Toxicodependência: uma vida em farrapos

Não me considero qualificado para dissertar sobre toxicodependência. O depoimento recolhido é, apenas, uma reprodução de memória, onde se alteraram os elementos identificativos.

Uma das causas que os psicoterapeutas apontam para o jovem se iniciar no consumo de drogas psicotrópicas tem a ver com a falta de afectos, de referências, de sentido de responsabilidade e da inversão do papel pais/filho. O jovem procurará incessantemente parceiros onde a relação humana não esteja presente o que lhe dá a ilusão de independência e poder. É manipulador, amoral, egocêntrico. Mas, faltando-lhe uma ligação afectiva sustentada, um vínculo sólido, mesmo que tivesse deixado de consumir, retoma a droga, que lhe traz euforia e a ilusão de felicidade. Os afectos, sempre os afectos. E, é por isso, que abordamos este tema.

E, na toxicodependência a família desempenha um papel-chave. Já não falo das famílias disfuncionais (violência doméstica, ambiente degradado, alcoolismo, etc.), mas daquelas aparentemente normais, embora descurando o essencial – a atenção ao adolescente, o carinho sem contrapartidas, a criação de regras e responsabilidade, a preocupação pelo próprio comportamento,. Mesmo presentes, os pais são demasiadas vezes ausentes. Não se podem substituir afectos por jogos de computador ou consolas, etc. Às famílias dos toxicodependentes passam muitas vezes despercebidos os primeiros consumos e, quando dão por isso, é tarde (passaram anos, por vezes) e recusam-se a aceitar a sua própria responsabilidade. Raramente são as “más companhias”, ou a má índole do jovem, as razões do desastre.

A crise económica, com a degradação da qualidade de vida que acarreta, agravou o problema. A Escola é o local onde se supõe que se educam os jovens, mas é uma ideia errada: a educação é tarefa dos pais.

Sou muito descrente da eficácia de quaisquer políticas sobre a toxicodependência. Daí que também entenda o desânimo dos governos e não concorde com a generalização da ideia de hipocrisia. O que leva um jovem a iniciar-se nas drogas duras? Qual o seu perfil psicológico, quais as omissões familiares? Mas, não conhecia ele o percurso dos viciados? O início do consumo poderá resultar de uma imprevidência, uma simples “experiência”, durante a adolescência ou na transição da infância para a adolescência. Mas a dependência e, logo a compulsão pelo consumo da droga, é uma doença,

Apoio, todo o apoio, a quem queira libertar-se (por meio de intervenções integradas medicamentosas e psicoterapêuticas). Mesmo sem haver muitas soluções, tem de se investir, insistir, prosseguir. Com os meios disponíveis, há que alargar a rede de Instituições governamentais e privadas de Solidariedade Social, capazes, de forma séria, minorar as consequências devastadoras da toxicodependência,

O texto e as imagens que o ilustram são arrasadores. Romy não chegou a escrever qualquer livro, mas concretizou um sonho: teve uma filha. Que não pôde desfrutar porque morreu, tempo depois. De overdose. Que descanse em paz.

FM
 

 

O apartamento era pequeno. Havia um aquário que separava o quarto da sala única. Numa das paredes um placard com fotografias de Romy, algumas tiradas em ambientes exóticos, com diferentes pessoas. “Aqui foi na Tailândia com este meu amigo. Andámos juntos e hoje somos amigos. Este, já morreu. Quando a tirou já estava muito mal. Esta, é a minha mãe, este o meu irmão. Este, é outro amigo meu, vivemos juntos 6 anos, estivemos para casar.” O aquário é iluminado e os peixes parecem deformados por um jogo de espelhos. Ondulam junto às paredes, parece terem fome. Dois deles com olhos saídos evocam uma exoftalmia. Uma pequena estante com livros com predomínio de filosofia oriental.

“Vivi no Casal (ventoso), havia casas sórdidas onde, no meio da merda e da urina, se preparava o chuto e curtíamos a ganza. Mas eu preferia injectar-me sozinha, ali perto, nas portas das casas de Campo de Ourique ou no vão da escada.”

“Hoje tenho o corpo todo cheio de cicatrizes. Mãos, braços, pernas. Às vezes parecia que já não tinha sítio! Quando se vêm os agarrados apoiados a um pau para andarem, como se fosse uma bengala, é porque têm infecções nas pernas causadas pelas agulhas.”

“Alguns dos sem-abrigo foram escorraçados de casa pelas famílias que já não podiam mais. Chantagens afectivas, roubos, todo o tipo de de misérias. Às vezes são enviados para centros de recuperação no estrangeiro, para quebrar os circuitos de amizades. Mas os resultados são maus. Se o agarrado não quiser mesmo sair da sua dependência, não há recuperação possível. Se as pessoas continuarem a dar dinheiro (a moedinha para arrumar o carro, p. ex.), vão gastá-lo numa dose, logo que o dinheiro baste. A ajuda é dar-lhes de comer ou vestir, não é dinheiro.”

“Aquilo que eu vi e porque passei, está sempre na minha cabeça. Os meus pais estão separados há muito. O meu irmão é só filho da minha mãe. O meu pai vive em S. Paulo, onde é Director-Geral de uma multinacional. O primeiro charro foi na Escola, onde estava como interna. Andei num bom colégio. Falo inglês e alemão correntemente. O meu padrasto, um dia ao ver-me em fase de privação e sem dinheiro, abusou de mim e eu condescendi, como passei a deixar, sempre que precisava de papel. Ao meu pai, se lhe telefono, tenho uma secretária que diz se ele está ou não, julgo que para filtrar a chamada. Quando eu andei pelo Casal fez saber que não me conhecia. Mesmo agora, que estou limpa, não me dá qualquer ajuda.”

“Se fui presa? Sim, uma vez. Às vezes fazíamos pequenos roubos – carteiras, esticão. Assaltos, foram alguns em casas desabitadas. Uma vez fomos caçados, ainda fugimos, mas a polícia agarrou-nos. Mas, foi só uma noite passada no Governo Civil. “

“Ao meu namorado que, ao princípio não era consumidor, algumas vezes ajudei a comprar droga. “

“Um dia tive uma overdose. Via uma luz ao fundo, eu a afastar-me, a procurar uma mão para me agarrar. Achei que ia morrer e nunca desejei tanto viver. Queria viver! Quando soube que era seropositiva, ao princípio fiquei incrédula, mas, claro, era verdade. Achei que tinha de mudar a minha vida. A sida para mim não é o problema principal, mas sim a dependência das drogas.”

“O que eu não percebo é porque não se perseguem os alcoólicos, que são também adictos como nós, e se importunam as pessoas se forem apanhadas a fumar um charro. Até o Clinton confessou que tinha experimentado quando era novo…E o tabaco, não é também uma dependência?! Mas é uma fonte de receita para os Impostos. E se liberalizarem as drogas leves, os traficantes deixam de ter lucro, não é?!”

“E quem são os grandes traficantes, não os que consomem, mas os que estão por detrás dos dealers, dos correios, etc? Os carteis, as máfias. Sei que é um problema também político, como sei que por cada carregamento apanhado há várias vezes outros que entram no circuito. Como há países onde os camponeses ganham mais se plantarem canabis que outras colheitas. Que há governos e países que vivem do tráfico. E a corrupção nas Polícias?! É só no estrangeiro?”

“E fazem alguma ideia de quanta gente importante, em todos os tipos de actividade, snifa cola? E o crack que é mais barato e tem uma acção mais rápida? E de tantas outras pastilhas excitantes, que se conseguem nas farmácias? E do ecstasy?”

“Todos os filhos da mãe, que não perceberam que estava doente, que era dependente de drogas, que faria tudo para as conseguir, a todos esses eu não vou poupar. Quero escrever um livro a denunciar a hipocrisia, a dizer tudo o que sei, desde os políticos que se servem da nossa desgraça para se promoverem, à caridadezinha para aliviar a consciência.”

“Abusaram de mim, quando me prostituí na Artilharia Um. Paravam os carros, eu metia a cabeça. Combinávamos, era mesmo no carro ou íamos para uma pensão, sacava o dinheiro e ia ao Casal comprar “produto”.

“Alguns eram gordos, cheiravam a suor e queriam sexo anal, que eu lhes batesse, ou coisas asim.”

“Uma vez aproveitei um descuido e mesmo no carro enquanto me dobrava sobre a braguilha do cliente, descobri com uma das mãos um maço de dinheiro que sorrateiramente introduzi na mala. Logo que pude, escapuli-me a correr.”

“Sempre preferi andar na rua a ir para os bares. Aí tem de se falar: nas tangas, por vezes diz-se a verdade, que importa se o cliente percebe ou não, às vezes nem nós sabemos o que é verdadeiro, do que é máscara! Mas falar é tornar as coisas mais claras, é recordar-nos ainda de um resto da pessoa que nós fomos ou que ainda somos. E isso dói. Na rua, ou se consegue sacar o dinheiro sem mais, ou na pior vai-se para uma pensão ou é mesmo ali no carro, sem grandes conversas.”

“Fugi de chulos e de outras putas.”

“Na prostituição é cada um por si. Desconfia-se de toda a gente. E a única coisa que eu precisava era de dinheiro. Estava agarrada, nada mais interessava. Não há amigos, há outros agarrados e os dealers que vendem para poder consumir. As ressacas são horríveis. É preciso mais uma dose e arranjar dinheiro para ela.”

“Pensei muitas vezes quando estava com um “cliente”: vingo-me de ti, do teu corpo, entrego-me com raiva, não sei quem és, um gajo qualquer que se calhar tem mulher e filhos. Metes uma puta no carro e vais para uma pensão manhosa. Mas não sabes, nem te interessa que sinto asco por ti, que me vendo porque preciso da dose. Despacha-te! “Como te chamas, afinal?”, quando tudo acabou. Está tudo dito, não é?!”

“Aprendi todas as tangas, sacar o dinheiro a quem o tivesse. Às vezes com a cumplicidade do motorista de táxi, metíamos o papalvo no táxi e logo que eu tivesse o dinheiro, arranjava um estratagema que o fizesse saír do carro e logo que ele estivesse fora, arrancávamos.”

“Fiz o meu curso de terapeuta, achava que precisava de ajudar os outros. Com os outros adictos conseguia criar grande empatia, em alguns casos falámo-nos incessantemente, quando recaíam e muitas vezes recaíam e me batiam à porta, procurava ajudá-los, mostrar-lhes que o chuto lhes fazia diminuir a auto-estima, que cada vez que recaíssem se iriam sentir pior por não terem sido capazes de se aguentar.”

“Quantas vezes recaí? Algumas, durante a desintoxicação, já lá vão sete anos. É por isso que somos um bocado fundamentalistas. Temos de estar atentos: a adicção leva-nos a substituir esta droga por qualquer outra dependência. E temos de perceber os sinais, desmontá-los, reagir a eles, discutir em grupo, em comunidade não como um exorcismo, mas para compararmos as experiências e nos tornarmos mais atentos. Hoje, sinto que preciso de desenvolver esta tarefa. É o objectivo da minha vida.”

“Hoje vivo cada dia, não posso perder tempo. Tentei trabalhar mas não consigo. Fazer o mesmo todos os dias, não me apetece. Tenho de espremer cada dia, sei que eles estão contados. Procuro aquilo que má prazer. Dizem que guio depressa, é verdade que gosto de assapar, é um gozo. Já perdi o conto das multas que me passaram! Não bebo mas fumo”. Como para corroborar, puxa um cigarro. Acende uns atrás de outros.”

“Não me vejo a fazer trabalhos da treta. Arranjar dinheiro, tenho-o conseguido. Tem havido pessoas que me têm ajudado, mas prefiro não falar disso.” Percebo que é um assunto melindroso e não insisto.

“Gostava de ter um filho, hei-de tê-lo. Já há maneiras de fazer com que não seja sero-positivo. Quando vejo uma overdose e prenderem os pequenos traficantes, que o fazem porque consomem e sei que os grandes narcotraficantes passam incólumes…Eles não traficam, fazem “lavagens de dinheiro”, ganho à custa da nossa doença, do nosso risco, da nossa vida. Às vezes aparecem nas revistas apontados como pessoas de sucesso, beneméritos, merdas dessas…Sinto uma raiva enorme. É uma hipocrisia total!”

Aquilo que mais impressiona é o total desencanto, a secura. Alguém que desceu ao Inferno e voltou. Não mostra qualquer complacência. É um desprezo frio por tudo e todos que estejam fora do seu mundo armado por droga, dependência, abusos, horrores (Apocalypse now?) . Arrebatada, calculista. Chegar ao fim da linha e olhar para trás. Abre uma caixa: uma foto dela com tranças, no Liceu Maria Amália. Tem prazer em desafiar o que quer que seja, arremete como um Miura. Não sabe, porventura, qual o seu caminho. Mas sabe que não vai por aí (como dizia o Régio). Conservará ainda algum resto de sensibilidade por detrás desta fachada? “Queres ver uns poemas meus?”

Olhares (e ver)