Amar o Mar

introOlhamos o Mar e sabemos de tantas histórias de bravura anónima, aventura e tragédia, como reconhecemos a sua importância como actividade económica e de exaltação poética. A força viril para dominar ou iludir o seu poder. Como o Mar pode proporcionar um combate solitário de muitas horas para capturar um marlin a que se tem de dar linha e possuir astúcia suficiente para o cansar sem que ele a parta ou como os velhos baleeiros dos Açores em pequenos botes arpoavam baleias gigantescas. Estes são verdadeiros jogos onde o Homem luta com adversários mais poderosos ou em condições desfavoráveis. O desafio entre a inteligência e a força. Como nos podemos deslumbrar na contemplação das ondas, dos matizes das águas ou da flora subaquática.

Os mistérios do Mar foram traduzidos na mitologia grega. Poseidon, Afrodite, Nereu são exemplos do fascínio que o Mar sempre exerceu sobre os povos virados para ele. A Odisseia de Homero é a narrativa de uma grande e demorada viagem que trouxe Ulisses de regresso da Guerra de Tróia à sua Ítaca natal. Camões descreveu a epopeia dos Descobrimentos Portugueses nos Lusíadas. É o nosso poema maior. Baseia-se na narrativa da viagem de Vasco da Gama para a Índia, no meio de ciladas e batalhas contra populações hostis, onde é traçada a rota marítima para o Oriente.

O Velho e o Mar é o relato poético da luta entre um velho, ferido no amor-próprio pela chacota dos mais novos, dado o seu declínio físico, com o maior peixe que alguma vez vira. Sabe que tem de o matar. São mais de três dias de combate e, no final, ele vence. Amarra-o junto ao seu bote, mas no regresso o peixe é devorado pelos tubarões e, quando chega, resta apenas o esqueleto… “o Homem pode ser destruído mas nunca derrotado”, era dessa têmpera a coragem de Santiago, – era assim que o velho se chamava, como de muitos que desafiam o mar como a vida, na persistência solitária, obsessiva dum objectivo.

Olhar serenamente o Mar é darmo-nos conta do que não vemos, do que está para além da linha do horizonte. E mesmo que o sobrevoemos e o nosso horizonte se alargue, é o Espaço de que nos damos conta. O Universo é azul. Tão azul como o Mar.

FM

 

 

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O Mar da minha adolescência é bordado por uma praia imensa onde as casuarinas (não muito frondosas nem extensas) procuravam retardar a erosão causada pelas correntes

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Eram rasteiras, a faixa de areia não muito larga, ia dum mangal, esse sim denso, no meio de um terreno lodoso, onde se dizia haver zonas movediças onde se era engolido, até muitos quilómetros adiante, delimitado por um farol, onde hoje jaz a carcaça de um navio que me traz recordações familiares.

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É no Oceano Índico, na Beira, em Moçambique.

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Nesta praia primordial joguei à bola. Em Janeiro, era a altura mais quente do ano e não havia aulas. Todas as manhãs, aí estávamos a recomeçar os jogos. Era a época das chuvas que apareciam de repente. Mesmo debaixo duma tempestade tropical, continuávamos a jogar.

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Ao crepúsculo levantavam vôo os mosquitos e uma imensidade de borboletas que despertavam do seu sono larvar e descreviam círculos em volta das luzes ou embatiam nas vidraças. Havia na cidade um cheiro a capim queimado e aquele tom vermelho do sol poente que só existe em África.

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Os equinócios trazem as marés vivas e parece que os dias são imensos. Ouvir a rebentação poderosa das ondas contra os paredões, desfazendo-se em espuma, trazia um rumor forte, sincopado, que infundia respeito

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Aqui, eu lembro-me no principio de um mês de Novembro, em vésperas de vir para a Universidade em Lisboa, sozinho na baixa-mar, olhar para a linha do horizonte com a mesma perplexidade que conservo até hoje, como se ela delimitasse a incógnita do futuro, tão incógnito como inatingível, sempre a escapar-se à medida que nos aproximamos. Mergulhei, dei umas braçadas e vi a barbatana de um tubarão. Tão incógnito, tão falível, tão precário…

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Pisar a areia, os pequenos seixos, algumas algas húmidas, os orificios donde emergem pequenos caranguejos, ladear uma anémona, ouvir o espraiar consecutivo das ondas, preencher-me pela maresia já com o sol rasante a prolongar as sombras pelas dunas.

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O rumor dum barco, o voo das gaivotas que piam talvez prenunciando uma tempestade ou dos corvos marinhos que mergulham nas águas trazendo as suas presas. Caminhar na areia molhada no baixa-mar quando a superfície líquida espelha os pés que se enterram até aos tornozelos.

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“…O rio, caligrafia da água. Do alto, parece um sulco de metal transfluente. Limpo e solene. Mais perto se vê que, nas margens, se empoleira, contagiando-se de terra. O rio ora beija, ora morde a margem. Entre carícia e rasgão, se fazem seus incertos rumores de amante. Dentro dele se transportam ondulantes gazelas. Nesse tropel, o leito tornava-se savana azul, África liquefazendo sua carne térrea. O continente se oceanifica…

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…Mas a água só despida está completa. Assim, da terra ela se distingue. A terra exige coberta, requer construção. Enquanto a água em sua própria pele se aconchega. Em tal nudez, nunca nenhum sulco se abriu, nenhuma ruga se desenhou. Os homens magoam o solo, cobrem de golpes o chão. Mas até agora nenhum foi capaz de ferir o rio e deixar cicatriz nele escrita. O rio da minha infância: sotaque da terra, pronúncia da própria vida. Esse rio transcorre não no mundo mas em mim. Como se eu fora natural da água e não de lugar terreno. Às vezes flui manso, diluindo os amargos recantos, consolando as arestas da minha idade. Outras, fundo e espesso, quase imitando o fogo. Então, em sua corrente me ensombro. E me duvido: afogar é morrer na água ou no fogo?…

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…Afinal, a fúria é breve. O rio simplesmente se lavava da morte, sacudindo destroços de mim que se espreguiçavam na torrente. A coragem do rio é o seu caminhar suicida para o mar. A bondade da água é o seu incansável retorno ao regaço da vida”. (Mia Couto)

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Mas desde essa praia da minha juventude, todas as outras quase sempre foram só celebrações do Verão, uma liturgia do sol, rituais que pouco acrescentaram ao deslumbramento inicial.

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Umas mais exóticas que outras, o destino proporcionou-me descobrir algumas.

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Mudava a temperatura da água, o tom do azul – às vezes quase esverdeado, outras vezes marinho ou como se fosse safira, a areia mais dourada ou escura a testemunhar o vulcão próximo

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podia ter conchas ou búzios ou lingueirões,

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haver rochas, lapas e algas. Água que nos morria aos pés duma frescura incrível

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haver coqueiros ou casuarinas ou pinheiros ou micaias…

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“Nunca o mar foi tão ávido /quanto a minha boca. Era eu /quem o bebia. Quando o mar /no horizonte desaparecia e a areia férvida /não tinha fim sob as passadas, /e o caos se /harmonizava enfim /com a ordem, eu /havia convulsamente /e tão serena bebido o mar.” (Fiama Hasse Pais Brandão)

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Enseadas, baías, escarpas. Rochas por onde se passa apenas na maré-baixa

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Ondas mansas, rebentação, ou como noutras praias elas se tunelizam convidando a cavalgá-las sobre pranchas de madeira. É um bailado feito de destreza, equilíbrio e elegancia, onde o praticante tenta progressivamente melhorar os seus movimentos e o grau de dificuldade, escolhendo pela experiência as tácticas mais adaptadas a cada circunstancia

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Talvez gostasse de ser o Capitão Nemo que, desiludido pela diluição dos ideais, da nobreza de carácter, mais lhe apetecesse refugiar-se, não no fundo do mar como o personagem de Júlio Verne, mas longe dos outros e ficar na margem do oceano e encher os olhos dessa vastidão azul e, assim, apaziguar o azedume do quotidiano

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“Contar-te longamente as perigosas/Coisas do Mar, que os homens não entendem,/Súbitas trovoadas temerosas,/Relâmpados que o ar em fogo acendem,/Negros chuveiros, noites tenebrosas,/Bramidos de trovões, que o mundo fendem,/Não menos trabalho que grande erro,/Ainda que tivesse a voz de ferro.”(Luis de Camões)

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“Sou o único homem a bordo do meu barco./ Os outros são monstros que não falam, /Tigres e ursos que amarrei aos remos,/ E o meu desprezo reina sobre o mar.//Gosto de uivar no vento com os mastros/ E de me abrir na brisa com as velas,/E há momentos que são quase esquecimento/ Numa doçura imensa de regresso.//A minha pátria é onde o vento passa,/A minha amada é onde os roseirais dão flor,/O meu desejo é o rastro que ficou das aves,/ E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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“O Mar? O Mar É Branco”,pensou com tristeza o curador Cadete, pondo-se a acariciar a sua fantástica bola perpétua,em cuja transparência via habitualmente o mar dos Açores. Solto e arisco na sua espuma de navalhas, cobras enraivecidas, monstros talvez invisíveis e bufões de areia e sal, o mar era branco porque andava picado da saliva desesperada das baleias e das serpentes, da sua contínua mordedura, e a morte soltara-se nele como quando o monstro Centauro se cruzava com os carros dos deuses marinhos. Os cavalos pálidos dos deuses não eram decerto visíveis nos turbilhões da água, mas agitavam-na quando galopavam na direcção do vento e, voltando o mar de ventre para cima, tornavam-no branco, aos olhos do curador Cadete.

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…Mas não era sequer necessário olhar muito longe, porque uma boa porção desse mar fora encerrada há séculos na sua fabulosa bola perpétua. O verdadeiro poder de um homem estava em dominar o mar, reten¬do-o no interior de uma bola, ou então possuir a sabe¬doria de Moisés, o profeta da separação das águas do Mar Vermelho — porém Cadete suplantava tudo isso com aquele objecto de grande utilidade, através do qual aprendera a examinar os sinais cósmicos da doença e do destino humano. Na verdade, esses dados projectavam-se sobre a grande íris incolor da sua esfera e revelavam-se-lhe com a clareza inaudita dos espelhos gémeos de Baudelaire.(João de Melo)

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Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,/ A tua beleza aumenta quando estamos sós/ E tão fundo intimamente a tua voz/ Segue o mais secreto bailar do meu sonho,/ Que momentos há em que eu suponho/ Seres um milagre criado só para mim. (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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O envelhecimento traz consigo uma deterioração de todas as funções, nomeadamente a destreza física. O idoso frequentemente está deprimido e pode ser vítima de escárnio de gente mal formada. Hemingway conta a história de Santiago, um velho pescador que, devido justamente ao problema da idade, sobretudo no exercício de uma profissão que requer o constante uso da destreza e da força física, não consegue realizar as suas funções adequadamente

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…”Santiago sofre pela manifestação do declínio vital no seu corpo, problema este que, sendo conhecido pelos demais membros da comunidade dos pescadores, desperta nestes apenas sentimentos de desdém para com o experiente pescador. Alvo de diversas chacotas, Santiago, ao invés de se preocupar em retrucar os impropérios dos patifes, se interioriza, para que possa reunir forças físicas que lhe possibilitem mais uma vez desafiar o seu segundo lar, o mar. Afinal, as manifestações desrespeitosas dos pescadores mais jovens são utilizadas por Santiago como um estímulo para que ele possa superar esse estado de decadência fisiológica, profundamente amargo para um tipo de homem acostumado a sempre manifestar sua potência através de ações vigorosas…”

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..,.Contudo, devemos ressaltar que essa grande manifestação de forças não consiste mais no ato do valoroso pescador demonstrar o seu valor para os seus companheiros, mas sobretudo de demonstrar, para si mesmo, o seu caráter digno, o seu sentimento heróico. Por conseguinte, o velho Santiago, por não renegar as qualidades necessárias para o exercício de sua profissão e da sua própria condição de homem, afirma, diante do imenso poder sensível da natureza, encarnada pelo mar impetuoso, a grandeza moral do indivíduo, pois “o homem pode ser destruído, mas nunca derrotado”.”(Renato Nunes Bittencourt)

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“Uma após uma /Uma após uma as ondas apressadas /Enrolam o seu verde movimento /E chiam a alva ‘spuma /No moreno das praias. //Uma após uma as nuvens vagarosas /Rasgam o seu redondo movimento /E o sol aquece o ‘spaço /Do ar entre as nuvens ‘scassas. //Indiferente a mim e eu a ela, /A natureza deste dia calmo /Furta pouco ao meu senso /De se esvair o tempo. //Só uma vaga pena inconsequente //Pára um momento à porta da minha alma /E após fitar-me um pouco /Passa, a sorrir de nada., se hão-de ser…” (Ricardo Reis)

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“O meu beliche é tal qual o bercinho,/ Onde dormi horas que não vêm mais. /Dos seus embalos já estou cheiinho: /Minha velha ama são os vendavais! //Uivam os ventos! Fumo, bebo vinho. /O vapor treme! Abraço a Bíblia, aos ais… /Covarde! Que dirá teu Avozinho, Que foi mareante? Que dirão teus Pais? //Coragem! Considera o que hás sofrido, /O que sofres e o que ainda sofrerás, /E vê, depois, se acaso é permitido //Tal medo á Morte, tanto apego ao mundo: /Ah! fora bem melhor, vás onde vás, /Antonio, que o paquete fosse ao fundo!” (Antonio Nobre)

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“Curva dos espaços, curva das baías,/Vida que não é vida com os gestos inúteis,/ Quem me consolará do meu corpo sepultado?…

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…Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais/ Do fundo do mar./ Eu nasci há um instante…

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…A mulher branca que a noite traz no ventre/ veio à tona das águas e morreu…

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…Chego à praia e vejo que sou eu/ O dia branco (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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“Procura a maravilha./Onde um beijo sabe/a barcos e bruma.//No brilho redondo / e jovem dos joelhos.//Na noite inclinada /de melancolia.//Procura. //Procura a maravilha.”(Eugénio de Andrade)

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“Dai-me o sol das águas azuis e das esferas/Quando o mundo está cheio de novas esculturas//E as ondas inclinando o colo marram /Como unicórnios brancos” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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“Ouve o mar que soluça na solidão/Ouve, amor, o mar que soluça/Na mais triste solidão/E ouve, amor, os ventos/Que voltam dos espaços/Que ninguém sabe/Sobre as ondas se debruçam/E soluçam de paixão//E ouve, amor, no fundo da noite/Como as árvores ao vento/Num lamento se debruçam/Para o chão//Deixa, amor, que um corpo sedento/Como as árvores e o vento/No teu corpo se debruce/E soluce de paixão” (Vinicius de Moraes)

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“Bebido o luar, ébrios de horizontes, /Julgamos que viver era abraçar /O rumor dos pinhais, o azul dos montes /E todos os jardins verdes do mar. //Mas solitários somos e passamos, /Não são nossos os frutos nem as flores, /O céu e o mar apagam-se exteriores E tornam-se os fantasmas que sonhamos. //Por que jardins que nós não colheremos, /Límpidos nas auroras a nascer, /Por que o céu e o mar se não seremos /Nunca os deuses capazes de os viver.”(Sophia de Mello Breyner Andresen)

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O meu ideal de praia é essa linha de horizonte a perder de vista, o som do mar e a carícia do sol que nos convida a estar e depois mergulhar e voltar, esticar na areia. Ler e sentir o doce prazer da preguiça

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“Vê como de súbito o céu se fecha sobre dunas e barcos,/e cada um de nós se volta e fixa/ os olhos um no outro,/e como deles devagar escorre a última luz sobre as areias.//Que diremos ainda? Serão palavras, isto que aflora aos lábios? Palavras?, este/rumor tão leve que ouvimos o dia desprender-se? Palavras, ou luz ainda//Palavras, não. Quem as sabia?/Foi apenas lembrança de outra luz. Nem luz seria, apenas outro olhar.” (Eugénio de Andrade)

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Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas/ Deixarei que o teu nome se perca repetido//Mas espera-me:/Pois por mais longos que sejam os caminhos/ Eu regresso.”(Sophia de Mello Breyner Andresen)

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Lembrar o mar num crepúsculo açoreano que me fez voltar às origens. Se eu fosse ilhéu, cumpriria este atavismo marítimo para quem é o mar que transporta os sonhos, que será talvez o seu destino, o seu ponto de chegada.



Olhares (e ver)