorias eram menos de 1/10 das atibuídas aos alemães. Os prisioneiros, que tinham arcaboiço para tal, tinham de fazer trabalho-escravo. Fome, doenças, morte. Alguns judeus rebelaram-se. A repressão, foi o esperado. Em 1942 os judeus começaram a ser levados em massa para campos de extermínio (Treblinka). Calcula-se que, da população inicial de 380.000, tivessem sobrevivido 70000.

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Apesar de Portugal se ter mantido neutral, o Governo, se na sua maioria e nos primeiros anos da guerra, predominava o entusiasmo pelos sucessos das tropas hitlerianas e pela sua política, figuras houve cujas simpatias iam para o esforço inglês de resistência. Armindo Monteiro foi um deles, desempenhado entre outros cargos o de embaixador de Portugal em Londres, durante a fase inicial da Guerra. Mas a personalidade que mais influência teve e a cuja acção alguns milhares de refugiados ficaram a dever vistos para Lisboa, em 1940, escapando assim ao Holocausto, foi Aristides de Sousa Mendes (aqui, um busto seu em Bordéus). Cônsul naquela cidade, ousou recusar o “dever de obediência”, a que a sua actividade obrigava, e acabou por ser aposentado por Salazar. Morreria em 1954, amargurado e pobre.

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Imagem dum campo de concentração. Período de descanso.

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De facto, é importante não esquecer as atrocidades da barbárie extrema de todos os genocídios, não só as praticadas pelos nazis, mas por todos os totalitarismos e fanatismos. As placas, as lápides, os memoriais, mesmos os mais singelos, que nos levem a perceber a face oculta da maldade. O encontro com a monstruosidade.

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O Café Gelo é talvez o mais célebre dos cafés do Rossio. Essa notoriedade deve-a pricipalmente a ter sido daqui que saíram os carbonários Buiça e Costa, com a missão, nunca devidamente esclarecida, de assassinar ou o Chefe do Governo, João Franco ou o Rei D. Carlos, que regressava de Vila Viçosa, onde passava largas temporadas. Acabaram por ser o Rei e o Príncipe Herdadeiro, as vítimas, embora também o outro filho tivesse sido ligeiramente ferido.

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Situado entre o Rossio e a rua traseira (hoje, Rua 1º de Dezembro) era o local onde se reuniam republicanos mais extremistas, carbonários e maçons. De quem partiu a ordem, não se sabe. Assassinaram o Rei, porque o ditador João Franco mudava permanentemente de local de dormida e não foi apanhado na sua residência oficial? Ou pretendeu-se, deliberadamente, acabar de vez com a Monarquia?

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Retrato de Afonso Costa no café Gelo – Mais tarde foi também local de tertúlia de artistas como Cesariny. No 1º de Maio de 1962 a Polícia matou um manifestante junto ao Palácio Foz; o café Gelo foi invadido e, depois,gradualmente, entrou em decadencia.

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Hoje, tem um aspecto rejuvenescido, onde nas paredes se encontram fotografias da época, com destaque para esta gravura do regicídio (os fotógrafos aguardavam o rei no palácio das Necessidades…). Na pequena sala dos fundos pode imaginar-se um ambiente conspirativo.

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A Cervejaria Trindade, considerada património cultural da cidade de Lisboa, desde 1986, é a mais antiga do país e um espaço grandioso. Os seus primórdios remontam a 1294, quando é fundado o Convento da Santissima Trindade, inaugurado pela Rainha Santa Isabel, já no século seguinte. Muitas foram as vicissitudes por que passou: incêndios, destruição pelo terramoto… (Caiu o Carmo e a Trindade). Em 1834 – extintas as Ordens Religiosas, parte do Convento foi demolida. É, então, construída uma fábrica de Cerveja em terreno anexo, que depois passa a funcionar no local que hoje conhecemos.

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As paredes do antigo refeitório dos monges foram revestidas por paineis de azulejos com motivos maçónicos. No seu interior funciona uma galeria de arte onde se realizam exposições de pintura e escultura, Depois de ser alienada a fábrica de cerveja, o edifício foi renovado e ampliado. É, sobretudo, na década de 40 que a Cervejaria adquire a traça arquitectónica actual, estendendo-se pela espaço, outrora ocupado pela Igreja e depois pela fábrica de cerveja.

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A Brasileira do Chiado, fundado em 1905, é um dos mais emblemáticos cafés de Lisboa. A sua importancia deve-a sobretudo ao facto de ter sido local de tertúlias artísticas e literárias das mais significativas de Lisboa.

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Várias exposições fizeram da Brasileira um museu ocasional em que foram expostas obras de Almada Negreiros, António Soares, Eduardo Viana, Jorge Barradas , Bernardo Marques, Stuart Carvalhais, Eduardo Nery, Nikias Skapinakis, Noronha da Costa e Vespeira, entre outros.

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A Brasileira do Chiado possui uma identidade própria, dada pela especificidade da sua decoração, e por se encontrar também associada a círculos de intelectuais, escritores e artistas de renome como Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Santa Rita Pintor ou Abel Manta, entre muitos outros.

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Na esplanada do café, em 1988, foi inaugurada uma estátua em bronze de Fernando Pessoa, cliente assíduo, da autoria de Lagoa Henriques. Pessoa, enquanto jovem, reunia-se com um grupo de intelectuais que fundariam o Orpheu, à volta da figura do poeta-general Henrique Rosa (tio adoptivo de Fernando Pessoa).

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O café Nicola, como hoje o conhecemos, resultou de várias remodelações de um espaço, inicialmente criado por um italiano que lhe deu o nome, durante a reconstrução de Lisboa, após o Terramoto. Foi, também ele, local de tertúlia de políticos e artistas, como Bocage, cuja figura é evocada por uma escultura e várias telas. Nessa época, Portugal vivia uma época de grave crise financeira, pois o ouro do Brasil já não compensava o esbanjamento da Corte. O povo era miserável.

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Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) era filho dum bacharel em Direito que terá sido vítima duma armadilha que o manteve preso, sem julgamento, sete anos. O avô materno, Almirante francês, viera para reorganizar a Marinha Portuguesa. E também Manuel Maria enveredaria pela Marinha Real, que o levou como Oficial ao Brasil, Moçambique, Índia e Macau, não sem que por várias vezes tivesse desertado… Nessa época, o talento de Bocage era já reconhecido, não apenas como poeta lírico, mas satírico e erótico. A causa da Liberdade era-lhe cara, os ventos da Revolução Francesa influenciavam-no tanto quanto a repressão ordenada pelo Intendente Pina Manique, que na loucura da Rainha Maria Pia, era quem, de facto, mandava no pais.

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Durante 10 anos Bocage viveu uma vida libertina, mas corajosa na denúncia do despotismo do Intendente. Se esta postura lhe granjeou fervorosos adeptos, inevitavelmente conduziram-no à prisão. “Desordenado nos costumes”‘ foi a acusação feita. Passou pelo Limoeiro (onde viveu em condições sub-humanas) e passou por vários calabouços da Inquisição. Durante a reclusão fez traduções de poetas franceses e latinos. Quando saiu em liberdade, já doente, trabalhou com um frade brasileiro, politicamente bem situado, que lhe garantiu traduções, até à morte. Mas até depois desta, o seu espólio literário foi devassado e adulterado. Eis Bocage, que é bom recordar no ambiente requintado do Café Nicola.

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Já Bocage não sou!… À cova escura/ Meu estro vai parar desfeito em vento…/ Eu aos céus ultrajei! O meu tormento/ Leve me torne sempre a terra dura.// Conheço agora já quão vã figura/ Em prosa e verso fez meu louco intento./ Musa!… Tivera algum merecimento,/ Se um raio da razão seguisse, pura!// Eu me arrependo; a língua quase fria/ Brade em alto pregão à mocidade,

Que atrás do som fantástico corria: // Outro Aretino fui… A santidade/ Manchei!… Oh! Se me creste, gente ímpia,/ Rasga meus versos, crê na eternidade! (Soneto Ditado na Agonia in Rimas)

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Três anos depois do terramoto nasceu uma taberna por baixo de uma das arcadas da Praça do Comércio, que só teria inauguração oficial e solene em 1782, com direito a fanfarra e tudo. Chamava-se “Casa da Neve”. Passou a ser frequentada por nobres e burgueses endinheirados. Porém, o primitivo dono, que desempenhava funções na Corte, arrendou-o a um italiano que lhe mudou o nome para ”Casa de Café Italiana”

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Independentemente da excelência da sua cozinha, O Martinho da Arcada, como depois foi rebaptizado, após outras gerências e designações, foi inevitavelmente local de reuniões literárias. Situado a meio caminho dos bairros históricos, em plena baixa pombalina e virado para o Tejo, era um invejável ponto de encontro.

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Fernando Pessoa era frequentador assíduo, aqui numa imagem “em pleno delitro”. Muita da sua produção poética foi feita aos fins de tarde numa mesa do café; e nos últimos anos de vida, transformado numa espécie de 2ª casa, sobretudo após a morte de sua mãe, com quem vivia juntamente com os meio-irmãos, num andar do edifício, hoje, todo ele, transformado na Casa Fernando Pessoa. Para sobreviver (levava uma vida modesta e pacata) fazia traduções de correspondência estrangeira para várias casas comerciais.

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Pelo Martinho da Arcada passaram importantes políticos e escritores. Entre os últimos Bocage, Cesário Verde, Antonio Botto ou Almada Negreiros. E, claro, Fernando Pessoa. Parece ter sido aqui que tomou o último café com Almada, antes de ser internado e falecer. Pessoa tinha uma mesa permanente, distinção de que gozou também Saramago (talvez intrigado pelo facto de Pessoa não ter previsto o Ano da morte de Ricardo Reis…e que a isso se tivesse dedicado).

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Fernando Pessoa com o escritor Costa Brochado. Poeta múltiplo que escreveu de acordo com as diferentes personalidades que criou, elaborou uma carta astrológica para cada um dos seus heterónimos. Ele próprio (o ortónimo) nasceu às 15,20h, tinha ascendente Escorpião e o Sol em Gémeos). Mas realizou mais de mil horóscopos. A maçonaria e a Rosa-Cruz foram organizações a que terá estado ligado.

39

“Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas… Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada…” (Livro do desassossego/Bernardo Soares)

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Este edidício na Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dt.º, Lisboa, foi a última residência do poeta. Presentemente todo o edifício foi transformado na Casa Fernando Pessoa (1993). Eis excertos do modo como se definia: Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário. “Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria. “Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.“Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».“Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.“Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania”.

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” Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos. Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é objecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana. As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois «amo-te» ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a actividade da alma.”…”É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar.”

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Era um homem magro, com uma figura esguia e franzina, media 1,73 m de altura. Tinha o tronco meio corcovado. O tórax era pouco desenvolvido, bastante metido para dentro, apesar da ginástica sueca que praticava. As pernas eram altas, não muito musculadas e as mãos delgadas e pouco expressivas. Um andar desconjuntado e o passo rápido, embora irregular, identificavam a sua presença à distância.
“Vestia habitualmente fatos de tons escuros, cinzentos, pretos ou azuis, às vezes curtos. Usava também chapéu, vulgarmente amachucado, e um pouco tombado para o lado direito. ..” In
: À mesa com Fernando Pessoa/Luís Machado; pref. Teresa Rita Lopes.- Lisboa: Pandora, 2001.

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“Apesar de conviver com os amigos, no fundo nunca deixou de ser um homem neurasténico, solitário e reservado, pouco dado a conversar com estranhos. No final da sua vida, a melancolia e uma exagerada angústia existencial predominavam. Daí a tendência para se isolar dos mais próximos e dos próprios familiares. O seu temperamento ansioso foi interpretado por alguns dos seus biógrafos como uma personalidade do tipo emotivo não activa. No fundo, era um tímido introvertido, dado a fortes instabilidades de sentimentos e de emoções. In: À mesa com Fernando Pessoa/Luís Machado; pref. Teresa Rita Lopes.- Lisboa: Pandora, 2001.

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Na casa Fernando Pessoa está preservada a biblioteca que lhe pertenceu, desde os livros por ele adquiridos, sobretudo escritos em inglês e francês, aos portugueses, muitos deles oferecidos. Hoje a vasta obra do poeta está digitalizada.

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Móveis e vários objectos pessoais, entre os quais a máquina de escrever, os óculos e blocos de apontamentos complementam o acervo da Casa, que alberga também uma sala multimédia – o Sonhatório.

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…”Toda a vida marítima! tudo na vida marítima! / Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina / E eu cismo indeterminadamente as viagens. / Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte! / Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas! / As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico / Em que não sei por que sugestão aprendida na escola / Se sente pesar sobre os nervos o/ fato de que aquele é o maior dos oceanos / E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós! / A extensão mais humana, mais/ salpicada, do Atlântico! / O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos! / O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater / De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas! / Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos, / Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!…” In Ode Marítima/Álvaro de Campos

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Ilha do Faial e o seu café-bar feito ícone, não só para apreciadores de Gin, mas pelas histórias de viagens, pescadores e marinheiros. Eram outros tempos, mas o gosto é o mesmo e os graffiti da marina também o testemunham.

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José Azevedo (1925-2005) foi quem esteve na origem do nome Peter, por que o café é conhecido. Isto porque umo oficial do navio “HMS Lusitânia II” da Marinha Britânica, ao visitar a ilha em 1939, encontrou grandes semelhanças entre José Azevedo e o seu filho Peter, passando a tratá-lo por Peter, aquando das visitas ao até então “Café Sport”.

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Para além do ambiente cosmopolita do café, José Azevedo, em 1986, inaugurou o Museu Scrimshaw. Este termo refere-se à arte de entalhe, gravação ou pintura em ossos ou dentes de cetáceos. Juntamente com a vizinha ilha do Pico, foi em ambas que a indústria baleeira conheceu até aos anos 80 grande importância, através do comércio do óleo e outros produtos. Muitos faialenses dedicaram-se à criação de artigos de artesanato feitos a partir de partes da baleia, e atualmente, um pouco por toda as ilhas subsiste a oportunidade turística de observação de cetáceos nos Açores.

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No Porto, como aliás noutras cidades do país, assiste-se ao desaparecimento ou degradação de cafés tradicionais, dada a desertificação nocturna das zonas históricas pelas populações, atiradas para a periferia. Os que persistem são, sobretudo, mantidos pelos turistas.

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Em plena Rua de Santa Catarina sobrevive um café que pretende manter o glamour da “belle époque”. Em funcionamento deste 1921, o luxuoso café Majestic dispõe de um ambiente arte nova, onde o luxo evoca inúmeras histórias. Aqui se encontravam periodicamente intelectuais como José Régio, Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra. Era também um centro de boémia. Discutiam-se questões políticas, sociais e filosóficas, regadas a café.

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Recebeu, também, ao longo do século a visita de outras grandes personalidades, como Gago Coutinho ou Beatriz Costa.

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Outrora, era no café A Brasileira do Porto que convergia a alta sociedade portuense. Fundado pelo inovador Adriano Teles, que lançou o hábito de servir café em chávena em 1903, este estabelecimento funcionou até 2008, sofrendo depois diversas alterações. Recentemente, soube-se que o espaço vai ser requalificado com construção de um hotel, mas conservando o café.

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A Cantina da Universidade de Lisboa. Clássica – nem Técnica nem Nova. Cantina Velha, depois; agora de novo Cantina, já que a Nova encerrou.

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A fotografia actual revela um imóvel sem diferenças visíveis, mas onde no seu interior muito se modificou. Na década de 60, fruto da situação política , crescia a consciência contra a ditadura.

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Tímidamente, mas, à medida que a mobilização militar dos estudantes aumentava, mais a consciência política crescia. Da Mocidade Portuguesa do Estado Novo (de saudação romana de braço estendido) nasciam os associativos que iriam revolucionar a Universidade. Também a actividade cultural era intensa. Apareciam Grupos de Teatro (sobretudo, o de Direito), a participação no Festival de Nancy…

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Na Cantina comia-se, entre 61-68 por 8$00. E nos intervalos muitos estudavam. No primeiro piso (à direita na imagem) existem uns separadores que permitem uma certa intimidade. Havia quem tivesse “lugar cativo”. Quase à entrada era o lugar de eleição do Ruy Belo. Mas muitos estudantes haveriam de ser gente notável, não só na profissão, como fora dela. O Antonio Lobo Antunes, por exemplo, que não era frequentador assíduo. Como também o João Varela, que trouxera de Coimbra a auréola de aluno brilhante, a quem os colegas iam assistir aos exames, e que viera concluir o curso em Lisboa.

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Do João Varela, que depois partiria para a Bélgica, onde fez uma carreira notável de investigador e professor na área das Neurociências, devo o primeiro contacto com Saint-John Perse, T. S. Elliot , os clássicos gregos e a revisão da Bíblia, que ele considerava, não por razões religiosas, um livro belíssimo. Leio agora artigos de quem se insurge pelo facto de não lhe ter sido atribuído o Prémio Camões. João Manuel Varela ou T. T. Tiofe ou G. T. Didial ou João Vário – os vários pseudónimos que utilizou.

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É uma poesia narrativa, com uma riqueza de imagens por vezes asfixiante. As citações, alusões aos clássicos fazem a sua poética densa, um tanto hermética. De facto, à altura de um Pound. Como é possível os críticos não se terem apercebido disso, as reedições só timidamente começarem a aparecer? Poeta maior, caboverdeano do Mindelo, onde também morreu aos 70 anos, dos maiores poetas da língua portuguesa.

…Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,/ Aquele blasfemíssimo comentário,/ E então consta que amámos.

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E então subimos aquele grande rio/ e as portas do Ródão, chamadas. Era em abril/ dois dias depois da neve/ e da cidade dos nevões, na serra./ E olhamos para os penhascos da beira-rio,/ as oliveiras, o xisto, a cevada/ as ervas de termo, e as colinas./ E, junto da via férrea, os homens do país/ miravam-nos como se fossemos nós e não eles os mortos desta terra,/ homens do medo e do tempo da discórdia/ que trazem para o cimo das estradas/ a malícia que vai apodrecendo/ seus pés neste mundo e em terras de outrém./ Que fazeis do mundo e/ da sua chama imponderável, os homens,/ perdidos que estais, hoje como ontem, entre a casa e o limiar?/ E evocamos, mais uma vez, esse provérbio sessouto./ E, na verdade, porque/ regressaremos,/ após tantos anos, a este tema?/ Será que a morte nos ensinou/ a olhar para o homem com pavoroso êxtase? (João Vário)

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Aqui a velha Pastelaria S. Carlos, no Bairro Santos ao Rego, em new-look, onde se juntavam muitos estudantes cujas famílias não residiam em Lisboa.

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A crise académica de 1962 foi um dos mais importantes acontecimentos políticos do ano. Logo no dia 1 de Janeiro gorara-se uma tentativa de golpe de Estado em Beja; poucas dias antes do Natal as tropas indianas haviam anexado o chamado Estado Português da Índia; e meses antes ocorrera o assalto ao navio Santa Maria por um grupo oposicionista capitaneado por antigo apoiante de Salazar; como, em Angola, se tinham iniciado motins sangrentos. Tais acontecimentos chamaram a atenção do Mundo para este país bucólico e rural.

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A velha pretensão dos alunos em comemorarem o seu Dia do Estudante foi uma vez mais proibida pelo governo, desta vez em Fevereiro. Numerosos estudantes da Universidade Clássica de Lisboa reagiram e ocuparam a cantina universitária. A repressão policial não se fez esperar. Mas os antecedentes desta crise vinham já muito detrás. A promulgação do decreto 40900, em 1956, que visava controlar e espartilhar a actividade das Associações de Estudantes e esvaziar algumas das suas funções, foi um rastilho. Perante as numerosas manifestações de repúdio, a Assembleia Nacional fê-lo baixar à Câmara Corporativa, o que significava um recuo governamenteal. Mas a repressão aumentou: numerosos estudantes foram presos e encerradas várias Associações de Estudantes. A partir daí a vida associativa encontrava-se num vazio legislativo.

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Voltando a 1962: a Academia de Lisboa decide realizar uma greve de protesto, intitulada “Luto Académico”. Mais concentrações e numerosas são as acções repressivas da “Policia de Choque”. O Estádio Universitário é palco de numerosos plenários, mas também noutros locais da Cidade Universitária se discutem os caminhos a seguir. Organizam-se “convívios” que são reuniões mais restrictas e com cariz mais politizado, sem que no entanto houvesse uma corrente predominante e declarada. Lutava-se pela liberdade associativa, desde católicos até jovens que mais tarde militariam em partidos à esquerda. Há tentativas de negociação, mas o Governo é intransigente. Espera que a pressão dos pais e a ameaça da perda do ano por faltas, dissuada os estudantes. Mas pouco efeito surte. Alguns docentes universitários e intelectuais manifestam-se abertamente contra a política governamental, como foi o caso do Prof. Luis Lindley Cintra que chegou a ser agredido pela polícia.

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Às manifestações, o Governo responde com repressão. A data do Dia do Estudante é transferida, mas mesmo com a intercessão de Marcelo Caetano, é impedida. Era a autonomia universitária o que estava em jogo. O Governo pretendia estrangulá-la. O Decreto-Lei 40900 só permitia a tomada de posse dos dirigentes associativos depois de autorização do Ministério, previa a participação de um “delegado permanente do director da escola” em todas as reuniões associativas e dava ao Ministro o poder de substituir as direcções eleitas por “comissões administrativas” nomeadas por ele, suspender o seu funcionamento ou mesmo extingui-las.

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Marcelo Caetano, que sentia a “corporação universitária” ameaçada, demite-se de Reitor e iria manter uma distancia “higiénica” do Governo até à doença de Salazar. Na Universudade prossegue a violência.

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Em Maio um grupo de estudantes inicia uma Greve de Fome nas instalações da Cantina. Pela madrugada do 3º dia a Cantina é cercada pela Polícia de Choque e cerca de 1500 estudantes são presos (lembro-me, como se fosse ontem, também eu, no meio de mais de 85, fiz greve de fome, que apenas durou o tempo de não querermos levantar-nos do sofá, de nos sentirmos fracos, de sermos visitados por Profs. como Lindley Cintra e Barahona Fernandes. À nossa volta muitas centenas de colegas davam-nos protecção. Mas a Polícia impediu a nossa “heroicidade”. Quando nos prenderam, levaram uns para o Quartel da Polícia Móvel e outros para Caxias. Decidiramos que se perguntassem se tinhamos feito greve de fome , o confirmassemos, mas só o fizeram a quem levaram para Caxias. Eu fui para o quartel da Polícia na linha do Estoril…)

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A alguns foram levantados processos disciplinares e irradiados da Universidade. Vários iriam partir para o exílio. O conflito atenua-se até perto dos exames. Mas fora criada ou cimentada uma nova consciência de liberdade. E a contestação académica iria renovar-se e agudizar-se poucos anos depois. 1962 foi o meu ano de caloiro.

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E, em Coimbra como evoluiram os acontecimentos? A Universidade é uma das mais antigas do mundo em actividade. Lógico, que tenha permanecido até hoje o culto pelas suas tradições. Porém, houve alturas em que o modo de introduzir os novos alunos na academia e as regras que lhes eram impostas, (a praxe) compreendiam práticas de humilhação ou mesmo sadismo. O espírito boémio e trauliteiro de muitos dos alunos nada tinha a ver com as ideias libertárias que iam evoluíndo. Passou a ser-se praxista ou anti-praxista.

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As Repúblicas – algumas ainda existentes como esta (Os Galifões), são espaços tradicionais que albergam estudantes do ensino superior e por eles são geridos. Aqui pernoitaram os estudantes que se deslocaram para o I Encontro Nacional de Estudantes, no princípio de Março de 62 e que também a mim me acolheu.

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Porta Férrea – Realizaram-se encontros entre membros das duas academias. As Associações de Estudantes que ainda não tinham sido proibidas e os núcleos que pretendiam recriar as extintas pelo governo (as Pró-Associações) aproximavam-se e atrás das reivindicações de automomia universitária e associativa académicas crescia a consciência política que a repressão policial facilitava. Foi uma lufada de ar fresco.

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Já em 1961, a revista Via Latina, orgão da Associação Académica de Coimbra, publicara um texto Carta a uma Jovem Portuguesa, que deu origem a viva polémica com os jornais mais reaccionáros do regime, que a consideraram ultraje à moral pública. O autor do texto, Marinha de Campos, foi afastado pelo receio da revista ser encerrada. Eis excertos: Vou escrever para ti jovem portuguesa e particularmente para ti, jovem estudante da nossa cidade. Não tenho a fazer a apologia de qualquer tipo de ideal; ensinar-te qualquer doutrina, defender fanaticamente uma moral (…)
A minha liberdade não é igual à tua. Separa-nos um muro alto e espesso, que nem tu nem eu construímos. A nós, rapazes, de viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que em relação a vós nos favorece. Para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietante da sombra e da repressão mental (…)
Só nos é permitido atravessar o muro para escolhermos. E eu escolho-te a ti jovem portuguesa (…)
Tu, vítima de todos nós e de ti mesma. Tu, vítima do nosso desejo não concretizado e portanto falseado e iludido (…)

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Café A Brasileira …”Tens a inconsciente e mal definida sensação de que há um sistema social mais forte que tu ou eu e no qual devemos integrar, sob pena de ficarmos sós e desamparados. Há um determinismo social que te oprime e te define (…)
Viver dentro da juventude não se ensina, aprende-se vivendo. E a jovem e o jovem português não vivem dentro dela (…)
Jovem Portuguesa! Dou-te a minha mão e o meu corpo. Sinto os teus dedos, o teu braço. Sinto um corpo jovem junto do meu. Mas não sou um molde; sou um jovem diferente de ti. Um rapaz para quem o amor por ti é a concretização sexual, única diferença nas relações entre o homem e a mulher que devem decorrer no mesmo plano de homem para homem.

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Dos cafés de 1962, muitos desapareceram, transformados em espaços para outras actividades. Os poucos que persistem testemunham a memória dessa época. Antigo Arcádia junto à Brasileira que, como esta, foi vendido para loja de roupa há anos e não voltou ao ramo, como aconteceu com a Brasileira.

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Mandarim, talvez o mais icónico dos cafés da época. O seu ambiente era inesquecível. Coabitavam desde os Jovens de Portugal (organização de cariz fascista que apoiava o Estado Novo) até aos anarquistas e comunistas, sempre sob a vigilancia disfarçada dos Pides… Era um corropio de entradas e saídas. O bitoque, o “Combinado número 5” e o bife à Mandarim ficaram célebres.

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O Café de Santa Cruz que se mantem activo com enorme esforço, para sobreviver e revitalizar a baixa moribunda de Coimbra.

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Lisboa, Café VÁ-VÁ, cruzamento das Avenidas de Roma com a dos Estados Unidos. Nos anos 60 era um ponto de encontro de intelectuais, estudantes universitários, jornalistas e cineastas. Por lá terá nascido o que se chamou o “Cinema Novo”. Fernando Lopes, Cunha Telles, Seixas Santos, Antonio-Pedro Vasconcelos, Paulo Rocha, João César Monteiro, Lauro António eram presenças assíduas. Representou a ruptura gradual do cinema com a degradação que vinha da década anterior.

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Desse tempo, apenas restam os paineis de azulejos de Menez e a saudade. A decadência em que se encontra, entristece. A distinção e classe do café nos anos 60 nada tem a ver com aquilo que é hoje.

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Foi na Tóbis que se iniciou praticamente o cinema sonoro português. Muitas obras do período da comédia portuguesa, centrados na popularidade de actores como Vasco Santana, Antonio Silva ou Beatriz Costa, aqui foram realizados, com particular destaque para a Canção de Lisboa de Cottinelli Telmo. Mas também, o Costa do Castelo, O Leão da Estrela ou O Grande Elias, todos de Arthur Duarte. Eram comédias em que o público se identificava com os protagonistas, filmes que não precisavam de legendas, que contavam histórias simples, por vezes hilariantes e que não faziam pensar, onde a felicidade estava assegurada, sem desassossegos grandes. A vida era um Pátio das cantigas… Foi um período que se estendeu entre os anos 30 e 40. Os Anos Dourados do cinema português.

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Depois, a pouco e pouco , foram-se ensaindo temas mais “patrióticos” ou tentando adaptações de obras literárias importantes. É mais Brum do Canto, António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros. Apesar de apoiado pelo governo de Salazar, a produção de filmes diminui, até se chegar ao ano de 1955, conhecido pelo ano zero (não foi estreado qualquer novo filme português).

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Nessa altura, os mais novos iniciaram contactos com o cinema francês e a nouvelle vague. A formação era diferenciada: uns fizeram estágios ou trabalharam com realizadores importantes como Renoir; outros provieram da crítica, da fotografia e dos cineclubes; outros com concepções novas não só de realização como da produção. Pretendiam aproximar-se do “cinema de autor”, abordar a vida dos seres humanos, os seus conflitos, abandonar o folclore de bairro típico do cinema anterior. Manoel de Oliveira, desde Aniki-bobó tinha sido a única excepção, e que se manteria até hoje, a realizar tranquilamente a sua obra. D. Roberto de Ernesto de Sousa e Os Verdes Anos de Paulo Rocha, devem ter sido os primeiros filmes desta ruptura.

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O Cinema Novo muito deve a  Cunha Telles. A sua actividade desdobrou-se entre realizador e produtor, além de se ter envolvido noutros projectos sempre ligados ao cinema. Para começar frequentou uma escola de cinema em Paris (IDHEC). Depois, foi produtor de Os Verdes Anos (1963) de Paulo Rocha e Belarmino (1964) de Fernando Lopes, fracassos financeiros que o arruinaram. Em algumas salas, o público, habituado às fórmulas tradicionais das fitas portuguesas chegou a exigir de volta o dinheiro dos bilhetes, partiu cadeiras, etc. Cunha Telles não desistiu. Realiza vários filmes, como o Cerco em 1970 e funda uma distribuidora que passa pela primeira vez em Portugal realizadores, como Eisenstein ou Bertolucci. Ao novo cinema aderem os jovens universitários, gente do reviralho, público mais culto.

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O Cerco de Antonio Cunha Teles, já de 1970, consagraria Maria Cabral, a quem foram atribuídos vários prémios e que seria considerada um símbolo do Cinema Novo. Cerco estará presente na Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes de 1970 e será o grande sucesso do Novo Cinema. A principal importancia destes filmes foi o facto de, exibidos em festivais internacionais, serem reconhecidos e alguns premiados, criarem curiosidade, depois interesse, público e apoios.

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Fernando Lopes é outro dos realizadores responsáveis por este cinema novo. Vem dos cineclubes, frequenta a London Film School, como bolseiro e torna-se realizador. Em 1964 filma Belarmino, baseado na vida daquele que foi um grande pugilista. Faz também Uma Abelha na Chuva (1971) e O Delfim (2002), que são as suas obras mais significativas. Durante vários anos foi Director do 2º canal da RTP, que conheceu uma fase de excelente programação: “O canal do Lopes”). “Não concebo o meu cinema de outra maneira que não essa da permanente viagem ao coração das trevas que cada um de nós tem em si.” …“O que há de fabuloso no cinema é aquilo que magicamente passa para cá do ecrã. Ou seja, de como esse sonho nos vem habitar e de como o habitamos.”

Lopes em jeito de auto-biografia: “Que é o cinema mais do que o box não me dizes? Também no cinema não se janta nada, mas nem por isso somos infelizes” …”Campeões com jeito é nossa vocação , nosso trejeito. Retrato final (genérico de fim). Bebi demais (não me arrependo). Fumo demais (nao me arrependo). Comovo-me demais (não me arrependo). Sou um erro sociológico.

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António-Pedro Vasconcelos considerou “Belarmino”, como “o melhor filme feito em Portugal e em qualquer parte sobre uma personagem“.

Como Fernando Lopes conheceu o pugilista: Conheço o Belarmino em 61/62, acabava de chegar de Londres. Tinha feito a primeira curta-metragem, «As pedras e o tempo», que, de certo modo, é um prenúncio de um novo cinema português. Na altura já trabalhava na RTP como realizador. O grupo da RTP parava muito Ribadouro e no Parque Mayer. A noite acabava às seis da manhã. Uma noite vou com o (Baptista) Bastos ao Clube dos Artistas beber mais um copo. O guarda-costas, o Leão de Pedra como se chamava, era o Belarmino, que eu sabia que tinha sido um grande boxeur mas que já não combatia… Achei que ele tinha um físico de John Garfield! E que se mexia como os portugueses não sabiam mexer. Passado pouco tempo, sai no «Diário de Lisboa» uma pequena notícia sobre um combate falso que o Belarmino tinha feito em Inglaterra, em que tinha sido pago para perder. Apanhei a notícia e disse ao Bastos «Temos de pegar nisto. Isto é um filme»….Nessa altura já não era segurança, andava a engraxar sapatos na Baixa. Fui ter com ele e disse-lhe «Quero fazer um filme contigo»

Mas outros falam de Belarmino. O meu amigo Sebastião, dono do Bonaparte de que falarei adiante, recorda: Conhecia o Belarmino. Tratava-me por Padrinho. Quando regressei de Paris, encontrei-o a engraxar sapatos ao pé do Condes. Perguntei-lhe: – Então, o que fazes agora? – Sou artista de cinema! – Mas, e estás a engraxar sapatos?! –É que estou teso e preciso de ganhar umas coroas…

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Estes são realizadores e obras importantes do Cinema Novo. O que trouxeram, foi uma visão inédita sobre a vida das pessoas e da sociedade no tempo do Estado Novo. Influências do Neo-realismo e da Nouvelle Vague, sobretudo. João César Monteiro foi outro realizador vanguardista: Quem espera por sapatos de defunto morre descalço ou Recordações da Casa amarela, filmes fundamentais. Mas é longa a lista de realizadores a que este café está ligado. Hoje, o que resta são os painéis de azulejos de Menez, mal tratados, desprezados.

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Vá-Vá foi o berço do Cinema Novo português. Ou o Ninho dos lacraus, como lhe chamavam na década de 60. Dirigentes associativos, jovens – eles e elas, que liam a Cartilha do Marialva do Cardoso Pires ou O 2º Sexo da Simone de Beauvoir e despontavam para maior liberdade sexual e questionavam os dogmas da moral hipócrita do regime. E mais uns livros proibidos, comprados clandestinamente a livreiros de confiança… Mas também homens do jazz e os jovens que começavam a fazer uma nova música, arredando-se do nacional-cançonetismo, também por lá moraram. Outros cafés das Avenidas Novas foram centros de tertúlia, como o Nova York (hoje balcão de um Banco), onde pontificava o Eduardo Prado Coelho ou a Suprema.

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Pergunto ao vento que passa/ notícias do meu país/ e o vento cala a desgraça/ o vento nada me diz./ o vento nada me diz//. Pergunto aos rios que levam/ tanto sonho à flor das águas/ e os rios não me sossegam/ levam sonhos deixam mágoas// Levam sonhos deixam mágoas/ ai rios do meu país/ minha pátria à flor das águas/ para onde vais? Ninguém diz.// Se o verde trevo desfolhas/ pede notícias e diz/ ao trevo de quatro folhas/ que morro por meu país//.Pergunto à gente que passa/ por que vai de olhos no chão/ Silêncio — é tudo o que tem/  quem vive na servidão// Vi florir os verdes ramos/ direitos e ao céu voltados./ E a quem gosta de ter amos/ vi sempre os ombros curvados// E o vento não me diz nada  ninguém diz nada de novo./  Vi minha pátria pregada/ nos braços em cruz do povo//…

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Vi minha pátria na margem/  dos rios que vão pró mar/ como quem ama a viagem/ mas tem sempre de ficar./ Vi navios a partir/ (minha pátria à flor das águas)/ vi minha pátria florir/  (verdes folhas verdes mágoas)//Há quem te queira ignorada/ e fale pátria em teu nome./ Eu vi-te crucificada/ nos braços negros da fome.// E o vento não me diz nada/ só o silêncio persiste./ Vi minha pátria parada/ à beira de um rio triste// …Ninguém diz nada de novo/  se notícias vou pedindo/ nas mãos vazias do povo/  vi minha pátria florindo// E a noite cresce por dentro/ dos homens do meu país./ Peço notícias ao vento/ e o vento nada me diz// Quatro folhas tem o trevo/ liberdade quatro sílabas./ Não sabem ler é verdade/ aqueles pra quem eu escrevo.// Mas há sempre uma candeia/ dentro da própria desgraça/ há sempre alguém que semeia/ canções no vento que passa// Mesmo na noite mais triste/ em tempo de servidão/ há sempre alguém que resiste/ há sempre alguém que diz não. (Manuel Alegre)

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Em Alfama havia na década de 70 um bar/restaurante na Rua de S. Miguel, que foi para mim um verdadeiro observatório dos anos de brasa, que antecederam o Golpe Militar de 25 de Abril e a revolução que se seguiu. Se antes, pouco o frequentei por ter estado na guerra, depois do Verão de 73, passei a assíduo cliente. O dono era um homem entroncado, de estatura meã, tipo Lino Ventura, que vivera muitos anos em Paris. Lá comi pela primeira vez cous-cous e einsbein. E aprendi a gostar de música francesa, Serge Réggiani, Leo Férré, Serge Lama… Chamava-se Bonaparte e o patrão – Sebastião. “Careca“, para os amigos. Um dos meus filhos, chegou a lá ir ainda dentro da alcofa.

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Aí aparecia gente de toda a esquerda. Desde revolucionários que militariam na UDP, MRPP, BR, LUAR, a mais ortodoxos do PCP ou do PS, quando este se reclamava partido marxista. Outros ignorava-lhes a inclinação. Ao interior acedia-se por uma espécie de ponte sobre um minúsculo riacho. Uma outra zona tinha um primeiro andar protegido por umas ameias que resguardavam intimidades ocasionais de olhares indiscretos. Na noite do assalto à Embaixada de Espanha, lembro-me de ter visto entrar um pequeno grupo com ar “ganzado”. Uma jovem repetia perseverantemente “queimar, matar“. Felizmente, ninguém foi morto, mas o episódio deixou marcas de preocupação entre muita gente. A Guerra Civil esteve à porta.

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Por lá apareciam também cantores de intervenção. De alguns me lembro, como o Adriano Correia de Oliveira ou o Vitorino. Como de militares, como Aventino Teixeira, que conhecera na Cantina, quando, Capitão da Administração Militar quiz fazer o curso de Direito. Aventino, homem inteligente, brilhante, culto, irreverente.

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O Sebastião, nascido em Alfama (Largo do Chafariz de dentro), foi um amigo para a vida. Como pouca gente, era de uma generosidade e disponibilidade incomparáveis. Os verdadeiros amigos são raros.

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Alfama hoje está diferente, mas talvez conserve o essencial. Para mim, a memória do PREC e de alguns outros lugares. Como a Guitarra de Alfama (do Alexandre), onde na minha época de estudante recitava poesia, acompanhado à guitarra e viola.

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O Procópio é um bar emblemático de Lisboa. Abriu em 1972, meses antes do aparecimento do Expresso, curiosamente coincidentes na “Primavera marcelista” ou já no desencanto de quem esperara por uma abertura do regime político. Situado junto ao Jardim das Amoreiras, perto da Fundação Arpad Szenes-Maria Helena Vieira da Silva. O seu acesso faz-se por uma pequena escadaria de pedra no alto da qual um chafariz centenário parece dar as boas vindas.

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Terei lá entrado pela primeira vez em Dezembro do ano da inauguração. A decoração Arte Nova conserva-se até hoje, agora enriquecida por quadros, utensílios, caricaturas de gente notável que por ali passou. Hoje há uma mistura de gerações, os mais novos talvez trazidos pelos mais velhos, mas que aqui encontram o ambiente que a todos seduz.

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De artistas como Malangatana Valente, José Fonseca e Costa a políticos como Medeiros Ferreira ou militares como Aventino Teixeira. Lembro-me de ficar fascinado a ver no balcão um pato em vidro cheio de gás com uma densidade diferente que oscilava cada vez mais perto de um recipiente com água, onde mergulhava o bico, para logo girar, atirado para trás e os movimentos se repetirem incessantemente.

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A frequência actual não difere muito da da década de 70, novos e velhos. Mas a seguir a 74 e no período revolucionário até final do ano seguinte, a política, a discussão sem mordaça, a tudo aqui se assistia. O segredo do bar e da sua longevidade – nem novo nem velho – clássico, não só na decoração, como no acolhimento. Mérito dos donos e do profissionalismo que quem nos recebe.

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Recomendados:

http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/

http://memoria-africa.ua.pt/Library/JoaoVario.aspx

http://www.redejudiariasportugal.com/images/livros/refugiadosdaiiguerra.pdf

http://www.cinemateca.pt/CinematecaSite/media/Documentos/Fernando-Lopes-Profissao-Cineasta.pdf

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Os autores agradecem a colaboração de Francisco Vaz Garcia, Pedro Tomé, Karim Sima e Maria José Carrapa

Veja o vídeo:

Florbela, contradições e enigmas

A mãe biológica de Florbela foi uma espécie de barriga de aluguer para uma criança que o pai desejava (mas que só reconheceria 19 anos depois de morta, quando o seu talento era reconhecido e as obras iam sendo publicadas) e que, no entanto, educou e apoiou durante toda a vida. A mãe biológica (Antonia Lobo, de seu nome), empregada doméstica, teve ainda mais um filho da mesma relação, que sempre estaria muito ligado a Florbela. Quer isto dizer que o pai manteve uma relação extraconjugal durante bastante tempo, a qual era na época socialmente aceite, por a esposa ser estéril. Foi, pois, mais que barriga de aluguer, mas da mãe biológica há raros escritos que testemunhem proximidade afetiva. E foi a esposa do pai, sua madrinha de batismo, que desempenhou o papel de mãe adotiva e a quem a jovem dispensava, a ela sim, afecto genuíno.

Foi no meio desta família que Florbela cresceu. Do pai adotou precocemente o apelido Espanca, embora a sua condição de filha de pai incógnito, o não concedesse. Da sua vida amorosa registam-se três casamentos, dois divórcios e vários outros casos que traduzem o seu espírito apaixonado, excessivo, romântico, instável, contraditório, em busca de mais além, do sonho, do que não existe e, em cada desilusão, sempre pronta a recomeçar, como Sísifo, condenado a carregar uma pedra até ao cume de uma montanha e lá chegado a pedra rolar montanha abaixo até ao sopé e ele retomar a tarefa indefinidamente.

Como se casou Florbela com um oficial da GNR ou com um médico, a quem não se reconheciam inclinações artísticas? Aliás, parece ter havido diversos episódios sentimentais com outros médicos que a trataram, mesmo na vigência dos matrimónios. Porquê a atração por pessoas tão diferentes de si? Há quem admita ainda uma relação incestuosa com o irmão ou lésbica com uma amiga, mas provavelmente tratar-se-ia apenas de maledicência resultante da forma emotiva como exprimia os seus sentimentos.

Egocêntrica, coquete, sedutora, independente, embora melancólica e apaixonada, estaria sempre avançada em relação aos preconceitos e mesquinhez das cidades onde viveu – Vila Viçosa, Évora, Lisboa, Porto, Matosinhos. A própria família a censurava. Foi das poucas alunas não só do Liceu de Évora como da Faculdade de Direito de Lisboa, que frequentou durante três anos. Escandalizava a sociedade urbana defensora dos “bons costumes” pelo atrevimento de fumar em público, beber e pela sua vida boémia. Porém, para sobreviver, nomeadamente durante o primeiro casamento em que experimentou dificuldades financeiras, deu explicações, fez traduções de romances franceses e colaborou em jornais e revistas de índole diversa.

Os seus primeiros versos foram escritos logo na infância, mas em vida apenas viu publicados duas obras de poesia, Livro de Mágoas e Livro de Sóror Saudade. Postumamente surgiram os contos, a correspondência e o fundamental Charneca em flor, para o qual em vida não obteve editor. Mas foram os sonetos que a tornaram famosa.

Vários episódios traumatizantes tê-la-ão marcado profundamente. Um, foram dois abortos involuntários, o outro, a morte do irmão, Apeles Espanca, mais novo que ela três anos, num acidente no avião que tripulava. A sua faceta frágil, sofrida e o desejo da morte são aqui manifestos. Mas, para além da sua sensibilidade, tinha a coragem de se afirmar contra o espírito tradicional que atribuía (e atribui) um papel secundário à mulher. Além de escrever – e por vezes com veemência, de modo a subentender a liberdade sexual, a sensualidade e erotismo latente de alguns dos seus poemas, fizeram dela uma defensora da emancipação da mulher e precursora do movimento feminista em Portugal, para escândalo de muita gente.

Coexistiam, pois, em Florbela, várias vertentes, porventura antagónicas. Por um lado a fragilidade, carência afetiva, melancolia, por outro, uma faceta provocante, irreverente. Mulher reiteradamente apaixonada, de paixões eternas enquanto duravam (como diria Vinicius) que viria a antecipar-se ao que seria a afirmação da plena liberdade sexual da mulher, como teorizada e posta em prática por Simone de Beauvoir, por exemplo.

Florbela assistiu à queda da monarquia, às revoluções quase diárias da I República, curtas ditaduras, repressão, enfim ao ambiente politicamente febril do princípio do séc. XX português que culminaria com o 28 de Maio de 1926, que traria depois Salazar ao poder. Porém a sua obra não reflete aquela realidade política nem social. A pobreza alheia, a exploração, abandono, solidão de muitos que vê à sua volta, tão-pouco são preocupações manifestas. Também o movimento modernista que despontava em Portugal e teve os seus expoentes maiores no Orpheu de Fernando Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros, não influenciou a escrita de Florbela. O rompimento com o passadismo literário, a construção de versos livres, sem rima, com estrofes e ritmo não espartilhados, não deixaram marca na poesia de Florbela. Esta olha para dentro de si, para aqueles por quem se apaixona, fala de afetos mas também do desejo, fala da tristeza. É sempre um percurso íntimo, é Antonio Nobre quem talvez mais a influencie. Deseja a morte, percebe-se que a prepara, faz duas tentativas de suicídio. E romanticamente escolhe uma data simbólica, um duplo aniversário, o seu e do seu primeiro casamento, para a consumar: dia 8 de Dezembro de 1930. Tinha 36 anos.

Considera-se Florbela uma poetisa do Alentejo, entendendo-se que a planura extensa e triste, os montes aqui e ali, os pequenos rebanhos dispersos, as árvores de pequeno porte e a luminosidade intensa, possam contribuir para a reflexão e para o que transparece em muita da sua poesia – tristeza, solidão, silêncio. E, no entanto, tirando a infância e adolescência, encontramo-la em muitas outras regiões do país. E nas cidades tornou-se notada pelas suas toilettes, pelo cosmopolitismo de que fazia gala e mesmo por um certo pretensiosismo.

Os casamentos, os divórcios, os amantes causaram escândalo. Esta amálgama de posturas – uma interior triste, carente, sôfrega e outra provocante, vaidosa, exibicionista, suscitaram fascínio pelos seus biógrafos. Agustina Bessa-Luis conseguiu gradualmente uma proximidade íntima com a sua obra, mas não foi de meias palavras: “É uma infame essa Florbela. Uma pegazinha, uma cabotina, uma batoteira no jogo dos corações solitários. Imita as divas do cinema, mas nela transparece sempre a bastarda com poses de leitora num parque. Sangue de criada e de remendão, doida por esconder a campónia atrás das mãos esguias, finas como hastes quietas”.

O artista é fruto do ambiente que vive, da riqueza das suas experiências? Não, necessariamente. Como Florbela, Fernando Pessoa quase passou literariamente despercebido em vida. E os contrastes entre a sua vida profissional monótona de empregado de escritório e o fantástico espólio que legou, não permitem comparação com o meio social em que Florbela viveu, nomeadamente em Lisboa e Porto.

A vida e obra de Florbela têm sido analisadas sob pontos de vista diferentes. Para além do literário é o psicológico. Numerosos ensaios foram publicados sobre a personalidade de Florbela. Filha ilegítima dum pai que não a reconheceu como tal em vida; ela própria, mãe falhada sofrendo os traumas de dois abortos involuntários; a morte de um irmão que, mais do que tudo, era um cúmplice – sua imagem de espelho da conjugalidade paralela do pai Espanca; três casamentos fracassados, vários affaires, mesmo na vigência dos casamentos; períodos da Belle Époque à portuguesa; obra literária escassamente reconhecida…

Hoje alguns poemas de Florbela fazem parte do património da cultura portuguesa, lidos, cantados, declamados. Exprimirão essa catacterística tão subtil que muitos classificam de espírito feminino? Quantos enigmas da sua personalidade estarão por desvendar?

FM

 

Imagem1“Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: Aqui… além…/ Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente/ Amar! Amar! E não amar ninguém!// Recordar? Esquecer? Indiferente!…/Prender ou desprender? É mal? É bem?/ Quem disser que se pode amar alguém/ Durante a vida inteira é porque mente!// Há uma Primavera em cada vida:/ É preciso cantá-la assim florida,/ Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!//E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada/ Que seja a minha noite uma alvorada,/ Que me saiba perder… pra me encontrar…” Imagem2Foi próximo do Palácio de Vila Viçosa que Florbela nasceu, na que hoje se chama Rua Bento de Jesus Caraça, e na vila a criança se manteve entre 1899 e 1908, onde frequentou a escola primária.

Imagem3Fotografia do edifício onde nasceu Florbela em 1894.

Imagem4Nos anos 40, o edifício foi demolido. Este é um Memorial que o evoca.

Imagem5Até que ponto a opulência do Palácio, a proximidade com os reis que aqui passavam largas temporadas viriam a influenciá-la no requinte e até snobismo e vaidade que evidenciaria nos círculos boémios e literários que frequentou, nomeadamente durante a sua vida em Lisboa? Porém, na sua obra não se encontra referência ao regicídio, nem de ter sido daqui que partiu D. Carlos em 1 de Fevereiro, tinha ela 13 anos, para a sua última ida a Lisboa. Significativo foi também o facto de se encontrar em Lisboa, hospedada no Hotel Franckfort no Rossio, hoje desaparecido, quando ocorreu o 5 de Outubro que derrubou a monarquia. Talvez que o facto de seu pai ser republicano convicto, a tivesse influenciado.

Imagem6Com o pai e o irmão Apeles, mais novo que ela três anos. O pai era um homem eclético: passou de sapateiro a antiquário e negociante em cabedais, abriu uma casa de fotografia, foi pioneiro do animatógrafo; e atribuía-se-lhe talento para o desenho e pintura. Como do seu casamento não podiam resultar filhos, com a condescência da esposa, procurou uma mulher de condição humilde (criada de servir) para conseguir descendência. Essa mulher era muito bonita e quando a criança nasceu (Florbela, de seu nome) foi levada para casa do pai, onde a mãe só entrava para amamentar. A “madrasta” – a quem chamava madrinha, tê-la-á tratado como se filha biológica se tratasse.

Imagem7Mas o pai, que tinha fama de conquistador, tomara o gosto pela mãe de Florbela e, como desejasse um filho varão, ainda nasceu mais uma criança, Apeles de seu nome. Depois, a mãe de ambos deixou Vila Viçosa, após ter-se envolvido em nova relação.

Imagem8“Eu sou a que no mundo anda perdida/ Eu sou a que na vida não tem norte/ Sou a irmã do Sonho, e desta sorte/ Sou a crucificada… a dolorida…// Sombra de névoa ténue e esvaecida,/ E que o destino, amargo, triste e forte,/ Impele brutalmente para a morte!/ Alma de luto sempre incompreendida!// Sou aquela que passa e ninguém vê/ Sou a que chamam triste sem o ser…/ Sou a que chora sem saber porquê…// Sou talvez a visão que Alguém sonhou…/ Alguém que veio ao mundo pra me ver/ E que nunca na vida me encontrou!”

Imagem9Em 1908 – ano em que a mãe biológica morreu de parto, Florbela e a família foram para Évora, para a jovem prosseguir os seus estudos no Liceu André Gouveia, com o chamado Curso Geral do Liceu, que concluiu em 1912.

Imagem10Florbela no Redondo, em criança (canto inferior esquerdo).

Imagem11Vista atual dos claustros da Universidade de Évora, onde na época funcionava o Liceu. Em 1911, começou a namorar com Alberto Moutinho, mas após uma interrupção ditada por nova paixão que lhe teria deixado marcas profundas, recomeça o namoro e, a 8 de Dezembro de 1913, casou com Alberto Moutinho, parece que para se refazer do fracasso anterior. Tem 19 anos.

Imagem12Com Alberto Moutinho, seu colega do liceu e primeiro marido. Em 1914, o casal mudou-se para o Redondo, onde abre um colégio e lecciona. Numa festa do colégio, Florbela recita em público, pela primeira vez, versos seus. Em 1916, a revista “Modas e bordados” publica um soneto seu e Florbela torna-se amiga da diretora e da subdiretora da revista, Júlia Alves, com quem, iniciou correspondência que se manteve.

Imagem13Em 1917, após regresso a Évora, Florbela completou o Curso Complementar de Letras (atual 11º ano). Apesar de querer seguir essa área, acabou por se inscrever na Faculdade de Direito de Lisboa. Aqui a sua vida iria transformar-se.

Imagem14Na capital, acompanhada pelo marido, leva uma vida boémia. Consegue integrar-se num círculo literário, típico da época. No plano conjugal mostrar-se-á agressiva, embora a poesia a evidencie triste e só. A sua postura oscila entre a intelectual e a convencional.

Imagem15Toulouse-Lautrec. Florbela é uma mulher elegante, culta, insinuante. Mostra a sua vertente atrevida. Fuma em público, choca os preconceitos. Apenas em Lisboa e Porto se respira, e em núcleos muito limitados, um certo ambiente de “Belle Époque”… O seu talento talvez seja motivo de inveja. Os críticos literários ignoram-na.

Imagem16No casamento com Moutinho ocorre um aborto involuntário que terá deixado sequelas, nomeadamente manifestações de depressão. Fez um período de repouso em Olhão e regressou a Lisboa. No princípio de 1920, conheceu um jovem oficial da GNR, António Guimarães por quem se apaixonou. Começam a viver juntos, o que leva ao divórcio de Florbela. Entretanto, em 1919 fora publicado com a ajuda de Raúl Proença (um dos fundadores da Seara Nova), o seu primeiro livro de sonetos, Livro de Mágoas.

Imagem17Casa-se com Guimarães em 1921. O casal passa a residir no Porto, mas, no ano seguinte, transfere-se para Lisboa, onde o marido é nomeado chefe de gabinete do Ministro do Exército. Florbela, em edição paga pelo pai, publica Livro de Soror Saudade. Mas tanto esta nova obra como o Livro de Mágoas, de um modo geral, apenas suscitam comentários de escárnio ou insinuações. Ou pior: indiferença. Para sobreviver, Florbela dá explicações de português, francês e inglês.

Imagem18As relações do novo casal são tumultuosas. Em 1923 há acusações recíprocas de agressões por parte das duas famílias. No final do ano, António Guimarães inicia o processo de divórcio, mas ela vive já em casa de Mário Lage, um médico que tem vindo a tratá-la. A família de Florbela escandaliza-se e corta relações com ela. No ano seguinte Florbela casa com Mário Lage. Porém, o espólio pessoal de Antonio Guimarães reúne o mais abundante material publicado sobre Florbela, desde 1945 até 1981, ano do falecimento de Guimarães.

Imagem19Mário Lage é médico militar no mesmo Destacamento de Artilharia do Porto e ter-lhe-á proporcionado conforto e segurança. Em 1922 Lage passou a exercer as funções de subdelegado de saúde de Matosinhos. Talvez tivessem sido os problemas de saúde de Florbela que os teriam aproximado. Casou com ele em Outubro de 1925.

Imagem20É próximo do Porto, em Esmoriz, no concelho de Ovar que vem viver com Mário Lage. Finalmente, em 1926 muda de residência, passando a habitar em Matosinhos, na casa dos sogros.

Imagem21Matosinhos – Escultura da autoria de Irene Vilar. “Quem nos deu asas para andar de rastos?/ Quem nos deu olhos para ver os astros/ Sem nos dar braços para os alcançar?” FLORBELA ESPANCA

Imagem22É, pois, na região do Porto que passa a viver Florbela.

Imagem23Café Majestic, no Porto

Imagem24Esmoriz (Ovar), onde morou com Lage de 1923 a 1926.

Imagem25Dois anos depois, enquanto traduz romances franceses para a Livraria Civilização no Porto (que publica trabalhos seus) e prepara o livro de contos “O Dominó Preto”, morre o irmão Apeles, o que lhe adensa a tristeza. A relação com o marido desgasta-se progressivamente. É neste período que, possivelmente, se apaixona pelo pianista Luís Maria Cabral, a quem dedica «Chopin» e «Tarde de Música». Quando o caso termina faz uma tentativa de suicídio.

Imagem26Apeles Espanca. Com o irmão sempre manteve uma relação afetiva muito próxima, havendo insinuações de incesto, que nunca se comprovaram. O irmão era oficial da Marinha e decidira fazer o curso de piloto-aviador para entrar na Aviação Naval.

Imagem27Apeles morreu num acidente de aviação, especulando-se se terá deliberadamente atirado o avião sobre o Tejo, junto à Torre de Belém, desesperado com a morte da namorada. O corpo de Apeles nunca foi encontrado. A sua morte teve em Florbela um efeito devastador.

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Imagem29A melancolia e a saudade são recorrentes na poesia de Florbela. À medida que o tempo, e as deceções e tragédias se sucedem, os sintomas agravam-se. Surgem pulsões suicidas. A saúde física é frágil. Talvez sofresse de tuberculose pulmonar que não foi diagnosticada. Mas o distúrbio principal é de natureza psicológica. Para alguns, seria uma doente bipolar, com fases de depressão predominantes.

Imagem30Tem ainda um caso com o advogado Ângelo César, no Grande Hotel do Porto

Imagem31Óleo sobre tela (35×25) de Ana Paula Lopes. Aurélia Borges, sua amiga e confidente, diz que “o amor era por parte de Florbela uma procura quase doentia”. Também quando acaba o caso com César, faz uma tentativa de suicídio.

Imagem32Esta foi a última residência de Florbela, em Matosinhos. Nesta casa encontrou uma família que a aceitou e acarinhou. Todos procuraram apoiá-la na sua melancolia e males físicos. E foi aqui também que fez a terceira e última tentativa de suicídio por ingestão de barbitúricos, desta vez bem sucedida. A pulsão pela morte fora mais forte.

Imagem33Campa de Florbela Espanca no cemitério de Vila Viçosa, onde jaz desde 1964

Imagem34Vila Viçosa – Estátua de Florbela Espanca e cine-teatro com o seu nome em fundo

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Na praia, como por carta, fez confidências a Guido Bottelli, professor de Italiano na Universidade de Coimbra e seu admirador, e que haveria de defender a importância da poesia e traduzi-la para italiano. No entanto, segundo Agustina Bessa-Luis, Bottelli terá praticado omissões e adulterações na publicação das cartas da poetisa e usado de más-intenções a aleivosias contra ela… Mas, eis fragmentos do que, sobre Florbela escreveu Bottelli, em Juvenilia:

Imagem36O que mais a torturava era a incompreensão da gente e a impossibilidade de exprimir a ânsia profunda do seu espírito”. “Portuguesa, bem portuguesa esta heróica alma de Mulher, que considera a vida um combate, e julga nada ser melhor que cair no campo de batalha, por, uma causa sagrada, e ao combatente glorioso oferece o seu amor para viver e para morrer junto com ele!” “Já disse que Florbela Espanca não fez da poesia um jogo de espírito, uma amostra de habilidade em escrever versos ou arranjar rimas, mas cantou chorando, derramou a sua alma no canto. A sua poesia desvairada, ululante, foi o eco sincero da sua alma torturada e crucificada.”

Imagem37Florbela fez uma vida social intensa. As suas toilettes, os chapéus, a vida mundana fizeram escola. Mas no íntimo viveu o conflito entre o seu aparente estatuto cosmopolita, da posição social dos pais de Mário Lage com a sua verdadeira origem de filha ilegítima, nascida na raia alentejana.

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Imagem39Charneca em flor, o livro de poesia mais importante de Florbela, editado já depois da sua morte, e do qual apenas reviu as provas das primeiras folhas. Foi Guido Battelli, professor de Italiano na Universidade de Coimbra, com quem manteve correspondencia assídua, que haveria de defender a importancia da poesia de Florbela e promoveu a sua divulgação.

Imagem40Ilustração de GoséMeu amor, meu Amado, vê… repara:/ Pousa os teus lindos olhos de oiro em mim,/ – Dos meus beijos de amor Deus fez-me avara/ Para nunca os contares ate ao fim. // Meus olhos têm tons de pedra rara/ – É só para teu bem que os tenho assim/ – E as minhas mãos são fontes de água clara/ A cantar sobre a sede dum jardim.// Sou triste como a folha ao abandono/ Num parque solitário, pelo Outono,/ Sobre um lago onde vogam nenufares…// Deus fez-me atravessar o teu caminho…/ – Que contas dás a Deus indo sozinho,/ Passando junto a mim, sem me encontrares? –

Imagem41Para aqueles fantasmas que passaram,/ Vagabundos a quem jurei amar,/ Nunca os meus braços lânguidos traçaram/ O vôo dum gesto para os alcançar…// Se as minhas mãos em garra se cravaram/ Sobre um amor em sangue a palpitar…/ Quantas panteras bárbaras mataram/ Só pelo raro gosto de matar!// Minha alma é como a pedra funerária/ Erguida na montanha solitária/ Interrogando a vibração dos céus!/ O amor dum homem? – Terra tão pisada!/ Gota de chuva ao vento baloiçada…/ Um homem? – Quando eu sonho o amor dum deus!…

Imagem42Este querer-te bem sem me quereres,/ Este sofrer por ti constantemente,/ Andar atrás de ti sem tu me veres/ Faria piedade a toda a gente./ Mesmo a beijar-me a tua boca mente…/ Quantos sangrentos beijos de mulheres/ Pousa na minha a tua boca ardente,/ E quanto engano nos seus vãos dizeres!…// Mas que me importa a mim que me não queiras,/ Se esta pena, esta dor, estas canseiras,/ Este mísero pungir, árduo e profundo,// Do teu frio desamor, dos teus desdéns,/ É, na vida, o mais alto dos meus bens?/ É tudo quanto eu tenho neste mundo?

Imagem43Enche o meu peito, num encanto mago,/ O frémito das coisas dolorosas …/ Sob as urzes queimadas nascem rosas … /Nos meus olhos as lágrimas apago … //Anseio ! Asas abertas ! O que trago/ Em mim ? Eu oiço bocas silenciosas/ Murmurar-me as palavras misteriosas/ Que perturbam meu ser como um afago!// E, nesta febre ansiosa que me invade,/ Dispo a minha mortalha, o meu burel,/ E já não sou, Amor, Soror Saudade …// Olhos a arder em êxtases de amor,/ Boca a saber a sol, a fruto, a mel:/ Sou a charneca rude a abrir em flor!

Imagem44Diluído numa taça de oiro a arder/ Toledo é um rubi. E hoje é só nosso!/ O sol a rir… Vivalma… Não esboço/ Um gesto que me não sinta esvaecer…//As tuas mãos tacteiam-me a tremer…/ Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço/ É como um jasmineiro em alvoroço/ Ébrio de sol, de aroma, de prazer!// Cerro um pouco o olhar onde subsiste/ Um romântico apelo vago e mudo,/ – Um grande amor é sempre grave e triste. / Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo…/ Uma torre ergue ao céu um grito agudo…/ Tua boca desfolha-me num beijo…

Imagem45Altiva e couraçada de desdém/ Vivo sozinha em meu castelo, a Dor… / Debruço-me às ameias ao sol-pôr / E ponho-me a cismar não sei em quem!// Castelã da Tristeza vês alguém?!… / – E o meu olhar é interrogador… / E rio e choro! É sempre o mesmo horror / E nunca, nunca vi passar ninguém! //- Castelã da Tristeza, porque choras, /Lendo toda de branco um livro de horas, / À sombra rendilhada dos vitrais?…// Castelã da Tristeza, é bem verdade, / Que a tragédia infinita é a Saudade! / Que a tragédia infinita é Nunca Mais!!

Imagem46Amiga… noiva… irmã… o que quiseres!/ Por ti, todos os céus terão estrelas,/ Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las,/Ao beijar a esmola que me deres.// Podes amar até outras mulheres!/ – Hei de compor, sonhar palavras belas,/ Lindos versos de dor só para elas, /Para em lânguidas noites lhes dizeres!// Crucificada em mim, sobre os meus braços,/ Hei de poisar a boca nos teus passos/ Pra não serem pisados por ninguém.// E depois… Ah! depois de dores tamanhas,/ Nascerás outra vez de outras entranhas,/ Nascerás outra vez de uma outra Mãe

Imagem47Eu queria ser o Mar de altivo porte / Que ri e canta, a vastidão imensa! /Eu queria ser a Pedra que não pensa, / A pedra do caminho, rude e forte! //Eu queria ser o Sol, a luz imensa, / O bem do que é humilde e não tem sorte! / Eu queria ser a árvore tosca e densa / Que ri do mundo vão e até a morte! // Mas o Mar também chora de tristeza … / As árvores também, como quem reza, / Abrem, aos Céus, os braços, como um crente! // E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia, / Tem lágrimas de sangue na agonia! / E as Pedras … essas … pisa-as toda a gente! …

Imagem48Filhos são as nossas almas,/ Desabrochadas em flores;/ Filhos, estrelas caídas/ No fundo das nossas dores!// Filhos, aves que chilreiam/ No ninho do nosso amor,/ Mensageiros da felicidade/ Mandados pelo senhor!// Filhos, sonhos adorados,/ Beijas que nascem de risos;/ Sol que aquenta e dá luz/ E se desfaz em sorrisos!// Em todo o peito bendito/ Criado pelo bom Deus,/ Há uma alma de mãe/ Que sofre p´los filhos seus!// Filhos! Na su´alma casta,/ A nossa alma revive…/ Eu sofro pelas saudades/ Dos filhos que nunca tive!…

Imagem49“Eu sou a que no mundo anda perdida/ Eu sou a que na vida não tem norte/ Sou a irmã do Sonho, e desta sorte/ Sou a crucificada… a dolorida… // Sombra de névoa ténue e esvaecida,/ E que o destino, amargo, triste e forte,/ Impele brutalmente para a morte!/ Alma de luto sempre incompreendida!// Sou aquela que passa e ninguém vê/ Sou a que chamam triste sem o ser…/ Sou a que chora sem saber porquê…// Sou talvez a visão que Alguém sonhou…/ Alguém que veio ao mundo pra me ver/ E que nunca na vida me encontrou!”

Imagem50Rasga esses versos que eu te fiz, amor!/ Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,/ Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,/ Que a tempestade os leve aonde for!// Rasga-os na mente, se os souberes de cor,/ Que volte ao nada o nada de um momento!/ Julguei-me grande pelo sentimento,/ E pelo orgulho ainda sou maior!…// Tanto verso já disse o que eu sonhei!/ Tantos penaram já o que eu penei!/ Asas que passam, todo o mundo as sente…// Rasgas os meus versos… Pobre endoidecida!/ Como se um grande amor cá nesta vida/ Não fosse o mesmo amor de toda a gente!…

Imagem51Para aqueles fantasmas que passaram,/ Vagabundos a quem jurei amar,/ Nunca os meus braços lânguidos traçaram/ O vôo dum gesto para os alcançar… // Se as minhas mãos em garra se cravaram/ Sobre um amor em sangue a palpitar… / – Quantas panteras bárbaras mataram/ Só pelo raro gosto de matar!// Minha alma é como a pedra funerária/ Erguida na montanha solitária/ Interrogando a vibração dos céus!// O amor dum homem? – Terra tão pisada!/ Gota de chuva ao vento baloiçada…/ Um homem? – Quando eu sonho o amor dum deus!…

Imagem52Dize-me, Amor, como te sou querida,/ Conta-me a glória do teu sonho eleito./ Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,/ Arranca-me dos pântanos da vida. // Embriagada numa estranha lida,/ Trago nas mãos o coração desfeito./ Mostra-me a luz, ensina-me o preceito/ Que me salve e levante redimida! //Nesta negra cisterna em que me afundo,/ Sem quimeras, sem crenças, sem ternura,/ Agonia sem fé dum moribundo,//Grito o teu nome numa sede estranha,/ Como se fosse, Amor, toda a frescura/ Das cristalinas águas da montanha!

Imagem53Aqueles que me têm muito amor/ Não sabem o que sinto e o que sou…/ Não sabem que passou, um dia, a Dor/ À minha porta e, nesse dia, entrou.//E é desde então que eu sinto este pavor,/ Este frio que anda em mim, e que gelou/ O que de bom me deu Nosso Senhor!/ Se eu nem sei por onde ando e onde vou!! // Sinto os passos de Dor, essa cadência/ Que é já tortura infinda, que é demência!/ Que é já vontade doida de gritar! //E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,/ A mesma angústia funda, sem remédio,/ Andando atrás de mim, sem me largar!

Imagem54Deixa-me ser a tua amiga, Amor,/ A tua amiga só, já que não queres/ Que pelo teu amor seja a melhor/ A mais triste de todas as mulheres.//Que só, de ti, me venha magoa e dor/ O que me importa a mim? O que quiseres/ É sempre um sonho bom! Seja o que for,/ Bendito sejas tu por mo dizeres!//Beijá-me as mãos, Amor, devagarinho…/Como se os dois nascessemos irmãos,/ Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho…//Beija-mas bem!… Que fantasia louca/ Guardar assim, fechados, nestas mãos,/ Os beijos que sonhei pra minha boca!

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Se me ponho a cismar em outras eras/ Em que rí e cantei, em que era querida,/ Parece-me que foi outras esferas,/ Parece-me que foi numa outra vida…//E a minha triste boca dolorida/ Que dantes tinha o rir das primaveras,/ Esbate as linhas graves e severas/E cai num abandono de esquecida!// E fico, pensativa, olhando o vago…/Toma a brandura plácida dum lago/ O meu rosto de monja de marfim…//E as lágrimas que choro, branca e calma,/ Ninguém as vê brotar dentro da alma!/ Ninguém as vê cair dentro de mim!

Imagem56Évora! Ruas ermas sob os céus/ Cor de violetas roxas … Ruas frades/ Pedindo em triste penitência a Deus/ Que nos perdoe as míseras vaidades!// Tenho corrido em vão tantas cidades!/ E só aqui recordo os beijos teus! E só aqui eu sinto que são meus/ Os sonhos que sonhei noutras idades!// vora! … O teu olhar … o teu perfil …/ Tua boca sinuosa, um mês de Abril,/ Que o coração no peito me alvoroça!//… Em cada viela o vulto dum fantasma …/ E a minh’alma soturna escuta e pasma …/ E sente-se passar menina e moça …

Imagem57Ó minha terra na planície rasa,/ Branca de sol e cal e de luar,/ Minha terra que nunca viu o mar/ Onde tenho o meu pão e a minha casa…//Minha terra de tardes sem uma asa, / Sem um bater de folha… a dormitar…/ Meu anel de rubis a flamejar,/Minha terra mourisca a arder em brasa!// Minha terra onde meu irmão nasceu… / Aonde a mãe que eu tive e que morreu, / Foi moça e loira, amou e foi amada…// Truz… truz… truz… Eu não tenho onde me acoite, / Sou um pobre de longe, é quase noite…/ Terra, quero dormir… dá-me pousada!

Imagem58Busto de Florbela Espanca, da autoria do escultor Diogo de Macedo, no Jardim Público de Évora

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Olhos do meu Amor! Infantes loiros/ Que trazem os meus presos, endoidados!/ Neles deixei, um dia, os meus tesouros:/ Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.// Neles ficaram meus palácios moiros,/ Meus carros de combate, destroçados,/ Os meus diamantes, todos os meus oiros/ Que trouxe d’Além-Mundos ignorados!//Olhos do meu Amor! Fontes… cisternas…/ Enigmáticas campas medievais…/Jardins de Espanha… catedrais eternas…// Berço vindo do Céu à minha porta…/ Ó meu leito de núpcias irreais!…/ Meu sumptuoso túmulo de morta!…

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“Estou cansada, cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo, com a vida e com os outros. Diz-me, porque não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível? E é isto que me traz sempre desvairada, incompatível com a vida que toda a gente vive…“ – Correspondência (1930)

Imagem62Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida/ Meus olhos andam cegos de te ver!/ Não és sequer razão de meu viver,/ Pois que tu és já toda a minha vida!// Não vejo nada assim enlouquecida…/ Passo no mundo, meu Amor, a ler/ No misterioso livro do teu ser/ A mesma história tantas vezes lida!// Tudo no mundo é frágil, tudo passa…/ Quando me dizem isto, toda a graça/ Duma boca divina fala em mim!// E, olhos postos em ti, vivo de rastros:/ “Ah! Podem voar mundos, morrer astros,/ Que tu és como Deus: princípio e fim!…”

Imagem63“Viverei com certeza um terço do que poderia viver porque todas as pedras me ferem, todos os espinhos me laceram. Dom Quixote sem crenças nem ilusões, batalho continuamente por um ideal que não existe; e esta constante exaltação, desesperada e desiludida, destrambelha-me os nervos e mata-me.”
“Eu julgo que a mulher verdadeiramente digna é aquela a quem repugna uma traição, seja ela de que natureza for.
” – Correspondência (1912)

Imagem64“O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quê!” Fonte – Correspondência (1930)

Imagem65Este querer-te bem sem me quereres, / Este sofrer por ti constantemente, / Andar atrás de ti sem tu me veres / Faria piedade a toda a gente. // Mesmo a beijar-me a tua boca mente… / Quantos sangrentos beijos de mulheres / Pousa na minha a tua boca ardente, / E quanto engano nos seus vãos dizeres!… //Mas que me importa a mim que me não queiras, / Se esta pena, esta dor, estas canseiras, /Este mísero pungir, árduo e profundo, // Do teu frio desamor, dos teus desdéns, / É, na vida, o mais alto dos meus bens? /É tudo quanto eu tenho neste mundo?

Imagem66Tardes da minha terra, doce encanto, / Tardes duma pureza de açucenas, / Tardes de sonho, as tardes de novenas, /Tardes de Portugal, as tardes de Anto, // Como eu vos quero e amo! Tanto! Tanto! / Horas benditas, leves como penas, / Horas de fumo e cinza, horas serenas, / Minhas horas de dor em que eu sou santo! // Fecho as pálpebras roxas, quase pretas, / Que poisam sobre duas violetas, / Asas leves cansadas de voar … // E a minha boca tem uns beijos mudos … / E as minhas mãos, uns pálidos veludos, / Traçam gestos de sonho pelo ar …

Imagem67Mais alto, sim! mais alto, mais além / Do sonho, onde morar a dor da vida, / Até sair de mim! Ser a Perdida, / A que se não encontra! Aquela a quem //O mundo não conhece por Alguém! / Ser orgulho, ser águia na subida, /Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém! //Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível! / Turris Ebúrnea erguida nos espaços, / A rutilante luz dum impossível! // Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber / O mal da vida dentro dos meus braços, // Dos meus divinos braços de Mulher!

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“Tenho que aprender o que ainda não sei: a ser humilde e modesta. Perdoe sempre o meu ridículo orgulho de pobre soberba; mas o orgulho tem sido a minha suprema defesa, tem sido o meu amparo e a minha força. Devo-lhe tantos e tão bons serviços!”
Fonte – Correspondência (1930)

Imagem69Meu coração da cor dos rubros vinhos / Rasga a mortalha do meu peito brando /E vai fugindo, e tonto vai andando / A perder-se nas brumas dos caminhos. // Meu coração o místico profeta, / O paladino audaz da desventura, /Que sonha ser um santo e um poeta, / Vai procurar o Paço da Ventura… //Meu coração não chega lá decerto… / Não conhece o caminho nem o trilho, / Nem há memória desse sítio incerto… // Eu tecerei uns sonhos irreais… / Como essa mãe que viu partir o filho, / Como esse filho que não voltou mais!

Imagem70Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem / Quem sou?! Um fogo-fátuo, uma miragem… / Sou um reflexo… um canto de paisagem / Ou apenas cenário! Um vaivém… // Como a sorte: hoje aqui, depois além! / Sei lá quem Sou?! Sei lá! Sou a roupagem / Dum doido que partiu numa romagem / E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!… // Sou um verme que um dia quis ser astro… / Uma estátua truncada de alabastro… / Uma chaga sangrenta do Senhor… // Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados, / Num mundo de vaidades e pecados, / Sou mais um mau, sou mais um pecador…

Imagem71A Noite vem poisando devagar / Sobre a terra que inunda de amargura… /E nem sequer a bênção do luar / A quis tornar divinamente pura..// Ninguém vem atrás dela a acompanhar / A sua dor que é cheia de tortura… / E eu oiço a Noite imensa soluçar! /E eu oiço soluçar a Noite escura! //Por que és assim tão escura, assim tão triste?! / É que, talvez, ó Noite, em ti existe /Uma Saudade igual à que eu contenho! //Saudade que eu sei donde me vem… / Talvez de ti, ó Noite!… Ou de ninguém!… /Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!!

Imagem72Em ti o meu olhar fez-se alvorada,/E a minha voz fez-se gorjeio de ninho,/ E a minha rubra boca apaixonada/ Teve a frescura pálida do linho.// Embriagou-me o teu beijo como um vinho/ Fulvo de Espanha, em taça cinzelada,/ E a minha cabeleira desatada/ Pôs a teus pés a sombra dum caminho// Minhas pálpebras são cor de verbena,/ Eu tenho os olhos garços, sou morena,/ E para te encontrar foi que eu nasci…// Tens sido vida fora o meu desejo,/ E agora, que te falo, que te vejo,/ Não sei se te encontrei, se te perdi…

Imagem73Ódio por Ele? Não… Se o amei tanto, /:Se tanto bem lhe quis no meu passado, / Se o encontrei depois de o ter sonhado, / Se à vida assim roubei todo o encanto, // Que importa se mentiu? E se hoje o pranto / Turva o meu triste olhar, marmorizado, /Olhar de monja, trágico, gelado /Com um soturno e enorme Campo Santo! // Nunca mais o amar já é bastante! / Quero senti-lo doutra, bem distante, / Como se fora meu, calma e serena! //Ódio seria em mim saudade infinda, / Mágoa de o ter perdido, amor ainda! / Ódio por Ele? Não… não vale a pena…

Imagem74Deixa-me ser a tua amiga, Amor; /A tua amiga só, já que não queres / Que pelo teu amor seja a melhor / A mais triste de todas as mulheres. // Que só, de ti, me venha mágoa e dor /O que me importa a mim?!/ O que quiseres É sempre um sonho bom! Seja o que for, /Bendito sejas tu por mo dizeres!//Beija-me as mãos, Amor, devagarinho… / Como se os dois nascêssemos irmãos, / Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho… // Beija-mas bem!… Que fantasia louca / Guardar assim, fechados, nestas mãos / Os beijos que sonhei pra minha boca!…

Imagem75Procurei o amor, que me mentiu./ Pedi à Vida mais do que ela dava;/ Eterna sonhadora edificava/ Meu castelo de luz que me caiu!// Tanto clarão nas trevas refulgiu,/ E tanto beijo a boca me queimava!/ E era o sol que os longes deslumbrava/ Igual a tanto sol que me fugiu!// Passei a vida a amar e a esquecer…/ Atrás do sol dum dia outro a aquecer/ As brumas dos atalhos por onde ando…/ E este amor que assim me vai fugindo/ É igual a outro amor que vai surgindo,/ Que há-de partir também… nem eu sei quando…

Imagem76Meio-dia. O sol a prumo cai ardente,/ Dourando tudo…ondeiam nos trigais/ D´ouro fulvo, de leve…docemente…/ As papoulas sangrentas, sensuais…//Andam asas no ar; e raparigas,/ Flores desabrochadas em canteiros,/ Mostram por entre o ouro das espigas/ Os perfis delicados e trigueiros…// Tudo é tranqüilo, e casto, e sonhador…/Olhando esta paisagem que é uma tela/ De Deus, eu penso então: onde há pintor,// Onde há artista de saber profundo,/ Que possa imaginar coisa mais bela,/ Mais delicada e linda neste mundo?!

Imagem77Aguarela de Julio Resende

Imagem78Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,/ A essa hora dos mágicos cansaços,/ Quando a noite de manso se avizinha,/ E me prendesses toda nos teus braços…/ Quando me lembra: esse sabor que tinha /A tua boca… o eco dos teus passos…/ O teu riso de fonte… os teus abraços…/ Os teus beijos… a tua mão na minha…// Se tu viesses quando, linda e louca,/Traça as linhas dulcíssimas dum beijo /E é de seda vermelha e canta e ri //E é como um cravo ao sol a minha boca…/ Quando os olhos se me cerram de desejo… /E os meus braços se estendem para ti…

Imagem79Frémito do meu corpo a procurar-te,/ Febre das minhas mãos na tua pele/ Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,/ Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,// Olhos buscando os teus por toda a parte,/ Sede de beijos, amargor de fel,/ Estonteante fome, áspera e cruel,/ Que nada existe que a mitigue e a farte!// E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma/ Junto da minha, uma lagoa calma,/ A dizer-me, a cantar que me não amas…//E o meu coração que tu não sentes,/ Vai boiando ao acaso das correntes,/ Esquife negro sobre um mar de chamas…

Imagem80“Estou cansada, cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo, com a vida e com os outros. Diz-me, porque não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível? E é isto que me traz sempre desvairada, incompatível com a vida que toda a gente vive…“ Correspondência (1930)

Imagem81Horas mortas… Curvada aos pés do Monte / A planície é um brasido… e, torturadas,/ As árvores sangrentas, revoltadas,/ Gritam a Deus a bênção duma fonte!// E quando, manhã alta, o sol posponte/ A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,/ Esfíngicas, recortam desgrenhadas/ Os trágicos perfis no horizonte!// Árvores! Corações, almas que choram,/ Almas iguais à minha, almas que imploram/ Em vão remédio para tanta mágoa!// Árvores! Não choreis! Olhai e vede:/ – Também ando a gritar, morta de sede, / Pedindo a Deus a minha gota de água!

Imagem82Tardes da minha terra, doce encanto, / Tardes duma pureza de açucenas, / Tardes de sonho, as tardes de novenas, /Tardes de Portugal, as tardes de Anto, // Como eu vos quero e amo! Tanto! Tanto! / Horas benditas, leves como penas, / Horas de fumo e cinza, horas serenas, / Minhas horas de dor em que eu sou santo! // Fecho as pálpebras roxas, quase pretas, / Que poisam sobre duas violetas, / Asas leves cansadas de voar … // E a minha boca tem uns beijos mudos … / E as minhas mãos, uns pálidos veludos, / Traçam gestos de sonho pelo ar …

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Imagem84Em todas as épocas houve mulheres que tiveram fins trágicos ao perseguiram um sonho, uma paixão que puseram acima da própria vida. Isadora Duncan, Joana d’Arc são exemplos, apontados nesta obra. Pode Florbela integrar-se neste lote? Apaixonada, sim, por este e aquele, entregando-se, desesperada, à procura de um deus, quando só existem homens. Arrebatada e disfórica, a sua causa estava dentro de si e era uma ilusão.

Imagem85Mulheres de percurso excepcional que se anteciparam ao seu tempo. Em algumas, as suas vidas foram um trajeto tremendo contra os preconceitos e a ignorância ou um combate heroico pela liberdade ou o avanço científico. Simone Veil, La Pasionaria, Marie Curie marcaram gerações e o progresso. Florbela foi uma mulher livre, de voz eloquente, mas amarrada a si própria, às suas contradições, aos seus enigmas.

Imagem86Simone de Beauvoir é um dos ícones do pensamento feminista, que viveu depois de Florbela. A sua relação sexual com Sartre (não a intelectual) e a promiscuidade, não terão prejudicado a sua futura vida afetiva? Pode amar-se “este e aquele e toda a gente e não amar ninguém”? O que é amar? “Quem disser que pode amar alguém por todo o sempre, é porque mente”.

Imagem87Em Portugal, nas primeiras décadas do séc XX, a questão da libertação da mulher não era ainda formulada. Apenas na sociedade boémia lisboeta surgiam os primeiros indícios de aceitação da liberdade sexual da mulher. Depois, a Universidade de Lisboa e a sua Faculdade de Direito (onde Florbela não concluiu o curso) não era a Sorbonne de Sartre e Simone. Portugal? Um país bucólico, rural, apenas com lampejos de modernidade, a viver as convulsões da participação numa guerra que se traduziu em enorme hecatombe. Florbela foi uma mulher adiantada para a sua época e que esboçou a luta pela libertação da mulher. Mas ficou-se pelos sentidos. E pelos afetos, pela sinceridade dos afetos. Êxtase, depressão, desejo da morte. E um lirismo erótico admirável em muita da sua poesia.

Imagem88“A vida é apenas isto: um encadeamento de acasos bons e maus, encadeamento sem lógica, nem razão; é preciso a gente olhá-la de frente com coragem e pensar, mas sem desfalecimentos, que a nossa hora há-de vir, que a gente há-de ter um dia em que há-de poder dormir, e não ouvir, não ver, não compreender nada.”

Imagem89“É uma resposta aos que chamam ao suicídio um fim de cobardes e de fracos, quando são unicamente os fortes que se matam! Sabem lá esses pseudo-fortes o que é preciso de coragem para friamente, simplesmente, dizer um adeus à vida, à vida que é um instinto de todos nós, à vida tão amada e desejada a despeito de tudo, embora esta vida seja apenas um pântano infecto e imundo!” Fonte – Correspondência (1916)

Imagem90Poesia
1919 – Livro de Mágoas. Lisboa
1923 – Livro de Sóror Saudade. Lisboa:
1931 – Charneca em Flor. Coimbra 1931 Juvenília: versos inéditos de Florbela Espanca (com 28 sonetos inéditos). Estudo crítico de Guido Battelli. Coimbra
1934 . Sonetos Completos (Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade, Charneca em Flor, Reliquiae). Coimbra: Livraria Gonçalves.

Prosa
1931 – As Máscaras do Destino. Porto
1981 – Diário do Último Ano. Prefácio de Natália Correia. Lisboa
1982 – O Dominó Preto. Prefácio de Y. K. Centeno. Lisboa

 

Imagem92Agradecimentos a Sandra Ramos e Ana Batalha

Imagem94Recomendados:
Florbela Espanca por Rolando Galvão www.vidaslusófonas.pt
Ensaio sobre Florbela www.angelfire.com
A Florbela de Agustina por Maria Lúcia Dal Farra
Forbela Espanca Uma vida perdida na neurose por Lidia Craveiro www.psicologia.pt/artigos/textos/TL0065.pdf
Tocados pelo fogo . Livro sobre a Relação da Doença Bipolar e criação artísiticas, de Kay Redfield Jamison, com prefácio de José Manuel Jara.

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda

Poemas de Florbela Espanca

fotografia

      voz

O tempo de Pombal e os dias de hoje

Parece que D. João V, embora preocupado em deixar um filho varão que lhe sucedesse no trono, não teve idêntico cuidado com a sua educação e, cioso do poder, não o integrou nos assuntos da governação. Assim, quando o pai morreu, D. José era um príncipe inexperiente.
Vivia-se a época da caça às bruxas, aos hereges. A Inquisição investigava meticulosamente as denúncias e punia com prisão, degredo e torturas. Os autos-de-fé distribuíam açoites públicos em cortejos, onde o povo, cristãmente chamado a participar no acto litúrgico, ajudava à prática, arremessando bocados de fruta e mimoseava os réus com louvores fáceis de imaginar. Bastantes eram içados sobre piras de lenha a que ateavam fogo até as chamas os reduzirem a cinzas. Mas, se os condenados mostrassem arrependimento, sempre mereciam a indulgência de serem previamente garrotados. Em Lisboa estes atos piedosos ocorriam principalmenmte no Rossio. Esta era a Igreja da Contrarreforma.
Em Portugal, na época, chegava o ouro e diamantes do Brasil que serviam para trocar por artigos manufaturados, mesmo os mais rudimentares. Mas, excetuando o Aqueduto das Águas Livres, pouco permaneceu até hoje, para além do megalómano Palácio/convento de Mafra ou dos Clérigos e Misericórdia do Porto ou do conjunto de esculturas, pinturas, peças musicais e artes decorativas, no que ficou conhecido por Barroco Joanino. No reinado do “Magnânimo” D. João V nenhumas medidas se tomaram para assegurar os bens de que o país necessitava. Tinham-se promovido as artes, a opulência e o luxo, mas ignorado a economia. E, quando as remessas do ouro de Minas Gerais começaram a escassear e deixou de haver recursos para comprar o que fazia falta à sobrevivência indígena, era preciso introduzir reformas económicas, sociais, educativas e do próprio aparelho do Estado, que enfrentassem a nova realidade.
Quando Sebastião José de Carvalho e Melo chegou ao governo, a alta aristocracia servia para bajular o Rei e defendia-se da conspurcação por sangue impuro de mouros, judeus ou mesmo de fidalgos de mais baixa extração social, obrigando a casar entre si os seus membros. Pouco se fazia e o que se fazia era obra dos escravos de Angola ou da Guiné. O negócio dos negreiros era altamente rentável.
Quanto ao Ensino estava nas mãos dos Jesuítas, tanto o secundário como o da Universidade de Évora. Os seus programas eram quase omissos nos estudos de Filosofia, Direito, Ciências e História. E, no entanto, vivia-se na época do Iluminismo, ou seja do primado da razão, o qual, a partir de França, procurava eliminar os abusos da Igreja e do Poder, suprimir a intolerancia, promover o intercâmbio cultural e expurgar muitas das tradições medievais. Foi a época de Spinoza, Voltaire, Rousseau, Kant, Newton…
O regime político do séc XVIII em Portugal era a monarquia absolutista. O soberano, ungido de Deus Todo-Poderoso, não reconhecia na terra senhor superior temporal. Porém, até dentro da Companhia de Jesus surgiram vozes que contestavam esses atributos e, tal facto, terá sido um dos que suscitou a perseguição obsessiva movida por Pombal.
Este foi um ministro fiel ao seu rei e às concepções vigentes. Procurou eliminar as ingerências ao poder absoluto de D. José I. Tirou partido magistralmente duma enorme calamidade que se abateu sobre Lisboa e de uma tentativa de regicídio que, com razão ou sem ela, foi atribuído aos Távora com a cumplicidade dos Jesuítas, o que levou à execução dos membros mais proeminentes das principais figuras da aristocracia e à prisão de numerosos fidalgos. Quanto aos Jesuítas, acabariam por ser expulsos e alguns encarcerados. O poder de Pombal aumentara, ao mesmo tempo que a importancia dos seus adversários diminuira. O rei atribuiu-lhe o título de Conde de Oeiras em 1759 e, dez anos depois, o de Marquês de Pombal. Tinha nessa altura 71 anos.
Pombal, em simultâneo, interveio diretamente nos problemas económicos: promulgou extensa legislação para constitituir empresas monopolistas que regulassem o comércio e as atividades económicas, revitalizou fábricas falidas e estimulou a criação de outras em parceria com capitais do próprio Estado, estendeu ao Brasil e à India medidas idênticas, de modo a submetê-las ao Estado, tornou o sistema fiscal mais exigente, combatendo o contrabando e a fraude. E, noutra área, aboliu a escravatura em Portugal, combateu no Brasil a tentativa de trabalho forçado dos ameríndios, proibiu a distinção entre cristãos novos e velhos, permitiu uma certa abertura à censura às obras literárias. A criação das primeiras compilações de direito civil, que substituiu o direito canónico, fez do Estado uma entidade superior e autónoma da Santa Sé. A Inquisição foi, assim, submetida ao poder régio, o que fez terminar as execuções pela fogueira.
Com algumas destas medidas, a balança comercial com a Inglaterra quase atingiu o equilibrio, embora, além da quantidade do ouro brasileiro ter baixado drasticamente, também o valor da produção do açucar sofresse uma redução, com a concorrência inglesa, francesa e holandesa. O modo como fez cumprir as novas disposições foram muitas vezes despóticas. As forças policiais reprimiram com extrema severidade os prevaricadores. Despotismo esclarecido, assim chamavam a este tipo de fazer política.

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Os regimes autoritários assumem várias formas, desde ditaduras, tirania, despotismo e sucedâneos. Em comum têm o recurso à repressão, mais ou menos feroz, baseada na ideia de que o terror é um instrumento do poder. Servem-se ainda da privação das liberdades individuais, ambas ao serviço de um único homem ou grupo político, não controladas por qualquer poder moderador ou, se existente, apenas aparente. Exercem-se contra cidadãos isolados sem enquadramento político, que os aceitam como uma inevitabilidade ou que também lhes acautelam interesses. As rebeliões são esmagadas sem piedade.
O despotismo esclarecido foi um sistema híbrido, que sem questionar a origem divina do rei, permitia alguma abertura política, filosófica e científica, e que antecederia a Revolução Francesa, décadas depois, em nome dos Direitos do Homem. No entanto, até hoje sempre se verificaram derivas totalitárias travestidas das mais diferentes maneiras. O período do Terror da Revolução Francesa era justificado por Robespierre como o modo da virtude não ser impotente… O terror seria a justiça severa e inflexível. E aconteceram, assim, a morte de Luís XVI e da rainha, os tribunais revolucionários, os massacres, a guilhotina e muitos outros horrores.
Em Portugal viria o conflito com os liberais, a Guerra Civil, a Monarquia Parlamentar, a República, sempre intervalados com períodos mais ou menos prolongados de ditaduras, por vezes bem cruéis.

Porém, as tentações totalitárias e os regimes despóticos chegaram até hoje, em muitas zonas do mundo, bem como a exploração-escravatura camuflada. A opressão nazi e o extermínio de milhões de pessoas; os desvios e crimes do comunismo estalinista; a intolerância religiosa, tanto a cristã da Inquisição como do terrorismo islâmico; o racismo das sociedades coloniais e a exploração desenfreada pelas novas élites do povo que era suposto libertarem; o desprezo pelos emigrantes de 2ªgeração que são estigmatizados no seu regresso às origens. Os totalitarismos têm, pois, assumido formas diferentes, mas ontem como hoje, traduzem falta de ética, estupidez, de indiferença perante o sofrimento alheio. É uma luta que nunca está ganha.

Pombal não foi um revolucionário, mas sim um reformista. Algumas das reformas que tentou vieram mais tarde a não se mostrar bem-sucedidas, mas outras persistem até hoje e são modelos de visão estratégica. O despotismo com que governou não foi substancialmente diferente do que se observou na época e décadas depois.

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No tempo de D. João V delapidara-se uma colossal fortuna e deixara-se o país à mercê da cobiça até dos velhos aliados. Um tanto como o que se passou com o ingresso de Portugal na União Europeia, 2 séculos depois, onde os fundos recebidos para desenvolver a Economia, foram consumidos em negócios fictícios. Os tratores para projetos agrícolas, existentes apenas no papel, eram substituídos por carros topo de gama; atribuiram-se incentivos para destruição da frota pesqueira; construiram-se auto-estradas para tráfegos irrisórios; inauguraram-se universidades privadas para justificar fundos, as quais vieram despejar jovens iludidos no desemprego. E, em vez do Convento de Mafra, construiu-se o Centro Cultural de Belém. Foi o “Progresso”…

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Político e Estadista são conceitos próximos, mas nem sinónimos nem consensuais. Cada vez se vêm mais políticos e menos estadistas. O que falta frequentemente aos primeiros é a grandeza de colocar os interesses nacionais à frente dos pessoais. De se preocuparem mais com a próxima eleição do que com a próxima geração, como alguém escreveu. É, porventura, a dimensão ética que os distingue.
Sem generalizar, vemos hoje gente que singra nos partidos desde a juventude, gerindo habilmente a sua carreira e ambições, mas onde o interesse coletivo é sobretudo uma bandeira hipócrita para ganhar votos e fazer bons negócios. Alguns destes políticos são autênticos videirinhos, corruptos, associados em alcateias corporativas, que vão trocando favores e sugando o Estado que juraram defender.
Não é preciso uma calamidade para revelar um estadista. Na história recente portuguesa podíamos recordar vários casos de honradez, que só dignificam a classe política. E alguns (raros) estadistas. Não seria necessário evocar Churchill ou De Gaulle ou Mandela. Mas recordemos as suas lições de vida: em momentos críticos tiveram a coragem de marcar um rumo, apelar ao interesse coletivo e galvanizar a maioria, mesmo que isso tivesse significado a perda do apoio de velhas cumplicidades ou fazer sofrer grande parte da vida na prisão. Coragem para decidir o que era justo. Fazer o que tinha de ser feito. Em democracia, há mais meios para evitar os desvios, a impunidade, a corrupção e a negligência. Porém, nem sempre eficazes. E, infelizmente, tal sempre acontecerá.
Pombal foi um estadista. O rosto mais significativo do despotismo esclarecido na Europa. Mesmo titubeante, rompeu com muitos privilégios das classes dominantes, ajudou a libertar o Estado da tutela da Igreja e esforçou-se pelo desenvolvimento económico da Nação. Morreu velho, doente e numa casa humilde.

FM

 

 

001

Foi neste solar na antiga Rua Formosa, hoje Rua do Século, que nasceu Sebastião José de Carvalho e Melo, em 1699. Era o mais velho de doze irmãos dos quais se destacaram dois, que viriam a ser fiéis colaboradores. Os seus estudos em Direito, que se limitaram a um ano, foram feitos na Universidade de Coimbra. Ainda ingressou no Exército, onde lhe reconheceram traços de bravura, mas, desiludido, abandonou a carreira militar. A obediência não era uma característica da sua personalidade.

002

Embora nos seus antepassados houvesse fidalgos que tivessem prestado importantes serviços à Coroa, nomeadamente magistrados e militares, quando Carvalho foi subindo de importância e obtendo lugares cada vez com maior visibilidade, a maioria da alta nobreza olhava-o desdenhosamente, apelidando-o de “fidalgote dos Carvalhos da Rua Formosa”.

003

De um tio herdou o morgado constituído por bens em Oeiras e Sintra. Também através dele terá conhecido o cardeal D. João da Mota, primeiro-ministro, que depois o mandou como Enviado Especial – Ministro Plenipotenciário para a Corte de Londres. Tinha, então, 39 anos. Para trás, ficava um matrimónio com aspetos rocambolescos: foi obrigado a raptar a noiva, dez anos mais velha e viúva (mas com consentimento desta) – por ela pertencer à alta aristocracia que não via com bons olhos a união. Quando partiu para Londres, Carvalho era viúvo, mas o seu estatuto, apesar do desprezo de muitos fidalgos, aumentara (e a fortuna, também).

005

Em Londres relaciona-se com um indivíduo, quadro superior exonerado da East India Company e que se achava injustiçado pelos superiores. O projeto de criar uma Companhia das Índias portuguesa, segundo o modelo britânico ocorre a Carvalho, mas para tal seriam precisos muitos capitais e meios que assegurassem lucros. Os planos para a constituição dessa Companhia terão desaparecido misteriosamente, mas surgiriam depois do regresso de Carvalho a Portugal. O futuro Marquês de Pombal interpretou a sua estadia em Londres como um meio de o ocupar em tarefa impossível para lhe denegrir a reputação.

006

Como conclusão da sua permanência em Londres, não se pode dizer que os resultados tivessem sido brilhantes. Porém, estudou e percebeu muitas das razões da prosperidade inglesa. Avaliou o comércio dos dois países, examinou a qualidade dos géneros, comparou a indústria, constatando como em Inglaterra se obtinham lucros chorudos e em Portugal se avolumavam prejuízos. Observou, meditou e percebeu a necessidade de introduzir reformas. Muita da sua ação futura, talvez tivesse aqui as suas raízes.

007

Pintura de Dirk Stoop, representando o Terreiro do Paço do séc. XVII. Museu da Cidade de Lisboa. Em 1745 Carvalho foi transferido para Viena (Áustria). Entre os numerosos conflitos em que os Habsburgo estiveram envolvidos, contou-se a Guerra da Sucessão Austríaca. O Papa aceitou a mediação dos reis de Portugal, tios da rainha austríaca e Carvalho foi indigitado para essa missão. O espírito de iniciativa e inovação de Carvalho tinham de ser refreados. Viena seria um desterro que o travaria. Não foi.

008

Retrato do Marquês de Pombal, atribuído a Joana de Salitre, 1769, Museu da Cidade, Lisboa. A tarefa de Carvalho era, de facto, complicada. Em Viena a opinião era que não teria sido o Papa a propor a mediação portuguesa (que Viena, aliás, considerava uma intromissão) e que o enviado português não seria imparcial; por outro lado, Roma considerava-o incapaz de imparcialidade. Para piorar a situação, a carta do rei português à sua sobrinha apresentava-o não como embaixador, mas como emissário. Com isto, o enviado não tinha qualquer qualificação diplomática. Para Carvalho era uma missão impossível.

009

Mas é em Viena que conhece a que seria a 2ª mulher, Leonor Daun, dama da corte e filha de ilustre família austríaca. Carvalho tinha 46 anos. Crente da irrelevância do seu papel, pede por mais de uma vez o regresso a Portugal e a demissão, mas os seus pedidos foram recusados

010

Palácio Belvedere,Viena. Novo conflito entre Roma, Áustria, mas também Espanha e Inglaterra, pareceu proporcionar um novo fôlego ao papel negocial de Carvalho. Pura ilusão. Todos os contendores estavam de acordo em não aceitar Portugal como mediador. E só quando faleceu Filipe V de Espanha (1746), é que Carvalho foi verdadeiramente empossado de poderes para negociar e assinar acordos relativos à mediação, que só agora era reconhecida por Viena. 3 Anos depois de Carvalho chegar a Viena.

011

Schönbrunn Palace Garden Gloriette, Viena. Aspeto relevante da sua permanência em Viena foi a proximidade com um banqueiro judeu português, foragido na Alemanha por receio do Santo Ofício. A ele recorreu Carvalho nos apertos financeiros – dado que o seu vencimento era exíguo, as despesas relativas à dignidade da Embaixada serem elevadas, associados a dívidas contraídas já em Londres por motivos idênticos, a sua instalação em Viena e o casamento lhe terem esgotado os recursos. Talvez a estes factos se deva a inflexão que se verificou na sua atitude antissemita.

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Finda a sua missão em Viena, Carvalho regressou a Lisboa. Aqui, não consegue um cargo, o que o deixa desgostoso. Mesmo a influência de seu tio, secretário de Estado (o equivalente hoje a Primeiro Ministro), e o apoio da rainha, que era alemã – como sua mulher, não obtiveram êxito. Contra si tinha a tacanhez, inveja e ciúme dos cortesãos e a antipatia de D. João V. Nem os lugares de conselheiro ultramarino ou da Fazenda, prémios a que se julgava com direito pelos serviços prestados, lhe foram atribuídos. Mas o rei, já diminuído há muito, morreu ao fim de oito meses. Por um acaso feliz, Carvalho vê-se responsável pelas exéquias reais, o que lhe deu visibilidade. À volta do novo monarca surgem vozes influentes e prestigiosas que o recomendam. O Gabinete manifestava-se incapaz, tanto a nível de Administração Interna, como Externa, Finanças, Comércio…Carvalho acede ao poder como secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, mas o novo rei atribui-lhe outros poderes, o primeiro dos quais foi o das minas do Brasil. Carvalho tinha uma visão reformista e estava habilitado em matérias de comércio. Em breve o seu poder ofuscou o dos outros ministros.

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Estátua equestre de D. José I, da autoria de Machado Castro. Portugal estava um país pobre, beato e ignorante. A agricultura e as pescas desapareciam, as manufaturas e os seus artífices minguavam. Os texteis iam deixando de ser produzidos. A construção naval extinguiu-se: os navios que rumavam ao Brasil e India eram ingleses. As trocas comerciais, sobretudo com Inglaterra, eram desastrosas para Portugal.

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No Brasil, a Companhia de Jesus, instalada desde o Ceará até ao Sul, era acusada de forçar os índios a trabalhar e surgiam conflitos com as autoridades do reino. Em Portugal, os nobres eram vaidosos, ignorantes e sempre prontos a conspirar. A Universidade de Coimbra decadente e ineficaz. O ensino secundário estava entregue aos jesuítas e faltavam escolas públicas para os mais humildes. A leitura, permitida apenas para obras com “exercícios espirituais”. Era preciso reformar. Este era o grande desafio que D. José I tinha pela frente. Seria capaz de o levar a cabo?

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Fachada principal do Palácio do Marquês de Pombal em Oeiras

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Mas, eis que uma terrível catástrofe abalou subitamente Lisboa e precipitou alterações drásticas em todos os domínios.

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O primeiro tremor começou cerca de quinze minutos antes das 10 da manhã e, pelo que foi dado observar, durou seis ou sete minutos, de forma que, apenas num quarto de hora, esta grande cidade estava em ruínas. Logo depois, irromperam vários incêndios, que arderam durante cinco ou seis dias. O epicentro do terramoto parecia estar diretamente por debaixo da cidade…Pensa-se que foi correndo ao longo do cais que vai das das casas da Alfândega ao Palácio real, que ficou totalmente arrasado e quase desapareceu. Na mesma altura em que se sentiu o tremor de terra, as águas do rio subiram entre seis e dez metros...” Relato do Cônsul Britânico duas semanas após o terramoto.

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Cerca de 1/3 da cidade foi destruída. Calcula-se que tenham morrido 15000 pessoas. O Teatro da Ópera, concluído um mês antes, bem como o Paço da Ribeira, ficaram em ruínas. Das 20000 casas existentes em Lisboa, apenas 3000 estariam habitáveis. Quase todas as igrejas paroquiais, áquela hora apinhadas – era Dia-de-Todos os Santos, desabaram e soterraram os crentes, quase todos gente humilde, pois os nobres iriam mais tarde. O Palácio da Inquisição no Rossio, palácios e mansões de aristocratas (com os seus recheios de joias e preciosidades), edifícios públicos, conventos, ficaram igualmente destruídos. O pânico foi imenso. Grande parte da população pôs-se em fuga, esfaimada, sem abrigo. Por entre os destroços surgiam ladrões que roubavam o que restava, ocorriam rixas, assassínios.

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Quais as origens de tamanha catástrofe, que, aliás, não era a primeira a ocorrer a Portugal? Tratar-se-ia do castigo de Deus aos “nossos intoleráveis pecados, porque ao não acreditarmos em profecias, os homens se tornaram surdos aos apelos dos justos e mesquinhos nas suas ações”? Ou ainda a ira divina “à soberba e aos pecados dos homens”, “os pecados capitais, sobretudo a vaidade, a ira, a soberba e a luxúria”., como foi escrito por diversos padres. Ou haveria causas científicas: “erupção violenta do ar e fogo do centro para a circunferência”, “amplitudes térmicas, zonas de tradição sísmica, má construção dos edifícios, sem condições de resistência aos abalos”, como também foi apontado? De qualquer modo, o terramoto criou um verdadeiro terror religioso, com longas procissões de crentes que se autoflagelavam.

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O cataclismo causou estupefação em toda a Europa. As polémicas foram grandes. Para Voltaire, os desastres naturais são a prova de que o mundo, embora criado por Deus, está longe de ser perfeito e sofre de grande fragilidade. “O mal físico” é uma realidade porque seres humanos inocentes são regularmente vítimas de sobressaltos da natureza. Para Rousseau, o “mal físico” ou da natureza é muito limitado e em qualquer dos casos, muito menos destrutivo do que o “mal moral”, que os homens causam uns aos outros… Logo até discussões éticas o terramoto desencadeou. Mas, eis Voltaire: “Ó míseros mortais! Ó terra deplorável!/ De todos os mortais monturo inextricável!/ Eterno sustentar de inútil dor também!/ Filósofos que em vão gritais: “Tudo está bem”;/ Vinde dois, contemplai ruínas desoladas,/ restos, farrapos só, cinzas desventuradas,/ os meninos e as mães, os seus corpos em pilhas,/ membros ao deus-dará no mármore em estilhas,/ desgraçados cem mil que a terra já devora,/ em sangue, a espedaçar-se, e a palpitar embora, que soterrados são, nenhum socorro atinam/ e em horrível tormento os tristes dias finam!”…

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…“Aos gritos mudos já das vozes expirando,/ à cena de pavor das cinzas fumegando,/ direis: “Efeito tal de eternas leis se colha/ que de um Deus livre e bom carecem de uma escolha”?/ Direis do amontoar que as vítimas oprime:/ “Deus vingou-se, e a morte os faz pagar seu crime”? / As crianças que crime ou falta terão, qual?,/ esmagadas sangrando em seio maternal?/ Lisboa, que se foi, pois mais vícios a afogam/ que a Londres ou Paris, que nas delícias vogam?/ Lisboa é destruída e dança-se em Paris. / Tranquilos a assistir, espíritos viris, vendo vossos irmãos as vidas naufragadas, vós procurais em paz a causa às trovoadas:/ Mas se à sorte adversa os golpes aparais, mais humanos então, vós como nós chorais”… Excerto de Poema sobre o desastre de Lisboa de Voltaire, em tradução de Vasco Graça Moura

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Ruínas de um edifício desmoronado pelo terramoto, defronte da Sé.

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No rescaldo do terramoto, os escombros, as vitimas, as cinzas, as pilhagens, o pavor eram indescritíveis. Do governo abúlico, atordoado, incapaz emergiu Carvalho. “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos” é a frase que lhe é atribuída e define as primeiras medidas tomadas. Lisboa foi, deste modo, poupada às epidemias que habitualmente acompanham as grandes catástrofes.

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Ruínas do Carmo. Mas era preciso muito mais: limpar o que restava da cidade, criar medidas de segurança e iniciar a reconstrução.

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Carvalho agregou a si três arquitetos reputados, cuja obra vinha já do tempo de D. João V e tinham estado ligados à edificação do Aqueduto das Águas Livres: Manuel da Maia, Eugénio dos Santos e Carlos Mardel. Foi traçada uma planta da cidade. Era preciso intervir depressa para alojar a população. Edifícios com a mesma volumetria, embora de acordo com a importância das ruas, não muito altos (o máximo de 4 andares), onde o último seria uma água furtada, o primeiro possuíria janelas rasgadas (ou de sacada), as dos outros dois andares de peitoril. Era o estilo pombalino, em contraste com o barroco Joanino.

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Esta foi a equipa responsável pela reconstrução de Lisboa. Da esquerda para a direita: Manuel da Maia, já com 80 anos e que dirigira as obras do Aqueduto das Águas Livres; Carlos Mardel, nascido na Hungria, que projetou entre outros trabalhos, a Mãe d’Água, o Arco das Amoreiras (para festejar a chegada das águas), o Chafariz do Rato e o palácio do Marquês, em Oeiras; e Eugénio dos Santos, responsável por numerosas intervenções em obras civis e militares, e que apresentou para a reconstrução de Lisboa um funcional traçado ortogonal, que mantinha o Rossio e o Terreiro do Paço, este com extensa arcaria, fechada por um arco triunfal e com desenhos uniformes nas fachadas dos quarteirões.

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Carvalho toma as decisões. É enérgico, inteligente, tem enorme capacidade de trabalho. O rei confia cada vez mais nas suas aptidões. Forma uma equipa coesa. O resultado é uma cidade metamorfoseada. As novas praças conseguem a admiração até mesmo de adversários políticos de Carvalho.

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A largura das ruas foi fixada em 19m, da qual 4 para passeios dos peões. Os cruzamentos fizeram-se em ângulo reto, as ruas secundárias com 12,5m. A zona do rio até ao Rossio e toda a zona ribeirinha foi aplanada. As fachados dos novos edifícios obedeciam ao mesmo padrão, com utilização de materiais pré-fabricados que permitiam maior rapidez. Hoje, mantendo-se a estrutura descrita, algumas das ruas do Centro Histórico de Lisboa são apenas artérias pedonais.

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Os edifícios eram construídos segundo uma estrutura testada de modo a resistir a novos abalos sísmicos. O saneamento básico foi introduzido.

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Praça da Figueira, contígua ao Rossio, donde se parte de um dos lados para o Castelo de S. Jorge e, do lado oposto, para a colina, onde se encontram as ruínas do Carmo.

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Era na Praça da Figueira que, antes do terramoto, se situava o Hospital de Todos-os-Santos. Na planta pombalina a praça transformou-se no principal mercado da cidade. Só mais recentemente foram construídos os atuais edifícios. A estátua equestre de D. João I foi erguida em 1971.

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O convento do Carmo, edificado no século XIV, ergue-se na colina em frente do Castelo de S. Jorge, com cabeceira em posição destacada, sobre o Rossio. Começou por ser um convento carmelita e foi o principal monumento gótico da capital. Hoje, é sede da Associação dos Arqueólogos Portugueses e também museu arqueológico. As suas ruínas testemunham as consequências do terramoto de 1755.

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A nova Praça do Comércio simboliza o modelo que Carvalho pretendia implantar no país – moderno, vigoroso, com comércio ativo que o libertasse das tutelas que o sufocavam. Era preciso produzir: as manufaturas que importávamos, melhorar a agricultura, criar indústrias e incentivar as pescas.

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Vista atual da Praça do Comércio (antigo Terreiro do Paço), projeto de Eugénio dos Santos: espaço aberto ao rio, quase todo livre de veículos, com o arco triunfal da Rua Augusta em fundo e a estátua equestre de D. José I, no centro. A estátua foi inaugurada vinte anos depois do terramoto, obra de Machado Castro. É imponente a figura real que caminha em direção ao rio, assente num pedestal onde se encontram símbolos das conquistas portuguesas e um medalhão com a figura do Marquês (retirado no reinado de D. Maria I e só reposto em 1833). Mas, sob a estátua do rei, era o seu ministro a ser exaltado. O monarca a cavalo, esmagando serpentes (ciladas, inimigos, atentados) simbolizava o poder, mas quem verdadeiramente o detinha era Carvalho. D. José I seria o “Reformador”, mas era o seu ministro que faria as reformas. Nessa altura, já como Marques de Pombal.

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O Arco da Glória da Rua Augusta, na versão atual, e recentemente reabilitado, foi concluído em 1875. Uma versão anterior erigida após o terramoto, foi também demolida no reinado de D. Maria I. Na parte superior observam-se esculturas que representam a Glória, coroando o Génio e o Valor. As esculturas no plano inferior representam Nuno Álvares Cabral, Viriato, Vasco da Gama e o Marquês de Pombal.

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Igreja de Santo António

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Lisboa Pombalina: Arco da Bandeira, no Rossio, com entrada para a Rua dos Sapateiros.

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Igreja da Vitória, destruída pelo terramoto, a sua reconstrução iniciou-se em 1765 e terminou apenas em 1824

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Igreja da Graça, que ruiu em grande parte durante o terramoto, sobretudo a fachada, as abóbadas da capela-mor e do cruzeiro.

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O terramoto não poupou o velho Palácio da Ribeira, que envolvia o Terreiro do Paço. A família Real e a Corte encontravam-se nesse dia em Belém, onde os efeitos do cataclismo foram menos devastadores e sobreviveram. D. José I, porém, ficou tão aterrorizado que se recusou até ao fim da vida, a habitar em edifícios de alvenaria. Por essa razão, foi mandado edificar no alto da Ajuda, local de pouca atividade sísmica e protegido de tsunamis, um palácio de madeira e pano, que viria a chamar-se Real Barraca ou Paço de Madeira.

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Desse palácio existe apenas a Torre da Paroquial que a ligava à Real Barraca. Em 1794, e segundos os registos, um criado com uma candeia, deu origem por descuido a enorme incêndio que destruiu por completo a Real Barraca e grande parte do seu recheio.

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Este é o Palácio da Ajuda, construído na zona onde existiu a Real Barraca, cujo projeto remontava ao tempo de D. João V. Desde essa época, houvera o propósito de construir um palácio digno de acolher a Família Real, e que substituísse o velho Paço da Ribeira. Se não fosse o Terramoto, D. José teria provavelmente ordenado a sua construção, em vez da estrutura provisória, que acabaria mais tarde por arder. A construção do palácio da Ajuda só se iniciaria na regência do futuro D. João VI e esteve interrompida por diversas ocasiões. Teve quase sempre um papel secundário na dinastia dos Bragança e foi no tempo de D. Luís que conheceu o seu período de maior fulgor.

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Vista atual do Tejo no alto da Ajuda.

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Desenho não datado de Vieira Lusitano (1699-1783), representando o atentado contra o rei D. José. Numa madrugada de setembro de 1758, regressava clandestinamente D. José de um encontro íntimo com Teresa de Távora (a Marquesa Nova), esposa de Luís Bernardo de Távora (o primeiro filho homem do velho Marquês, que fora Vice-Rei da Índia), quando foi emboscado por três homens a cavalo, que dispararam sobre a carruagem. O cocheiro saiu ileso mas D. José foi ferido. O atentado foi mantido em segredo. Discute-se se o atentado era mesmo dirigido ao rei se ao cocheiro.

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D. Francisco de Assis (Marquês de Távora), Vice-Rei da Índia. No entanto, o atentado acabou por transpirar, enquanto o rei convalescia. As suspeitas e os boatos iam crescendo ácerca do envolvimento da alta aristocracia, nomeadamente os Távora, possivelmente fomentados por Carvalho. 3 Meses depois, a polícia deteve numerosos suspeitos, quase todos pertencentes à mais alta aristocracia, acusados de crime de lesa-majestade, traição e rebelião contra o rei e o Estado. Não tardou que o número de detidos ultrapassasse os mil, inclusive 12 jesuítas, entre os quais o padre Gabriel Malagrida, que era o confessor da amante de D. José I.

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Igreja da Memória, na Ajuda. No local onde foi erguida, ocorreu o atentado a D. José I e é onde, hoje, se encontram os restos mortais do Marquês de Pombal

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O processo dos Távora contituíu uma verdadeira farsa jurídica. Para julgar os acusados foi criado um órgão denominado Tribunal da Inconfidência. Porém os juízes, nomeados por Carvalho, nunca conseguiram provar substancialmente a culpabilidade dos réus. Algumas das confissões tinham sido obtidas mediante tortura e outras baseavam-se naquilo que tinha ouvido ou dito nas ruas. Aspeto relevante foi a incrível rapidez do processo: no mesmo dia em que a defesa dos réus foi entregue a Junta concluiu os autos e requereu ao rei permissão para agravar as penas; no dia seguinte foi pronunciada a sentença e, outro dia depois, os réus foram executados.

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Os supostos culpados foram espancados e depois queimados. Entre eles estavam membros da mais alta aristocracia: Dom Francisco de Távora e seus dois filhos, José Maria e Luís Bernardo. Brás Romeiro, grande amigo de Luís Bernardo que teve o mesmo fim. Também foram logo presos o Duque ele Aveiro e a Marquesa de Távora, D. Leonor, que foi decapitada. Na presença do rei que pretendia que a execução fosse exemplar, os braços e pernas dos condenados foram partidas com paus e as suas cabeças decapitadas e depois os restos dos corpos queimados e as cinzas deitadas ao Tejo. A família Alorna e as filhas do Duque de Aveiro foram condenadas a prisão perpétua em mosteiros e conventos. A populaça delirou com o espetáculo.

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O palácio do Duque de Aveiro, em Belém, foi demolido e o terreno salgado, simbolicamente, para que nunca mais nada ali crescesse. No local, hoje chamado Beco do Chão Salgado, existe um marco alusivo ao acontecimento mandado erigir por D. José com uma lápide que ainda hoje pode ser lida.

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Eis o marco do Beco do Chão Salgado, hoje meio escondido atrás da Fábrica de pastéis de Belém, num espaço minúsculo que reparte com contentores do lixo. Assim se trata a História de Portugal.

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A lápide do Beco do Chão Salgado. Tivesse-se tratado de um atentado ao rei ou de um simples assalto, o caso serviu a Carvalho para domesticar a aristocracia e expulsar os jesuítas, seus inimigos políticos.

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Esta é a praça Mouzinho de Albuquerque, simbolicamente implantada na área onde os acontecimentos tiveram lugar.

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Quando Carvalho chegou ao poder, a polémica em torno dos jesuítas, vinha já de trás, o Padre António Vieira tinha mesmo sido expulso do Brasil. Os jesuítas em Portugal dispunham do quase monopólio do ensino superior e eram defensores, para alguns, de ideias retrógradas contrárias ao Século das Luzes. O ensino na Universidade de Évora era por eles ministrado.

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Porém, muitas das críticas que lhes eram feitas careciam de verdade. As suas bibliotecas possuíam autores modernos.

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Mas, para Carvalho, devia-se à Companhia de Jesus – ao seu fanatismo, associado à subserviência dos governos às vontades de Roma, Portugal ter chegado ao atual estado de decadência.

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Mas onde a atuação dos jesuítas era mais contestada era no Brasil. Na região da Amazónia surgiram inúmeros conflitos com os colonos que, na falta de mão-de-obra suficiente para as suas explorações e com a deserção dos escravos trazidos de África, pretendiam capturar e escravizar os Índios, (cuja escravidão tinha já sido abolida em 1570, mas que de facto se manteve até 1757, com proibição definitiva, portanto, no consulado de Carvalho). E, não raras vezes os jesuítas se opuseram aos desígnios dos fazendeiros.

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No Sul, os jesuítas, que possuíam numerosas missões na região que hoje constitui Uruguai e Paraguai, eram um entrave à delimitação das fronteiras entre a América portuguesa e espanhola e eram acusados de favorecer o contrabando a favor dos ingleses. E em toda a colónia travavam, ainda, a aprendizagem da língua portuguesa, em detrimento dum dialeto (Nheengatu) que era uma mistura das línguas nativas com o português, falado pelos bandeirantes). Foi obrigatório o uso do idioma português. A esta medida se deve provavelmente o facto do Brasil não ser hoje um país bilingue.

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Os autos-de-fé eram práticas de penitência realizadas muitas vezes na presença de público jubiloso ou em espaços reservados, e que iam desde a humilhação, até às execuções pelo fogo. Era um tribunal religioso (Inquisição) que condenava, mas eram os carrascos seculares que executavam. Os réus eram “relaxados” ao poder secular… O poder da Inquisição foi francamente limitado por Pombal e a última execução realizou-se no tempo do seu consulado.

 

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O último sacrificado foi o Padre Gabriel Malagrida. Este fizera os seus estudos em Itália, onde ingressou na Companhia de Jesus. A seu pedido, foi para o Brasil (inicialmente, Belém), mas depois passou por quase todo o Brasil, já como “missionário apostólico” onde desenvolveu notável atividade de pregador, manteve contactos estreitos com indígenas e aprendeu a falar dialetos locais. Em 1754 regressou definitivamente a Portugal. Após o terramoto, contrariando a explicação das causas naturais da catástrofe, redigiu uma pequena obra em que atribuía a catástrofe a um castigo divino e onde defendia que o infortúnio dos desalojados se consolava com procissões e exercícios espirituais. Pombal não gostou destas ideias, que considerou um desafio à autoridade do Estado, punindo-o com o desterro em proporcionaria a Pombal a ocasião para eliminar Malagrida, acusou-o de colaboração na tentativa de regicídio, de falso profeta, impostor e herege. Velho, demente, Malagrida foi condenado ao garrote e fogueira.

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O conflito entre Pombal e a Companhia de Jesus fora-se agudizando com o tempo. Em primeiro lugar, os jesuítas quase monopolizavam o Ensino e eram acusados de ser retrógrados, em discordância com o espírito da época – o iluminismo. Depois, possuíam riqueza considerável no Brasil e causavam embaraços à política de integração dos índios, além de suscitarem conflitos com os interesses comerciais dos colonos, que se queixavam da sua concorrência. Foram acusados de ser cúmplices dos Távora na tentativa de regicídio. Finalmente, dificultavam a delimitação da fronteira meridional do Brasil, tanto a Portugal como à Espanha. Pombal montou uma intensa campanha internacional que teve recetividade em vários países europeus, até que o papa Clemente IV aboliu a Companhia (1773). Mas já havia mais de 20 anos que os jesuítas tinham sido expulsos de Portugal…

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Retrato de “O Marquês de Pombal expulsando os Jesuítas” da autoria de Louis-Michel van Loo e Claude-Joseph Vernet, Museu da Cidade.

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A necessidade de desenvolver as manufaturas em Portugal tornou-se premente quando as exportações brasileiras de ouro de aluvião de Minas Gerais começaram a diminuir drasticamente. Entre a sua descoberta e 1770 ficava mais barato comprá-las no estrangeiro do que produzi-las em Portugal.

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Por outro lado, o tratado de Methuen (1703) celebrado com os ingleses foi mais um motivo de ruína, pois se vendíamos os nossos vinhos em condições mais favoráveis que os franceses, éramos obrigados a importar os artigos de lã sem taxas aduaneiras. Este facto levou à destruição da nossa agricultura, pois os agricultores estavam sobretudo interessada na vinha, e ao desaparecimento das manufaturas. E como a procura dos produtos de lã ultrapassava largamente a procura de vinho a balança económica desequilibrava-se e obrigava ao recurso de pagamento em ouro e pedras preciosas. Era este o panorama que se vivia quando Carvalho chegou ao governo. Aumentar as manufaturas e toda a atividade produtiva era, pois, imprescindível. Foi isso a que meteu ombros, mesmo com a indiferença da aristocracia.

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Com o objetivo de melhorar a contabilidade e coordenação das atividades económicas, tanto em Portugal como nas colónias, foram tomadas medidas legislativas, umas de raiz, outras reformuladas, que viriam a mostrar-se fundamentais. Entre elas: criação da Junta do Comércio; publicação do primeiro livro de Contabilidade, escrito em Português; incremento do Ensino Secundário com a criação da “Aula do Comércio“. Quanto à Junta do Comércio, para além da sua função principal, organizava as frotas, fiscalizava o comércio e intervinha nas falências; recebia as contribuições para pagamento dos marinheiros na Índia; definia a capacidade dos navios e o preço dos fretes e respetiva cobrança e fiscalizava a carga e descarga de certos produtos nas alfândegas, como açúcar, tabaco e couros.

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A Real Fábrica das Sedas foi criada em 1788. Sucedeu a uma sociedade de particulares, constituída no reinado de D. João V, os quais mandaram vir operários de Lyon, e construída no edifício que hoje se conhece por este nome, ao Rato. Quando Carvalho chegou ao Governo, estava falida.

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Possuía numerosos teares de seda, mas outras atividades ali eram praticadas, como cutelaria, relojoaria, pentes de marfim, caixas de papelão envernizadas, verniz de goma-copal, lacre. Uma fábrica de louça teve alguma notoriedade, mas acabou por ser encerrada.

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Para além da fábrica propriamente dita, pequenas oficinas dispersas pela zona das Amoreiras, dedicavam-se a estas atividades e formavam oficiais que depois desenvolveriam por muitas zonas do país as suas artes e ofícios…

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Fabrica de Loiça do Rato Museu da Cidade, Lisboa

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Museu da Cidade, Lisboa

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Um dos raros edifícios que restam do conjunto que integrava a Real Companhia das Sedas é o que hoje alberga o Museu Arpad Szenes-Maria Helena Vieira da Silva, nas Amoreiras.

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A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) deve ter sido o primeiro grande conflito mundial, o qual teve consequências geoestratégicas importantes, não só na Europa, como na América e na India. Fundamentalmente, opôs a França à Inglaterra. Entre as causas do conflito, aquelas que mais tocavam os interesses portugueses tinham a ver com o controlo comercial e marítimo das suas colónias. Portugal, como sempre, estava ao lado da velha aliada Inglaterra e, por isso, tinha contra si, a França e a Espanha, apesar do rei espanhol (Carlos III) ser irmão da rainha portuguesa, D. Mariana Vitória.

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Em 1762, os embaixadores de França e Espanha pressionaram o governo português para que entrasse na guerra contra a Inglaterra, ameaçando com a invasão do país, caso Portugal não proibisse a utilização dos nossos portos pelos navios ingleses, o que foi recusado. Dez dias depois, viu-se invadido por soldados espanhóis e franceses. Essa invasão traduziu-se apenas em pequenas escaramuças, apesar da fácil progressão do exército inimigo, porque, entretanto, a guerra findou. Porém, foi notória a deficiente preparação das tropas portuguesas, sem oficiais preparados para a guerra, sem soldados, armas e fardamentos. Daí o empenho do futuro Marquês de Pombal em reorganizar o exército, tarefa de que encarregou o Conde de Lippe, notável militar e político alemão, que viria a realizar uma verdadeira revolução, em especial, na disciplina e organização militares.

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Carvalho ordenou a criação de novos fortes em todo a Amazónia, a fim de que esta se tornasse de facto território português. Por outro lado, incentivou o povoamento na região, com a vinda de portugueses para a região e o casamento destes com índias. Publicou mesmo um alvará com força de lei, que lhes concedia privilégios com esses casamentos. A expansão portuguesa fez-se também para ocidente. Porém, no sul, naquilo que se chamava a colónia de Sacramento, desde há muito se verificavam conflitos entre portugueses e espanhóis, cuja posse, o tratado de paz assinado em Paris para concluir a Guerra dos Sete Anos, deixara por esclarecer. Pelo rio da Prata fazia-se importante contrabando de ouro e pedras preciosas, bem como de exportações britânicas destinadas a Lisboa que eram por ali encaminhadas para a América espanhola.

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Os objetivos de Carvalho eram, além do povoamento dos territórios, a primazia da autoridade civil sobre as missões e a submisão dos índios à sociedade dos brancos na região e às ordens da Coroa portuguesa (lei do “Diretório dos Índios”). Com a sua expulsão do Brasil em 1759, as enormes propriedades que a Companhia de Jesus possuia não só no Brasil como em todo o Império foram expropriadas.

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A intervenção de Carvalho na reforma da economia portuguesa assentou na criação de companhias e fábricas monopolistas que aumentassem a produção sobretudo de manufaturas e desenvolvessem o comércio entre o Brasil e Portugal. No Brasil foi criada a Companhia Geral de Grão-Pará e Maranhão (1775). Quatro anos depois surgiu a Companhia Geral de Comércio de Pernambuco também para dinamizar a atividade comercial.

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A Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão incentivou as imigrações de portugueses, principalmente açorianos, e aumentou o tráfico de escravos africanos para a região. Tal fato fez com que a cultura de arroz e algodão aumentasse e colocasse o Maranhão dentro do sistema agroexportador. A região enriqueceu e ficou fortemente ligada a Portugal. No entanto, as relações comerciais com o sul do país quase não existiam.

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Pombal nomeou um seu irmão governador do novo Estado do Grão-Pará e Maranhão para aplicar a sua política de reformas na colónia. O novo governador organizou uma expedição integrada por físicos, astrónomos, geógrafos, engenheiros, etc. O objetivo era conhecer bem a região e dessa iniciativa resultaram grandes transformações na região amazónica.

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Com a nova política foram criados mecanismos de proteção para o escoamento dos produtos, que, no entanto, se revelaram um insucesso em virtude do escasso volume das matérias exportadas. O facto suscitou protestos dos pequenos produtores, que se sentiam prejudicados. A repressão foi grande.

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A partir da segunda metade do século XVIII, Belém transformou-se numa capital com aparência de cidade grande. Porém, em 1763, a sede do Governo-geral da colónia foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, o que traduzia o crescimento da economia da região Centro-Sul em detrimento do Nordeste.

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Painel de azulejos no Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras

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Desde 1750 que se verificou intensa atividade legislativa, a qual incidiu sobre quase toda a vida portuguesa. Nela incluíram-se o primeiro sistema de ensino a cargo do Estado e a reforma da Universidade de Coimbra. Pombal considerava o ensino o meio de modernizar as mentalidades. Para a reforma da Universidade foi constituída uma Junta de Providência Literária, integrada por individualidades relevantes, que criou novos Estatutos, com a colaboração do próprio Marquês, o qual por vezes presidia às reuniões e interveio em todas as fases do planeamento.

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Com a pompa solene devida a um rei – que esteve ausente das cerimónias, foi o Marquês que consagrou a reforma da Universidade de Coimbra (1772). Novos estatutos, alterações nos conteúdos dos cursos e criação de novas Faculdades (Matemática e Filosofia), laboratórios, observatório, jardim botânico, mestres recrutados no estrangeiro, imprensa universitária. A reforma da Universidade, inseria-se na política de modernização cultural do país.

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Laboratório de Química da Universidade de Coimbra. Para a época muito dos equipamentos eram excecionalmente avançados. Mas igualmente importante foi a modernização do Ensino, como aconteceu na Faculdade de Medicina, onde se voltou a estudar Anantomia e a dissecar cadáveres , se privilegiou a Higiene, e se adotaram os mais recentes conhecimentos de Fisiologia e Farmacologia.

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Outra iniciativa na área da Educação foi a criação do Colégio dos Nobres (1761), destinado à formação de moços fidalgos entre os 7 e os 13 anos de idade. O seu corpo docente era constituído, na quase totalidade, por mestres estrangeiros. A ideia que presidiu à sua criação era dar aos filhos dos nobres, aptidões que lhes permitissem ocupar lugares no Governo e nas forças armadas. Porém, teve uma vida atribulada e acabaria por ser extinto em 1837. Posteriormente, foi sede da Faculdade de Ciências de Lisboa e atualmente alberga o Museu de História Natural e da Ciência.

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A Real Mesa Censória foi a designação do organismo, criado por Carvalho, a quem competia aprovar ou reprovar os “livros e papéis”. Era constituído maioritariamente por membros eclesiásticos, mas próximos das ideias iluministas.Previa a inspeção de livrarias, bibliotecas e tipografias. Em relação à censura literária anteriormente existente, da responsabilidade da Inquisição, representou uma certa abertura, pois foi autorizada a publicação de autores e escritos antes proibidos, inclusive alguns de tendência protestante e, simultaneamente, proscritos textos emanados da Santa Sé. Mas continuaram a existir limitações à leitura. O objetivo da Mesa Censória era retirar a censura da esfera da Companhia de Jesus e submetê-la à autoridade do Estado (entenda-se, poder régio, absolutista)

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O Chafariz do Rato, inaugurado em 1744, obra atribuída a Carlos Mardel, mas, no entanto, só concluída em 1799. O abastecimento de água provinha do Aqueduto das Águas Livres. Teve papel importante no fornecimento de água às populações e contribuiu para o funcionamento da Real Fábrica das Sedas e da Loiça do Rato. Junto da fábrica foi aberta uma praça, com um chafariz num dos ângulos, e em volta desta foram abertas diversas ruas, onde se edificaram prédios de estrutura pombalina, destinados a residências dos fabricantes que trabalhavam na fiação. Estes eram considerados pequenos empresários, que dependiam diretamente da fábrica, por isso os privilégios que lhes eram consignados garantiam-lhes casa, oficina e equipamentos próprios, no Bairro das Águas Livres, junto à Fábrica das Sedas.

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O Grande Arco das Amoreiras, projetado em 1752 por Carlos Mardel, erigido para comemorar a chegada das águas livres a Lisboa. A inscrição original existente no arco foi mandada substituir por Pombal.

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O Arco de S. Bento, parte da estrutura das Águas Livres, construído em 1758 sobre a rua de São Bento em Lisboa, que teve por missão abastecer de água o chafariz da Esperança, a partir das Amoreiras. Esteve desmontado durante décadas para remodelação do antigo Palácio das Cortes, atual Assembleia da República. Depois de várias vicissitudes encontra-se nos relvados da Praça de Espanha.

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No âmbito das reformas económicas, deve salientar-se a criação da Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve em 1773, cujo objetivo era precisamente desenvolver aquela atividade.

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Para tal, Carvalho mandou edificar Vila Real de Santo António (VRSA), que reforçava a presença portuguesa em frente de Ayamonte, do outro lado do Guadiana. Controlar o comércio e desenvolver as pescas naquele mar rico em atum e sardinha, o que viria a ser um vetor de prosperidade. Por outro lado, dali partiam os navios que subiam o Guadiana para transportar o minério extraído das minas de São Domingos. Ao longo dos anos também a atividade agrícola e a reparação de navios tiveram papel importante. Na Praça encontramos um obelisco central, quatro torreões delimitando os vértices, o edifício da Câmara Municipal e a Igreja Matriz.

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Lápide do obelisco da praça Marquês de Pombal, em VRSA.

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A edificação da cidade foi bastante rápida. A 17 de Março de 1774 foi lançada a primeira pedra e dois anos depois as obras estavam concluídas. Os edifícios e o traçado das ruas de grande rigor arquitetónico, obedecem ao mesmo estilo da Baixa lisboeta, erguida depois do terramoto, e seguiram as mesmas técnicas de construção.

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A Praça Marquês de Pombal em conjunto com as históricas ruas pombalinas tece a principal área comercial da cidade. O perímetro da Praça está hoje em parte ocupado por estabelecimentos cuja policromia de expositores contrastam com a arquitetura dos edifícios. Da Praça partem as históricas ruas de VRSA, perpendiculares entre si, que se estendem até à Marginal, marina e Alfândega.

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Se, presentemente, as principais atividades económicas do concelho advêm do turismo, foram as pescas e as conservas, nomeadamente de sardinha e atum, aquelas que maior desenvolvimento viveram com a criação de VRSA.

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A Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, criada em 1756 por proposta de Carvalho, surgiu pela necessidade de recuperar o prestígio e os lucros que a crise de escoamento, a baixa de procura pela desconfiança na qualidade, a concorrência de vinhos espanhóis ou exportados clandestinamente pela foz do Douro, tinham dado origem.

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A nova Companhia era uma entidade controladora e reguladora que visava assegurar tanto os rendimentos dos lavradores como dos comerciantes e, assim, do próprio Reino.

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Se até ao início do séc. XVIII, a vinha era um fator de riqueza e prosperidade, a partir de 1730 instalara-se uma crise séria. Os preços baixaram drasticamente, até ao ponto de deixar de ser compensador plantá-la. O vinho era falsificado com a adição de açúcar, aguardente e baga de sabugueiro.

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Os comerciantes de Gaia chegaram a não adquirir uma única pipa. O caos instalava-se.

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A qualidade do vinho degradara-se, portanto, originando por vezes medidas draconianas, que, apesar de tudo, não resolveram o problema – como mandar arrancar todos sabugueiros das províncias do Norte. O seu papel, no entanto, foi importante, não sem que tivessem gerado fortes tumultos, reprimidos com mão de ferro.

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Carvalho mandou estudar as quintas, distinguir os vinhos e estabelecer os melhores territórios para a viticultura. Toda a região foi demarcada com marcos de granito, dos quais ainda hoje persistem alguns.

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A Região Demarcada do Douro foi a primeira a ser estabelecida no mundo e, na época, conseguiu o monopólio dos vinhos do Porto, no mercado interno e Brasil.

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No norte do país, especialmente no Porto, o descontentamento em relação à Companhia do Alto Douro foi subindo de tom e culminou com um motim que envolveu vários grupos populares, principalmente taberneiros que vendiam vinho a copo e cuja qualidade passara a ser fiscalizada, além do número de tabernas ter sido reduzido; e tanoeiros que fabricavam os barris e receavam que a Companhia lhes retirasse poder. Eclodiu um motim (1757) que reuniu alguns milhares de desordeiros que cercou o Juiz Conservador da Companhia, intimando-o a decretar medidas que faziam regressar a atividade ao estado anterior à criação do monopólio. Além disso, os desordeiros assaltaram, saquearam a mansão do fidalgo que dirigia a Companhia.

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A reação de Carvalho foi dura e exemplar. Após investigação rápida, o tribunal condenou 441 pessoas, das quais 14 (homens e mulheres) foram enforcadas. Outros réus foram degredados e os restantes chicoteados em público, condenados às galés ou rumaram para a prisão. O Porto foi colocado em estado de sítio.

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Outras reações por parte de populares que se tinham sentido prejudicados pelas políticas de Carvalho, ocorreram, por exemplo, com os pescadores da Trafaria e Monte Gordo, quando da constituição de companhias monopolistas de pesca e com os jovens recrutados por ordem de Carvalho, em virtude da ameaça de guerra com Espanha. Estes refugiaram-se na aldeia da Trafaria. Uma força de polícia, comandada por Pina Cabral, que seria Intendente já no reinado de D. Maria I e tornado célebre pelos seus atos repressivos, cercou os fugitivos e incendiou a aldeia. Na época, a fogueira não servia só para “purificar” os hereges. Matava também revoltosos, desertores e desobedientes. Carvalho era implacável.

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Na nobreza do século XVIII distinguiam-se dois grupos: um de velha linhagem, tradicionalista, os “puritanos” de sangue; outro que aceitava a nobilização daqueles que se tinham afirmado nas letras, nos negócios e até na administração. Mas, ao longo do seu consulado, não foram apenas os aristocratas que queriam vingar a sua subalternização e o processo dos Távora. A profusa legislação que o ministro promulgou no combate ao contrabando, na regulação do comércio em Portugal e colónias colidiu também com os interesses de comerciantes e financeiros britânicos e dos jesuítas. A nomeação de colaboradores da confiança de Carvalho e os privilégios de que desfrutavam, foram outro fator de descontentamento.

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As relações do governo Pombalino com Roma passaram por um longo período de crise e momentos de corte de relações. D. João V fora um rei fidelíssimo e as diretrizes da Companhia de Jesus, do Santo Ofício e os autos-de-fé faziam de Portugal um dos países mais ativos da Contrarreforma. O conflito com os Jesuítas, a campanha liderada por Pombal, a qual se estendeu a quase toda a Europa e culminou com a extinção da Companhia de Jesus, criaram um clima de suspeição – até de Portugal ter tendências protestantes. Só com Clemente XIV, que extinguiu a Companhia de Jesus, as relações se normalizaram, mas entretanto o Tribunal do Santo Ofício e a Inquisiçao ficaram subordinados ao Estado, o rei pôde escolher os seus bispos, a Inquisição ficou ao serviço do Estado, as penas de morte na fogueira acabaram, bem como a distinção entre cristãos novos e velhos e os lugares de chefia foram ocupados por padres mais abertos às ideias iluministas.

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Carvalho fora desde cedo olhado como um parvenu, “um fidalgote” obscuro, tanto mais odiado quanto o seu poder e influência cresciam. O rei, pouco interessado na governação e mais na ópera e touradas, delegava-lhe competências. Mais tarde, uma doença arrastada, conservou-o anos afastado mesmo dos atos representativos – receber diplomatas, cerimónias públicas, etc. Carvalho era para a nobreza reacionária e para os padres jesuítas, no mínimo, um inimigo político. Mas também agentes de interesses económicos portugueses– comerciantes, pequenos industriais e especuladores se sentiram prejudicados. A repressão violenta sobre todos os populares envolvidos em motins ou atos de desobediência, assim como a dureza com que fez cumprir as suas políticas – que, embora visando o engrandecimento do Estado, atingiam todas as classes sociais, criaram um sentimento de profundo mal-estar e vingança.

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Com a morte do rei, Pombal foi demitido e viu-se acossado por todos os que o odiavam. Alguns dos antigos colaboradores passavam agora também a incriminá-lo… Era a viradeira. As acusações eram principalmente abuso de poder e corrupção. Durante meses, instalaram-lhe processos judiciais. Queriam a sua cabeça. Pombal guardou a sua energia para a defesa que escreveu detalhadamente. A rainha, que o detestava, acabou por decidir, atendendo à idade e à “senilidade”, pela proibição de ele se aproximar do Paço a uma distância inferior a 20 léguas. O ex-ministro exilou-se em Pombal e morreu em 1782, depois de 2 anos de doença grave.

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Agradecimentos a Luis Verdelho, Maria Dulcídia Morgado, Pedro Tomé, Sandra Pereira e Viana Antunes. Consultados: A administração do Marquês de Pombal de Pierre de Comartin; A urbanização da nova Lisboa de Maria João Martins Pardal; História de Portugal de José Mattoso (4º Volume); História de Portugal de João Medina (Volume IX); O Marquês de Pombal e a sua época de J. Lúcio de Azevedo; O terramoto de 1755; O Marquês de Pombal de Kenneth Maxwell; Wikipedia.

 

Veja o vídeo:

Veneza e as expectativas

“Viajar! Perder países”, este o título de um poema de Pessoa, escrito já perto do fim da vida. Mas, se no conteúdo do poema são apontadas numerosas contradições, próprias de quem se procurava a si próprio, o que o título exprime é a dualidade entre sonho e realidade. Idealizamos uma cidade, uma pessoa, mas o seu conhecimento ou revelação podem trazer desilusões e sofrimento.

Veneza corresponde ao arquétipo que dela construí, ao longo da vida, a partir das leituras, dos filmes, das fotos, da música? Por acaso infeliz só tardiamente desemboquei em Veneza, num final de Setembro, por sinal ainda quente e a preceder as primeiras chuvas. Não entrei de navio, nunca a 5a sinfonia de Mahler ou a 7a de Bruckner estiveram audíveis, exceto na minha cabeça, mas as cores correspondiam às dos filmes de Visconti. Os turistas acotovelavam-se no labirinto das ruelas, o comércio fervilhava, as camisas listradas dos barqueiros sobressaiam das gôndolas a empunhar o remo único que conduziam os viajantes, não com as suas bagagens mas para um itinerário romântico-turístico que as fotografias incessantes fariam perdurar. Em muitas lojas as máscaras expostas evocavam o Carnaval. Pedintes sentados no chão, inclinavam-se à caridade. Junto aos canais não encontrei qualquer oficial austríaco passeando com uma mulher de classe – “Una signora!” Nem os canais exalavam qualquer cheiro fétido. Não se desconfiava de qualquer ameaça, não havia vento quente, nem funcionários andavam a aspergir cal para efeitos sanitários. A Belle Époque de Thomas Mann já foi, mas o cenário no essencial ainda ali está.

A Praça de São Marcos está pejada de gente, diante da Basílica filas de visitantes aguardam pela entrada, os pombos arrulham nos espaços livres, num café famoso (Florian) cobram uma fortuna por um chá banal.

Na ponte do Rialto imaginamos o mercador António a dar-se conta do infortúnio que lhe fez naufragar os navios ou do azedume do usurário Shylock a tramar uma vingança. Mas, sobretudo, da inveja, oportunismo e malvadez de Iago, uma das mais execráveis criaturas do universo shakespereano.

No Palácio, naqueles majestosos salões, podemos imaginar o Doge a conferenciar com os seus conselheiros sobre a ameaça que recai sobre Chipre com a aproximação da esquadra turca. Ou ouvir as acusações de um influente senador sobre os métodos demoníacos que um mouro de pele negra (embora general respeitado) teria utilizado para seduzir a sua gentil e nívea filha. Mas noutro cenário, o julgamento do mesmo António, quando a mulher dum amigo que ajudara, em condições que agora lhe podiam custar a vida, disfarçada de juiz, ao exigir o estrito cumprimento das leis, não só evita a vingança do usurário, como consegue fazer repartir parte da fortuna de Shylock pelos familiares e pela República. E imaginar o mesmo Shylock deambulando pelo bairro judeu de Veneza…

Da Piazetta ver partir a esquadra de Othello para Chipre, onde se desenrolará toda a tragédia. Os ciúmes loucos do general, atiçados pelas intrigas e calúnias do seu homem de confiança, que o fazem duvidar da fidelidade da esposa. A insanidade de Othello que o leva ao crime e ao suicídio.

Como passear no Lido, que hoje apenas o Festival de Cinema e a Bienal recomendam, mas imaginar o fim de um homem – artista respeitado, culto, solitário, cuja ansia por atingir a beleza o levava a uma vida quase ascética. A pureza, o seu diálogo consigo próprio, mas, eis de repente a ameaça de corrupção ao seguir um adolescente que representará talvez esse ideal de beleza. Paixão platónica pelo jovem ou nostalgia por aquele que já fora e o reconhecimento do seu próprio declínio físico? A peste é a morte, inexorável. Não é o Siroco que a traz e não adianta iludirmos com artifícios ridículos as marcas do envelhecimento.

Veneza evoca-me uma paixão irracional, oportunismo, vingança, intriga, inveja, ciúme absurdo, morte, ganancia. Mas também o racismo – Shylock é um judeu usurário que é tratado com o desprezo que merece. Mas a sua vontade de vingança devia-se a humilhações anteriores cometidas por um cristão que era um respeitável cidadão. Só que os judeus na época de Shakespeare estavam expulsos e havia uma atitude preconceituosa para com eles…

Veneza foi uma república poderosa construída a partir da cidade. A sua história é feita, ora de conflitos, ora de alianças, com as cidades vizinhas, com o Papa e o Levante. Foi uma verdadeira charneira com o império otomano, cujas influências saltam à vista.

Desde a queda do Império Romano, só no século XIX se assistiria à unificação da Itália. Ainda hoje as rivalidades políticas e económicas entre as regiões da península, são grandes. As rivalidades entre a Lombardia, Toscânia e Piemonte, entre o norte rico e o sul pobre, entre Milão, Roma, Veneza e Génova. E, no entanto, Itália na sua diversidade é, em muitos locais, um fascinante museu urbano que demonstra a hegemonia que teve como capital cultural europeia, séculos atrás.

Correspondeu Veneza às minhas expectativas? Em Veneza, como quase em toda a Itália, as referências primordiais, estão ao virar duma esquina, numa praça, dentro de um museu, dum teatro. Verdi, Monteverdi, Rossini e, claro, Vivaldi ocorrem diante do Teatro e da Accademia. Toda a pintura da Escola que tem o seu nome dispersas em vários locais. O teatro de Goldoni, a vida e o testemunho de Casanova, como parte de “O amante de Lady Chatterley”. E, depois e, finalmente, o cinema. Veneza como cenário, evoca sempre Visconti. Mas, disso temos falado. Criamos modelos que sirvam para uma representação simplificada da realidade. O que se vê em Veneza confirma o que dela esperava, mas, mais importante, estimula a curiosidade pelo que ignoro.

FM

 

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A Praça de São Marcos, aqui representada num quadro de Canaletto, é a única praça de Veneza. Constitui o coração da cidade e localiza-se na margem do Grande Canal. Na praça de São Marcos encontram os ex-libris de Veneza – a Basílica de São Marcos, o Palácio do Doge e o Campanário.

 

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O Grande Canal – atravessa a cidade, com “início” na laguna perto da estação ferroviária, faz uma curva em forma de grande “S” e termina junto à Basílica de Santa Maria della Salute, próximo à Praça de São Marcos. É a maior via aquática de tráfego de Veneza. O transporte público é assegurado pelos vaporetti e táxis aquáticos.

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Basílica de S. Marcos – um dos melhores exemplos da arquitetura bizantina, sede da arquidiocese romana desde 1807. Trata-se de uma obra política destinada a reforçar a identidade e independência de Veneza. A história da sua construção está intimamente ligada à da República de Veneza.

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O Palácio do Doge, situado na entrada do Grande Canal, era o centro do poder local e residência do Doge. O Palácio existe desde o século IX, mas, tal com o conhecemos hoje, foi edificado entre os séculos XIV e XVI.

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Palácio do Doge – A palavra Doge provém do latim dux, que significa chefe. Este era também o primeiro magistrado. Os Doges de Veneza eram eleitos vitaliciamente entre os membros das famílias mais ricas e poderosas. Até 1032 desfrutavam de poder quase absoluto nos assuntos governamentais, militares e religiosos, altura em que um deles tentou, sem êxito, tornar o cargo hereditário.

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O Palácio era, portanto, também sede da magistratura veneziana. Hoje é sede do Museo di Palazzo Ducale.

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O Campanário de São Marcos, outro dos símbolos de Veneza – A construção iniciou-se no século IX e foi concluída três séculos depois. Em 1489, um raio destruiu a cúspide de madeira. Um forte sismo em 1511 danificou-o seriamente e obrigou à sua reconstrução. Nos séculos seguintes registaram-se diversas intervenções, sobretudo para reparar estragos provocados por raios. Em julho de 1902, o campanário sofreu um desmoronamento. A sua reconstrução iniciou-se no ano seguinte, mas a inauguração só ocorreu em 1912, por ocasião da festa de São Marcos.

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A ponte de Rialto, com os seus 28 metros de comprimento, é outro dos ícones de Veneza. Construída em pedra da Ístria, entre 1588 e 1591, apresenta duas rampas inclinadas que se cruzam num pórtico central. Na época foi uma obra revolucionária.

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Mas detenhamo-nos com mais pormenor em Veneza, sempre com o Grande Canal na proximidade. Hoje ainda se vêm as gôndolas, já só quase para efeitos turísticos. É uma vasta avenida de água ladeada por belos palácios, transformados em museus, hotéis, lojas, apartamentos, mas que testemunham a grandeza antiga. Ruas estreitas são calcorreadas por turistas atraídos por toda esta magia. Um universo romântico.

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Basílica de São Marcos – São Marcos, o Evangelista, tornou-se no século I o Santo Padroeiro de Veneza. Devia rivalizar com São Pedro, o Padroeiro de Roma.

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Basílica de São Marcos – Rezam os escritos que S. Marcos foi martirizado e enterrado em Alexandria, no Egipto. A sua ligação a Veneza remonta à lenda que afirma que, em 828, alguns mercadores venezianos roubaram o seu corpo, em Alexandria, e levaram-no para Veneza, altura em que a cidade o adotou como patrono

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Vista parcial das fachadas do Palácio do Doge e da Basílica de São Marcos– Em 1063 foi construída uma sumptuosa basílica, que substituiu a capela original, e Veneza adotou também o leão alado de São Marcos Evangelista, como símbolo para o seu escudo de armas. As asas do animal reportam-se ao seu papel de mensageiro.

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Em toda a Basílica é patente a influência bizantina, tanto nos azulejos, como nos ícones religiosos. A história da República de Veneza começou com a cidade, que se originou a partir dum conjunto de comunidades lacustres reunidas para defesa mútua contra os invasores da Lombardia (séc. VII).

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O Interior da Basílica – Ao mesmo tempo, o poder do Império Bizantino diminuía no norte da península Itálica. Veneza viria a transformar-se de aldeia de pescadores em importante porto de comércio e construção naval.

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O Interior da Basílica – Durante o século XII os venezianos estabeleceram lucrativas relações comerciais com o Império Bizantino, embora, posteriormente e, por várias ocasiões, se tivessem guerreado. Outros conflitos armados opuseram Veneza a ligas de cidades vizinhas, como Milão, Florença e Cremona.

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No final do século XV, era a segunda maior cidade da Europa, depois de Paris, e, provavelmente, a mais rica do mundo. A sua marinha era poderosa e por terra controlava as principais vias comerciais. O seu poder expandia-se pelo mar Adriático e Mediterrâneo, chegando a Constantinopla.

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Interior da Basílica – Foi, pois, durante o séc. XV que Veneza viveu a época de maior expansão. O seu declínio iniciou-se com a descoberta das novas rotas marítimas. Várias foram as alianças e as alternâncias de inimigos, mas a proximidade e conflitos com os otomanos foram uma constante.

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Basílica de São Marcos (pormenor da fachada) – Mas, fundamental para a queda de Veneza, foi a invasão pelas tropas de Napoleão, em guerra com os austríacos. Apesar da sua neutralidade, Veneza ficou sob o domínio “protetor” francês até 1798. Com a queda de Napoleão, foi invadida pelas tropas do Império austríaco dos Habsburgo. Em 1866, Veneza, finalmente, passou a fazer parte da Itália unificada de Garibaldi e Vittorio Emanuel.

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Este Leão está omnipresente por toda a cidade. Curiosamente, é representado com uma pata sobre um livro aberto (o Evangelho) ou fechado. Segundo a tradição, quando o livro está aberto, significa que o trabalho escultórico foi realizado num período em que a cidade estava em paz.

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Junto do Palácio do Doge encontram-se duas colunas erigidas em 1180, uma com o leão alado de S. Marcos e outra representando S. Teodoro (santo padroeiro de Veneza, antes da vinda do corpo de São Marcos para Veneza), que lembram os pilares de bronze que o rei Salomão mandou construir para Hiram de Tyr. A Piazzetta tem, assim, essas duas grandes colunas coroadas pelos dois protetores de Veneza: São Marcos e São Teodoro.

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Basílica de Santa Maria della Salute – é uma obra notável do barroco veneziano. Está apoiada em mais de um milhão de pilares de madeira, na embocadura do Grande Canal. Foi uma das igrejas erigidas para comemorar o final da peste que em 1630 ceifou a população da cidade. No seu interior estão patentes pinturas de Tiziano e Tintoretto.

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Palácio do Doge – Depois da queda da República de Veneza, cujo fim foi decretado na sessão do Maggior Consiglio (Conselho Maior) de 12 e Maio de 1797, o palácio não foi mais utilizado como sede do príncipe e da magistratura, mas utilizado como sede de gabinetes administrativos do Império Napoleónico e do Império Austríaco. Com a integração de Veneza ao Reino de Itália, o palácio foi sujeito a importantes intervenções e em 1923 foi destinado a museu, função que desempenha até à atualidade.

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O Palácio do Doge, sede do poder, reunia as três funções: Executiva, Legislativa e Judicial. Para tal repartia-se por três áreas: Residência Ducal, Palácio de Justiça e Câmara Municipal. Os diferentes poderes estavam alojados em edifícios distintos, organizados em torno do grande pátio, mas agregados num espaço arquitetónico unitário – o Palácio do Doge, como ainda hoje podemos observar.

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O Palácio do Doge, como é conhecido na estrutura política de Veneza, no topo da qual se encontrava o Doge, juntou assim no mesmo local as principais Câmaras que governavam o Estado, assim como todos os órgãos administrativos importantes.

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A Sala do Conselho é a maior sala do Palácio, com 54 m de comprimento, 25 m de largura e 15,40 m de altura. É fácil imaginar como devia ser impressionante observar o Doge rodeado pelos seus conselheiros, os 500 senadores sentados nas respetivas bancadas, assim como os Cavaleiros do lenço de Ouro e Nobres de todas as categorias, que aqui se reuniam para tomar as deliberações mais importantes do Estado. No painel do trono pode admirar-se “o maior quadro do mundo”, a saber: “ A Glória do Paraíso”, de Tintoretto.

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Interior do Palácio do Doge – Sala do Senado – Se o Palácio do Doge testemunha a grandeza da antiga República, a sua Sala do Senado, em particular, na exuberancia de tesouros artísticos incomparáveis, demonstra naqueles tempos de lutas contínuas, de glórias e conquistas, a importância da forma representativa de governo.

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Palácio do Doge Sala dello Scrutinio – O palácio foi erguido em períodos diferentes, a Sala do Conselho construída entre 1340 e 1365. No final do ano de 1577, um grande incêndio danificou o telhado e muitas pinturas grandes, mas o dano foi reparado rapidamente. Em Setembro do ano seguinte, o Conselho retomou as suas sessões na mesma Sala.

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Interior do Palácio do Doge – escadaria da Scala d’Oro. Edificada entre 1555 e 1559, como escadaria de honra, conduz, em duas rampas, do piso das arcadas abertas aos dois andares superiores. Deve o seu nome às ricas decorações em estuque branco e folha de ouro da abóbada.

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Palácio do Doge – Teto da escadaria Scala d’Oro.

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Gallerie dell’Accademia Venice – aqui encontra-se uma colecção de arte da autoria de uma geração excepcional de pintores, que ficaria conhecida por Escola de Veneza. As obras pertencem a estilos diferentes – bizantino, barroco, renascimento. Um dos nomes mais importantes foi Giovanni Bellini. Mas outros se destacam, como Tintoretto, Tiziano, Canaletto e Veronese.

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Tiziano – Vénus de Urbino. Era conhecido entre os seus contemporâneos como o “Sol entre as estrelas”. A sua longa atividade e versatilidade levaram- no a alterar ao longo do tempo as características artísticas e os próprios temas, que vão de caricaturas a paisagens, e de temas religiosos a mitológicos.

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Tintoretto – Pintava de forma enérgica, furiosa, e recorria a efeitos de luz e de perspetiva, inovadores para a época. É considerado um percursor do Barroco.

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Canaletto – Autor dos mais belos quadros da cidade de Veneza. Pintou ruas, canais, a Praça em diversos ângulos e envoltos em luzes e sombras. Viveu parte da sua vida em Roma, realizando cenários para as óperas de Scarlatti.

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Estátua de Goldoni – Carlo Goldoni foi um dramaturgo, também nascido em Veneza (1707) e que morreu em Paris (1793). Escreveu quase todo o género de teatro, desde a tragédia à comédia, passando por libretos para duas óperas de Vivaldi. As suas primeiras obras, feitas em Itália, não tiveram sucesso. Ele que tinha o curso de Direito (e que abandonara a profissão para se dedicar ao teatro) e era filho de uma família abastada, passava por dificuldades económicas. Desiludido também com as condições de trabalho, aceita contrato para trabalhar em Paris, onde o sucesso foi maior. Apelidam-no de “Molière italiano“.

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Teatro Goldoni – No total escreveu mais de 200 peças. Retratos de gente vulgar do povo e da burguesia, mas também denúncia jocosa da hipocrisia de certo clero, dos abusos de poder e da intolerância. Arlequin valet de deux maîtres é uma das suas obras maiores. Muito do reconhecimento actual da sua obra deve-se às encenações de Giorgio Strahler no Piccolo Teatro de Milano.

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Antonio Vivaldi (1678-1741), um dos maiores compositores italianos que marcou o período Barroco. Era conhecido por Padre Ruivo, devido à sua cor do cabelo e ao facto de ser padre. Foi o mais velho de sete irmãos. O pai, barbeiro de profissão, era também virtuoso violinista que o ajudou na sua formação musical e foi responsável pela sua admissão na orquestra da Basílica de S. Marcos, onde se tornou o maior violinista da época. Compositor prolífico, com destaque para os seus concertos (cerca de 500). Os mais conhecidos e divulgados são “As quatro estações”.

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Teatro delle Fenice – Vivaldi terminou sua vida na pobreza. Antes, desiludido com a perda de apreço dos seus conterrâneos, emigrou para Viena para se acolher sob a proteção de Carlos VI, da dinastia dos Habsburgo. Porém, o rei morreria pouco depois e Vivaldi ficou sem mecenas.

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A ponte dos Suspiros foi construída em 1602 para ligar uma das fachadas do Palácio Ducal à Prisão e Quartel-Geral da Polícia. É a única ponte coberta de Veneza, completamente fechada, com janelas estreitas que apenas deixam passar um pouco de luz. No seu interior um duplo corredor separado por uma parede garantia que os presos pudessem cruzar-se sem se ver nem ouvir.

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Das janelas pode entrever-se a ilha de de San Giorgio Maggiore e a Laguna. Era a última visão da liberdade para alguns presos que iam passar o resto da vida nas celas apertadas das caves, Os gritos desses homens que protestavam a sua inocência, ou pediam socorro, estão na origem do seu nome.

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Igreja e Mosteiro de San Giorgio Maggiore – erguidas na ilha com o mesmo nome e que é um lençol de areia defronte da Piazzetta

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Um dos presos mais célebres que passaram por estas masmorras foi Giacomo Casanova que se tornou famoso pela sua vida de coleccionador de mulheres, escroque e sedutor. Preso, conseguiu evadir-se pelo telhado do Palácio do Doge, atravessou a fronteira, e partiu para Munique.

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Regressou vinte anos mais tarde, em 1785, com a incumbência de escrever para a Inquisição relatórios secretos sobre as pessoas com quem antes se relacionara, o que Casanova aceitou. Porém, uma disputa obrigou-o a partir de vez de Veneza. Privou com as mais notáveis personagens da época. Deixou um livro de memórias “História da Minha Vida”, que é um testemunho da sua época.

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Vista do lado mar da Praça de São Marcos

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Foi entre 1489 e 1570, data da invasão pelos turcos otomanos, que a República de Veneza dominou Chipre. É nessa época que Shakespeare situa a tragédia de Othello.

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Uma peça magistral sobre o ciúme e a maldade. O enredo é simples. Um prestigiado general, mouro mais velho e de pele escura (Othello), casa-se em segredo com a filha de um nobre veneziano, a bela e angelical Desdémona. O pai recusa-se a aceitar a união, que atribui a práticas demoníacas. É o próprio Doge que intervém e o litígio fica sanado. Porém, uma armada turca ameaçava Chipre e Othello é nomeado para lhe fazer frente.

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Outra personagem ia já manobrando na sombra: Iago, subordinado do general e invejoso por este o ter preterido numa promoção a tenente em favor de um jovem, Cássio, próximo de Desdémona. Iago é uma figura sinistra que engendra uma teia de intrigas, calúnias, insinuações, para arruinar o casamento e prejudicar o seu general. Serve-se dum infeliz apaixonado por Desdémona, para lhe financiar hipotético plano de aproximação.

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IAGO – Virtude? Uma figa! Depende de nós mesmos sermos assim ou assado. Nossos corpos são nossos jardins, cujos jardineiros são nossas vontades; de modo que se quisermos plantar urtiga e semear alface, deixar hissopo ou arrancar tomilho, provê-los apenas de determinada espécie de erva ou enchê-los de muitas variedades, esterilizá-los pela preguiça ou cultivá-los pelo trabalho… Ora, o poder exclusivo e a força reguladora de tudo reside apenas em nossa vontade. Se a balança de nossa vida não dispusesse de um prato de razão para contrabalançar o da sensualidade, o sangue e a baixeza de nossa natureza nos conduziriam às mais absurdas situações. Mas possuímos a razão para acalmar nossos instintos furiosos, os acúleos da carne, os desejos desenfreados. De onde concluo que o que denominais amor não é mais do que um sarmento ou uma vergôntea.

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…“RODRIGQ – Não pode ser.

IAGO – É apenas um apetite do sangue e uma concessão da vontade. Vamos! Sê homem! Afogares-te? Faze isso com gatos e cãezinhos recém-nascidos. Declarei que sou teu amigo e me confesso ligado ao teu serviço por cabos de resistência à toda prova. Nunca te poderei ser tão útil como agora. Põe dinheiro na bolsa, toma parte nesta guerra, desfigura as feições com uma barba postiça. Repito: põe dinheiro na bolsa! Não é possível que Desdémona continue apaixonada do Mouro por muito tempo – põe dinheiro na bolsa! – Nem ele dela. Foi um começo muito violento, da parte dela, ao que ainda verás seguir-se uma separação correspondente. Põe dinheiro na bolsa! Esses mouros são muito inconstantes em suas inclinações – enche de dinheiro tua bolsa! – O prato que para ele, agora, é tão agradável como alfarroba dentro de pouco lhe será tão amargo como coloquíntida. É fatal que ela o troque por um moço; quando ficar saciada do corpo dele, perceberá o erro da escolha que fez. Terá de trocá-lo por outro: é fatal. Por isso, põe dinheiro na bolsa! Mas se queres absolutamente condenar-te às penas eternas, faze-lo por um processo mais delicado do que o afogamento. Arranja quanto dinheiro puderes! Se a santidade de um juramento frágil entre um bárbaro errático e uma veneziana arquisabida não for coisa muito dura para minha inteligência e para todas as tribos do inferno, acabarás gozando-a. Por isso, trata de arranjar dinheiro! A peste para o teu afogamento! Nada tem que ver com este negócio. Farás melhor enforcando-te depois de satisfazeres os teus desejos do que afogando-te sem proveito nenhum.”…

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RODRIGO – Dispões-te a apoiar minhas esperanças, no caso de eu me firmar nesse propósito?

IAGO – Podes contar comigo. Vai; arranja dinheiro. Já te disse muitas vezes e tomo a dizê-lo pela centésima vez: odeio o Mouro; tenho para isso motivos arraigados no coração. Não te faltam, também, para isso razões igualmente ponderosas. Unamo-nos, portanto, para nos vingarmos dele. Se lhe puseres um par de chifres, para ti será um prazer, e para mim um divertimento. O seio do tempo encerra muitos acontecimentos que terão de concretizar-se. Em frente! Marcha! Trata de arranjar dinheiro. Amanhã voltaremos a falar sobre isso. Adeus.

RODRIGO – Onde nos encontraremos amanhã?

IAGO – No meu aposento

RODRIGO – Estarei lá bem cedo.

IAGO – Vai; adeus. Compreendeste, Rodrigo?

RODRIGO – Que disseste?

IAGO – Afastai a ideia de afogamento, estais ouvindo?

RODRIGO – Já refleti melhor; vou tratar de vender todas as minhas terras.

IAGO – Vai; adeus. Põe bastante dinheiro na bolsa.

RODRIGO – Dispões-te a apoiar minhas esperanças, no caso de eu me firmar nesse propósito?

 

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…(Sai Rodrigo.) “Assim, de um tolo faço minha bolsa. Profanaria, meus conhecimentos, se gastasse meu tempo com um idiota desta marca, a não ser para proveito próprio ou por distração. Odeio o Mouro. Há quem murmure que ele o meu trabalho já fez em meus lençóis. Se é certo, ignoro-o. Pelo sim, pelo não, agir pretendo como se assim, realmente, houvesse sido. Tem-me afeição. Meu plano, desse modo, sobre ele vai atuar com mais certeza. Cássio é um homem de bem. Ora vejamos como posso alcançar o lugar dele e enfeitar meu desejo com dobrada patifaria. Como? De que modo? Reflitamos. Deixar passar o tempo e embair-lhe os ouvidos, declarando-lhe que Cássio mostra muita intimidade com a mulher dele. O exterior de Cássio e seu todo insinuante o predispõem a tomar-se suspeito facilmente. Foi feito para seduzir mulheres. De natureza é o Mouro livre e aberta; honesto julga ser quem aparenta, tão-só, honestidade. Sem trabalho pelo nariz poderá ser levado, tal qual os asnos. Pronto; já está gerado. A noite e o inferno à luz hão-de trazer meu plano eterno.”

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Por outro lado, instiga o ciúme de Othelo, fazendo-o acreditar que a mulher o trai com Cássio, o jovem tenente que fora escolhido pelo general. Os ardis resultam. Em Othelo cresce a desconfiança. O mínimo gesto, qualquer acontecimento banal é interpretado como prova de infidelidade, sem que Othelo se preocupe verdadeiramente em a comprovar.

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Animado pelo êxito das suas tramoias, Iago leva a hipocrisia ao ponto de advertir Othello contra aquilo que ele mesmo engendrava: “Oh! Cuidado com o ciúme, meu senhor! Ele é um monstro de olhos verdes, que produz o alimento do qual se nutre! Esse chifrudo vive na alegre embriaguez de quem, tendo certeza de sua adversidade, não ama aquela que o trai; mas oh! Que malditos minutos ele conta, esse que ama, mas duvida, mas ama perdidamente!”.

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Indícios ridículos e armadilhas que Iago vai arquitetando, agravam o ciúme de Othello. Um lenço de linho que ele lhe oferecera e que acreditava ser encantado enquanto ela o possuísse é obtido por Iago através de Emília, sua mulher, que é criada de Desdémona e o encontrara. Iago afirma ter visto Cássio utilizá-lo por Desdémona, por ela lho ter oferecido. O mouro totalmente perturbado exige da mulher o lenço, do qual ela perdera o rasto. Iago, entretanto, colocara-o no quarto de Cássio. A exaltação de Othello é extrema, como a canalhice de Iago que se oferece para matar Cássio, embora o que viesse a tentar fosse também o desaparecimento de Rodrigo, que era testemunha das suas manigâncias. Descontrolado Othello acaba por matar Desdémona. É Emília que revela toda a tramoia e Iago mata-a. Othello suicida-se. É um fim trágico para esta forma demencial de ciúme.

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“OTHELLO – Esta é a causa, minha alma. Oh! Esta é a causa! Não vo-la nomearei, castas estrelas! Esta é a causa! Não quero verter sangue, nem ferir-lhe a epiderme ainda mais branca do que neve e mais lisa que o alabastro. Mas é fatal que morra; do contrário, virá ainda a enganar mais outros homens. Apaga a luz! Depois… Apaga a luz! Se te apagar, ministro flamejante, poderei restituir-te a luz primeira, se vier a arrepender-me. Mas extinta que seja tua luz, ó tu, modelo primoroso da excelsa natureza! De onde o fogo trazer de Prometeu, para dar nova luz à tua chama? Se tua rosa colher, é-me impossível o vital crescimento restituir-lhe: fatal é que feneça. Vou aspirá-la no próprio galho. (Beija-a.) O hálito aromoso, que quase a convencer chegaste a própria Justiça a espedaçar a sua espada! Mais um! Mais um! Se assim ficares, morta, quero tirar-te a vida, e, após, amar-te. Mais outro; será o último; um tão doce jamais foi tão fatal. Chorar preciso lágrimas impiedosas; é celeste meu sofrimento, pois castiga ao que ama. Vai acordar!”

 

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DESDÉMONA – Quem está aí? Othello?

OTHELLO – Sim, Desdémona.

DESDÉMONA – Não vindes para o leito, meu senhor?

OTHELLO – Desdémona, rezaste esta noite?

DESDÉMONA – Oh, decerto, senhor!

OTHELLO – Se vos lembrardes de alguma falta não perdoada ainda pelo céu e sua graça, cuidai logo de tê-la redimido.

DESDÉMONA – O meu senhor! Que pretendeis dizer com isso?

OTHELLO – Bem; fazei o que vos disse e sede breve. Passarei nesse em meio; não desejo trucidar-vos o espírito manchado. Não pelo céu! Não vos matarei a alma.

DESDÉMONA – Quê! Falais em matar?

OTHELLO – Sim, é isso mesmo.

DESDÉMONA – Então que o céu de mim tenha piedade.

OTHELLO – Amém, de coração.

DESDÉMONA – Se assim falais, é que não pretendeis matar-me agora.

OTHELLO – Hum!

DESDÉMONA – Contudo, sinto medo, pois terrível sois sempre, quando revirais os olhos dessa maneira. A causa desse medo, não sei dizê-lo, pois não sou culpada; porém sinto que tenho muito medo.

OTHELLO – Pensa nos teus pecados.

DESDÉMONA – Só consistem no amor que vos dedico.

OTHELLO – Pois por ele vais agora morrer.

DESDÉMONA – É contra a natureza dar a morte a alguém por ter amor. Ah! Por que causa mordeis o lábio assim? Toda a postura tendes ora abalada, por alguma sanguinária paixão. E mau agouro; contudo espero, espero que nenhuma ameaça me comine.”…

 

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OTHELLO – Paz e aquieta-te.

DESDÉMONA – Estou quieta. Que é que há?

OTHELLO – O lenço que te dei, que eu tanto amava, a Cássio o deste?

DESDÉMONA – Não, por minha vida, por minha alma, não o dei. Mandai chamá-lo e interrogai-o.

OTHELLO – Juízo, querida alma, não jures falso, pois estás agora no teu leito de morte.

DESDÉMONA – Sim, no leito, mas não para morrer.

OTHELLO – Sim, neste instante. Assim, confessa francamente a culpa, pois se com juramentos contestasses ponto por ponto, em nada isso alterara ou sustara o propósito em que me acho e que gemer me faz. Urge que morras.

DESDÉMONA – Que Deus de mim se apiade.

OTHELLO – Digo amém.

DESDÉMONA – Sede também piedoso. Em toda a vida jamais vos ofendi. Nunca amei Cássio, só lhe tendo dicado essa amizade que o céu permite, e nunca o presenteei.

OTHELLO – Pelo céu, vi meu lenço na mão dele. Mulher perjura, em pedra me transmudas o coração e o nome dás de crime ao que eu pensava ser um sacrifício. Vi o lenço! Eu mesmo!

DESDÉMONA – Então, é que ele o achou. Nunca lho dei. Mandai chamá-lo, para vir confessar o que há.

OTHELLO – Já confessou.

DESDÉMONA – Confessou quê, senhor?

OTHELLO – Que te possuiu.

DESDÉMONA – Como? Ilicitamente?

OTHELLO – Sim.

DESDÉMONA – Absurdo! Não dirá isso.

OTHELLO – Não, porque tapada já tem a boca, pois o honesto Iago tomou suas providências.

DESDÉMONA – Oh! Meu medo tinha razão de ser! Então, morreu?

OTHELLO – Se seus cabelos todos vivos fossem, minha grande vingança os devorara.

DESDÉMONA – Ai de mim! Foi traído e estou perdida!

OTHELLO – Sai, prostituta infame! Vais chorá-lo na minha frente?

DESDÉMONA – O meu senhor! Bani-me de vossa vista, mas deixai-me viva.

OTHELLO – Para trás, prostituta!

DESDÉMONA – Hoje, não; amanhã! Deixai-me viva!

OTHELLO – Se resistires…

DESDÉMONA – Meia hora apenas.

OTHELLO – Não há trégua; está feito.

DESDÉMONA – Ó tempo, apenas, de rezar uma vez.

OTHELO – É muito tarde.

(Asfixia-a.)

 

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O Mercador de Veneza é uma obra que tem levantado muita polémica, acusada de antisemitismo, o qual teria justificado a sua popularidade nos países ocupados, durante o nazismo. O seu enredo traduzirá os preconceitos da sociedade inglesa em relação aos judeus, expulsos em 1290 e só aceites de regresso no séc. XVII. A ação passa-se no séc. XVI.

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Por um lado, a figura principal é uma caricatura de um agiota judeu (Shylock) que pretende vingar-se de afrontas feitas por um mercador cristão (António) que não só o desprezava e ofendera, como lhe prejudicava o negócio, emprestando dinheiro sem cobrar juros. Esse cristão é apresentado como cidadão exemplar (mas que cuspira anteriormente no rosto do judeu).

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Piazetta – António tinha todo o seu dinheiro investido em negócios marítimos. Quando um amigo (Bassanio), aristocrata arruinado, lhe pede uma ajuda financeira, não o pode socorrer, mas oferece o seu nome como aval para um empréstimo. Bassanio pretende deslocar-se a Belmonte para cortejar Portia, uma jovem e rica herdeira, e onde irá encontrar outros pretendentes.

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Para conseguir o dinheiro decide pedi-lo a Shylock.

Shylock – “Como parece falso o publicano! Por ele ser cristão é que o odeio, mas acima de tudo, porque em sua simplicidade vil, dinheiro empresta gratuitamente e faz baixar a taxa de juros entre nós aqui em Veneza. Se em falta alguma vez puder pegá-lo, saciado deixarei meu antigo ódio. Nossa nação sagrada ele detesta, e, até mesmo no ponto em que costumam reunir-se os mercadores, ele insulta-me, meus negócios condena e o honesto lucro que de interesse chama. Amaldiçoada minha tribo se torne, se o perdoar.”

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Surpreendentemente, Shylock concorda em conceder o empréstimo sem cobrar juros, mas propondo em contrapartida que António assinasse uma declaração que faria efeito, caso o devedor não resgatasse o empréstimo no prazo combinado.

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Shylock – “…acompanhai-me ao notário e assinai-me o documento da dívida, no qual, por brincadeira, declarado será que se no dia tal ou tal, em lugar também sabido, a quantia ou quantias não pagardes, concordais em ceder, por equidade, uma libra de vossa bela carne, que do corpo vos há-de ser cortada onde bem me aprouver.”

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António sofre sucessivos desastres, com o afundamento dos seus navios, o que o leva à ruína. Bassanio que, entretanto se casara com Portia, oferece-se para satisfazer a dívida, com o dinheiro que sua mulher disponibilizara e que chegaria até o quádruplo do valor do empréstimo. Shylock não aceita.

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António é preso. O pleito é debatido no Senado de Veneza, até o Doge intervém, pedindo a Shylock que deixe libertar António. Mas, apesar da oferta de ressarcir a dívida com alto juro, Shylock é intransigente. A cláusula é para cumprir – prefere matar António e vingar-se. E as leis são claras. O credor tem o direito de fazer cumprir o contrato. Entretanto, aparecera um juiz, que era nem mais nem menos que Portia disfarçada.

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Vista do lado mar da Praça de São Marcos – De acordo com os preceitos em vigor, o judeu teria de retirar a carne da sua vítima, mas sem haver derramamento de uma gota de sangue. Shilock exigira uma zona perto do coração.

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Portia – …há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: “Uma libra de carne”. Mas se acaso derramares, no instante de a cortares, uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens e tuas terras todas, pelas leis de Veneza, para o Estado passarão por direito”

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Shylock desiste do seu intento, preferindo os seis mil ducados, o dobro do valor da dívida…Porém, a sua fortuna ir-lhe-á ser parcialmente retirada…

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Este é um dos enredos da peça de Shakespeare. Outras histórias se cruzam, para além da cupidez, ressentimento e vingança. A amizade, a generosidade, a história de amor de Bassanio e Portia, bem como de Jessica, filha do judeu, com Lorenzo, um cristão e do próprio Shylock por sua filha. Mas também Veneza que, com o seu tribunal de Justiça, as suas leis, o seu Doge, não evitou que alguém (Portia), mesmo animado dos melhores propósitos, se fizesse passar por Doutor de Leis e enganasse o Tribunal.

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Muita da ação decorre nas ruas e praças de Veneza. O Palácio do Doge e tribunal de Justiça, os cais e os navios. Passear em Veneza, pelas suas ruas estreitas, o Rialto, o bairro judeu, o seu comércio, é também revisitar o Mercador de Veneza.

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Senso é um filme (Visconti, 1971) feito a partir duma novela de Camilo Boito, mas cujo argumento pouco tem a ver com ele. A época da narrativa, por volta de 1866, corresponde ao período em que se processa a luta contra os invasores austríacos e alemães, a dinastia dos Habsburgo. Paralelamente, Garibaldi liderava a unificação da península italiana. Naquela época apenas resistiam Veneza e arredores de Roma. É durante as convulsões desse conflito e na iminência duma derrota das forças revolucionárias que decorre a ação. A maioria da aristocracia veneziana sobrevive à custa de colaboracionismo. O filme é também uma reflexão sobre a decadência da aristocracia, como sucederia com O Leopardo e Os Malditos.

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Teatro delle Fenice – Filme operático na cor, na música, na encenação. Inicia-se num teatro de Veneza com uma ária do Il Trovatore de Verdi. Naquela época o teatro não era igual ao da atualidade. Haveria posteriormente de sofrer um incêndio dos vários que ocorreram desde a sua criação (1790). Mas no filme, os conflitos, as opções políticas, logo ali se desenham ou precipitam. A revolução e os ocupantes, os colaboracionistas, o jogo de sedução e a cobardia encoberta. A 7ª sinfonia de Bruckner irá depois transformar-se numa ópera onde, em vez de cantores, há atores que não cantam, mas que valoriza o libreto magistral de Visconti

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O filme é sobre a história da vingança de uma mulher, humilhada pelo homem por quem se apaixonara. Por ele traiu ideais políticos, o marido, a dignidade. Uma aristocrata (condessa Lívia Sarpieri) num momento decisivo da História (a unificação de Itália). É uma paixão arrebatadora entre a aristocrata e nacionalista e um oficial ocupante austríaco (Tenente Mahler).

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As ruas de Veneza, por onde o marido a procura, a casa onde o tenente vive com outros camaradas, que olham para ela com desdém. A casa para os encontros clandestinos, onde ele passa a faltar, quando se começa a fartar. As mesmas ruas estreitas, onde antes se tinham desenrolado os jogos de sedução, quando Mahler se exibia como oficial culto, sensível e elegante. Depois, os mesmos caminhos, já sem o tenente, os da época iguais aos de hoje.

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Desesperada pela sua ausência, atravessa as linhas de batalha para chegar a Verona, onde sabe ir encontrá-lo. Mas é confrontada com a falsidade e o desprezo do tenente e sofre a suprema humilhação de ser escarnecida pelo amante quando o surpreende com uma prostituta na casa paga com o dinheiro que ela lhe entregara para o tenente escapar da guerra.

 

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O ódio vizinho da paixão, levado ao paroxismo da vingança: denuncia Mahler ao general comandante invasor. Sabe o que vai acontecer e diz ao general para fazer o que tem a fazer. O tenente é preso e fuzilado. Os gritos ou uivos da condessa ecoam pelas ruas, uterinos, ancestrais. Paixão, ódio, loucura, vingança, raiva. O rosto de Alida Valli, a sua testa alta, os seus olhos verdes belíssimos, que o véu muitas vezes encobre e a sem-razão de toda a decadência – dos protagonistas, das classes a que pertencem, no dealbar de uma nova época que nada irá trazer de novo.

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Filme sobre a paixão e a vingança. Mas é também uma reflexão sobre a decadência da aristocracia e a luta pela libertação, sobre o desprezo e a humilhação.

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As ruas de Veneza. “Quem nunca viu Senso nunca viu Veneza” – palavras de J. Bénard da Costa.

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É um filme esteticamente excecional. A cor, os décors, os enquadramentos, a música. Mas é um filme também político que mostra a decadência da aristocracia de Veneza e da camarilha militar ocupante. A degradação que se vai tornando cada vez mais evidente no comportamento do tenente austríaco, oportunista, cobarde, e da condessa que, de humilhação em humilhação, chega à lucidez de sentir vergonha por aquilo em que se envolvera.

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Morte em Veneza. Se o romance não fosse uma obra-prima, quase se podia considerar um guião detalhado ou a descrição minuciosa das imagens do filme. Poucas vezes acontece resultarem duas obras-de-arte tão “gémeas”, feita uma a partir da outra, e no entanto tão distintas: o retrato psicológico descrito em palavras e traduzido sobretudo em expressão corporal, cores, enquadramentos, movimentos de câmara. Aschembach no filme é compositor, no livro de Thomas Mann é escritor. Mas se é uma diferença aparentemente irrelevante, é significativa, pois traduz a fixação de Visconti em Gustav Mahler. Como o tenente Mahler de Senso ou este compositor: Gustav von Aschembach.

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O ambiente é Veneza antes da 1a Grande Guerra. O artista que se sente envelhecer, a viver uma crise familiar e ameaçado no seu prestígio, parte de Munique para mais umas férias em Veneza. Entende que só a arte purifica. Para criar, o artista tem de ser exemplar, trabalhar sem descanso e dedicar-se exaustivamente à obra de arte e renunciar à preguiça e aos prazeres banais. A distância que mantém é a necessidade de conservar a dignidade, a superioridade moral e a sabedoria, não se deixar corromper. O seu objetivo é a beleza.

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Porém, um facto perturbador acontece: um jovem de férias com a família, por quem se apaixona. É um amor platónico, feito de olhares, de admiração pela beleza do adolescente, que o impedem mesmo de partir, quando sabe que uma epidemia de peste se está a estender, a fazer vítimas e a afugentar os turistas. Sente-se a trair os seus princípios rígidos e, ainda mais, confrontado com a sua própria decadência. É o fim que se aproxima: “Não há impureza tão impura quanto a velhice. E você está velho”, pensa de si mesmo Aschembach.

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Lido – no hotel e na praia, vão ocorrer algumas das sequências mais importantes do filme. Mas recordemos fragmentos da obra literária que melhor descrevem o ambiente de Veneza naquela época e naquelas circunstâncias. O resto? É gozar o filme e o livro.

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Canaletto“E ali estava ela de novo diante dos seus olhos, a acolhê-lo ao desembarque, aquela praça de maravilha indiscutível e única, aquela brilhante combinação de obras arqitectónicas fantásticas que a república oferecia ao olhar rendido do navegante que se aproximava: o esplendor delicado do Palácio e a Ponte dos Suspiros, as colunas do leão e do santo à beira da água, o flanco em relevo do fabuloso templo, a perspectiva do portal e do gigantesco relógio. Observando tudo isto, pensava para consigo que entrar em Veneza por terra, pela estação de caminho-de-ferro, é como entrar num palácio pela porta de trás e que jamais alguém se deveria abeirar da mais inacreditável das cidades deoutro modo que não fosse este, por barco, por mar alto”

 

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…“Haverá alguém que não tenha de reprimir um assomo de frémito, um secreto alvoroço, ao pôr o pé numa gôndola veneziana pela primeira vez ou após uma longa ausência? O curioso veículo, dádiva intacta de tempos baladescos, de um preto apenas igualável no mundo ao de um caixão, lembra aventuras mudas e proibidas na noite suspensa, apenas cortada pelo sulco do remo na água, e lembra ainda mais a pópria morte, o ataúde, rituais sombrios e a última viagem silenciosa. E ter-se-á reparado que o assento de uma dessas barcas, aquela cadeira de braços envernizada numa laca funerária e estofada num preto baço e apagado, é o assento mais macio, mais requintado, mais embalador do mundo?”…

 

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“Era o percurso familiar da laguna, passando por S. Marcos, subindo o Grande Canal, Auschenbach sentara-se no banco circular da proa, descansando o braço na balaustrada, com a mão em pala a proteger-lhe os olhos da claridade. Os jardins públicos ficaram para trás, a Piazetta surgiu ainda uma vez na sua graça soberana e desapareceu, depois desenhou-se a fileira grandiosa de palácios, e, quando a esteira de água inflectiu o seu curso, irrompeu, em delineado sumptuoso, o arco de mármore do Rialto. “…

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…”O viajante fixou nele o seu olhar e sentiu rasgar-se-lhe o peito. A atmosfera da cidade, aquele odor levemente chôco de charco e mar, que com tanta urgência o impelira a fugir, inspirava-o agora em fôlegos profundos, enternecidos, dolorosos. Seria possível que tivesse ignorado, que tivesse descurado quanto o seu coração estava apegado a tudo aquilo? O que de manhã fora meio lamento, vaga dúvida quanto à justeza da sua atitude, transformava-se agora em pesar, em verdadeiro sofrimento, em angústia, tão amarga, que várias vezes lhe fez aflorar as lágrimas aos olhos e que nunca teria imaginado possível. O que mais lhe custava e que, por momentos, lhe parecia mesmo insuportável, era manifestamente a ideia de que não voltaria a ver Veneza, de que aquilo era um adeus para sempre.”

 

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“Pesava sobra a praça um calor sufocante sob o céu encoberto. Estrangeiros incautos povoavam as esplanadas dos cafés ou observavam, parados diante da catedral, no meio de revoadas esvoaçantes de pombas, como as aves disputavam entre si, apinhando-se, batendo fortemente as asas e tentando afastar-se umas às outras, os grãos de milho que debicavam de mãos estendidas em concha. Numa excitação febril, gozando triunfalmente a posse da verdade, mas com um sabor doentio na boca e um aperto fantástico no coração, o solitário palmilhou para um lado e para o outro as lajes do magnífico largo. Ponderava um passo purificador e digno.”

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“O cenário da praia, aquela amostra de entrega descuidada e sensual do civilizado à vida simples nos limites do elemento, interessava-o e divertia-o mais que nunca. O mar cinzento e baixo estava já animado de crianças que patinhavam na água, nadadores, silhuetas várias em cores garridas estiradas nos bancos de areia com a cabeça apoiada sobre os braços cruzados. Outros remavam em pequenas chalupas pintadas de riscas vermelhas e azuis, rindo quando o barco se voltava.”

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“Reinava pelas ruelas um calor sufocante e pestilento; o ar era tão pesado que os odores emanados de habitações, lojas e tascas, vapores de óleo, revoadas de perfume e muitos outros pairavam baixo, dem se dissipar. O fumo do cigarro ficava suspenso no local da exaltação, esvaindo-se depois com extrema lentidão. O vai-vem da multidão nas travessas estreitas incomodava o passeante em vez de o distrair. Quanto mais avançava, mais tormentosamente se insinuava nele o estado abominável que a conjugação do ar do mar com o siroco pode provocar, traduzida num misto deção e abatimento. Sentiu um suor de angústiairromper por todo o corpo. Os olhos enevoavam-se-lhe, o peito comprimia-se, tremia de febre, o sangue latejava-lhe nas têmporas.Fugiu às vielas populosas da cidade comercial e atravessou várias pontes até aos bairros pobres. Aí viu-se assediado de mendigos e as emanações dos canais cortavam-lhe a respiração. Numa praça silenciosa, um daqueles recantos esquecidose como que encantados que existem no coração de Veneza, sentou-se para descansar na borda de uma fonte e apercebeu-se que tinha de partir”

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A cena do barbeiro, em que este lhe pinta os cabelos, o rosto e os lábios, apara o bigode e coloca uma rosa na lapela do casaco. A frase que diz é marcante: “Não somos mais velhos do que nos sentimos”. E a terminar: “Agora pode apaixonar-se quando quiser”, como se isso fosse privilégio dos jovens.

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O maestro morre olhando de longe a juventude que brinca e se diverte, representada por Tadzio e o amigo, lutando na praia. A tinta com que o barbeiro pintara os seus cabelos escorre pelo rosto. Os artifícios para dissimular a velhice não surtem efeito. A simulação de rejuvenescimento é patética. Não há como escapar à morte.

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Agradecimentos a Bernardete Carvalho e João Vaz Garcia.

 

Veja os vídeos:

http://www.youtube.com/watch?v=pz-xoMGLVvY

http://www.youtube.com/watch?v=lvPaI0VLxeU

A travessia do Deserto

Falamos em atravessar o deserto quando perseguimos obstinadamente um objetivo, talvez só uma ilusão, defrontando obstáculos, incompreensões, mas seguimos sempre contra tudo e contra todos, apoiados na nossa determinação. O sofrimento pode ser grande e os custos impossíveis de suportar. Cada um arranja estratégias para lidar com as dificuldades e frustrações, estratégias essas nem todas eficazes. Muitos desistem, alguns sucumbem. Este caderno é uma alegoria sobre o recurso ao sentido estético para, nas piores circunstâncias, se atingir um sonho, uma meta.

Falemos, então, de beleza e afetos. Em cada um de nós coexiste um lado luminoso e outro sombrio, verso e reverso da mente humana. Olhar a devastação e a miséria, as ruínas e o grotesco, não provoca as mesmas sensações em toda a gente. Mesmo ao longo dos séculos, a noção de beleza evoluiu. Por exemplo, a opulência de adornos nos estilos barroco e rococó, contrasta com o ascetismo e a pureza dos neoclássicos. Na mesma época podem encontrar-se estéticas contraditórias – abstração na pintura e lirismo na poesia, como, o que é frequente, encontrar grandes pintores que passaram por “fases” distintas. E, no entanto, os diferentes estilos podem desencadear emoções semelhantes. O que é o belo, o que é o feio? Também estes conceitos se alteraram ao longo do tempo, como mostra Umberto Eco.

Mas, até o horror, à força de se repetir quotidianamente, perde impacto. Desejável é não imbecilizar irreversivelmente o protagonista/espectador. Haverá meios para contrariar esta degradação? Tudo o que se achar belo e esteja disponível – romance, poesia, música, isto, se o instinto de sobrevivência conceder algum espaço. É importante que a obra de arte estimule a irreverência e o gosto de estar vivo, mesmo que provoque, ofenda critérios morais correntes ou subverta os conceitos “bem-pensantes”.

A desolação interior é algo diferente. A monotonia e fealdade transferiram-se para dentro de nós. Chega-se àquela, principalmente por razões afetivas.  Rejeições, perdas, fracassos profissionais podem originar um quadro depressivo ou perturbações de ansiedade graves, a exigir terapêutica adequada. O portador pode tentar defender-se pela busca repetitiva de novas emoções, que, porém, envolvem o risco de acrescentar sempre novas frustrações e adensar o vazio.

Uma estratégia possível faz apelo ao que nos estimula esteticamente. Mesmo no limiar da desistência, saber olhar para a Natureza, para quadros, esculturas, edifícios. Como para os objetos, os rostos, para tudo que achamos belo. Visitar museus e emocionarmo-nos com as telas de que só conhecemos reproduções ou com esculturas de que observámos apenas imagens; rever os grandes filmes e os conflitos eternos – a cobiça, a inveja, o ciúme, a avareza, a ambição, etc.; o romance e a poesia, o teatro. Mas, também calcorrear as cidades, visitar os centros históricos, maravilharmo-nos com monumentos ou edifícios inovadores, as soluções arquitetónicas, a decoração, as pessoas – o olhar das pessoas e as suas mãos, e as aves, a harmonia.

Olhar e lançar uma boia solidária ao desespero dos outros, saber entender a sofreguidão, os silêncios e as hesitações, e sermos capazes de nos encantar. Como, dentro de nós, encontrar a centelha de humor que ainda faça brincar; valorizar uma recordação; no recôndito do último sopro, o esboço dum sorriso.

As relações conjugais podem afundar quem já está fragilizado. A perda de respeito entre os membros de um casal é um atentado à sua autoestima. É importante fugir daquilo que é vulgar, como da futilidade das revistas de mexericos, da boçalidade, da sordidez pornográfica, da promiscuidade e conservar um distanciamento sensato em relação às modas, a todas as modas. Que gerações sem princípios éticos, sem cultura, sem dinheiro e sem esperança, se estão a criar? 

 Poucos têm coragem para empreender, sozinhos, uma travessia do deserto, mas se o fazem, estão convencidos que irão conseguir, que “nada está escrito” e acreditam, como no filme “Lawrence da Arábia”,  que conseguirão atingir o mar.

 FM

 

Longo foi o deserto. A marcha, uma respiração suspensa sobre a atração do vazio. Houve oásis de gente afável, de velhos amigos, de celebrações, de encontros. Entretanto, nasceu um projeto de vida que dia a dia cresceu, criou autonomia, ensaiou passos, balbuciou as primeiras palavras e o reconhece com um sorriso e palmas. Mas nos olhos manteve-se a paisagem árida de enorme lonjura. Não seria o horizonte real, mas reverberações de fracassos antigos. E houve os filhos. Poucos se podiam orgulhar tanto dos filhos, como ele.

O deserto, porém, sempre se manteve nos silêncios, nos ócios raros. Aprendeu a iludi-lo, essa foi a maior façanha. Se não fosse a música e os livros, e a memória de quadros, esculturas, edifícios, talvez o deserto o tivesse soterrado. Em África, cercado de desolação, leu Eça, Vailland e Camus; no mais fundo de si agarrou-se a Mozart. Pôde, assim, olhar e imaginar outros rios, outros rostos, a alvorada noutros sítios. As ruas de cidades, casas, pessoas anónimas, amores. Inventou um mundo. Sobreviveu na paz possível.

“Só quem procura sabe como há dias /de imensa paz deserta; pelas ruas /a luz perpassa dividida em duas: /a luz que pousa nas paredes frias, /outra que oscila desenhando estrias nos corpos ascendentes como luas /suspensas, vagas, deslizantes, nuas, /alheias, recortadas e sombrias. //E nada coexiste. Nenhum gesto /a um gesto corresponde; olhar nenhum /perfura a placidez, como de incesto, //de procurar em vão; em vão desponta /a solidão sem fim, sem nome algum – /- que mesmo o que se encontra não se encontra.” (Jorge de Sena, in ‘Post-Scriptum’)

O deserto interior transborda para tudo o que está à volta, mas às vezes nem era preciso, que a devastação é a perder de vista. Quase no limite da sobrevivência, a higiene precária e o desconforto, são desprezados. A imundície, as moscas, o calor húmido, os mosquitos, tornam-se banais. Um barracão de madeira com telhado de zinco no meio de soldados bestializados, com uma linguagem de frases feitas e de adjetivos reduzidos a meia dúzia de obscenidades repetidas ate à exaustão. Foi aí que se iniciou o conhecimento do deserto.

As primeiras imagens da “sua” guerra ocorreram no navio Niassa, num regresso que pôde presenciar e devolvia ao país a maioria dos soldados que dois anos antes partira, apenas com uma difusa apreensão pelo que iriam encontrar, mas confortados pela resignação e pela esperança em Nossa Senhora de Fátima. No salão de primeira classe – adaptado a messe de oficiais, os militares, sentados a quatro,  automaticamente, sem palavras, destrunfavam os adversários, adivinhavam o ás do parceiro, em rituais de cartas que se sucediam. Eram adultos a cuja juventude fora removida a inocência. A eles o deserto secara-lhes os olhos e os afetos. As picadas do mato tinham ficado para trás, mas não a areia, essa ficaria impregnada para sempre; em muitos deles povoar-lhes-ia os sonhos até ao fim da vida. Gestos mecânicos, sem emoção, onde o que mais impressionava era o silêncio pesado, fundo.

E, no entanto, há quem, em situações de sofrimento extremo, onde toda a esperança morreu, ainda invente brincadeiras para divertir alguém que ama, tentando poupá-la à evidência do pavor. Talvez nada possa destruir a capacidade de encantamente que existe em alguns. De inventar um mundo de sonhos,  para esconder as ruínas, a devastação. Nos outros e neles próprios.

A vida é bela (Roberto Benigni, 1998) é um filme comovente. Passa-se nos anos 30/40 e é uma metáfora sobre a bestialidade e a ternura. Num campo de concentração nazi o pai conta histórias ao filho, tentando convencê-lo que todo aquele horror é, afinal, uma gincana para ganhar um tanque de guerra, embora os vá levar a passar por muitas privações para o conseguirem. Mesmo submetido às maiores crueldades, há quem consiga não perder a doçura, olhar o horror e descrevê-lo como um jogo. São os olhos que, mesmo rasos de desespero, recusam a monstruosidade e encontram em si ou no amor por uma criança, a força para essa alquimia.

Num bar a tripular um Gin, aguarda-se o improvável. O diálogo do solitário consigo mesmo até moderada euforia. Não há deserto, há memórias. Muitos são os locais que o reabilitaram, as leituras e os filmes que lhe incendiaram a imaginação. O desejo e a paixão estarão interditos? O resto da vida, apenas um balanço do passado? O papel que lhe atribuem é de reformado da vida? Declinou deserto em  idiomas e locais diferentes, como se de rosa-rosae ou dominus-domini, se tratasse. Viajou, olhou, não deixou de se comover. Juntou escultura, crepúsculo,  montanhas e erotismo. Foi neles que se escorou, são amostras deles que aqui se mostram. No deserto há sempre miragens, mas atingirá ele realmente o mar, para o deslumbramento dum poente?

Caspar David Friedrich (Abadia no bosque de carvalhos) Berlim, Nationalgalerie

“Antigamente escrevia poemas compridos/Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema /São elas: desalento prostração desolação/desânimo //E ainda me esquecia de uma: desistência /Ocorreu-me antes do fecho do poema /E em parte resume o que penso da vida/Passado o dia oito em cada mês /Destas cinco palavras me rodeio /E delas vem a música precisa /Para continuar. Recapitulo: /Desistência desalento prostração desolação/ desânimo //Antigamente quando os deuses eram grandes /Eu sempre dispunha de muitos versos/ Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas.” (Ruy Belo)

 

A total desolação, tórrida ou gelada, tanto faz. O deserto ou a planura siberiana. Na solidão fazemo-nos perguntas. A paisagem branca confronta-nos com o íntimo. Os adereços do cenário são monótonos. Nós e os fantasmas, as dúvidas existenciais. Deus, o desejo e a morte. Os amigos que voluntariamente desertaram da vida e que não fomos capazes de ajudar. Perceber quanto, por vezes, a gargalhada disfarça a beira do abismo.

Ingmar Bergman encontrou respostas. Filmar foi um meio de as conseguir. Afirmou que criara outra pessoa que exteriormente nada tinha a ver com o seu verdadeiro eu. Em Morangos Silvestres, o desejo de regressar à inocência e pureza dos primeiros anos, apesar da máscara austera, que os compromissos e sofrimentos da idade adulta obrigam a usar. A amargura e a insegurança.

Mas qualquer forma de criação artística ou de profissão mais prosaica, permite a revisitação dos lugares da memória e dos sonhos. Muitos blindam-se e tornam-se cegos. Manter um olhar sensorial que apreenda os ínfimos pormenores sem deixar que as misérias ou o desespero asfixiem. É possível conservar um sopro romântico, mesmo quando tudo se desmorona à nossa volta.

Michelangelo, David, Florença

Pai e filho,Vigeland Sculpture Park, Oslo

Aristide Maillol, Museu des Belas Artes de Lyon

“Pelo sonho é que vamos, /comovidos e mudos //Chegamos? Não chegamos? /Haja ou não haja frutos,/ pelo sonho é que vamos //Basta a fé no que temos. /Basta a esperança /naquilo /que talvez não teremos. /Basta que a alma demos, /com a mesma alegria, /ao que desconhecemos /e ao que é do dia a dia //Chegamos? Não chegamos? /- Partimos. Vamos. Somos.” (Pelo sonho é que vamos, Sebastião da Gama)

Velásquez (Vénus ao espelho), Londres, National Gallery

Ingres (A grande odalisca), Paris, Museu do Louvre

Goya (Maja desnuda), Madrid, Museu do Prado

Uppsala, cidade onde nasceu Ingmar Bergman

“Sempre senti que há algo em Buenos Aires que me agrada. Agrada-me tanto que não me agrada que agrade a outras pessoas. É um amor assim, zeloso.”  (Jorge Luis Borges)

“As ruas de Buenos Aires / Passaram já para o meu corpo. / Não as ruas insaciáveis/ Que estorvam a multidão e a agitação/ Mas sim as ruas de bairro habitadas pelo tédio preguiçoso/ Tornando-se invisíveis por serem vulgares/ Tocadas pela penumbra e poente/ E aquelas mais longínquas / Privadas de árvores piedosas/ Onde apenas casitas austeras se aventuram,/ Esmagadas por distâncias imortais/ A perder de vista no horizonte/ Entre céu e planície. / Elas são para o solitário uma promessa/ Porque são povoadas por milhares de almas singulares / Únicas diante de Deus e do tempo/ E sem dúvida preciosas./ Em direcção a oeste, norte e sul / Se estenderam as ruas – e elas são também a pátria;/ Felizes os versos que componho/ Se estas bandeiras se encontrarem.” (As ruas de Buenos Aires, Jorge Luis Borges)

“Y la ciudad, ahora, es como un plano/ de mis humillaciones y fracasos;/ desde esa puerta he visto los ocasos/y ante ese mármol he aguardado en vano.// Aquí el incierto ayer y el hoy distinto/ me han deparado los comunes casos/ de toda suerte humana; aquí mis pasos/ urden su incalculable laberinto.// Aquí la tarde cenicienta espera/ el fruto que le debe la mañana;/ aquí mi sombra en la no menos vana// sombra final se perderá, ligera./ No nos une el amor sino el espanto/ será por eso que la quiero tanto.”   (Buenos Aires, Jorge Luis Borges)

“Entre mi amor y yo han de levantarse / trescientas noches como trescientas paredes / y el mar será una magia entre nosotros. // No habrá sino recuerdos. / Oh tardes merecidas por la pena,  / noches esperanzadas de mirarte, / campos de mi camino, firmamento / que estoy viendo y perdiendo… / Definitiva como un mármol / entristecerá tu ausencia otras tardes.” (Despedida, Jorge Luis Borges)

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Ya no seré feliz. Tal vez no importa. / Hay tantas otras cosas en el mundo; / un instante cualquiera es más profundo / y diverso que el mar. La vida es corta //y aunque las horas son tan largas, una / oscura maravilla nos acecha, / la muerte, ese otro mar, esa otra flecha / que nos libra del sol y de la luna //y del amor. La dicha que me diste / y me quitaste debe ser borrada; / lo que era todo tiene que ser nada. // Sólo que me queda el goce de estar triste, / esa vana costumbre que me inclina / al Sur, a cierta puerta, a cierta esquina.”

“¿Quién los ve andar por la ciudad / si todos están ciegos ? / Ellos se toman de la mano: algo habla / entre sus dedos, lenguas dulces / lamen la húmeda palma, corren por las falanges, /y arriba está la noche llena de ojos. // Son los amantes, su isla flota a la deriva / hacia muertes de césped, hacia puertos / que se abren entre sábanas. / Todo se desordena a través de ellos, / todo encuentra su cifra escamoteada; / pero ellos ni siquiera saben/ que mientras ruedan en su amarga arena / hay una pausa en la obra de la nada, / el tigre es un jardín que juega.// Amanece en los carros de basura, / empiezan a salir los ciegos, / el ministerio abre sus puertas. / Los amantes rendidos se miran y se tocan / una vez más antes de oler el día. // Ya están vestidos, ya se van por la calle. / Y es sólo entonces / cuando están muertos, cuando están vestidos, / que la ciudad los recupera hipócrita/ y les impone los deberes cotidianos.” (Los amantes, Julio Cortázar)

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“Somos nuestra memoria, somos ese quimérico museo de formas inconstantes, ese montón de espejos rotos.”

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“Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente. No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso.”
(frases de Jorge Luis Borges)

Ludwig I da Baviera (rei, entre 1825 e 1848). Estátua em Bad Kissingen.

Jardim interior em palácio neo-clássico em Bad Kissingen, Baviera/Alemanha

Sacré Cœur, Paris:«La solitude l’absence/ Et ses coups de lumière/ Et ses balances/ N’avoir rien vu rien compris// La solitude le silence/ plus émouvant/ Au crépuscule de la peur/ Que le premier contact des larmes/ L’ignorance l’innocence/ La plus cachée/ La plus vivante/ Qui met la mort au monde.//La solitude l’absence/ Et ses coups de lumière/ Et ses balances/ N’avoir rien vu rien compris// La solitude le silence/ plus émouvant/ Au crépuscule de la peur/ Que le premier contact des larmes/ L’ignorance l’innocence/ La plus cachée/ La plus vivante/ Qui met la mort au monde.»(Paul Éluard)

Roma

Roma

Roma

SienaSiena: ” O amor-próprio é um animal curioso, que consegue dormir sob os golpes mais cruéis, mas que acorda, ferido de morte perante uma simples beliscadura.” (Alberto Moravia)

“Diz-me devagar coisa nenhuma, assim/ como só a presença com que me perdoas /esta fidelidade ao meu destino./ Quanto assim não digas é por mim/ que o dizes. E os destinos vivem-se/ como outra vida. Ou como solidão./ E quem lá entra? E quem lá pode estar/ mais que o momento de estar só consigo// Diz-me asim devagar coisa nenhuma:/ o que à morte se diria, se ela ouvisse,/ ou se diria aos mortos, se voltassem.” (Jorge de Sena)

“Somos a grande ilha do silêncio de deus /Chovam as estações soprem os ventos /jamais hão-de passar das margens /Caia mesmo uma bota cardada /no grande reduto de deus e não conseguirá /desvanecer a primitiva pegada /É esta a grande humildade a pequena /e pobre grandeza do homem.”  (Ruy Belo, in “Aquele Grande Rio Eufrates“)

“Nunca estive tão perto da verdade. /Sinto-a contra mim, /Sei que vou com ela. //Tantas vezes falei negando sempre, /esgotando todas as negações possíveis, /conduzindo-as ao cerco da verdade, /que hoje, côncavo tão côncavo, //sou inteiramente liso interiormente, sou um aquário dos mares, /sou apenas um balão cheio dessa verdade do mundo. //Sei que vou com ela, /sinto-a contra mim, – /nunca estive tão perto da verdade.” (Jorge de Sena, in ‘Perseguição‘)

“Ir levando no caminho os amores perdidos / e os sonhos idos / e os fatais sinais do olvido. //Ir seguindo na dúvida das horas apagadas, / pensando que todas as coisas se tornaram amargas / para alongarmos mais a via dolorosa. //E sempre, sempre, sempre recordar a fragrância / das horas que passam sem dúvidas e sem ânsias / e que deixamos longe na estéril errância.” (Pablo Neruda)

E em Junho os dias são longos. O crepúsculo cada dia mais se atrasa, a noite é uma curta interrupção logo a anunciar a madrugada. Nuvens dispersas coam o resto da claridade, farrapos vermelhos sobrepostos ao branco e negro que o sol rasante, ainda acende no dia – é o solstício quase no sol da meia noite.

É, pois, o crepúsculo que estende os dias. Os vultos das árvores, os espectros dos monumentos, as sombras dos caminhos não deixam vingar a noite. E, no entanto, à medida que o ano avança e o sol se afasta, é a noite que tomba sempre mais longa, os dias ficam sempre mais frios, a neve entristece a paisagem. Os dias são breves, a melancolia  mora nas pessoas.

Aos que a Felicidade é Sol, Virá a Noite Quero ignorado, e calmo  /Por ignorado, e próprio /Por calmo, encher meus dias /De não querer mais deles. //Aos que a riqueza toca /O ouro irrita a pele. /Aos que a fama bafeja /Embacia-se a vida. //Aos que a felicidade /É sol, virá a noite. /Mas ao que nada ‘spera /Tudo que vem é grato. (Ricardo Reis, in “Odes“)

“Raro e vazio dia./  Calmo e velho dia./  Os membros lassos debruados deste cansaço sem porquê. / Raro e vazio dia, / assim inteiro e implacável / na solidão grave e trágica do meu quarto nu. //Perdido, perdido, este vagabundear dos meus olhos / sobre os livros fechados e decorados, / sobre as árvores roídas, / sobre as coisas quietas, quietas… //Raro e vazio dia / na minha boca pálida e pouca, / sem uma praga para quebrar a magia do ópio!”  (Fernando Namora)

Petite-France, Strasbourg, França “Nesta melancolia verdadeira/ a súbita pancada do outono/ pequena embora fosse, foi tamanha/ que teve quase o gosto duma posse”  (David Mourão-Ferreira)

Place Stanislas, Nancy: «Amar é… / sorrir por nada e ficar triste sem motivos/ é sentir-se só no meio da multidão,/ é o ciúme sem sentido,/ o desejo de um carinho; / é abraçar com certeza e beijar com vontade,/ é passear com a felicidade, / é ser feliz de verdade! (Albert Camus)

 

Praga

Relógio Astronómico, Praga

Praça Staromestske, Praga

Budapeste

Lagoa das Sete Cidades, S. Miguel, Açores

A miragem do deserto pode ser não um oásis com palmeiras e um poço de água, numa vastidão de fornalha; nas pistas os camelos vagarosos serão jeeps. Podem surgir algumas montanhas com escarpas. Mas as dunas podem escavar-se, entre os seus recortes desenhar-se um ventre e o púbis, e a sugestão de coxas opulentas e do perfil dos seios. Não é uma alucinação, é um corpo de mulher no horizonte, feito de areia que os caprichos do vento podem apagar. São os olhos que vêm, a sede que se não mitiga na exaustão da viagem, e o corpo de areia que nos espera, para logo se desfazer.

Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.” (Julio Cortazar, esboço de Antonio Nazaré Vaz)

“Rígidos seios de redondas, brancas,/ frágeis e frescas inserções macias,/ cinturas, coxas rodeando as ancas/ em que se esconde o corredor dos dias;// torsos de finas,penugentas, frias,/ enxutas linhas que nos rins se prendem,/ sexos, testículos, que inertes pendem/ de hirsutas liras, longas e vazias// da crepitante música tangida, húmida e tarsa, na sangrenta lida/ que a inflada ponta penetrante trila;// dedos e nádegas, e pernas, dentes./ Assim, no jeito infiel de adolescentes,/ a carne espera, incerta, mas tranquila” (Jorge de Sena, esboço de Antonio Nazaré Vaz)

“Dos ensinamentos que me resta dar / já me sinto corar. / Mas diz-me a benévola Dione: «o que causa vergonha, eis a nossa tarefa.» / Que cada uma de vós a fundo se conheça / e escolha a atitude / que mais em harmonia com o corpo lhe pareça. / A mesma posição a todas não convém. / Se o teu corpo é bonito deita-te sobre as costas / e é de costas que deves tua nudez mostrar, / se à perfeição do dorso nada tens a apontar. / Também tu cujo ventre Lucina encheu de rugas / faz como o Parto que no combate volta o dorso. / Milanion trazia sobre os ombros as pernas de Atalanta; / se as tuas mãos são belas do mesmo modo as mostrarás. / Se a mulher é pequena, / que tome a posição do cavaleiro. / Porque era altíssima / nunca a tebana mulher de Heitor /fez de cavalo em cima do marido. //Se procuras que o homem admire / da tua anca a linha inteira, / com a cabeça atirada para trás / na cama te ajoelha. // Se as tuas coxas têm da juventude o viço / e é impecável o teu peito / fique o homem direito / e obliquamente a ele estende-te no leito. //… (esboço de Antonio Nazaré Vaz)

…”Não te envergonhes dos cabelos soltar como as Bacantes / e faz girar o colo emoldurado pela solta cabeleira. / Para os prazeres de Vénus praticar há mil maneiras. / Mas a mais repousante e menos complicada / é ficares sobre o flanco direito / meia deitada. / Sinta a mulher que os deleites de Vénus / ressoam nos abismos do seu ser; / e para os dois amantes / seja igual o prazer. / Nunca os doces murmúrios se interrompam / nem as palavras que escorrem quais carícias / e no meio das volúpias não se calem / aquelas que soam mais lascivas. // Mesmo se a natureza te negou / de Vénus as frementes sensações, / finge o doce prazer experimentar / com mentirosas inflexões./ Infeliz da mulher se o órgão de prazer permanece insensível /e que volúpias deve  originar para ela e para o amante. / Mas cuidado não seja o fingimento / manifesto e visível. / Que a fingida expressão e os movimentos / que o teu amante enganam / seja aos teus olhos crível. / A volúpia, as palavras e a respiração / serão os instrumentos / com que fabricarás sua ilusão. / Impede-me o pudor de prosseguir. / Do teu órgão, mulher, / são secretos os meios de expressão” (Ovídeo, a Arte de Amar)

“Anda-me o amor tomando a própria vida,/ como se, amando, eu existisse mais./ E leva-me o Destino em voz traída, como se houvera encontros desiguais// A multidão me cerca, e, renascida,/ já dela terei fome de sinais./ E, mal a noite se demora ardida, o medo e a solidão me esfriam tais// as cinzas desse amor que sacrifico./ Não é futura a só miséria. A queixa/ também, não é: e apenas acontece// no vácuo imenso que este amor me deixa,/ quando maior, quando de si mais mais rico,/ se dá de mundo em mundo, elá me esqueca.” (Jorge de Sena, Lamento do poeta objectivo)

“O poeta beija tudo, graças a Deus… E aprende com as coisas a sua lição de /sinceridade //E diz assim: “É preciso saber olhar…” //E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos…””E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás //E perde tempo (ganha tempo…) a namorar uma ovelha… //E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso //E acha que tudo é importante //E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim //E reparou que os homens estavam tristes //E escreveu uns versos que começam desta maneira: “O segredo é amar…” (Sebastião da Gama, O poeta beija tudo)

Não é o Nilo, nem o Canal do Suez, a geografia é outra. Na proximidade da foz, uma embarcação ronrona contra a corrente, o seu destino é o mar. Mas, as margens do deserto ficam por perto. Alguma vez lhe virará as costas? Chegar ao oceano para um derradeiro mergulho, na paz das ondas, da brisa e dos pequenos seixos? Eis as margens das coxas, a boca húmida, a volúpia readquirida, a nuca e o vale que se estende até às nádegas, a fina penugem que se sente desde os tornozelos. Foi na contemplação do deserto e suas dunas, que se inventou um corpo. Será um sonho?

A luz  revela tetos de Lisboa, o recorte da ponte, do Cristo-Rei e dos Jerónimos. Há gente encoberta pelas árvores nas ruas. Em muitos pesará o desânimo, alguns disfarçarão uma alegria secreta. Pressentir o que se não vê – o rio a desembocar no oceano. É o mar que está próximo. O que é mais importante? O que se vê ou o que se imagina? O sol está alto, é preciso aproveitá-lo antes que a noite chegue.

“Não restará na noite uma só estrela. /Não restará a noite. / Morrerei e comigo irá a soma /Do intolerável universo. /Apagarei medalhas e pirâmides, /Os continentes e os rostos /Apagarei a acumulação do passado. /Farei da história pó, do pó o pó. /Estou a olhar o último poente. /Oiço o último pássaro. / Lego o nada a ninguém.” (Jorge Luis Borges)

Veja os vídeos:

http://www.youtube.com/watch?v=A3n4TxNeaPg

Janelas da memória: a queda da monarquia

Não se trata de discutir a questão do regime: monarquia ou república. À distância de mais de um século, não faz qualquer sentido. A república está estabelecida e, salvo em raros nostálgicos, o regresso ao passado não desperta sombra de entusiasmo. E, no entanto, vale a pena analisar o processo que conduziu ao regicídio e à queda da monarquia. É um paradigma da luta pelo Poder.

Ontem como hoje, seja qual for o regime, a política é feita vezes demais por gente medíocre que apenas aspira à promoção ou enriquecimento pessoal. A discussão das relações entre Ética e Política é, assim, tema de todas as épocas.

O homem político luta por atingir o topo do Poder. Os princípios apregoados são ignorados à conta das ambições pessoais ou dos interesses do partido. O homem político não é, de uma maneira geral, eticamente recomendável. A dignidade é rara, o oportunismo campeia. O indivíduo afável, solidário, generoso pode transformar-se num político hipócrita, vaidoso, sem escrúpulos.

É inevitável esta dicotomia? Não. Há políticos com grandeza que em momentos críticos corajosamente se levantam, mostram o caminho e são a voz das aspirações e da esperança dos cidadãos. E outros que, vítimas de calúnias, se afastam aguardando que a verdade seja reposta. A política para eles é um serviço à comunidade. Como devia ser para todos.

No final do séc. XIX, a onda nacionalista originada pela cedência de D. Carlos ao Ultimato britânico, foi um rastilho. E o que deveria o rei ter feito? Se tivesse poderes para isso, mandar zarpar a pindérica marinha portuguesa e travar batalha contra a frota inglesa que, perto da nossa costa, aguardava os acontecimentos? Vozes de republicanos e de alguns monárquicos aproveitaram-se para atiçar a agitação e criar tumultos. A ignorância e a miséria da população constituíram um terreno favorável.

O país, na sucessão de eleições incapazes de garantir estabilidade, estava ingovernável. Uma solução de ditadura tinha defensores em todos os quadrantes políticos. E o rei acabou por ceder. Mas, as ditaduras, mesmo as que se proclamam defensoras dos interesses dos mais desfavorecidos, não se sabe como acabam. Muitas vezes, em tirania e tragédias horrendas.

Nos primeiros anos de séc. XX o ambiente que se vivia em Portugal era de pré-revolução. Ameaças de colapso financeiro agravaram a situação. Em causa estava a ruptura drástica com o regime monárquico e a instituição da república, que, dizia-se, resolveria todas as questões sociais, económicas e políticas. Seria “o bacalhau a pataco”. O apoio popular foi crescendo, à medida que os factos políticos e a incompetência governativa se sucediam e a demagogia convencia os espíritos mais cândidos.

Mas, podia falar-se em limitação das liberdades, nomeadamente da imprensa? Desde a Convenção de Évora-Monte (1834) que ela estava garantida. E, apesar de alguns períodos em que se procuraram amordaçar as vozes discordantes, caso da célebre “Lei das Rolhas” (1850), as caricaturas e a sátira circulavam livremente. Os jornais, pese a reduzida tiragem, estavam subordinados a interesses e grupos políticos antagónicos e faziam críticas contundentes. Porém, mesmo demagógicos e por vezes caluniosos, eram publicados. Só quando João Franco governou em regime de ditadura, a liberdade de imprensa foi, de facto, estrangulada com a proibição por decreto daquilo que fosse atentatório “da ordem e segurança pública” e a tomada de medidas repressivas severas (multas, suspensão e encerramento de jornais, perseguições a jornalistas, julgamentos arbitrários).

 Era uma época em que os assassínios políticos estavam na moda e o ideal republicano para alguns radicais uma razão mais importante que a própria vida. Tomava corpo a ideia de um atentado que eliminasse o ditador João Franco e erradicasse de vez a monarquia. Em células da Carbonária e em lojas maçónicas o tema foi discutido e numa delas organizado. Só João Franco ou a família real também? João Franco haveria de escapar.

Os regicidas tinham consciência do seu muito provável desaparecimento. Meticulosamente, prepararam-se para o sacrifício e emboscaram a família real. Não parece que fosse revolta que estivesse na base da sua decisão, nem tão-pouco fanatismo ou perturbação psicológica grave. Ambos exerciam profissões e Buiça cumpriu o seu programa de professor até à hora conveniente. Seria mais a “consciência política”.

De regresso de Vila Viçosa, à saída do Terreiro do Paço, a família real sofreu o atentado. O Governo não tinha tomado quaisquer medidas de segurança suplementares, apesar da atmosfera que se vivia. O rei sabia do risco que corria, mas assumiu-o e viajou de carruagem aberta. Terá tido morte instantânea.

Dois anos depois do regicídio, seria implantada a república. As perseguições religiosas explodiram, a violência nas ruas atingiu proporções sem precedentes com milhares de mortos e feridos. Detenção e prisão também de milhares de cidadãos. Os Governos eram constantemente substituídos. Em 16 anos, Portugal teve 8 Presidentes da República e 45 Governos. Registaram-se, é certo, progressos na alfabetização e foram promovidas reformas visando a melhoria da política fiscal, dos salários e condições de trabalho, mas a mobilização para a guerra na Flandres e em Moçambique, associada à instabilidade política e à catastrófica dívida do Estado, tornaram-nas frustrantes. Resultado: um golpe militar e uma longa ditadura.

São muitas as questões que o assassínio de D. Carlos e do príncipe herdeiro levantam. Deve o rei ser reconhecido como amante dos prazeres da mesa, da caça, do ténis em contraste com a indigência dos cidadãos, sendo embora um homem simpático, culto, simultâneamente pintor e cientista, um verdadeiro príncipe da Renascença? Pode o rei dar-se à “excentricidade” de realizar explorações oceanográficas, de receber e visitar de forma pomposa Chefes de Estado de outros países, mesmo que o estreitamento de relações sirva o interesse nacional e o fausto das cerimónias atenue a imagem de país miserável, a mendigar empréstimos?

Finalmente, como menosprezar o papel das crises económicas e da demagogia de alguns políticos? Como não temer que, hoje, um golpe antidemocrático venha ameaçar as liberdades, se se perder a coesão do espaço europeu? São janelas da memória para olhar o presente sem ignorar as lições do passado.      

FM

 

A Ericeira está associada ao final da Monarquia. A 5 de Outubro, a Família Real embarcava em duas barcas para o iate Amélia que a levaria para Gibraltar. Depois seria o exílio em Inglaterra. O iate fora o último comprado no tempo de D. Carlos. Mas naquele dia de 1910, depois da República ser implantada em Lisboa, o Rei D. Manuel, que se refugiara em Mafra, teve de partir. A ideia de ir para o Porto chefiar uma eventual resistência fora abandonada. As forças que julgava fieis e cujos chefes uma semana antes, no Buçaco, lhe tinham apregoado lealdade, haviam-se passado para o outro lado.

A comitiva chegou por volta das 15 horas. A viagem de carro de Mafra à Ericeira foi feita com pequena escolta a cavalo. A entrada fez-se pelo Norte, de modo a evitar a travessia da vila. À chegada à praia do peixe, onde se fez o embarque, muitos populares apinhavam-se, sobretudo nas Ribas, para ver o Rei, a Rainha D. Amélia e D. Maria Pia da Sabóia, mãe de D. Carlos. O infante D. Afonso já se encontrava a bordo do iate.

Na praia muitas mulheres prostraram-se para o beija-mão e os pescadores, que à época envergavam um barrete preto, descobriram-se. Era o seu rei e a sua rainha. Mesmo aqueles que eram simpatizantes republicanos respeitaram o momento. Apenas o filho dum médico republicano da Ericeira, terá erguido uma bandeira verde-rubra.

O mar nessa tarde estava bravo. D. Manuel tomou lugar na primeira barca, acompanhado por membros do seu séquito. Conta-se que o rei se conservou de pé na barca e que houve a sorte de rapidamente sair da zona de rebentação. Menos sorte tiveram os passageiros da outra barca onde se encontravam as rainhas que se deslocaram sempre sentadas no fundo da embarcação, depois dela se ter levantado a grande altura na zona de rebentação das ondas. A atracação das barcas ao iate real foi difícil e o desembarque dos passageiros e das bagagens perigoso, o mar piorava.

Tinham apenas passado dois anos desde que D. Manuel II, na altura com 18 anos, fora aclamado rei, na sequência do Regicídio que matara também seu irmão mais velho e herdeiro da Coroa. Aspirante Naval regressara mais cedo a Lisboa por causa dos estudos, aguardou a família na estação fluvial e acompanhou-a na mesma carruagem. Foi ferido num braço. D. Carlos terá tido morte instantânea mas o irmão, ferido, ainda atingiu um dos regicidas. D. Luis Filipe morreria pouco depois.

Além da lápide que foi afixada nos anos 60 por um particular na capela próxima da praia dos pescadores, nada mais existe na Ericeira que assinale o facto histórico, o que é lamentável.

Seria a Ericeira uma vila simpatizante da monarquia? Haveria de tudo. A maioria era gente humilde, analfabeta, como todo o país, e que estava habituada a respeitar o rei e os senhores das terras. Desde o dia 4 de Outubro que circulava a informação de ter rebentado uma revolução em Lisboa. Mas as comunicações eram difíceis e os passageiros das camionetas que vinham de Sintra nada sabiam de concreto. Pelas 10 horas da manhã de 5 o iate real Amélia fundeou ao largo, o que aumentou a expectativa. O corrupio entre o Jogo da Bola e as Ribas era grande.

A Ericeira era uma vila pacata, pintada de branco e a sua população constituída principalmente por pescadores. Apenas no Verão essa tranquilidade era perturbada pela vinda de Lisboa dos “senhoritos”, que procuravam a praia e alugavam as casas dos pescadores. Foi um hábito de que Ramalho Ortigão deu conta, considerando a Ericeira uma das melhores praias de Portugal. No mês de Setembro de 1910 eram muitos os veraneantes.

No Jogo da Bola, no café Arcádia, no local onde hoje funciona a Junta de Turismo, reuniam-se os republicanos. E o rei D. Carlos já antes enfrentara uma pequena manifestação hostil durante um cortejo desde aí até à capela de S. Sebastião. Esta praça, um dos ex-libris da Ericeira e que desde o casamento de D. Carlos se chamava Largo Princesa D. Amélia, foi batizada depois, como Praça da República, topónimo que ainda hoje conserva. Mas é o Jogo da Bola, como toda a gente a conhece.

Este edifício arte-nova é outro ex-libris da Ericeira. Inaugurado em 1861 como Clube Recreativo Ericeirense, funcionava apenas na época balnear com saraus musicais de grande qualidade que atraiam a aristocracia e a alta classe media. Mais tarde seria remodelado e ampliado e deu origem ao Casino, depois a um Cine-casino. Presentemente, é a Casa da Cultura Jaime Lobo e Silva. Aqui teria estado a Família Real quando das suas permanências no Palácio de Mafra.

Esta é a rua Prudêncio Franco da Trindade, em 1910 chamada Calçada Real. Até há poucos anos ainda existia um pequeno bar perto do Jogo da Bola – o “Coroa Bar”, do Sr. Madeira. Nas paredes viam-se reproduções alusivas ao reinado de D. Carlos. Foi pena aquele espaço não ter sido melhorado e transformado num ambiente que evocasse a Ericeira do princípio do séc. XX.

Hoje já nem o bar existe. Só a memória dele e do trato afável do Sr. Madeira.

Entre Mafra, onde D. Manuel se refugiou e que seu pai elegera como uma das suas tapadas preferidas, e a Ericeira, donde a Família Real partiu em 1910 para o exílio, são muitos os locais e os factos marcantes. Façamos uma retrospetiva dos acontecimentos políticos vividos em Portugal no final do Séc. XIX e princípio do XX, centrada em lugares da Ericeira e da Tapada de Mafra: as janelas da memória.

O rei D. Carlos (Carlos Fernando Luís Maria Vítor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão de Bragança Sabóia Bourbon Saxe-Coburgo-Gotha) foi o penúltimo rei de Portugal. Nasceu em 1863, filho de D. Luis e de D. Maria Pia de Sabóia e ascendeu ao trono em 1889, no mesmo ano da Exposição Internacional de Paris e da inauguração da Torre Eifell. Tinha um irmão mais novo, o Infante D. Afonso, Duque do Porto, com quem sempre manteve laços estreitos.

Como sucessor da Coroa, teve uma educação cuidada. Viajou por diversos países e  numa das viagens conheceu a princesa Amélia de Orleães. Parece que os jovens se teriam apaixonado. Não foi, pois, um casamento de conveniência. Desde criança D. Carlos mostrou grande vocação para o desenho e pintura. A sua subida ao trono foi recebida por muitos intelectuais com a esperança de renovação cultural, como sucedeu com os “Vencidos da Vida”, entre os quais se contavam Eça, Ramalho, Oliveira Martins, António Cândido e Guerra Junqueiro. Porém, o seu trono foi envenenado por importantes acontecimentos políticos que culminariam em tragédia. As ideias republicanas iam ganhando adeptos e aproveitando-se das dificuldades.

Os “Vencidos da Vida” (que eram tudo menos isso). Diziam-se um grupo de “jantantes” e, com isso, Eça de Queirós respondia às insinuações de certa imprensa que os apresentava como conspiradores políticos. Reuniam-se no Tavares e no Hotel Bragança. Do grupo faziam também parte os Condes de Arnoso e de Sabugosa, personalidades próximas da Família Real.

O casamento do então Príncipe Real D. Carlos foi, pois uma sua escolha afetiva. Apesar de celebrado nas ruas foi alvo de críticas. Os fidalgos miguelistas receavam que a futura rainha fosse demasiado liberal, os liberais demasiado tradicionalista. Quanto a D. Amélia de Orleães, o seu casamento com D. Carlos poderia levantar obstáculos por parte da República Francesa.

D. Amélia haveria de revelar-se uma mulher culta que terá tentado elevar a corte portuguesa. Teve três filhos: D. Luis Filipe, a Infanta D. Maria Ana de Bragança (que não sobreviveu a parto prematuro) e D. Manuel. A educação dos filhos foi cuidadosa, com especial atenção para o Príncipe da Beira, D. Luis Filipe, putativo sucessor da coroa. À intervenção e empenho de D. Amélia são atribuídos o Instituto de Socorros a Náufragos, Museu dos Coches Reais, Instituto Pasteur em Portugal (Instituto Câmara Pestana) e Assistência Nacional aos Tuberculosos.

Já no final da vida, Aquilino Ribeiro (que haveria de participar em atividades conspirativas) escreveu em Um escritor confessa-se: “No domínio da política internacional, o consórcio Bragança-Orleães foi um lamentável desvio. Sob o ponto de vista de política interna, teve também a sua repercussão perniciosa, se não tão sensível, não menos eficiente. D. Carlos, posto não fosse um liberal determinado, também não vergava aos preconceitos religiosos dos avós. Não era papa-hóstias como a caterva de D. Joões, nem um timorato perante os juízos de Deus como D. Pedro… Às cerimónias religiosas concorria como rei, por obrigação. Escreveu Guerra Junqueiro, não sei com que fundamento, que, “enquanto se celebravam exéquias pela alma do pai, D. Carlos caçava

Para se entenderem muitos dos acontecimentos que conduziram à queda da Monarquia Constitucional, é preciso conhecer o Portugal do fim do séc. XIX: “…falido, caótico, grosseiro, um mono insaciável sem ideia de futuro, que teimava em ficar num tempo perdido e não saberia já como pegar no talher à mesa da nova economia mundial”, assim o descreve Jorge Morais. Mas também rural, ignorante e analfabeto (mesmo no Censo de 1911, cerca de 75% da população era analfabeta).

Em 1871, escreveu Eça: “Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade. /Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.”

O rei era uma figura simpática. Bonacheirão, bom conversador, tratava toda a gente por tu. À medida que os anos iam passando ia ficando obeso. Loiro, de bigodes retorcidos, com papada, evidenciava ainda, antes de ser morto, certa agilidade. Falava várias línguas e sentia-se à vontade em todos os ambientes. Parece que detestava a “meia tijela”. Era um homem de hábitos simples, bem-humorado, com fama (real ou inventada) de mulherengo.

A Família Real, à exceção da Rainha-Mãe, D. Maria Pia de Saboia, que habitava no seu chalet particular no Monte Estoril, vivia no Palácio das Necessidades. O Príncipe D. Afonso, irmão de D. Carlos, era solteiro e não tinha residência fixa, mas tinha aposentos no chalet da mãe. O Palácio da Ajuda servia quase só para cerimónias oficiais.

No verão a Família Real transferia-se para Sintra no Castelo da Pena (ou no palácio da Vila, para tratar de assuntos de Estado).

Depois,  a Família Real deslocava-se para a Cidadela de Cascais, até Outubro, na altura da abertura da Ópera. Era naquela fortificação sobre a baía, que D. Carlos, desde criança, gostava de passar a época balnear.

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Mas, era em Vila Viçosa, onde os Bragança tinham um palácio, que D. Carlos mais apreciava estar.

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Aí seguia a atividade agrícola das suas propriedades, os príncipes D. Luis Filipe e D. Manuel recebiam as suas lições e passeavam. Era um ambiente descontraído, de proprietários ricos. A rainha entregava-se a visitas a asilos e igrejas. As saídas de qualquer deles não se acompanhavam de quaisquer formalidades ou medidas de segurança.

E, na tapada, dedicava-se ao seu desporto favorito – a caça. Organizavam-se batidas e montarias e a sua pontaria considerada temível. As peças abatidas eram divididas entre as cozinhas do Paço e os pobres da terra. Em Vila Viçosa, D. Carlos envergava capote e botas altas como qualquer lavrador abastado. Gostava de comer sem cerimónias debaixo de um chaparro, como num vulgar pic-nic.

Mas também caçava em Mafra. A Real Tapada, como era na época denominada, é rodeada por um muro com um perímetro de 16Km. Está dividida em três partes, que albergam espécies diferentes. Estão conservados o pavilhão de caça, o chalet real e dos hóspedes. Coelhos, perdizes, galinholas, veados, gamos eram a caça mais frequente. Calcorrear hoje aqueles caminhos de terra batida, descobrir recantos lindíssimos com fios de água, vegetação luxuriante e por vezes ainda marcas de incêndio restante é uma experiência única e que nos evoca aquela época.

Lavrador abastado que apenas fumava os seus próprios charutos. Recusava quaisquer outros, mesmo em cerimónias oficiais. Fotografia aos 44 anos, poucas semanas antes de ser assassinado.

Eis o chalet de D. Carlos na Tapada de Mafra . Mas, quais eram as funções que lhe estavam cometidas, enquanto monarca constitucional? Quase só protocolares: inaugurações, passar revista às tropas, presidir a cerimónias, visitar o país. Mas competia-lhe empossar o governo, dissolver o parlamento e convocar eleições. Podia, é claro dissolver o parlamento, manter o governo e adiar as eleições. Era a “ditadura” que durante muito tempo repugnou a D. Carlos. E quem eram os políticos da época?

Hintze Ribeiro (1849-1907), líder do Partido Regenerador, por três vezes assumiu o cargo de Presidente do Conselho. Foi ainda Procurador-geral da Coroa, ministro das Obras Públicas, da Fazenda e dos Negócios Estrangeiros. A ele se devem importantes reformas, tal como a das autonomias insulares (1895).

José Luciano de Castro (1834-1914), um dos fundadores do Partido Progressista, ao qual presidiu a partir de 1885. Foi Presidente do Conselho por três ocasiões. Além disso, exerceu as funções de Ministro da Justiça e Cultos e de Ministro do Reino. Foi um dos primeiros políticos a defender o rotativismo e a necessidade de consolidar o sistema partidário.

João Franco (1855-1929) militou no partido Regenerador até 1901, altura em que se afastou de Hintze Ribeiro e formou o seu Partido “Regenerador Liberal”. Desempenhou inúmeros cargos políticos e produziu extensa obra legislativa. Foi ministro da Fazenda, das Obras Públicas, da Instrução Pública e Belas Artes e do Reino até chegar a Presidente do Conselho (entre 1906-1908). Produziu reformas da instrução secundária, do Código Administrativo, da Lei Eleitoral, dos regulamentos de sanidade marítima, da contabilidade pública, da responsabilidade ministerial e da liberdade de imprensa. Foi da sua autoria a lei que previa a deportação de agitadores e anarquistas para África e Timor, batizada “lei celerada” pelos republicanos (1896) e, em vésperas do regicídio, uma lei ainda mais severa que previa o degredo para quem atentasse contra a segurança do Estado…

E como era o sistema político português? O chamado rotativismo, como foi batizado por João Franco, caracterizava-se pela alternância no poder dos dois grandes partidos políticos da época, Partido Regenerador (de Hintze Ribeiro) e Partido Progressista (de José Luciano de Castro). Com pequenas interrupções, estendeu-se até 1906, ano em que o sistema colapsou por esgotamento de soluções. “Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar. (Guerra Junqueiro, in Pátria, 1896)” (Caricatura de Bordalo Pinheiro)

Caricatura de Leal da Câmara, satirizando os partidos vigentes na época e que supostamente davam suporte ao rei. Mas, afinal, os partidos monárquicos não o ajudaram: contribuíram pela sua inépcia para a degradação da imagem de D. Carlos. Saliente-se a importância que a caricatura teve na época como instrumento de crítica política. Nomes como Rafael Bordalo Pinheiro, Alfredo Cândido e Leal da Câmara são incontornáveis.

E o que se passava pelo lado dos republicanos? A sua fonte inspiradora era a Revolução Francesa, mas à medida que o tempo passava, a deriva jacobina foi sendo mais importante. Havia várias fações, umas mais moderadas que outras. Até ao princípio do Séc. XX, não conseguiram grande implantação. “Um partido republicano, quase circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, amanhã exaurido e letárgico “/Guerra Junqueiro, escreveu. A suspeita de implicação na tentativa revolucionária de 31 de Janeiro de 1891, fragilizou-os bastante. O seu objetivo era criar um regime que vencesse o imobilismo e a teia de interesses em que a Monarquia Constitucional – e os seus políticos, se deixara enredar. Mas, entre liberais e republicanos moderados não havia diferenças de vulto.

A ideologia republicana assentava no anticlericalismo e anti jesuitismo ferozes, que viriam acentuar-se depois do 5 de Outubro de 1910. A igreja contribuiria para o atraso científico e a ignorância das populações, sobretudo as mulheres. Outras ideias-chave eram o apelo nacionalista e a defesa das colónias. Tinham sido os partidos monárquicos e o rei os responsáveis pela cedência perante o do Ultimato e pela humilhação que indignava o país. A estátua de Camões foi envolta em vestes de luto nas comemorações do tricentenário da sua morte. Mesmo que a maioria dos seus simpatizantes ignorasse as propostas políticas do partido republicano, eram contra a monarquia, porque era nela que estava a origem de todos os males do país.

Apesar da lei eleitoral que os prejudicava e do caciquismo da província que influenciava o sentido do voto, os republicanos conseguiram eleger alguns deputados desde 1900. Porém, o seu número não traduzia a verdadeira implantação republicana, sobretudo nas cidades de Lisboa e Porto, e nomeadamente em 1910, onde constituíam apenas 10% dos deputados eleitos. Quem foram os principais dirigentes republicanos?

Afonso Costa (1871-1937) advogado, professor universitário. Eleito deputado republicano em 1889. Orador fluente, de temperamento violento, as suas intervenções parlamentares foram das mais críticas à monarquia. Depois da instauração da República, Primeiro-Ministro por três vezes, cargo que acumulou com as Finanças. Era conhecido pela alcunha de “mata-frades” pela legislação anticlerical que mandou publicar. Defensor da participação portuguesa na 1ª Guerra. Com o golpe de Estado de 28 de Maio (1926), exilou-se em Paris.

António José de Almeida (1866-1929). Era um dos mais eloquentes tribunos republicanos. Depois de 1910,  ministro do Interior, das Finanças, das Colónias e Primeiro-Ministro. Um dos fundadores do Partido Evolucionista e, posteriormente, do Partido Republicano Liberal. Adversário político de Afonso Costa, este mais radical. Foi o sexto Presidente da República entre 1919-23, numa época de grande agitação.

Bernardino Machado (1851-1944). Durante a monarquia, foi deputado pelo Partido Regenerador, Par do Reino e ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria. Aderiu ao Partido Republicano em 1903. Com o advento da República, ministro dos Negócios Estrangeiros, embaixador de Portugal no Brasil. Por duas vezes Primeiro-Ministro e presidente da República Portuguesa, também por duas vezes. Teve importante percurso como dirigente da Maçonaria, sendo à época da morte, 23.º Soberano Grande Comendador do Supremo Conselho afeto ao Grande Oriente Lusitano.

Chegara-se a uma situação de bloqueio institucional. Os governos sucediam-se, os partidos monárquicos alternavam, os acordos pré-eleitorais a nada conduziam. Última tentativa: um governo que não ficasse sujeito a constrangimentos parlamentares. João Franco era considerado político honesto e competente. D. Carlos pensou que seria a individualidade certa. Mas a ditadura, a agitação social agravada pela inabilidade (ou astúcia?) de João Franco só favoreceram a propaganda republicana, os revolucionários e os anarquistas. Era um buraco.

Eis como Aquilino descreve D. Carlos: “Era um Bragança na acepção pejorativa do termo. O seu gosto primava na guitarra, nos touros, na caça, tudo geórgica e santo ripanço…Em D. Carlos, a matéria vibrátil – afabilidade inata, gosto de comodismo, perspicácia que não inteligência, bonomia pachorrenta e passa-culpas, o não te rales para tudo o que estivesse fora da sua esfera particular, pois aí a sua actividade, desde que se lhe não antepusesse arregimentada a usos e preceitos, mostrava-se viva e expedita – era de todo Bragança. Também deviam ser da mesma fábrica sensibilidade e carácter. Dos Cosburgos só teria o físico. Onde se vira na família lusa aquele demonhão de homem, com trufa a puxar para o encaracolado, rosado, com uma rede vascular quase à superfície da pele de loiro?

Mas as considerações de Aquilino são sectárias. Dos Cosburgos, como escreve, referia-se a seu avô, o Príncipe consorte D. Fernando II, marido da rainha D. Maria II. Este era homem de grande cultura, que reuniu importante coleção de obras de arte, transformando as Necessidades e a Pena em verdadeiros museus. E não era só pela sua estatura física, mas pelas aptidões artísticas que D. Carlos se assemelhava ao avô. Aliás, este tê-lo-ia incentivado oferecendo-lhe materiais de pintura. Durante a juventude,  D. Carlos teve vários mestres na sua formação artística e diz-se que pintava compulsivamente. (Praia de Cascais 1906, aguarela, Casa-Museu Anastácio Gonçalves, Lisboa).

O mar foi um dos temas prediletos na pintura do rei. O pastel e as aguarelas, as técnicas mais utilizadas. Participou em várias Exposições, dentro e fora do país, embora se escreva que a sua obra é desigual. O adensamento do ambiente político não favorecia a criação artística do rei. Mas o reconhecimento do seu talento foi internacional.

A sua característica de pintor figurativo deve estar associada ao aparecimento das primeiras máquinas fotográficas. E as fotografias foram outro hobby do rei, que chegou a utilizá-las para base de alguns dos seus quadros. Deve-se também à difusão das Kodak a abundante iconografia existente da época.

O mar e os navios foram outra paixão de D. Carlos. Na época iniciava-se o estudo do fundo do mar e surgiam as expedições oceanográficas. O príncipe Alberto de Mónaco foi um dos pioneiros. D. Carlos no primeiro iate real realizou as suas primeiras pesquisas. Mas o navio comportava-se mal no alto-mar, o que dificultava a atividade científica. Assim, foi sucessivamente trocando de navio, o que lhe permitia, além de realizar cruzeiros e receber viajantes ilustres, intensificar as expedições oceanográficas. O objetivo  era procurar conhecer melhor a costa portuguesa, a sua topografia, as correntes e, deste modo, explorar mais racionalmente os seus recursos. A essas expedições se ficou a saber da existência de vales submarinos na região de Cabo Espichel. Os 4 iates que foi sucessivamente possuindo, sempre tiveram o nome de Amélia.

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Foram, portanto, frequentes as viagens do Rei, como, aqui, na Ilha da Madeira (1901). No entanto, esta viagem longamente preparada e que suscitou sentimentos opostos, mesmo entre os monárquicos como Hintze Ribeiro e João Franco, se por um lado se revestia de enorme carga histórica e de construção do espírito de coesão nacional, serviu de propaganda para republicanos e outros adversários do regime, que a consideravam um dispêndio inaceitável numa altura de enorme dificuldade financeira. Mas foi a primeira deslocação dum Rei às Ilhas Adjacentes.

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Da Madeira partiu para os Açores, onde visitou a Terceira, Faial e S. Miguel, no meio de enorme entusiasmo popular. Na gravura, o busto de D. Carlos no Jardim José do Canto em Ponta Delgada (um dos jardins botânicos mais importantes da Europa) evoca a viagem.

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Também esta paisagem deslumbrante assinala a visita régia à Lagoa das Sete Cidades (S. Miguel), num local que ficou conhecido como Vista do Rei.

Quanto aos estudos oceanográficos, no princípio, as espécies marinhas capturadas eram estudadas no laboratório que construíra na Fortaleza da Cidadela, mas a necessidade de aprofundar os estudos exigia mais espaço a bordo para instalação de laboratórios. Era o próprio rei quem dirigia os trabalhos. As amostras eram depois transferidas para laboratórios mais amplos, o mais importante de todos veio a ser instalado no Palácio das Necessidades. Os resultados destas pesquisas foram apresentados em reuniões internacionais e alguns trabalhos publicados, como as monografias sobre a pesca do atum no Algarve e sobre os esqualos na costa portuguesa. No total, realizou 12 expedições oceanográficas.

Outra das suas preocupações neste domínio foi avaliar o papel que os arrastões a vapor poderiam desempenhar no esgotamento do peixe. As suas opiniões foram publicadas por jornais estrangeiros, como quando ocorreu uma diminuição dos cardumes de sardinha nas costas de França. O que resta da sua coleção oceanográfica está hoje no Aquário Vasco da Gama. “Monarca sábio” foi assim que lhe chamou o Príncipe do Mónaco.

Foi a questão africana que agudizou a crise do regime. O expansionismo britânico, a pobreza de recursos portugueses e a incapacidade de lhe fazer frente estiveram na origem do que ocorreria nas 2 décadas seguintes. Para além disto, a decrepitude do sistema político e a incompetência governativa, aproveitadas pela emergente utopia republicana e pelo radicalismo revolucionário.

O Ultimato britânico de 1890 ocorreu como resposta à pretensão portuguesa de ver reconhecido o “Mapa Cor-de-rosa”, que correspondia à faixa de território que vai de Angola a Moçambique, naquilo que hoje constitui Malawi, Zâmbia e Zimbabué. A Europa que ignorara África até meados do séc. XIX, acordava. Inglaterra, França, Alemanha e Bélgica eram importantes concorrentes. Realiza-se a Conferência de Berlim (1884-1885), para regular os interesses das potências coloniais. Nela ficou estabelecido que aos direitos históricos se sobrepunha a demonstração de efectiva ocupação do território. Aos portugueses foi retirado o controlo da foz do Congo.

Porém, desde 1877, os portugueses vinham realizando explorações científico-geográficas e promoviam a presença militar possível. Andrade Corvo, que foi um ministro competente e de visão, de Fontes Pereira de Melo, entendia não compensar definir grandes áreas “exclusivas” no papel, que depois não se conseguiam ocupar. Todavia, as vozes do sonho imperial de costa a costa prevaleceriam, mesmo não tendo o país recursos para tal ambição.

E que interesses advinham das colónias, cuja cobiça alheia tanta indignação causou? “As relações de Portugal com as suas colónias são originais. Elas não nos dão rendimento algum: nós não lhes damos um único melhoramento: é uma sublime luta – de abstenção! /– Não – exclamam elas com o olhar voltado de revés para a Metrópole – mais rendimento que o deste ano, que é nenhum, não és tu capaz de nos pilhar, malvada! /– Também – responde obliquamente a Metrópole – em maior desprezo não sois vós capazes de estar! /Quando muito, às vezes, a Metrópole remete às colónias um governador: agradecidas, as colónias mandam à mãe-pátria – uma banana. E perante este grande movimento de interesses /e de trocas, Lisboa exclama: /– Que riqueza a das nossas colónias! Positivamente, somos um povo de navegadores! (Eça de Queiroz in Uma Campanha Alegre).

 Entre numerosos atos de insubordinação desencadeados pelo Ultimato teve particular importância a “Revolta do Porto”. Esta iniciou-se na madrugada do dia 31 de Janeiro e envolveu alguns batalhões, não enquadrados por oficiais superiores. Na Praça de D. Pedro, (hoje, Praça da Liberdade), foi proclamada a Implantação da República. Com fanfarra, foguetes e vivas, a multidão dirige-se para a Praça da Batalha. No entanto, o cortejo é travado por um dispositivo da Guarda Municipal. Cerrada fuzilaria vitima militares revoltosos e simpatizantes civis. A multidão foge. Alguns resistem, barricam-se na Câmara Municipal, mas por fim, a Guarda força-os à rendição. 12 mortos e 40 feridos foi o número de vítimas.

Outro facto agravaria o ambiente político e social: as provas de doutoramento de um filho de um antigo primeiro-ministro (Dias Ferreira). Apesar do prestígio de que desfrutava, foi reprovado por unanimidade, ao que se dizia por causa dos seus ideais republicanos. Enorme tumulto, reprimido como mero caso de polícia.

No Parlamento e na Imprensa crescem as críticas. A crise estende-se, como o âmbito das exigências académicas e a repercussão política. Organizam-se comícios. João Franco manda fechar todos os estabelecimentos de ensino que se mantinham amotinados. Até que ao fim de três meses cede e concede um indulto geral. Um tiro no pé.

A Questão dos Adiantamentos foi outra polémica que envolveu a Família Real e, cujo aproveitamento muito contribuiu para o desgaste das instituições. Desde D. João VI, a verba atribuída às despesas da Casa Real não era alterada. Nessas despesas incluíam-se a conservação de palácios, despesas de representação relativas aos chefes de estado estrangeiros que se deslocavam oficialmente a Portugal, o iate real e outras propriedades. Para resolver a questão os vários ministros da Fazenda foram, ao longo dos anos, concedendo adiantamentos e abonos em dinheiro que, à margem da lei e do Parlamento, iam cobrindo os gastos reais. No tempo de D. Carlos, as dívidas ao Estado eram enormes.

Na Câmara dos Pares um deputado desafia João Franco a confirmar os “adiantamentos irregulares”, que tinham sido negados pelos governos anteriores. Este reconhece-os e defende que a solução tem de ser encontrada no Parlamento. Afonso Costa exige a hipoteca da Casa de Bragança e que o Rei se demita para não ser preso como criminoso vulgar. “Por menos do que fez o Sr. D. Carlos, rolou no cadafalso a cabeça de Luis XVI!”. Profético.

É um enorme tumulto na Câmara e na rua, que iria prolongar-se. A crescente contestação ao governo levou o rei a dissolver o parlamento. O Primeiro-Ministro tentou resolver a questão fazendo sair um decreto que anulava as dívidas da Casa Real, através de um encontro de contas.

Grosso modo, o rei entregava propriedades suas e o iate; por outro lado o Estado consideraria saldados os adiantamentos e passava a responsabilizar-se pela manutenção de palácios e museus. Mas sem o parlamento funcionar, as críticas de falta de transparênciaaumentaram. E o país com uma dívida externa monstruosa, resultante sobretudo da política de obras públicas de Fontes Pereira de Melo, sem o ouro e as remessas dos emigrantes do Brasil e sem crédito, estava à beira da bancarrota.

A agitação e propaganda republicana aumentavam. Em que consistia o “republicanismo”, e no que o distinguia da Monarquia Constitucional? Ser-se republicano nessa época era ser-se contra a monarquia, a Igreja, a corrupção e os partidos monárquicos. Segundo Oliveira Marques, “era algo carismático e mítico e para acreditar que bastaria a sua proclamação para libertar o País de toda a injustiça e de todos os males”. Quanto ao resto, a diferença era a figura do rei que desempenhava um papel fundamentalmente representativo, que devia “reinar” e deixar o governo governar”. Mas os governos deveriam saír de eleições. Só que o partido do governo que se demitia tinha infiltrado os lugares de influência com gente da sua confiança e nas eleições seguintes, ganhava-as. Restava ao rei convidar para presidente do Governo o chefe do outro partido. O clientelismo, as “chapeladas”, a corrupção – era o rotativismo.

O papel de um rei constitucional limitava-se, assim, a ser o árbitro da disputa partidária. Marcar eleições, acatar os seus resultados. Mesmo o “Discurso do Reino” era escrito pelo Presidente do Conselho do momento. As ideias expostas não eram da autoria  do rei. Na caricatura de Leal da Câmara, o rei lê-o com Luciano de Castro a dar à manivela.

A  República seria para os seus prosélitos o regime perfeito, do “povo para o povo”, e que traria justiça democrática. Mas poucas diferenças havia em relação ao da Carta de 1820, em que a Monarquia Constitucional se baseava. Haveria era gente nova, aliados a transfugas monárquicos, que pretendiam vencer o imobilismo  e a decrepitude da vida política portuguesa.

E o que se passava na área governativa? Qual a responsabilidade  de João Franco no agravamento da crise e na tragédia que acabou por acontecer? Como se chegou à Ditadura? O regime republicano seria muito diferente da monarquia constitucional?

João Franco chegara ao Governo em coligação com o Partido Progressista de Hintze Ribeiro. Alterações introduzidas à Lei eleitoral limitaram significativamente o poder da Câmara de Pares e a legitimidade parlamentar. O rei passou a ter um poder reforçado e ser árbitro dos partidos. Em 1897, o governo pede a demissão a pretexto de discordâncias de nomeações de Pares dos Reino. Sucedem-se vários governos do rotativismo. Até que, em 1906, João Franco é finalmente Presidente do Conselho.

As suas primeiras declarações são pacificadoras, mas as crises sucedem-se. A revolta do Porto, a greve académica de 1907 e a crescente agitação social, fez-lhe perder o apoio parlamentar. O Parlamento é encerrado e surge o primeiro governo de João Franco em ditadura administrativa ou seja sem fiscalização do Parlamento. A necessidade de um governo forte, que fora antes advogada por individualidades de todos os quadrantes políticos, concretizava-se. João Franco seria um messias, mas inábil e/ou demasiado ambicioso.

João Franco batera-se anteriormente por uma governação clara, sem escândalos escondidos e entendeu reconhecer os Adiantamentos feitos a D. Carlos e realizar a sua liquidação. Mas, como não havia Parlamento, o reconhecimento desses Adiantamentos na ausência de controlo no seu cumprimento, levou a violentas críticas, acusações de fraude nos jornais e nos comícios.

A Guarda Municipal reprime com violência e ocorrem prisões arbitrárias. Por essa altura, os grupos radicais fazem reuniões conspirativas. Compram armas de guerra, munições e a fabricam bombas artesanais. Teria João Franco, ao reconhecer os Adiantamentos naquelas condições, pretendido “manietar” o rei (que, aliás, se mostrou crítico em relação ao timing do reconhecimento”não se apaga fogo lançando-lhe lenha.”)? Mas, João Franco conseguiu seguramente ampliar o descontentamento sobre si próprio e tornar-se um alvo a abater.

D. Carlos não permitira antes que Hintze Ribeiro governasse em ditadura, como este desejou. Agora, perante a proposta de João Franco mudou de atitude. Escreveu-lhe …” Mas a minha carta ao Hintze não condemna em absoluto as dictaduras. Dizia que n’aquelle momento as não achava convenientes, o que não queria dizer que n’outros, e este é um d’elles, eu não as acceite e, o que é mais, até as ache convenientes e necessarias. E ainda que eu tivesse declarado absolutamente o contrario, diria que não é homem de Estado, nem sabe servir o seu Paiz aquelle que julgando ter affirmado um erro, se não penitenceie d’elle e não esteja prompto, reconhecendo-o, a seguir caminho diverso que julgue mais opportuno e conveniente.” Seriam a ingovernabilidade e o ambiente político-social que o teriam feito mudar, mesmo contra a opinião da restante Família Real. E escreve ainda: “N’este caminho encontrarás tu e os teus collegas todo o meu appoio o mais rasgado e o mais franco, porque considero que só assim, dadas as circumstancias em que nos encontramos, poderemos fazer alguma cousa boa e util para o nosso Paiz.”

A experiência de uma ditadura administrativa foi, pois, apoiada e aceite pelo rei. Porém, as prisões de dirigentes republicanos ou de intelectuais por delitos de opinião ou injúrias ao rei (caso de Guerra Junqueiro) e o encerramento, suspensão e coimas aos jornais, adensaram o mal-estar. Os tumultos sucedem-se. A repressão aumenta.

Constitucionalmente limitado em política interna, o rei virara-se para a atividade diplomática. Servindo-se dos laços familiares e do prestígio da sua própria figura nas monarquias europeias, procurou transmitir uma noção de grandeza, que não estava de acordo com o miserabilismo nacional. Foram frequentes as visitas de altos dignitários e as viagens de D. Carlos. Não parece haver dúvidas também sobre os objetivos políticos, nomeadamente África e a sobrevivência do regime. Porém, a situação mundial não era favorável à monarquia portuguesa.

Na época, a maior potência era a Inglaterra, o nosso mais velho “aliado”, que anos antes tinha imposto o Ultimato, por entender que a sua ambição (através, sobretudo, de Cecil Rhodes) de uma África do “Cabo ao Cairo” estaria ameaçada com o mapa cor-de-rosa.

Estreitar relações com o rei Eduardo VII, sucessor da Rainha Vitória e seu parente e amigo, parecia servir os interesses nacionais. Porém, o novo rei (filho da Rainha Vitoria e já com 60 anos de idade) tinha um papel meramente decorativo, diante dos partidos e das suas políticas em África. E a importância de Portugal, como potência colonial, era desprezível. A Inglaterra estava endividada com a construção do Canal do Suez e Portugal servia quase só para pedinchar empréstimos. Talvez um novo regime republicano, melhorasse a situação…

Os republicanos portugueses aperceberam-se da postura inglesa. Os políticos e os gestores coloniais veriam com bons olhos uma mudança. Se não houvesse derramamento de sangue, se não existissem atrocidades excessivas, o pacto (a “aliança”) era com o governo, não com o regime. O Gabinete inglês reconheceria a república e impediria a interferência de terceiros na questão portuguesa. Entretanto, as visitas de membros das duas Casas Reais repetiram-se. Aqui, a Rainha Alexandra, esposa de Eduardo VII, de visita a Portugal. O rei D. Carlos seria cognominado “O Diplomata”.

Para os republicanos uma eventual intervenção estrangeira para travar a implantação da República, só poderia provir da Monarquia espanhola, que não via com bons olhos uma República em Portugal, com medo do contágio… Os laços de D. Carlos com Afonso XIII estreitaram-se. Em 1903, o jovem rei espanhol visitou Portugal pela primeira vez, e foi recebido com cerimónias de grande rigor protocolar. O objetivo era (pelo menos) fomentar a aproximação ao vizinho ibérico, que nos aliviasse da “proteção” inglesa…

Porém, Afonso XIII, como D. Carlos, teve um reinado atribulado. Coroado aos 16 anos (1902), desde logo teve defrontar inúmeras dificuldades como levantamentos populares, a perda de Cuba e a guerra de Marrocos. Na tentativa de ultrapassar os problemas, nomeou Primo de Rivera para chefiar o governo, em regime de ditadura. O descontentamento foi crescente e o rei acabaria por sair voluntariamente de Espanha (1931). Para Portugal era crítico procurar o apoio da monarquia espanhola e daí as visitas recíprocas que foram feitas. Mas cada vez mais eram os interesses do Império Britânico a dominar. E nem Espanha, nem França, nem Alemanha se iriam opor.

Até o Presidente Loubet da França, veio a Portugal. A sua presidência (1899 a 1906) ficou assinalada pela separação da Igreja e do Estado e pela resolução do caso Dreyfus, que agitou a opinião pública francesa. No plano internacional desenvolveu intensa atividade diplomática entre dois polos opostos: Rússia e Reino Unido. O expansionismo britânico com a eclosão das guerras dos bóeres motivara a desconfiança dos franceses. O conflito africano opôs descendentes de holandeses e franceses, que se levantaram contra as pretensões inglesas, depois da descoberta de ouro e diamantes, naquilo que hoje é a República da África do Sul. No final prevaleceria a aproximação da França ao Reino Unido (a Entente Cordiale). Não é de estranhar que D. Carlos procurasse uma aproximação e Loubet viesse a Portugal (1905). A visita foi aproveitada para manifestações de ativistas republicanos.

Visita do Kaiser Guilherme II. Este seria o último imperador alemão e o último Rei da Prússia. Desde a Guerra dos Bóeres que o Kaiser vinha suscitando a desconfiança dos Ingleses, que mais se acentuou com a sua política de nacionalismo e de reforço das forças armadas, que culminaria com a Primeira Guerra Mundial. Era, na época de D. Carlos, um rival dos interesses ingleses em África.

Album de família

As colónias africanas foram, pois, uma prioridade do rei. A presença portuguesa era quase simbólica. Donos históricos de territórios  que não ocupávamos nem explorávamos. Apenas, a partir do final dos anos de 1870 começaram a estudar-se as bacias hidrográficas dos principais rios. A expedição de Capelo e Ivens, atravessou África, com partida do sul de Angola e chegada a Quelimane (1884-1885). Mouzinho de Albuquerque obteve a subjugação das populações do sul de Moçambique à administração colonial (1894-95). Mas todas as atividades económicas estavam nas mãos inglesas. Em S. Tomé, apesar de D. Luís ter abolido a escravatura, ela persistia de modo encapotado.

É à luz destas realidades que se deve entender a viagem do Princípe Luis Filipe, Herdeiro da Coroa, às colónias africanas em 1907, a qual teve grande impacto na época. (na foto, o Príncipe na cerimónia de lançamento da primeira pedra da primeira Câmara Municipal de Lourenço Marques).

Mas, desde 1840, vinham-se conhecendo as viagens do missionário inglês David Livingstone, que fizera o reconhecimento do rio Zambeze, do lago Niassa, dos territórios do Tanganica e que se abalançara a procurar as nascentes do Congo. E, em 1867, a informação da descoberta de imensas jazidas diamantíferas na região de Kimberley, desencadeou uma corrida a África, que Portugal não acompanhou, – a emigração que se fazia era para o Brasil. Em 1879, foi celebrado o tratado de Lourenço Marques que previa, entre outras medidas, a construção de um caminho-de-ferro para ligar Lourenço Marques ao Traansval, admitindo-se o desembarque de tropas britânicas naquele porto, e o patrulhamento das costas da colónia por navios britânicos. A ratificação em Portugal do acordo foi tumultuosa, e a Guerra entre os Boers e os Ingleses, naquilo que hoje é a África do Sul, veio mostrar a importância daquele porto para os interesses ingleses. E os portugueses, mais uma vez muito tarde, começaram a acordar. (na foto, o Príncipe Luis Filipe, na residência do Governador-Geral na Ponta Vermelha em Lourenço Marques).

Viagem a Macequece, perto do que hoje é o Zimbabué. A Companhia de Moçambique (inglesa) que administrava aquela parte do território, prodigalizou uma recepção grandiosa que incluiu uma emissão de selos alusiva. Em Moçambique as companhias de navegação, transporte ferroviário, cabo submarino, cultura de açúcar e algodão, exploração mineira, portos e estiva, abastecimento de água e luz (em Lourenço Marques) estavam em mãos inglesas. A maior do comércio do Transval fazia-se pelo porto de Lourenço Marques. Mas outros aspectos demonstram a importância desta visita: a cidade da Beira deve o seu nome à visita de Luís Filipe, Príncipe da Beira e Pemba passou a chamar-se Porto Amélia, em homenagem à Rainha.

Contudo, a importância destes passos diplomáticos passavam despercebidos na convulsão político-social que ia em crescendo no país.

Outro facto político que denegriu a imagem de D. Carlos foi a publicação em 1908 de “O Marquês da Bacalhoa”, de um António Albuquerque, aristocrata anarquista que vivera em Paris e perfilhava o ideário republicano. O livro pretendia fazer um retrato dos membros da Família Real. O rei (O marquês), a Rainha, uma hipotética relação lésbica e Mouzinho de Albuquerque que nutriria uma paixão não correspondida pela rainha, o que o teria conduzido ao suicídio. O livro, não pelo valor literário, mas pela intriga caluniosa, foi vendido clandestinamente e serviu a propaganda republicana. Os leitores encontravam ali um enredo que saciava a sua curiosidade mórbida e confirmava boatos postos a correr. Antes de morrer, o autor pediu perdão à rainha pelo conteúdo do romance.

Os revolucionários propunham várias coisas: uns diziam querer fazer abdicar D. Carlos para lhe suceder D. Luis Filipe (o que parecia pouco provável); liquidar João Franco; matar o rei e a família. O objetivo, de facto, era abolir a monarquia. Os métodos é que não eram coincidentes. Aos republicanos “de cartola”, os vultos, os caudilhos do Partido republicano, não interessava a violência sobre o rei, que era uma figura com boa imagem internacional, violência que poderia ser prejudicial a um novo regime. Para os mais radicais, um atentado a João Franco era indispensável. Mas, eliminar o rei e a família era uma possibilidade e terá sido ai discutida em reuniões conspiratórias.

Os mais radicais estavam filiados na Carbonária Lusitana, mas alguns pertenciam também a Lojas Maçónicas, nomeadamente a Coruja. Na sombra conspiram anarquistas, maçons, carbonários.  A revolução estava em marcha. O decreto, que punia os culpados de crimes contra a segurança do Estado com o degredo, e foi assinado por D. Carlos em vésperas de regressar a Lisboa e ser assassinado, foi catastrófico.

Guerra Junqueiro (1850-1923) foi dos mais importantes poetas da sua geração. O ultimatum inglês impressionou-o profundamente. Muitas das suas obras (como Finis Patriae, Canção do Ódio e Pátria), tiveram um cunho nacionalista e serviram a propaganda republicana. “Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente, /Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão? /Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente, /Repartindo por todo o escuro continente   /A mortalha de Cristo em tangas d’algodão. (in Finis Patriae)”. Sobre o príncipe Simão (um dos apelidos de D. Carlos), na altura da morte do pai, D. Luis, profetizou “…A Pátria é morta! a Liberdade é morta! /Noite negra sem astros, sem faróis! Ri o estrangeiro odioso à nossa porta, /Guarda a Infâmia os sepulcros dos Heróis! //Papagaio real, diz-me, quem passa? /- É o príncipe Simão que vai à caça. //Tiros ao longe numa luta acesa! /Rola indomitamente a multidão… /Tocam clarins de guerra a Marselhesa… /Desaba um trono em súbita explosão!… //Papagaio real, diz-me, quem passa? /- É alguém, é alguém que foi à caça. /Do caçador Simão!…“

Ou ainda: “O estado é o rei. Cidadão há um único: D. Carlos. Os deveres são nossos, os direitos, dele. Estrangula-me as ideias, arromba-me a gaveta, ou corta-me o pescoço, conforme o queira. A justiça é um relógio que ele atrasa, adianta ou faz parar, segundo lhe dá na vontade. Decreta a lei e nomeia o juiz. O parlamento é o seu capricho”  (Guerra Junqueiro). Este rei não era D. Carlos, bisneto de D. Pedro de Alcântara. Este seria um retrato de um rei absolutista , não de D. Carlos, um rei saído do liberalismo. Mas a propaganda desacreditava a monarquia.

A 28 de Janeiro estala uma revolta que visa liquidar João Franco e proclamar a república, mas o ditador ludibria os conjurados e os principais responsáveis republicanos são presos no Elevador da Biblioteca em Lisboa. Há escaramuças em várias zonas da cidade e o regime sobrevive. Inevitavelmente são poucos os testemunhos sobre a preparação do regicídio. Segundo Jorge Morais, apenas Aquilino o considera “resultado de uma decisão inesperada, tomada sobre a hora, no Terreiro do Paço”, depois de se ter malogrado mais uma tentativa de assassinar João Franco. Porém, outros implicados e regicidas atestaram a existência de um plano prévio, descreveram-no em pormenor, bem como as reuniões preparatórias. (quadro de Paula Rego)

O assassinato foi cometido quando a Família Real, regressada de Vila Viçosa, passava de carruagem pelo Terreiro do Paço, à esquina da Rua do Arsenal. Eram quase cinco da tarde do dia 1 de Fevereiro de 1908. Ao tentar defender a sua família D. Luís Filipe conseguiu ainda atingir um dos assassinos, sendo no entanto ferido mortalmente a tiro, sobrevivendo a seu pai muito pouco tempo. Apenas saiu ilesa ao atentado a rainha D. Amélia. O infante D. Manuel, embora ferido num braço, também escapou. Subiria ao trono como D. Manuel II.

Estas são fotografias dos regicidas. Manuel Buíça, homem de carácter expansivo e exaltado, frequentava com Alfredo Costa e Aquilino Ribeiro, o Café Gelo, no Rossio. Na altura do atentado, era professor, após passagem atribulada pelo exército. Alfredo Costa, homem rígido, empregado do comércio e caixeiro-viajante; anteriormente fora jornalista e fundara uma pequena empresa de livraria. Ambos pertenciam à Carbonária. Houve mais implicados no regícidio, mas só estes foram os autores dos disparos e acabaram abatidos pela Guarda Municipal.

Os assassinos seriam considerados nos comícios republicanos como mártires, “beneméritos da Pátria”, e houve lugar a romagens e cortejos às suas campas, onde as pessoas desfolhavam flores. Muita gente andava de luto pelos carrascos. Os seus retratos estavam colados nas lojas, e em miniaturas nas correntes dos relógios e medalhas.

As sociedades secretas tiveram papel decisivo no derrube da monarquia. O recrutamento dos seus filiados era classista: enquanto nas várias Lojas maçónicas predominavam os burgueses, frequentemente dirigentes políticos, até com assento no Parlamento, a Carbonária implantou-se nas classes populares – operários, soldados, marinheiros, artesãos. Porém, muitos dos seus responsáveis estavam também ligados às Lojas maçónicas, nomeadamente as que defendiam atividade mais radical, ou delas tinham provindo. O que se verificava na época entre a Revolta do Porto e o 5 de Outubro, era o florescimento de estruturas clandestinas sujeitas a obediência rigorosa, mais ou menos radicais, onde convergiam anarquistas, bombistas e republicanos dispostos à acção que destruísse a Monarquia (ou os “Braganças”) e o primeiro alvo a abater seria João Franco.

Enfatiza-se o envolvimento de membros da aristocracia, entre eles José de Alpoim (antigo ministro “Progressista” e, depois, convertido à República) e o Visconde de Ribeira Brava . Sobre o carácter de Alpoim, depoimento de Miguel de Unamuno: “Encontrávamo-nos juntos, Alpoim e eu, na monumental Plaza Mayor desta cidade de Salamanca, quando nos deram a notícia da morte do Rei de Portugal. Não me pareceu surpreendido, nem me parece que lhe tivesse feito grande impressão, ainda que, a que ele esperava, era a de João Franco,pelas conhecidas razões de Estado. Daí a pouco cruzámo-nos com outro português, a quem Alpoim disse: “Olha, já morreu o canalha!”. E era seu ex-ministro! Fiquei gelado. Avistando-se ambos, pouco mais tarde nesse dia, com Guerra Junqueiro, que também se encontrava em Salamanca, de repente Alpoim parou e disse: “Sabem? Vou mandar um telegrama de pêsames e condolências à Rainha”. Os olhos do poeta,olhos de águia, chisparam. E disse ”Não, não faça tal. Não pode fazê-lo, não deve fazê-lo! Nem que deveras sinta a morte do que foi seu Rei e seu Amo. Não, não faça tal!” Alpoim vacilou um momento; até que,murmurando qualquer coisa em português saiu a pôr o telegrama. E ao sair Alpoim, o político, Guerra, o poeta, indicando-o com o dedo, disse-me, ou melhor silvou: “Vê-o ali? Político…Bandido!” E acrescentou: “Quando voltar a Lisboa, verá que a primeira coisa que faz é ir ver a Rainha” E assim foi.”

Café Gelo no princípio do séc. passado. A fachada atual nada tem a ver com a primitiva. Foi um dos tradicionais cafés do Rossio e ponto de encontro de republicanos, maçons, socialistas, anarquistas e carbonários. Aquilino Ribeiro chamou-lhe a sede informal da ala radical da carbonária e da maçonaria. Foi lá que o atentado no Terreiro do Paço foi combinado e de lá que saíram os regicidas.

Quando ocorreu o Regicídio, Eça já tinha falecido, mas não Ramalho Ortigão. Após a implantação da República, iria requerer a Teófilo Braga a demissão do cargo na Biblioteca da Ajuda, dizendo explicitamente que se recusava a aderir ao novo regime, para não ir engrossar «o abjecto número de percevejos que de um buraco estou vendo nojosamente cobrir o leito da governação».

Aquilino Ribeiro (1885-1963) e a Seara Nova. Aquilino pertenceu na juventude ao grupo carbonário, chefiado por Alfredo Costa, um dos regicidas. Autor, entre outros romances, de Andam Faunos pelos Bosque, A Casa Grande de Romarigães, O Malhadinhas e Quando os Lobos Uivam. Foi proposto para o Nobel da Literatura. Na sua obra é evidente a crítica à opressão política. Na juventude foi militante anti-monárquico, tendo feito parte duma célula da Carbonária. Desse período há a registar intensa propaganda republicana em jornais. O rebentamento acidental duma bomba, que estava a ser manufaturada em sua casa, causou a morte de dois correligionários e a sua própria prisão (1907). Conseguiu evadir-se e exilar-se em França, regressando a Portugal com a eclosão da Grande Guerra. São da sua autoria os principais relatos conhecidos do período revolucionário que conduziria ao Regicídio.

O Rei inesperado, assumiu as primeiras resoluções: demissão de João Franco e criação de um governo de “acalmação nacional”, chefiado por uma personalidade independente. Mas, a demissão de Franco vinha legitimar os revolucionários. Sucederam-se novos governos, minados por intrigas e quezílias. A pobreza do país era grande, bem como o descontentamento do pequeno proletariado urbano.

D. Manuel II aproxima-se do partido socialista que, embora sem representação parlamentar, tinha implantação junto dos operários e não exigia a mudança de regime. Procurava maior justiça social e, deste modo, retirar base de apoio aos republicanos. Mas já não teve tempo. A revolução saiu à rua.

«A proclamação da Republica foi feita no edificio da Camara Municipal ás 9 horas da manhã; fóra, no largo do municipio aglomerava-se uma multidão enorme./ O sr. Dr. Eusebio Leão, membro do Directorio, abeirou-se da varanda dos Paços do concelho, e falando enthusiasticamente ao povo, declarou que a Republica acabava de substituir o regimen monarchico no governo da nação./ …

…A seguir, e no meio de uma ovação doida, o sr. Dr. Eusebio Leão accrescenta que sendo o povo portuguez um povo respeitador da liberdade, desnecessário lhe seria recommendar a maior prudência e o maior socego./ A ordem está restabelecida, diz o ilustre membro do directorio , e no regimen republicano cabem todas as aspirações, todas as vontades generosas./ A republica é um regimen de perfeita liberdade./ Comportem-se, pois, todos, dentro da maxima tranquilidade./ Concluida esta fala, o sr Innocencio Camacho, outro membro do Directorio lê ao povo os nomes das pessoas que constituem o novo governo provisorio, que atraz publicamos, nomeado pouco antes.» in Diario de Noticias, quinta feira, 6 de Outubro de 1910.

“Nesta casa, a Rainha D. Amélia tomou uma refeição antes do seu embarque para o exílio em 5 de Outubro de 1910”, Liga dos Amigos da Ericeira/ 5 de Outubro de 1990

Leituras aconselhadas: Onde a monarquia acaba e a república começa. Ericeira, 5 de Outubro de 1910, Mar de Letras Editora; Aclarando a verdade, João Jorge Moreira de Sá, Mar de Letras Editora; Rei D. Carlos, Margarida Magalhães Ramalho, Círculo de Leitores; Os últimos dias da monarquia, Jorge Morais, Zéfiro; Regicídio: a contagem decrescente, Jorge Morais, Zéfiro;

Ericeira Um lugar na literatura, Sebastião Diniz, Mar de Letras Editora; D. Carlos I Rei de Portugal, Jean Pailler; Um escritor confessa-se, Aquilino Ribeiro, Bertrand Editora; El Rei D. Carlos, o Martirizado, Ramalho Ortigão, 1908; História de Portugal, dirigida por João Medina, Vol XI a XIII; História de Portugal, direcção de José Mattoso.

Agradecimentos a Pedro F. Pinheiro, Luisa Rocha e Diamantina Madeira

Veja o vídeo:

Sophia e o espírito do mar

É um vulto feminino envergando uma túnica branca, os pés descalços na areia molhada. É o extenso areal da Meia-Praia. Antigamente, mesmo em setembro, as dunas estavam desertas e no ligeiro declive mais atrás havia, aqui e ali, alfarrobeiras que deixavam um odor intenso. Via-se a escola, o recorte da baía e a linha férrea onde, de tempos a tempos, passava um comboio vagaroso que anunciava aos silvos a sua aproximação.
Mas também em Cacela, o mesmo vulto se vislumbra. A língua de areia separa a vila do oceano. Ao entardecer daquele pequeno largo junto à Fortaleza vêm-se pessoas à procura de lingueirões e conquilhas, na ria estão demarcados os viveiros de ostras. O mar é azul, desfaz-se em espuma branca. Os pés imprimem marcas, há gaivotas planando. De pequenos orifícios na areia emergem caranguejos. Adiante jaz uma alforreca esponjosa trazida pela maré cheia. Fitas de algas, conchas, búzios e, mesmo junto à linha de água, calhaus rolados. E um solo lodoso.
É dessas praias, das falésias e rochas, desse mar, às vezes verde, outras, azul, às vezes sereno outras vezes bravio, dessa luz, do rebentar das suas vagas, dos odores, da magia, – que a poesia parte e regressa, descobre, inventa e justifica. Mar de pescadores e marinheiros, das viagens, das ilhas, dos naufrágios e das descobertas. O mar – para quem tem o privilégio de o desfrutar, espaço de apaziguamento, gestor do equilíbrio cósmico. Pelo mar, reconciliamo-nos com a vida e percebemos de modo agudo o sentido da Verdade e da Justiça.
O vulto é o espírito do mar. Nele habitam seres assombrosos – os deuses fantásticos que representam o destino, os conflitos, os medos, os desafios e a morte. Nesse espírito transparece o fascínio pelas grutas, amostras do fundo do mar. Este é límpido e transparente, milagre de cores e formas, carregadas de símbolos. A medusa e a inevitabilidade do desconhecido. Os cascos de velhos veleiros de mastros partidos cobertos por limos, como farrapos da nossa memória. As ilhas, expressão da alegria de estar vivo e no fulgor da vida, mito do eterno retorno, como de Ulisses a Ítaca, para a sua renovação ou ressurreição. Mas também a solidão e a saudade dos que, como Penélope, aguardavam o seu regresso. E, sempre o mar.
É o espírito do mar, que transparece da poesia de Sophia de Melo Breyner Andresen. Com ele, tudo começou.
O vulto que deambula pela praia, transporta a simplicidade essencial coexistindo com a erudição e a paixão pela cultura grega. Mas, também nela se encontra inscrito o amor. Eros, Apolo, Teseu são deuses belos, irresistíveis e cúmplices das paixões humanas. Como não levantar os olhos para a majestade de uma estátua e de não projetar nela a admiração pela grandeza de quem se ama?
O mergulho metafórico no mar leva Sophia ao encontro de tudo aquilo que é ancestral na cultura greco-romana – das tradições, lendas e mitos, patentes nas tragédias e poesia clássicas. Quem foi o deus, diante de cujos cânticos as folhas se curvavam para melhor escutar? Quem, generoso e forte, teve coragem de desafiar a bestialidade e a opressão? Quem, depois de grave perda, cometeu o erro de olhar para trás e não perceber que algo que já foi, jamais regressa? Quem sonhou os maiores cometimentos, mas não teve a sensatez de medir as dificuldades, os riscos de queda e ao soçobrar, mudar para sempre o curso da sua vida? Quem eram as divindades que personificavam o rancor, a cobiça, o ciúme e a inveja? Como sair de um labirinto, construído para nos desorientar e perder? Onde encontrar o fio de Ariadne que nos auxilie nos labirintos da vida?

Deuses pagãos ou o mesmo único Deus, telúrico, cristão, eis uma questão em aberto. Mas talvez a resposta esteja na procura do cristianismo através da limpidez das águas, do encantamento das praias, dos símbolos das lendas antigas. Mas também, no louvor da coragem e generosidade dos que nada para si quiseram, quando tudo podiam ter exigido. Dos heróis modestos que se levantaram quando era preciso, mas que se desvaneceram ao entender que o seu papel estava cumprido. Daqueles, cujo sofrimento exige reparação, para que os justos prevaleçam, pelo menos para que se faça justiça à sua memória. É uma liturgia feita de palavras solares, luminosas segundo os princípios da Liberdade.

Na obra de Sophia têm papel incontornável os contos infantis. Fantasias maravilhosas protagonizadas por crianças em ambientes mágicos. Sempre o mar e a praia, mas também a floresta e animais, e com a presença de fadas, anões, animais humanizados, sempre numa perspetiva ética, no seu apelo à Harmonia e Natureza. Como esquecer A Menina do Mar e dos seus amigos caranguejo, polvo e peixe…

Folhear Uma vida de poeta, além de manuscritos, alguns inéditos, é descobrir reflexões, desenhos, postais, fac-simile da capa dos seus livros, vê-la com o marido Francisco Sousa Tavares e os filhos, e no meio de amigos. De repente, recordar, também, Eugénio de Andrade, Agustina, Jorge de Sena, João Gaspar Simões, Graça Morais, Miguel Torga, José Régio, José Cardoso Pires, João Bénard da Costa, Ruben A., Luis Lindley Cintra e tantos outros. Causa um frémito esta amostra do espólio de Sophia.
Em Lisboa, no bairro da Graça, onde Sophia morou, é possível ver o Tejo, como também o Castelo de S. Jorge. Da sua janela talvez tivesse imaginado as viagens antigas e as descobertas, como o Cabo Bojador e Gil Eanes, que ao dobrá-lo derrotou o medo e os preconceitos antigos. Mas não só no Tejo, nem nas navegações henriquinas. Desde criança, muitos momentos felizes passaram-se na Praia da Granja (Gaia), de que faz relatos das dunas e da Casa da Praia. Aliás, as Casas, como a de Campo Alegre, grandes ou pequenas, têm descrições vivas por toda a sua obra. Fala dos jardins, dos quartos, dos objetos que neles havia, na tentativa de materializar a memória deles. As Casas, local de refúgio e de segurança, em contraponto à Cidade, hostil e desumanizada.
O espírito do mar adensou-se na descoberta do Algarve, nas suas viagens às ilhas gregas e dos Açores, como nas viagens a Macau e Timor, nas leituras dos clássicos, talvez trazido por um seu bisavô que, de uma ilha da Dinamarca, embarcou à aventura e arribou ao Porto. A ele se atribui a frase que tão próxima é de si. “O mar é o caminho para minha casa”. O espírito do mar em Sophia.

FM

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen (1912-2004), natural do Porto, proveio de uma família tradicional e aristocrática. Quando nasceu, seu avô recebeu um cartão da rainha D. Amélia felicitando-o pelo nascimento da sua neta Andresen (o pai de Sophia era dinamarquês). Viveu uma infância feliz e dessa época – dos jardins da casa de família, das férias passadas na praia da Granja, veio material que aparece projectado nos seus contos infantis. Aos 10 anos foi viver para Lisboa e, depois, durante a frequência do Curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras, nasceu a paixão pela mitologia grega. (Desenho de Arpad Szenes)

Na sua poesia está patente o ideal de beleza das esculturas e cerâmica clássicas como dos mitos, relatos e suas interpretações, feitos ao longo de toda a Antiguidade na poesia ou no teatro. Mas também o mar, o sol, não só das ilhas gregas como do Algarve de Lagos. E a luta pela Liberdade e pela Justiça.

Casou-se com Francisco Sousa Tavares, que foi dos principais oposicionistas do regime de Salazar, como também durante o PREC, senhor de uma escrita vigorosa, galvanizou a maioria do povo, atordoada pela nova tentativa totalitária. Ao lado do marido, Sophia teve uma militância política ativa. Integrou a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos, subscreveu o “Manifesto dos 101”, um documento com críticas desassombradas ao salazarismo. Já depois do 25 de Abril, foi eleita deputada à Assembleia Constituinte, nas listas do Partido Socialista (fotografia de João Cutileiro)

“Lagos onde reenventei o mundo num verão ido/ Lagos onde encontrei/ Uma nova forma do visível sem memória/ Clara como a cal concreta como a cal/ Lagos onde aprendi a viver rente/ Ao instante mais nítido e recente// Lagos que digo como passado agora/ Como verão ido absurdamente ausente//Quase estranho a mim e nunca tido”

“Foi um país que encontrei de frente/ Desde sempre esperado e prometido/ O puro dom de ter nascido/ E o sol reinava em Lagos transparente”

“Lagos lição de lucidez e liso/ Onde estar vivo se torna mais completo/ – Como pode meu ser ser distraído/ De sua luz de prumo e de projecto?”

“Ou poderemos Abril ter perdido/ O dia inicial inteiro e limpo/ Que habitou nosso tempo mais concreto?/ Será que vamos paralelamente/ Relembrar e chorar como um verão ido/ O país linear e transparente//E sua luz de prumo e de projecto

“Em Lagos/ Virada para o mar como a outra Lagos/ Muitas vezes penso em Leopoldo Sedar Senghor:/ A precisa limpidez de Lagos onde a limpeza/ É uma arte poética e uma forma de honestidade/ Acorda em mim a nostalgia de um projecto/ Racional limpo e poético// Os ditadores – é sabido – não olham para os mapas/ Suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões/ O seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos/ Jovens corpos mortos ao longo das extensões/ Na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil/ Aceitar o confuso o disforme a ocultação//…

…Na nitidez de Lagos onde o visível/ Tem recorte simples e claro de um prjecto/ O meu amor da geometria e do concreto/ Rejeita o balofo oco da degradação// Na luz de Lagos matinal e aberta/ Na praça qudrada tão concisa e grega/ Na brancura da cal tão veemente e directa/ O meu país se invoca e projecta.”

A CONQUISTA DE CACELA: As praças fortes foram conquistadas /Por seu poder e foram sitiadas/ As cidades do mar pela riqueza //Porém Cacela /Foi desejada só pela beleza

PRAIA: “Os pinheiros gemem quando passa o vento/ O sol bate no chão e as pedras ardem./ Longe caminham os deuses fantásticos do mar/ Brancos de sal e brilhantes como peixes.// Pássaros selvagens de repente,/ Atirados contra a luz como pedradas,/ Sobem e morrem no céu verticalmente/ E o seu corpo é tomado nos espaços./ As ondas marram quebrando contra a luz/ A sua fronte ornada de colunas.// E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro/ Baloiça nos pinheiros.”

“Reino de medusas e água lisa/ Reino de silêncio luz e pedra/ Habitação das formas espantosas/ Coluna de sal e círculo de luz/ Medida da Balança misteriosa”

A ANÉMONA DOS DIAS: Aquele que profanou o mar / E que traiu o arco azul do tempo / Falou da sua vitória // Disse que tinha ultrapassado a lei / Falou da sua liberdade / Falou de si próprio como de um Messias// Porém eu vi no chão suja e calcada / transparente anémona dos dias.

“Para atravessar contigo o deserto do mundo/ Para enfrentarmos juntos o terror da morte/ Para ver a verdade, para perder o medo/ Ao lado dos teus passos caminhei// Por ti deixei meu reino meu segredo/ Minha rápida noite meu silêncio/ Minha pérola redonda e seu oriente/ Meu espelho minha vida minha imagem/ E abandonei os jardins do parais// Cá fora à luz sem véu do dia duro/ Sem os espelhos vi que estava nua/ E ao descampado se chamava tempo// Por isso com teus gestos me vestiste/ E aprendi a viver em pleno vento.”

“Bebido o luar, ébrios de horizontes,/ Julgamos que viver era abraçar/ O rumor dos pinhais, o azul dos montes/ E todos os jardins verdes do mar.// Mas solitários somos e passamos,/ Não são nossos os frutos nem as flores,/ O céu e o mar apagam-se exteriores/ E tornam-se os fantasmas que sonhamos.// Por que jardins que nós não colheremos,/ Límpidos nas auroras a nascer,/ Por que o céu e o mar se não seremos/ Nunca os deuses capazes de os viver”

UM DIA: Um dia, gastos, voltaremos/ A viver livres como os animais/ E mesmo tão cansados floriremos/ Irmãos vivos do mar e dos pinhais.//O vento levará os mil cansaços/ Dos gestos agitados irreais/ E há-de voltar aos nosso membros lassos/A leve rapidez dos animais.//Só então poderemos caminhar/ Através do mistério que se embala/ No verde dos pinhais na voz do mar/ E em nós germinará a sua fala.

“Se todo o ser ao vento abandonamos/ E sem medo nem dó nos destruímos,/ Se morremos em tudo o que sentimos/ E podemos cantar, é porque estamos/ Nus em sangue, embalando a própria dor/ Em frente às madrugadas do amor./ Quando a manhã brilhar refloriremos/ E a alma possuirá esse esplendor/ Prometido nas formas que perdemos.”

DE UM AMOR MORTO: “De um amor morto fica/ Um pesado tempo quotidiano/ Onde os gestos se esbarram/ Ao longo do ano// De um amor morto não fica/ Nenhuma memória/ O passado se rende/ O presente o devora/ E os navios do tempo/ Agudos e lentos/ O levam embora// Pois um amor morto não deixa/ Em nós seu retrato/ De infinita demora/ É apenas um facto/ Que a eternidade ignora”

AS PESSOAS SENSIVEIS: “As pessoas sensíveis não são capazes/ De matar galinhas/ Porém são capazes/ De comer galinhas// O dinheiro cheira a pobre e cheira/ À roupa do seu corpo/ Aquela roupa/ Que depois da chuva secou sobre o corpo/ Porque não tinham outra/ O dinheiro cheira a pobre e cheira/ A roupa/ Que depois do suor não foi lavada/ Porque não tinham outra// “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”/ Assim nos foi imposto/ E não:/ “Com o suor dos outros ganharás o pão.”// Ó vendilhões do templo/ Ó constructores/ Das grandes estátuas balofas e pesadas/ Ó cheios de devoção e de proveito// Perdoai-lhes Senhor/ Porque eles sabem o que fazem.”

“Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo//Mal de te amar/ neste lugar de imperfeição/ Onde tudo nos quebra e emudece/ Onde tudo nos mente e nos separa”

“A hora da partida soa quando / Escurece o jardim e o vento passa, // Estala o chão e as portas batem, quando / A noite cada nó em si deslaça. //A hora da partida soa quando / as árvores parecem inspiradas / Como se tudo nelas germinasse. //Soa quando no fundo dos espelhos / Me é estranha e longínqua a minha face / E de mim se desprende a minha vida.”

Fortaleza de Sagres

IMPROVISO QUASE RELIGIOSO… Discordarei do mar/ enquanto a terra me for tão próxima/ tenho saudades de ondas/ que façam parte de nós/ e nos prolonguem/ já nos vimos tão perto/ de todos os cais/ já tivemos um pé/ em todos os barcos/ já fomos livres/ de nos prendermos/ talvez nos falte apenas a sabedoria /do amanhecer ou do pôr-do-sol/ uma espécie de livro sagrado/ antes da sagração de todos os deuses.”

O POEMA: “O poema me levará no tempo/ Quando eu já não for eu/ E passarei sozinha/ Entre as mãos de quem lê// O poema alguém o dirá/ Às searas// Sua passagem se confundirá/ Como rumor do mar com o passar do vento// O poema habitará/ O espaço mais concreto e mais atento/ No ar claro nas tardes transparentes/ Suas sílabas redondas// (Ó antigas ó longas/ Eternas tardes lisas)//Mesmo que eu morra o poema encontrará/ Uma praia onde quebrar as suas ondas// E entre quatro paredes densas/ De funda e devorada solidão/ Alguém seu próprio ser confundirá/ Com o poema no tempo/”

O mar azul e branco e as luzidias/ Pedras – O arfado espaço/ Onde o que está lavado se relava/ Para o rito do espanto e do começo/ Onde sou a mim mesma devolvida/ Em sal espuma e concha regressada/ À praia inicial da minha vida.

Aqui nesta praia onde/ Não há nenhum vestígio de impureza/ Aqui onde há somente/ Ondas tombando/ininterruptamente. /Puro espaço e lúcida unidade.

Na luz oscilam os múltiplos navios/ Caminho ao longo dos oceanos frios// As ondas desenrolam os seus braços/ E brancas tombam de bruços// A praia é lis e longa sob o vento/ Saturada de espaços e maresia// E para trás fica o murmúrio//Das ondas enroladas como búzios.

AÇORES: “Há um intenso orgulho/Na palavra Açor /E em redor das ilhas/O mar é maior/ Como num convés/ Respiro amplidão/ No ar brilha a luz/ Da navegação//Mas este convés é de terra escura de lés a lés/ Prado agricultura/ É uma terra lavrada /Por navegadores/ E os que no mar pescam/ São agricultores//Por isso há nos homens /Aprumo de proa/ E não sei que sonho/ Em cada pessoa /As casas são brancas/ Em luz de pintor /Quem pintou as barras/ Afinou a cor//Aqui o antigo/Tem o limpo do novo./É o mar que traz/ Do largo o renovo//…

…E como num convés /De intensa limpeza /Há no ar um brilho/ De bruma e clareza//É convés/ lavrado/ Em plena amplidão/ É o mar que traz/ As ilhas na mão//Buscámos no mundo/ Mar e maravilhas/ Deslumbradamente/ Surgiram nove ilhas//E foi na Terceira/ Com o mar à proa/ Que nasceu a mãe/ Do poeta Pessoa//Era cujo poema/ Respiro amplidão/ E me cerca a luz/ Da navegação//Em cujo poema/ Como num convés/ A limpeza extrema/Luz de lés a lés//Poema onde está/A palavra pura/De um povo cindido /Por tanta aventura.”

GRUTA DE CAMÕES: “Dentro de mim sobe a imagem dessa gruta/ Cujo silêncio ainda escuta/ Os teus gestos e os teus passos.// Aí, diante do mar como tu transbordante/ De confissão e segredo,/ Choraste a face pura/ Das brancas amadas/ Mortas tão cedo.”

Heraclito de Epheso diz: “O pior de todos os males seria/ a morte da palavra”// Diz o provérbio do Malinké: “Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento/ Mas não pode/ Enganar-se na sua parte de palavra”

PORQUE: “Porque os outros se mascaram mas tu não/ Porque os outros usam a virtude/ Para comprar o que não tem perdão/ Porque os outros têm medo mas tu não//Porque os outros são os túmulos caiados/ Onde germina calada a podridão./ Porque os outros se calam mas tu não.//Porque os outros se compram e se vendem/ E os seus gestos dão sempre dividendo./ Porque os outros são hábeis mas tu não.//Porque os outros vão à sombra dos abrigos/ E tu vais de mãos dadas com os perigos./ Porque os outros calculam mas tu não”. (Apolo)

Chimera Apulia Louvre

“As três Parcas que tecem os errados/ Caminhos onde a rir atraiçoamos /O puro tempo onde jamais chegamos/ As três Parcas conhecem os maus fados//Por nós elas esperam nos trocados/ Caminhos onde cegos nos trocamos/ Por alguém que não somos nem amamos/ Mas que presos nos leva e dominados.//E nunca mais o doce vento aéreo/ Nos levará ao mundo desejado/ E nunca mais o rosto do mistério//Será o nosso rosto conquistado/ Nem nos darão os deuses o império/ Que à nossa espera tinham inventado.”

DIONYSOS: “Entre as árvores escuras e caladas/ O céu vermelho arde,/ E nascido da secreta cor da tarde/ Dionysos passa na poeira das estradas// A abundância dos frutos de Setembro/ Habita a sua face e cada membro/ Tem essa perfeição vermelha e plena,/ Essa glória ardente e serena/ Que distinguia os deuses dos mortais.”

ânfora

As aventuras de Teseu são referidas desde a Antiguidade na literatura e cerâmica, com diferentes interpretações e relatos. A sua origem é obscura – descende longinquamente de Zeus, e é filho de Posídon. No entanto, Egeu, rei de Atenas, julga-o seu filho. Quando Teseu nasce, Egeu já desesperava por descendência e temendo a cobiça dos seus sobrinhos, que ambicionavam a sucessão, deixou-o entregue à mãe e avô, recomendando que ele só viesse para Atenas quando fosse suficientemente forte. É na adolescência que Teseu parte, lutando e matando diversos monstros sanguinários.

O Minotauro nasceu da união contra-natura de Pasífae, esposa de Minos, com um toiro belíssimo, que Posídon fizera sair do mar, como prova do favor divino que fizera Minos reinar em Creta. Minos prometeu sacrificá-lo mas não cumpriu a promessa. Furioso, Posídon enlouqueceu o toiro que devastava toda a ilha e fez despertar uma paixão louca de Pasífae pelo animal. Dédalo, arquitecto ateniense exilado em Creta, a pedido de Pasífae, constrói uma vaca oca de madeira, dentro da qual a rainha se escondeu, enganando o toiro, e, assim, conseguir unir-se a ele.

O Minotauro tinha corpo de homem e cabeça de touro, era extremamente feroz e alimentava-se de carne humana. Minos, aterrado e envergonhado, mandou construir um intrincado labirinto, do qual ninguém conseguia sair, e prendeu o Minotauro no seu interior. Segundo a lenda, o Labirinto, foi também construído por Dédalo, que o fez cheio de desvios enganosos, sinuosidades, comunicações inumeráveis, como o rio Meandro. Quem entrasse, mal acabasse de sair, logo se introduzia noutro labirinto.

Como tributo de uma guerra travada contra Atenas, motivada pela morte de seu filho Androgeu, Minos exigiu que os atenienses mandassem anualmente a Creta sete rapazes e sete moças, que seriam oferecidos para alimento do Minotauro. Se o Minotauro morresse, o tributo cessaria. Teseu decide incorporar um desses grupos. É introduzido no Labirinto, liquida o monstro e consegue sair daquele dédalo, graças à ajuda de Ariane, filha de Minos, que por ele se apaixonara. Ariane entregou-lhe um novelo de fio que Teseu deveria ir desenrolando quando entrasse no Labirinto, o qual lhe indicaria o caminho de regresso. O Fio de Ariane.

Eliminado o monstro, Teseu parte de Creta com Ariadne que depois abandona na ilha de Naxos, onde Dioniso a encontra, desposa e leva para o Olimpo. Toda a vida de Teseu é repleta de aventuras.

Labirinto de Cnossos – As ruínas que hoje perduram em Cnossos são as do edifício destruído no século XIV AC, mas a sua estrutura não deve ser muito diferente do que o antecedeu. Era um edifício quase quadrado, de cerca de cento e cinquenta metros de lado, com um amplo espaço aberto ao centro, de forma rectangular. Para José Ribeiro Ferreira, o Labirinto simboliza a complexidade e insolubilidade da vida actual e Minotauro, algo de monstruoso que nasce do homem e que cada um arrasta consigo – tempo que tudo devora, paixões e desejos, poder económico.

TESEU E MINOTAURO “Assim o “Minotauro longo tempo latente/ De repente salta sobre a nossa vida /Com veemência vital de monstro insaciado”

O MINOTAURO: “Em Creta/ Onde o Minotauro reina/ Banhei-me no mar// Há uma rápida dança em frente de um toiro/ Na antiquíssima juventude do dia// Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu/ Só bebi retsina tendo derramado na terra a parte que pertence aos deuses// De Creta Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas/ Para inteiramente acordada comungar a terra/ De Creta/ Beijei o chão como Ulisses/ Caminhei na luz nua// Devastada era eu própria como a cidade em ruína/ Que ninguém reconstruiu/ Mas o sol dos meus pátios vazios/ A fúria reina intacta/ E penetra comigo no interior do mar/ Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos/ E reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor/ E o mar de Creta por dentro é todo azul/ Oferenda incrível de primordial alegria/ Onde o sombrio Minotauro navega/ Pinturas ondas colunas e planícies/…

…Em Creta/ Inteiramente acordada atravessei o dia/ E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos/ Palácios sucessivos e roucos/ Onde se ergue o respirar de sussurrada treva/ E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e terror/ Imanentes ao dia -/ Caminhei no palácio dual de combate e confronto/ Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais// Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu/ O Dionysinos que dança comigo na vaga não se vende em nenhuma mercado negro/ Mas cresce como flor daqueles cujo ser/ Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne/ E esta é a dança do ser//

..Em Creta/ Os muros de tijolo da cidade minóica/ São feitos de barro amassado com algas/ E quando me virei para trás da minha sombra/ Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro//Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga/ De olhos abertos inteiramente acordada/ Sem drogas e sem filtro/ Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas -/ Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto/ Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.”

LABIRINTO: “Sózinha caminhei no labirinto/ Aproximei meu rosto do silêncio e da treva/ Para buscar a luz dum dia limpo.”

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA OU O ITINERÁRIO INELUTÁVEL: “Minúcia é o labirinto muro por muro/ Pedra contra pedra livro sobre livro/ Rua após rua escada após escada/ Se faz e se desfaz o labirinto/ Palácio é o labirinto e nele/ Se multiplicam as Salas e cintilam/ Os quartos de Babel roucos e vermelhos/ Passado é o labirinto: seus jardins afloram/ E do fundo da memória sobem as escadas/ Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta/ Biblioteca rede inventário colmeia-/Itinerario é o labirinto/ Como o subir dum astro inelutável-/ Mas aquele que o percorre não encontra/ Toiro nenhum solar nem sol nem lua/ Mas só o vidro sucessivo do vazio/ E um brilho de azulejos íman frio/ Onde os espelhos devoram as imagens/ Exauridos pelo labirinto caminhamos/ Na minúcia da busca na atenção da busca/ Na luz mutavel: de quadrado em quadrado/ Encontramos desvios redes e castelos/ Torres de vidro corredores de espanto// Mas um dia emergiremos e as cidades/ Da equidade mostrarão sen branco/ Sua cal sua aurora seu prodígio”

A amizade entre Sophia e Maria Helena Vieira da Silva é comprovada em numerosa correspondência. Uma estreita relação de cumplicidades pessoais, não só na vida como na arte, ou seja entre e a pintura e a poesia. Maria Helena ilustrou poemas de Sophia, como esta utilizou títulos de quadros e elementos da obra da pintora na sua poesia. Há menção a bibliotecas, ruas, cidades, quartos, ateliers de Vieira da Silva. O labirinto dos elementos da pintura como as linhas, cores, formas geométricas, com paredes que se movem e espelhos, todos contribuindo para a desorientação, é percorrido pela voz poética de Sophia que nos sugere espaços reconhecíveis mas intermináveis. Noutro poema é a atenção do olhar como condição prévia à escrita (Vieira da Silva: Atenta antena/Athena) . Noutro ainda, estar dentro do quadro e pintar o quadro, num tríptico sobre Maria Helena, Arpad e a pintura.

VIEIRA DA SILVA: “Atenta antena/ Athena/ De olhos de coruja/ Na obscura noite lúcida”

TRÍPTICO OU MARIA HELENA, ARPAD E A PINTURA: Eles não pintam o quadro: estão dentro do quadro//II Eles não pintam o quadro: julgam que estão dentro do quadro// III Eles sabem que não estão dentro do quadro: pintam o quadro

TÚMULO DE LORCA: “Em ti choramos os outros mortos todos/ Os que foram fuzilados em vigílias sem data/ Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias/ Tão ignorados que nem sequer podemos/ Perguntar por eles imaginar seu rosto/ Choramos sem consolação aqueles que sucumbem/ Entre os cornos da raiva sob o peso da força// Não podemos aceitar. O teu sangue não seca/ Não repousamos em paz na tua morte/ A hora da tua morte continua próxima e veemente/ E a terra onde abriram a tua sepultura/ É semelhante à ferida que não fecha// O teu sangue não encontrou nem foz nem saída/ De Norte a Sul de leste a Oeste/ Estamos vivendo afogados no teu sangue/ A lisa cal de cada muro branco/ Escreve que tu foste assassinado// Não podemos aceitar. O processo não cessa/ Pois nem tu foste poupado à patada da besta/ A noite não pode beber nossa tristeza/ E por mais que te escondam não ficas sepultado.”

SALGUEIRO MAIA: “Aquele que na hora da vitória/ Respeitou o vencido// Aquele que deu tudo e não pediu a paga// Aquele que na hora da ganância/ Perdeu o apetite// Aquele que amou os outros e por isso/ Não colaborou com sua ignorância ou vicio.// Aquele que foi «Fiel a palavra dada à ideia tida»/ Como antes dele mas também por ele/ Pessoa disse”

25 DE ABRIL: “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”

Na mitologia grega, Orpheu era o poeta mais talentoso que alguma vez existira. Diante da beleza do seu canto, os pássaros deixavam de voar para escutá-lo, os animais selvagens perdiam o medo, as sereias responsáveis pelos naufrágios ficavam silenciosas e os monstros encantavam-se.

“Orpheu/ seu canto alto e grave/ O canto de oiro o êxtase da lira/ Orpheu/ A palidez sagrada de seu rosto/ Que de clarões e sombras se ilumina/ Ante seus pés se deitam mansas feras/ Vencidas pela música divina” (Orfeu rodeado de animais, Museu Cristão-Bizantino, Atenas)

Orpheu apaixonou-se pela bela ninfa dos arvoredos, Eurídice, e casou com ela. Porém, Eurídice é mordida por uma serpente e morre. Transtornado, Orpheu vai ao Mundo dos Mortos, tentar resgatá-la. Lá, o Rei dos Mortos comoveu-se com a tristeza da música de Orpheu e permitiu que ele a trouxesse de volta, mas, com uma condição: que não olhasse para ela, até que Eurídice, de novo, estivesse à luz do sol.

No regresso, Orpheu tocava músicas de alegria e celebração que guiavam a sombra de Eurídice. Porém, ao chegar à luz do sol, Orpheu virou-se para se certificar de que ela o seguia. Ainda a viu, mas Eurídice transformou-se de novo em fantasma. Perdera-a para sempre. A mágoa deixou-o amargo, recusando-se a olhar para qualquer outra mulher. Até ser morto, errou por terras da Grécia. Foram musas chorosas que o enterraram no Olimpo. Dizem que, desde então, os rouxinóis das proximidades cantam mais docemente que os outros.

ELEGIA: Aprende/ A não esperar por ti pois não te encontrarás// No instante de dizer sim ao destino/ Incerta paraste emudecida/ ? os oceanos depois devagar te rodearam// A isso chamaste Orpheu Eurydice —/ Incessante intensa lira vibrava ao lado/ Do desfilar real dos teus dias / Nunca se distingue bem o vivido do não vivido/ O encontro do fracasso —./ Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta/ Quando se ergue o canto/ Por isso a memória sequiosa quer vir à tona/ Em procura da parte que não deste/ No rouco instante da noite mais calada/ Ou no secreto jardim à beira rio/ Em Junho

“Eurydice perdida que no cheiro /E nas vozes do mar procura Orpheu:/ Ausência que povoa terra e céu/ E cobre de silêncio o mundo inteiro.//Assim bebi manhãs de nevoeiro/E deixei de estar viva e de ser eu/Em procura de um rosto que era o meu/ O meu rosto secreto e verdadeiro.//Porém nem nas marés nem na miragem/ Eu te encontrei. Erguia-se somente/ O rosto liso e puro da paisagem.//E devagar tornei-me transparente/ Como morta nascida à tua imagem/ E no mundo perdida esterilmente.”

FÚRIAS: “Escorraçadas do pecado e do sagrado/ Habitam agora a mais íntima humildade/ Do quotidiano. São/ Torneira que se estraga atraso de autocarro/ Sopa que transborda na panela /Caneta que se perde aspirador que não aspira/ Táxi que não há recibo extraviado/ Empurrão cotovelada espera/ Burocrático desvario// Sem clamor sem olhar/ Sem cabelos eriçados de serpentes/ Com as meticulosas mãos do dia-a-dia/ Elas nos desfiam// Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno/ Sem rosto e sem máscara/ Sem nome e sem sopro/ São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria// Já não perseguem sacrílegos e parricidas/ Preferem vítimas inocentes/ Que de forma nenhuma as provocaram/ Por elas o dia perde seus longos planos lisos/ Seu sumo defruta/ Sua fragrância de flor/ Seu marinho alvoroço/ E o tempo é transformado/ Em tarefa e pressa/ A contra tempo.”

PÁTRIA: “Por um país de pedra e vento duro/ Por um país de luz perfeita e clara/Pelo negro da terra e pelo branco do muro//Pelos rostos de silêncio e de paciência/ Que a miséria longamente desenhou/ Rente aos ossos com toda a exactidão/ Dum longo relatório irrecusável// E pelos rostos iguais ao sol e ao vento// E pela limpidez das tão amadas/ Palavras sempre ditas com paixão/ Pela cor e pelo peso das palavras/ Pelo concreto silêncio limpo das palavras/ Donde se erguem as coisas nomeadas/ Pela nudez das palavras deslumbradas//— Pedra rio vento casa/ Pranto dia canto alento / Espaço raiz e água / Ó minha pátria e meu centro/ /Me dói a lua me soluça o mar/ E o exílio se inscreve em pleno tempo” (Vieira da Silva/ Naufrágio)

Fernando Pessoa exerceu enorme fascínio sobre Sophia: ”…Eu pertenço a uma geração que vem depois do Fernando Pessoa e que de uma certa forma não aceita essa teologia do nada, e há uma tentativa de um certo regresso à inteireza. Eu escrevi muito sobre o Fernando Pessoa porque justamente essa capacidade de não ser ninguém me faz uma certa angústia. Porque a morte não é só decomposição… também pode ser perda de identidade. Fernando Pessoa perdeu a identidade em vida, vive uma perda de identidade. Ele vive com isso percebe? É como se a vida fosse qualquer coisa que existe, mas era para ser dele, percebe?”(entrevista em 1982)

FERNANDO PESSOA: “Teu canto justo que desdenha as sombras/ Limpo de vida viúvo de pessoa/ Teu corajoso ousar não ser ninguém/ Tua navegação com bússola e sem astros/ No mar indefinido/ Teu exacto conhecimento impossessivo// Criaram teu poema arquitectura/ E és semelhante a um deus de quatro rostos/ E és semelhante a um deus de muitos nomes/ Cariátide de ausência isento de destinos/ Invocando a presença já perdida/ E dizendo sobre a fuga dos caminhos/ Que foste como as ervas não colhidas”

HOMENAGEM A RICARDO REIS: “Não creias Lídia, que nenhum estio/ Por nós perdido possa regressar/ Oferecendo a flor/ Que adiámos colher// Cada dia te é dado uma só vez/ E no redondo circulo da noite/ Não existe piedade/ Para aquele que hesita// Mais tarde será tarde e já é tarde/ O tempo apaga tudo menos esse/ Longo indelével rasto/ Que o não.vivido deixa// Não creias na demora em que te medes./ Jamais se detem Kronos cujo passo/ Vai sempre mais à frente/ Do que o teu próprio passo.”

CIDADE: “Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,/ Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,/ Saber que existe o mar e as praias nuas,/ Montanhas sem nome e planícies mais vastas/ Que o mais vasto desejo,/ E eu estou em ti fechada e apenas vejo/ Os muros e as paredes, e não vejo/ Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.// Saber que tomas em ti a minha vida/ E que arrastas pela sombra das paredes/ A minha alma que fora prometida/ Às ondas brancas e às florestas verdes.”

Vista de Lisboa do Miradouro da Senhora da Graça

Rodhes. “Desde a orla do mar/ Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim/ Desde a orla do mar/ Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas/ Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo/ Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas/ Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas/ E nadei de olhos abertos na transparência das águas/ Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa/ Para fundar no sal e na pedra o eixo recto/ Da construção possível//…

Delphos …Desde a sombra do bosque/ Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite/ E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla.// Desde a sombra do bosque desde a orla do mar//…

… Caminhei para Delphos/ Porque acreditei que o mundo era sagrado/ E tinha um centro/ Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado// Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e destruído/ As águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga/ A língua torceu-se na boca de Sibila/ A água que primeiro eu escutei já não se ouvia//…

…Só Antinoos mostrou o seu corpo assombrado/ Seu nocturno meio-dia.”

COM FÚRIA E RAIVA: “Com fúria e raiva acuso o demagogo/ E o seu capitalismo das palavras / Pois é preciso saber que a palavra é sagrada/ Que de longe muito longe um povo a trouxe/ E nela pôs sua alma confiada// De longe muito longe desde o início/ O homem soube de si pela palavra/ E nomeou a pedra a flor a água/ E tudo emergiu porque ele disse/ Com fúria e raiva acuso o demagogo/ Que se promove à sombra da palavra/ E da palavra faz poder e jogo/ E transforma as palavras em moeda/ Como se fez com o trigo e com a terra” (Casa das Atridas)

O REI DA ÍTACA: “A civilização em que estamos é tão errada que/ Nela o pensamento se desligou da mão/ Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco/ E gabava-se também de saber conduzir/ Num campo a direito o sulco do arado”

PENÉLOPE: “Desfaço durante noite o meu caminho./ Tudo quanto teci não é verdade,/ Mas tempo, para ocupar o tempo morto,/ ? cada dia me afasto a cada noite me aproximo.”

Miradouro da Senhora do Monte, Graça

O ANJO DE TIMOR: “Há muitos, muitos anos, em Timor, vivia um liurai muito poderoso e muito bom. Na sua juventude resolveu ir correr mundo, para se tornar mais sábio. /Foi viajando de barco, de ilha em ilha, até chegar a uma terra muito distante. /Ali, um dia, conheceu um mercador vindo de muito longe, dos países do lado do Poente e que, também ele, andava há longos anos no caminho./Esse mercador disse-lhe que, numa das suas viagens, tinha ouvido contar que, ainda muito mais longe, para além de montanhas, oceanos e dos imensos desertos de areia, vivia um povo que adorava um Deus único e todo-poderoso, criador do Universo e de todas as suas criaturas. E esse povo acreditava que o seu Deus, um dia, desceria à terra para salvar todos os homens. – Quero ir ao país onde mora esse povo, disse o timorense./ Quero ouvir mais notícias do Deus que um dia viverá entre nós./ – Ai, é impossível, respondeu o mercador. Esse país fica tão longe que mesmo se viajasses a tua vida inteira não conseguirias lá chegar…

…- Já vi tantos lugares e tantos povos, mas não posso encontrar o povo que adora o Deus único, porque mesmo que viajasse a vida inteira não conseguiria lá chegar. Por isso, de que me serve viajar mais?/ E voltou para a sua terra./ E enquanto dormia, ouviu em sonhos uma voz que lhe disse que esperasse, esperasse sempre, pois um dia, a meio da noite, Deus lhe mandaria um sinal….//… Daí em diante, foi sempre assim. … quando todos tinham adormecido, sentava-se de novo sozinho, à porta da sua casa, à espera de um sinal de Deus. … ia envelhecendo, mas todas as noites se sentava à entrada da sua casa, à espera do sinal de Deus. Poisava sempre ao seu lado a pequena caixa de sândalo onde estavam guardadas as pedrinhas com as quais na sua infância jogava o hanacaleic…//… E o jovem disse: /- Sou o Anjo de Timor. Alegra-te, liurai, porque o Deus que tanto tens esperado se fez homem e desceu hoje à terra. … Gaspar traz uma caixa com oiro. Melchior uma caixa com mirra e Baltasar uma caixa com incenso…

…- Quero ir com eles, exclamou o chefe timorense./- É impossível. Belém fica tão longe que nem que caminhasses a tua vida inteira lá chegarias./ – Então, Anjo, tu que és mais rápido que o pensamento, leva o meu presente ao Menino. É uma caixa de sândalo que tem lá dentro as pedras com que eu brincava ao caleic quando era pequeno. O Anjo tomou a caixa nas mãos e disse:/ – Ainda bem que te lembraste de Lhe mandar um brinquedo…//… Este Natal, de novo, o Anjo de Timor se ajoelhou e ofereceu uma vez mais a caixa de sândalo e as pedras do caleic:/ – Menino Deus, Príncipe da Paz, Deus todo Poderoso, lembra-Te do povo de Timor que por Ti foi confiado à minha guarda. Vê como não cessam de Te invocar, mesmo no meio do massacre. Senhor, libertai-os do seu cativeiro, dai-lhes a paz, a justiça, a liberdade. Dai-lhes a plenitude da Vossa graça./ Glória a Ti, Senhor!”

PARA RUY CINATTI AUSENTE EM TIMOR E ALGURES: “Aquele que partiu/ precedendo os próprios passos como um jovem morto/ deixou-nos a esperança.// Ele não ficou para connosco/ destruir com amargas mãos seu próprio rosto. Intacta é a sua ausência/ como a estátua de um deus/ poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas./ Ele não ficou para assistir/ à morte da verdade e à vitória do tempo./Que ao longe, na mais longínqua praia,/ onde só haja espuma, sal e vento,/ ele se perca, tendo-se cumprido segundo a lei do seu próprio pensamento.// E que ninguém repita o seu nome proibido.”

O poeta Ruy Cinatti esteve profundamente ligado a Timor onde viveu por várias ocasiões. Entre outras funções profissionais foi chefe dos Serviços de Agricultura. Em 1975 dirigiu uma carta ao Diário de Notícias, prevenindo o país do perigo que Timor corria, carta nunca publicada. A invasão indonésia foi para ele um golpe rude. Esta foi mais uma razão da sua proximidade com Sophia.

Sophia de Mello Breyner Andresen deixou uma obra vastíssima, principalmente na poesia. Relevo para “Dia do Mar” (1947), “Mar Novo” (1958), “O Cristo Cigano” (1961), “Livro Sexto” (1962), “O Nome das Coisas” (1977), “Ilhas” (1989), “O Buzio de Coz” (1997), Orpheu e Eurydice (2001). Na ficção, contos para crianças como “A Menina do Mar” (1958), “A Floresta” (1968) ou “Noite de Natal” (1960), contos para adultos “Contos Exemplares” (1962) e “Histórias da Terra e do Mar” (1984). Escreveu também teatro e ensaio e traduziu diversos clássicos como “O Purgatório” (Dante), “Medeia” (Eurípedes) ou “Hamlet “(Shakespeare). A Editorial Caminho reuniu num único volume a obra poética de Sophia, cuja 2ª edição apareceu em 2011.

Entre os numerosos prémios e distinções que recebeu, destaque para o Prémio Camões (1999) e Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana (2003)

Consultados: A Aliança com as Coisas. O mito de Orfeu em Sophia de Mello Breyner Andresen, Ewa Lukaszyk http://publib.upol.cz/~obd/fulltext/Romanica7/Romanica7-07.pdf / Mar Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: Poética do Espaço e da Viagem, Helena Conceição Langrouva, http://triplov.com/sophia/helena.html /O mar na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, Klára Šime?ková, http://is.muni.cz/th/75309/ff_m/O_mar_na_obra_de_Sophia_de_Mello_Breyner_Andersen.pdf / Labirinto e Minotauro Mito de ontem e de Hoje, , José Ribeiro Ferreira, http://www.fluirperene.com/livros/labirinto_e_minotauro.pdf / O tema de Orfeu em Musa em Sophia de Mello Breyner Andresen, José Ribeiro Ferreira, http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas50/55.2_Ribeiro_Ferreira.pdf/ Sophia de Mello Breyner Andresen: Mitos gregos e encontros com o Real, Antonio Manuel dos Santos Cunha, http://www.incm.pt/site/anexos/10044320090319170206876.pdf

A paisagem “de quadrado em quadrado”: a pintura de Vieira de Silva na poesia de Sophia Andresen, Virgínia Bazzetti Boechat, http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/039/VIRGINIA_BOECHAT.pdf

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

 

Ouça o conto:

A Menina do Mar

A menina do Mar

      Menina_do_Mar

As Linhas de Torres e as encruzilhadas da História

Quando Luis XVI foi guilhotinado (1793), as monarquias europeias sentiram-se seriamente ameaçadas. Já não bastava a supressão da nobreza e dos direitos da Igreja – que viram ambas os seus bens confiscados. Agora, a revolução radicalizava-se. Ia entrar-se no período do Terror, protagonizado principalmente por Robespierre.

Espanha e Inglaterra decidem agir e Portugal vai a reboque. Envia uma força de 5400 homens para a Catalunha, que reforça o exército espanhol. As operações militares são um malogro para a coligação. É a Campanha do Rossilhão que termina com uma paz assinada apenas por representantes da Espanha e Inglaterra (1795).

Em Portugal reina D. Maria I. A política externa tinha-se pautado pela tentativa de Portugal se conservar neutral entre as duas principais potências europeias da época – Inglaterra e França, o que garantia o comércio com ambos os lados. Napoleão, entretanto, chegara ao Poder (1799). Espanhóis e franceses assinam uma convenção (1801), e onde firmam a paz e intimam Portugal a fechar os portos aos navios ingleses, a declarar guerra a Inglaterra e a sequestrar bens e prender os súbditos ingleses residentes. Apesar de ainda decorrerem negociações diplomáticas, o exército espanhol invade o Alentejo e em 18 dias fica senhor do Alto-Alentejo. O exército português era composto por 18000 homens que se opuseram a 30000 invasores. Foi a chamada Guerra das Laranjas.

Este conflito antecedeu o Bloqueio Continental, através do qual os franceses, depois de terem visto a sua armada destruída em Trafalgar (1805), pretendiam impedir o comércio inglês.

Portugal, dada a sua Aliança com Inglaterra, era uma falha no bloqueio aos navios e comércio ingleses. Napoleão decide invadir Portugal. Espanhóis e franceses estabelecem um Tratado (Fontainebleu, 1807), pelo qual se acorda a passagem de tropas franceses e a invasão militar franco-espanhola de Portugal. O país seria retalhado em três partes, das quais uma para espanhóis, e outra para franceses.

O rei Carlos IV de Espanha recebe os franceses como aliados. É o General Junot a comandar a 1ª Invasão. Mas, a pretexto de reforçar as suas forças em Portugal, os franceses tomam várias cidades de Espanha e cerca de 100.000 homens chegam também a Madrid. Entretanto, o rei Carlos IV era deposto (1808) por seu filho (futuro Fernando VII). Para resolver o conflito sucessório é pedida a intervenção de Napoleão, a quem ambos afirmavam fidelidade. O Imperador atrai-os a uma cilada palaciana em Bayonne e proclama rei seu irmão, José Bonaparte. Era a eliminação da dinastia dos Borbons. Mas, patriotas espanhóis revoltam-se. A repressão é feroz. Eclodem insurreições por toda a Espanha. As implicações destes levantamentos em Espanha seriam enormes e estão na origem na Constituição de Cadiz de 1812 (primeiro documento constitucional aprovado na Península Ibérica) e na instauração dum modelo liberal.

Quando a corte de Portugal se transfere para o Brasil (1807), na véspera da chegada de Junot a Lisboa, é sobre o Príncipe Regente, que recaem decisões críticas. A Rainha sofre de distúrbios psiquiátricos e está incapacitada. O governo é entregue a um Conselho de Regência, que será rapidamente demitido por Junot, considerando banida a Casa de Bragança. Os invasores entram sem oposição. O Príncipe Regente dera instruções para que não houvesse resistência. Porém, gradualmente, aqui e ali, estalam revoltas, actos sediciosos quase sempre praticados por populares contra os “colaboracionistas” , principalmente padres, magistrados e senhores das terras e, evidentemente, contra os soldados franceses. É uma insubordinação de cariz nacionalista, politicamente mal enquadrada e sem um exército organizado.

O Exército de Linha português, mesmo com as reformas introduzidas, anos antes, pelo conde de Lippe – convidado pelo Marquês de Pombal, estava em estado calamitoso – dividido entre o entusiasmo de alguns generais pelas conquistas napoleónicas e o patriotismo de outros, descaracterizado pela introdução de oficiais estrangeiros, e sem armas nem organização. Depois das derrotas do Rossilhão e da Guerra das Laranjas e da retirada da maioria dos oficiais portugueses (que eram fidalgos) para o Brasil, os efectivos eram reduzidos e o pouco armamento, arcaico. Junot desarmara a maior parte das forças, e muito do Exército de Linha (o equivalente ao Quadro Permanente), fora integrado nas forças napoleónicas (a “Legião Portuguesa”, a qual veio a lutar contra o exército anglo-luso). As forças militares portuguesas restantes eram provenientes do Serviço Militar obrigatório: as ordenanças – tropa irregular destinada a operações de guerra local e circunscrita, e a funcionar como depósito de recrutamento; e as milícias – cuja missão era acudir às fronteiras em situações de guerra, as quais tinham sido também desarmadas.

Porém, os ingleses, depois de muitas hesitações, tinham enviado um contingente, comandado pelo Marechal Beresford, onde se incluía Arthur Wellesley, mais tarde duque de Wellington. Os franceses são expulsos pelo exército anglo- luso.

Depois de Junot, foi Soult, que não passou do Porto. E, finalmente, o Marechal André Masséna, l’Enfant chéri de la Victoire, tornado Príncipe d’ Essling, por feitos nas Campanhas de Itália. Para Napoleão, o objectivo, agora, não era só o bloqueio dos portos aos ingleses, era também a pacificação de Espanha, em ebulição.

O tema que aqui se trata são as Linhas de Torres, complementado por excertos de ficções sobre a ocupação de Portugal pelas tropas de Junot e Soult e que ajudam a explicar a abnegação das populações aos sacrifícios que lhes foram impostos.

A ambição sem escrúpulos de Napoleão teve implicações drásticas – estendeu o conflito a toda a Península Ibérica. As invasões francesas a Portugal passaram, assim, a fazer parte da Guerra de Espanha, como os franceses a denominam, mesmo que de início o não fosse. Mas, também, facilitaram as ideias liberais e, a médio prazo, deram origem à independência do Brasil e das colónias espanholas da América.

A Guerra Peninsular continuou muito para lá da expulsão de Masséna e, nos seus desenvolvimentos vamos encontrar Wellington, como na importante batalha de Vitoria (1813) – que envolveu também forças portuguesas, e na perseguição aos franceses, até 1814.

Wellington desempenhou um papel militarmente excepcional. Só travou batalhas em locais e em condições que lhe pareceram propícias. As tácticas revolucionárias das tropas napoleónicas, que estiveram na origem do Imperio francês, não foram suficientes.

Wellington mostrou-se desdenhoso acerca da competência das tropas portuguesas. Porém, o seu êxito deveu-se também à erosão que as guerrilhas populares causaram nos invasores e ao sacrifício das populações civis portuguesas. O país ficou arrasado. O prestígio de Wellington estava feito e consagrou-se ao infligir a derrota final de Napoleão, em Waterloo (1815). Mas o Imperador começou a ser derrotado na Península Ibérica e, mais precisamente, nas Linhas de Torres, sempre com Wellington como instrumento.

 

Os traumas causados nas populações pela política de “terra queimada” deverão ter sido um dos factores que estiveram na origem da reserva em relação a todos os “estrangeirismos”. Quando D. Pedro, já em 1832, desembarcou no Mindelo à frente de um exército maioritariamente inglês para combater as forças absolutistas, comandadas por seu irmão Miguel, as populações tinham motivos para estar desconfiadas. E o poder dos senhores das terras e do clero, apesar dos jogos de cintura entre Junot e o Príncipe Regente – que muitos praticaram, não sofrera alteração…O liberalismo teve de lutar arduamente.

FM

A astúcia de Napoleão, antes da embriaguês do consulado vitalício e da coroação em Notre-Dame, mantivera o verniz dos ideais da Revolução que ainda se ouviam nas canções dos soldados, nas arengas dos oficiais e no tratamento de citoyen. Mas, se eles ainda cantavam “les moles aristocrates à la lanterne», os lampiões haviam voltado à sua função exclusiva de iluminar as ruas das cidades que viam crescer a nova aristocracia, pouco a pouco criada por um corso filho da Revolução que, sob a bandeira da Liberdade-Igualdade-Fratemidade, abalava o fantasmagórico entorpecimento das velhas sociedades, mas usurpava a soberania das nações e restaurava o poder do Estado à escala da Europa.” in Razões do coração/Álvaro Guerra

Quando Masséna, em Setembro de 1810 invadiu Portugal, terá talvez julgado que não encontraria obstáculos de monta no seu caminho para Lisboa, tanto mais que a vila de Almeida onde os portugueses esperavam poder retardar o exército invasor, caíra fácilmente, após uma explosão num paiol que matou soldados e muitos civis que ali se tinham refugiado.

Convicção reforçada quando, após a batalha do Buçaco, mesmo após uma derrota no terreno, a vantagem não foi convenientemente explorada pelo exército anglo-luso, e os franceses puderam reagrupar-se e prosseguir o seu avanço. Aliás, era também convicção de Napoleão que Masséna tomaria Lisboa. E, para este, a conquista de Portugal levaria à expulsão dos ingleses, à submissão dos espanhóis e, logo, à paz na Península.

As condições metereológicas, excelentes desde a saída de Almeida, alteraram-se no final de Setembro. Napoleão recomendara que evitassem o sol quente que tornava penosa a deslocação e que Masséna não tivesse pressa. Mas, a chuva copiosa tornou os caminhos impraticáveis. As estradas estavam em mau estado – a maior parte intransitáveis, escarpadas, mal desenhadas, cheias de pedras, apertadas. Nas aldeias, eram ladeadas por pequenos muros e casas, o que as estreitavam ainda mais.

Os veículos franceses não estavam preparados para aqueles caminhos: puxados por 3 parelhas de cavalos, eram largos, avariavam-se e não podiam ser reparados. As munições estragavam-se os víveres perdiam-se.

O acesso a Lisboa estava bloqueado: nos primeiros dias de Outubro, Masséna é avisado da existência de uma série de fortificações, constituindo uma muralha cujo franqueamento se presumia difícil. Ele mesmo se dá conta disso e se surpreende. Colinas escarpadas, ravinas profundas, desfiladeiros e muralhas de rochedos fortificados e dispondo de poderosa artilharia. Era um dispositivo que ficou conhecido por Linhas de Torres (Vedras).

Travam-se combates no Sobral de Monte Agraço. Os franceses desalojam postos avançados aliados e entram na povoação, onde se luta casa a casa, com vantagem para os franceses. As perdas são estimadas em cerca de centena e meia de homens para cada lado.

Sobral de Monte Agraço – Nos dias seguintes novos combates. Dois Portos, Caixaria e Seramena.

Sobral – Bombardeamentos, lutas nas barricadas. O exército anglo-luso consegue travar o avanço francês, que suspende os ataques

Também em Alhandra se combate. A vila estava barricada e a estrada bloqueada. As tropas francesas procuram forçar a passagem, mas são derrotadas.

Alhandra – Monumento às linhas de Torres, erguido em 1883, no local onde existiu o Reduto n.º 3, designado por Reduto da Boa Vista.

Sobral

Sobral – Os invasores contavam conseguir géneros durante a sua progressão. Porém, Wellington (comandante em chefe do exército anglo-luso) dera instruções para que as populações não só abandonassem as suas casas como destruíssem o que pudesse der útil aos franceses. E, apesar de muitos portugueses, não terem respeitado essas ordens e parte dos cereais não ter sido destruída, rapidamente eles se esgotaram. Aliás, muitas das colheitas não tinham sido ainda realizadas naquele ano.

As populações fogem em massa. Arrastam à passagem das Linhas os operários que as constroem. Trazem animais – mulas, burros, bois, com tudo o que podem transportar. É um cortejo de refugiados exaustos, doentes, desesperados. Direcção: Lisboa. Tudo parece perdido.

Gradil – A fuga das populações impressiona os franceses. Parte daquela gente destruíra os próprios meios de subsistência. Nunca antes tinham deparado com situação idêntica.

Masséna apelara junto das suas tropas para que respeitassem as populações e os seus bens, de modo a não criarem hostilidade e fizera uma proclamação, argumentado que os portugueses se encontravam numa guerra que não era a deles e que os ingleses queriam explorar e destruir o país…Mas os portugueses tinham já a experiência das tropas de Junot, que por ali tinham estado.

Inicia-se então o cerco das Linhas de Torres Vedras, uma longa espera, entrecortada por pequenas escaramuças, sobretudo nas missões de reconhecimento.

Forte do Arpim/ Bucelas – Masséna comandava um exército de 36.000 homens. Um ataque contra as Linhas infligiria pesadas baixas naquelas forças já enfraquecidas. Masséna pede reforços a Napoleão.

Forte de Alhandra – Contra a opinião de alguns dos seus generais, que entendiam não serem as Linhas suficientemente fortes para impedir o avanço, Masséna opta por estacionar em observação, esperando a chegada de reforços ou que Wellington se decida a sair das fortificações e a travar batalha. Este, entretanto, aproveita a mão-de-obra suplementar que representam os refugiados para concluir algumas fortificações e construir novas.

Castelo de Torres Vedras – Assim entre 15 e 18 de Novembro, o exército francês retira-se das Linhas de Torres Vedras, agrupando-se à volta de Santarém, onde Masséna pensa encontrar provisões que permitam subsistir em território inimigo. Pouco mais de um mês durara a sua permanência diante das Linhas.

Mas os reforços que chegam serão cerca de seis mil homens, enviados com a missão de restabelecer as ligações com Espanha, que estavam interrompidas desde a partida de Coimbra, o que não conseguirão. A posição de Masséna é cada vez mais delicada.

Desde a chegada do «Exército de Portugal» às Linhas, o problema dos abastecimentos torna-se prioritário. Masséna partira de Almeida levando uma reserva para apenas quinze dias, o tempo que estimara necessário para chegar até Lisboa. Para além deste período, o exército deveria viver dos recursos da região.

Sobral – Para procurar aprovisionamentos, os soldados afastam-se das colunas militares, pilhando as aldeias que encontram, regressando com grandes quantidades de vinho e peças de mobiliário. As casas abandonadas foram vandalizadas. Tetos, madeiras, recheios serviram para os invasores construírem os seus abrigos. Não raras vezes ocorreram violações e assassinatos. Os oficiais perdiam o controlo dos soldados. A disciplina do “Exército de Portugal” esfumava-se.

Forte do Zambujal/Carvoeira – As dificuldades dos franceses eram grandes. Durante o período passado diante das Linhas e depois nas posições na retaguarda, as tropas viveram em condições de grande adversidade. Fardas rotas, meio descalços, sacrificando os próprios animais de transporte. Nos últimos dias, os soldados alimentavam-se apenas com um pouco de papas de milho.

Em Fevereiro de 1811, Masséna decide retirar-se para o Mondego. Tentava uma última manobra que permitisse a manutenção das suas forças em Portugal. No entanto, o exército anglo-luso sai-lhes ao encalço e ocorrem combates. Retiram. A 21 de Março as tropas francesas encontram-se perto da fronteira com a Espanha. Era o ocaso de Masséna e o princípio do fim de Napoleão. Este aguardaria por Waterloo. Seria daí a 4 anos.

As chamadas Linhas de Torres Vedras foram um sistema de defesa que procurava impedir o acesso a Lisboa ou no caso de derrota, permitir a retirada dos ingleses em segurança. Estendia-se ao longo de mais de 88Km, e foi mandado construir por Wellington. Este participara já em 1808 nos combates que tinham expulso Junot do país e era, agora, comandante em chefe.

Para ele, a defesa da fronteira, vasta e aberta como a portuguesa, não era possível com os efectivos de que dispunha e o objectivo dos invasores, fosse qual fosse o itinerário escolhido, seria Lisboa. Por estas razões, optou pela fortificação do relevo acidentado à volta da capital, que protegia as suas tropas e dificultava a progressão do inimigo, expondo-o aos fusis e canhões anglo-lusos, bem como aos obstáculos que tinham sido levantados ou melhorados.

Além da restauração de fortificações já existentes, como o Castelo de Torres Vedras, foram construídos redutos em cumeadas de cabeços escarpados, que fechavam desfiladeiros.

A primeira linha defensiva ligava Alhandra (na imagem) à foz do rio Sizandro (em Torres Vedras), com 46 km de extensão. Aproveitava o perfil escarpado da serra de Montejunto, que constituía um obstáculo à artilharia francesa.

As posições avançadas de Torres Vedras e de Monte Agraço, destinavam-se, quando ocorresse a invasão, a proteger a retirada das tropas e a dar tempo para ocuparem a posição que lhes tivesse sido destinada.

Rio Sisandro

S. Lourenço – A segunda linha, construída a cerca de 13 Km a Sul da primeira, tinha uma extensão de 39 Km e ligava o Forte da Casa (Póvoa de Santa Iria) a Ribamar.

Forte da Casa – Compunham-na uma série de redutos, uns destinados a interceptar as estradas, outros a ligar as posições principais entre si, de modo a que o inimigo não pudesse passar pelos intervalos.

A terceira linha consistia no perímetro defensivo da praia de embarque (S. Julião da Barra), a cerca de 40 Km a Sul da segunda linha. Tinha uma extensão de 3 Km e ligava Paço de Arcos à Torre da Junqueira.

Forte de S. Julião – Até na cidade de Lisboa se repararam antigas fortificações e se ampliaram redutos e baterias.

Estas fortificações serviam também de refúgio para a população, obrigada a abandonar as terras. Quando acontecesse a invasão, o exército anglo-luso retirava para as linhas, onde se entrincheirava. Se os invasores as conseguissem romper, os ingleses retiravam por mar. Se o não conseguissem, a falta de reabastecimentos acabaria por obrigar os franceses a retirar.

Montachique – Ao mesmo tempo uma força móvel actuaria na retaguarda dos invasores procurando retardá-los e desmoralizá-los. Nestas missões desempenhariam importante papel as milícias e ordenanças em actos de guerrilha contra os soldados franceses, nomeadamente quando estes procuravam géneros de subsistência.

Senhora do Ó – Outro ponto-chave da estratégia de Wellington: ser capaz de obrigar as populações a destruir culturas, géneros alimentares e deixar muitos dos seus haveres, tudo o que pudesse aproveitar o inimigo!

Enquanto a nós – continuou Fernão Silvestre – pôr-nos-emos à frente dessa brava companhia de velhos camaradas das nossas companhas, que me seguem e que eu há tanto tempo centralizo com todas as forças da velha disciplina. O nosso quartel general será ali, no alto da planura do Airó.”…

Mafra…”De lá nos arrojaremos ao inimigo quando nos convier; de lá lhe faremos guerra de guerrilhas, mas guerrilhas que sabem o que é guerra, já que não lhe podemos fazer mais do que isto. Assim viveremos até que as coisas mudem, porque hão de mudar, espero-o em Deus, porque, como diz o poeta: Assi vai alternando o tempo iroso /O bem co’o mal, o gosto co’a tristeza. Todos os dias iremos tendo mais gente, João Peres e tendo, portanto, maiores meios de fazer aqui a guerra aos inimigos da nossa pátria.”in O Sargento-Mor de Vilar/Arnaldo Gama

Como fora possível construir um dispositivo defensivo desta envergadura sem que os espiões franceses dele se tivessem dado conta, ou, no mínimo, que eventuais informações não tivessem sido tomadas em conta?

Aliás, já durante a 1ª Invasão, a topografia da região circundante a Lisboa e as suas vantagens defensivas tinham sido reportadas por um Oficial Francês. Quando Wellington urdiu o seu plano de defesa, foi coadjuvado pelo Eng. português Neves Costa, que colaborara anteriormente com os franceses.

Forte de S. Vicente – Wellington foi capaz de mandar executar estas obras no maior segredo. Nem o próprio Conselho de Regência delas teve conhecimento. O Parlamento britânico ignorava-as. Os operários eram na maioria refugiados que se tinham deslocado para sul na iminência da invasão. Ainda durante o cerco se concluíram obras.

O sucesso militar de Wellington ter-se-á devido muito ao carisma disciplinador e autoritário. Durante as três invasões sempre teve papel relevante.

Caricatura de Wellington

Forte do Zambujal – As fortificações dispunham de guarnição própria, composta por corpos de milícia e ordenanças e por artilheiros, enquadrados por oficiais ingleses.

Forte da Malveira – Quando completadas as três linhas dispunham de 152 obras militares, armadas com mais de 1 000 peças de artilharia e guarnecidas por mais de 68 000 homens.

Forte de Olheiros – De qualquer reduto podiam observar-se os mais próximos situados de um lado e outro.

Forte do Zambujal – Cada um deles era protegido por cortinas de lanças, colocadas trinta metros adiante e enterradas no solo. Dispunha de fossos protegidos por paliçadas de estacas.

Forte do Zambujal – Instalaram-se plataformas sobre as quais se dispôs a artilharia. Havia peças de artilharia, obuses e morteiros, cujo número variava consoante a importância da fortificação.

Forte de S. Vicente – Era o mais poderoso forte das linhas, pois defendia a estrada principal de Coimbra a Lisboa. Era formado por um conjunto de 3 redutos, rodeados por um muro perimétrico com cerca de 1.500 m.

Forte de S. Vicente – Contava com um conjunto de fossos, trincheiras, traveses e de um posto de transmissoes, que era novidade na época

Forte de S. Vicente – Comportava uma guarnição que podia atingir os 4000 homens e 39 peças de artilharia.

Aqui se observa como moinhos foram adaptados a estruturas militares

Torres Vedras: Castelo visto do Forte de S. Vicente

A data da construção do castelo é difícil de estabelecer. Julga-se que a primeira fortificação terá sido levantada pelos muçulmanos, sofrendo várias transformações até aos dias de hoje

Pormenor da cintura de muralhas

Castelo de Torres Vedras

Castelo de Torres Vedras: vista interior junto ao portão de armas

Forte de S. Vicente – Foi, assim, criado um dispositivo entre Peniche e o Tejo para impedir a passagem do exército invasor e, mesmo que este conseguisse romper as linhas em qualquer local, as forças defensivas poderiam ainda neutralizá-lo.

Forte de Alhandra – A instrução militar foi intensificada e os soldados das milícias e ordenanças repartiram-na com a construção das fortificações. Os ingleses desconfiavam da disciplina e da competência dos portugueses.

Forte da Malveira – E, de facto, o estado do exército era deplorável.

Era ridículo e muito ridículo o aspecto daquele exército de aldeões vestidos de rabonas e de carapuças ou enormes chapéus de Braga na cabeça, aprumados desjeitosamente e tendo cada um ao ombro uma espingarda de caça, um mangual ou uma foice roçadoira; mas o entusiasmo que animava aquela multidão indisciplinada manifestava bem ao vivo que, arregimentados militarmente, os homens semi-selvagens das margens do Cávado e das fraldas da serra do Aixó seriam muralha inexpugnável, de encontro à qual era mais que provável que se esmagassem inutilmente os soldados aguerridos de Soult. Milhares de desesperos e de raivas custara, porém, ao bom do Sargento-mor a meter aquela populaça em linha. Se assim como durou trinta, durasse trinta e um minutos, aquela empresa quase impossível dava decerto com João Peres doido varrido. -Ah! bruto, não ouves? Chega mais atrás – bradava esbaforido.”…

…”E logo um encontrão num selvagem que, por mais que ele lhe tinha gritado, não atinara a pôr-se ombro a ombro com o camarada. – ó Zé da Cancela, põe essa perna unida à outra, alma de cântaro! Ó Tadeu Capote, dá aí um cachação nesse bruto que tens à esquerda! Isso, homem; mais rijo, entendes? Meter em linha, lá os da direita. Ai que eu arrebento, ladrões dos meus pecados! – E nisto era alabardada que te parto num renque de alarves, que não acertavam a pôr-se ora de um lado ora do outro, e alguns até de costas, às vozes do sargento-mor. – ó Zé do Nuno, põe essa espingarda ao ombro, ladrão: olha que te racho, entendes? Assim. Um, dois… Sentido! Um passo em frente. Ai, que alarves estes! Lá se vai com seiscentos diabos a forma!” in O Sargento-Mor de Vilar/Arnaldo Gama

Forte da Casa – No princípio de Outubro de 1810 nem todas as fortificações estavam concluídas.

À medida que o tempo passava e era iminente a invasão, Wellington requisitou toda a gente – mulheres e crianças, membros do clero, da Jurisdição Civil, das oligarquias locais… Levantaram-se coros de protestos que, em alguns casos, roçaram a insubordinação. Um sentimento anti-inglês foi-se instalando, ao mesmo tempo que crescia a consciência nacional.

Forte da Carvalha/Arruda dos Vinhos – Em resumo, o plano de defesa de Wellington assentava numa linha fortificada que defendia os acessos a Lisboa, atrás da qual se dispunham as forças anglo-lusas, preparadas para combater nas melhores condições possíveis. As populações civis eram obrigadas a abandonar as suas terras e a refugiar-se sobretudo na capital.

Forte da Malveira – Mais, eram obrigadas a destruir tudo o que pudesse abastecer o exército invasor, sobretudo na região da Estremadura e Beiras, das regiões mais ricas do país.

Ribeira d’Ilhas

Foz do Lizandro – Wellington sentia-se com uma espada sobre a cabeça. De Inglaterra sabia que a opinião pública e a situação política não admitiam qualquer desaire. Em Portugal, o Conselho de Regência (ou parte dele) defendia que a luta se devia travar nas fronteiras naturais e poupar o aparelho produtivo. Mas, Wellington entendia que, com as forças de que dispunha, não poderia travar os franceses naquelas condições.

Alhandra – Conseguir que grande parte das populações abandonasse os seus haveres e ainda destruísse parte deles, é motivo de admiração. Em muitas aldeias apenas ficaram velhos e doentes. Mais do que qualquer noção de patriotismo, terão sido provavelmente os excessos, crimes e desrespeitos de toda a ordem ocorridos nas duas anteriores invasões, que o determinaram.

Forte do Milreu/Ericeira “Vai um reboliço na alfândega da Ericeira.Três rascas balouçando nas ondas esperam para carregar as barricas de vinho alinhadas na praia, entre molhos de hortaliça, sacos de farinha, de castanhas, de nozes, no meio de uma quantidade de botes de pesca varados no areal. É que o estômago de Lisboa não passa sem as hortas dos saloios e o mar é a melhor estrada. Camponeses misturam-se com pescadores, sob o olhar de dois pelotões da infantaria de Loison, de equipamento de campanha e fuzis aperrados. O exercício costumeiro destes embarques, que se o mar o não impede, garante boa parte da comida e bebida da capital do reino, não é hoje uma rotina. Há tensão no ar, palavras desabridas, maus modos, queixas. Querem roubar o nosso pão —, diz, comum suspiro, uma mulher de tamancos, vestida de preto.”…

…”Chegam o tenente que comanda a tropa e o meirinho sobraçando uma pasta com papéis. No meio de um círculo de soldados empunhando as espingardas de baioneta calada, o meirinho sobe a um caixote, auxiliado pelo tenente. Começa a arengar, dirigindo-se ao «bom povo». Que vieram ordens de Lisboa, do senhor general Junot, a dar regulamentos à navegação das embarcações de pescadores. Doravante, — esganiça-se o meirinho — todos os barcos têm que ter pintados a branco, à proa e à popa, uma letra e um número, que constarão de um lista que será entregue a cada patrão de barca com o seu nome e o de todos os pescadores da companha.”…

S. Lourenço …”Mais: que toda a embarcação de pescaria que não esteja numerada e não traga esse documento de passaporte, cinco dias depois desta proclamação, será apresada; que toda a embarcação que tiver comunicado com a esquadra inglesa será apresada; que toda a embarcação deverá regressar à praia antes do Sol posto, sob pena de pagar, pela primeira vez, quarenta francos, pela segunda, cento e vinte, e confisco da embarcação e pena corporal, pela terceira.”...

S. Lourenço …”É quanto decretou o comandante-em-chefe do exército francês, senhor general Junot, no Quartel General de Lisboa, aos cinco de Janeiro de 1808. E estas disposições — conclui o meirinho, no seu pedestal de tábuas, vigiado pelo tenente do 22 Ligeiro — aplicam-se também às embarcações da Carvoeira e S. Lourenço.”

Os ingleses eram tidos como defensores das liberdades e protectores das monarquias em perigo. Mas, ao longo do tempo, surgiram actos de rebelião e resistência anti-inglesa, como quando foi determinado o trabalho compulsivo na construção das fortificações ou por actos de pilhagem também praticados por militares ingleses.

Ribeira d’Ilhas

Mafra – “Veio um almocreve do Norte e pôs-se a tartamudearem voz baixa um conto atrapalhado sobre a desgraça que o Maneta Loison levou às Caldas da Rainha. Que arcabuzaram nove soldados portugueses do Regimento do Porto lá aquartelados, por uma zaragata de vintém, começada com um beijo roubado por um francês bexigoso à mulher de um tambor carrapato e zangaralhão, mas fortalhaço e sanguinho, que saltara à bordoada ao bexigoso.”...

Mafra – …”Vieram companheiros e vá de malhar nos de França, que todos vinham com moléstias de pele, sarnas e borbulhas, a abeberarem-se nas águas santas. Pior que feira varrida à paulada, quando os franceses responderam e se zangou um cadete de Gaia que parecia um touro de cajado nas unhas, que até nem se entende como não houve morte de homem.”…

Mafra …”No dia seguinte, veio o Maneta coma sua tropa, cercou as Caldas e, pelas matinas do outro dia, prendeu os soldados portugueses todos, tirou-lhes a malhado, que eram todos inocentes de crimes graves, e mandou que os fuzilassem sem mais demoras. Eram nove e o tambor um deles, que os xingou de cabrões e outros nomes piores, e alguns choravam, e até um oficial português se pôs de joelhos a pedir clemência ao malvado do Maneta.”…

Gradil -… “Cai um silêncio tenebroso sobre os comensais da Estalagem. E nem a sombra de um riso altera a crispação daquelas caras rudes e mudas, quando o papagaio se põe a palrar vivó Jinot, vivó Jinot cabrão. ” in Razões do coração/Álvaro Guerra

Forte do Milreu/Ericeira

Sobral – De entre todas as fortificações da primeira linha, o Forte Grande ou do Alqueidão, como é hoje conhecido – assumiu uma importância militar estratégica de relevo, pois era aquele que tinha maior capacidade, quer em guarnição, quer em número de peças de artilharia.

Era neste Forte que se situava o posto de comando das Linhas. À sua frente abria-se um possível campo de batalha, situado no ponto de cota mais elevado de todo o sistema defensivo, o que que favorecia quem estava na defensiva

A suspeita de ser simpatizante dos “Jacobinos e Hereges” deu origem a perseguições, vinganças e linchamentos. O caso mais dramático teve como vítima Bernardim Freire de Andrade. Oficial prestigiado, participou na Campanha do Rossilhão, onde foi ferido, e, depois na Guerra das Laranjas, em teve papel de destaque.

Alhandra – Durante a invasão de Junot, já com a patente de marechal-de-campo, as suas topas, mal treinadas e equipadas, contribuíram para os sucessos das forças inglesas. Já durante a 2ª invasão, comandando um pequeno corpo de forças, com falta de armas e de instrução militar, impediu a travessia do Minho pelas tropas de Soult. As movimentações para procurar um local adequado para travar os franceses fez os populares acusarem-no de colaboracionismo. A indisciplina das suas tropas, levaram-nas a amotinarem-se e a prendê-lo. Foi ainda libertado, mas acabou por ser assassinado e depois reabilitado. A título póstumo, como a muitos.

Ten-Gen Bernardim Freire de Andrade

Houve generais franceses que participaram em todas as invasões. Em primeiro lugar, Junot. “Junot era homem pouco ilustrado, tinha um temperamento sanguíneo e facilmente irritável. Conservava por baixo da farda bordada do general e dos arminhos do duque uns restos da brutalidade da caserna; era um pouco tarimbão, segundo a frase entre nós adoptada. Loison também não primava pela delicadeza” in Os guerrilheiros da morte/Pinheiro Chagas

Restaurante à beira da estrada perto de Torres Vedras – Mas, de todos, o que piores recordações deixou foi Loison (o “maneta”). Para defrontar as guerrilhas que os emboscavam e flagelavam, sobretudo na invasão de Junot, passou a fazer uma repressão sanguinária sobre as populações civis indefesas. Velhos, mulheres, crianças, deficientes, todos os que não podiam fugir, eram passados pelas armas, com o intuito de atemorizar os sublevados. Foram dezenas de milhares de mortos. Como a História mostrou até hoje, a repressão brutal só engrossa os rebeldes. Foi já, assim, em Portugal do princípio do séc. XIX.

Estas atrocidades associadas a violações, pilhagens, incêndios e profanações de Igrejas constituiram importante factor de mobilização na resistência contra Masséna.

Sobral – “A soldadesca desenfreada, abandonada aos seus instintos ferozes por Loison, que jurara vingar-se na paisanada portuguesa da humilhação da Beira, enchia de horror a capital do Alentejo. A população refugiava-se nas igrejas. Ali a perseguia a turba guerreira. As praças eram lagos de sangue. As casas incendiadas rasgavam com a sua luz sinistra as trevas da noite que principiava. Abrigavam-se aos altares as mulheres, e dali eram arrancadas pelos soldados, ou ali as ultrajavam.” -Excerto de Os guerrilheiros da morte/Pinheiro Chagas.

Quando os franceses de Masséna retiraram, a devastação causada era tremenda. Casas arruinadas, sem janelas, tetos, móveis arrancados para servirem de lenha. Não havia cereais, nem sementes para os cultivar. Muito do gado, vacas, porcos, tinha sido dizimado. Os moinhos, muitos estavam destruídos. As epidemias resultado das péssimas condições sanitárias eclodiam, a mortalidade aumentava. As ajudas do Príncipe Regente e dos ingleses ficavam muito aquém do preciso. As medidas de emergência eram insuficientes. A fome e a especulação cresciam. Como o desespero.

Reduzir as Linhas de Torres a uma simples estratégia militar, por muito brilhante que tivesse sido, é redutor. Na invasão de Masséna, essa estratégia foi imposta por um General estrangeiro, mesmo aliado, arrogante, preocupado, sobretudo, em resguardar as costas do Atlântico do exército francês e, provavelmente, desprezando as consequências que daí adviriam para as populações e para Portugal.

Porque foi também o povo quem atacou os soldados franceses postados diante das Linhas e os desgastou, quando procuravam comida, se atrasavam nas colunas e lhes montou emboscadas. Não se tratava de uma guerra convencional, foi um levantamento nacional, de gente mal armada, iletrada, que defendia a sua terra, que tinha abandonado os haveres e que procurava derrotar o inimigo também pela fome. Sem essa obstinação e firmeza, digamos patriotismo, não teria sido possível expulsar os invasores e a estratégia de Wellington não teria vingado. Cometeram-se erros e crimes, como em todas as revoluções, é certo. Wellington venceu, como os portugueses conquistaram uma nova consciência dos seus direitos e questionaram a velha ordem social. Wellington venceu. Porém, Portugal passou a ser um protectorado inglês ainda por muitos anos. Essa é outra história.

Consultados: As Linhas de Torres Vedras Invasão e Resistência, Cristina Climaco. 2010/O Porto e as Invasões Francesas Vol I. Coordenação de Valente de Oliveira. 2009/Um país silencioso. Uma História das Linhas de Torres. Carlos Guardado da Silva e Daniel Silvestre da Silva, 2010/ As Linhas de Torres Vedras, Carlos Guardado da Silva, 2010 /Um país silencioso. Uma história das Linhas de Torres Vedras. Carlos Guardado da Silva, 2010/ Ir prò Maneta. Vasco Pulido Valente, 2007/ História de Portugal (Quinto Volume) Coordenação de José Mattoso / La España de Fernando VII. Miguel Artola, 2008 / Les hommes de Napoléon. Témoignages 1805-1815. Cristophe Bourachot, 2011

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