David e os amores felizes

Chamo-lhe David, como diria Sophia ou Eugénio. São poetas de cabeceira, os arautos dos nossos sonhos, aqueles que mais nos enternecem, os nossos íntimos. Aqueles que melhor exprimiram os afectos, os que perceberam a imensidade de tantas coisas pequenas: um búzio do tamanho do mar, uma anémona como um entardecer ou a descoberta do corpo amado, tão grande como uma vida, que com ele nasceu e que com ele morre. Outros grandes poetas são-nos mais distantes. Não chamo Fernando ao Pessoa ou Luís ao Camões.
Artesão das palavras, as frases foram construídas como aguarelas, com suas cores, seus contrastes, sua riqueza de matizes. Expõem ideias como definem emoções que se projectam no leitor feito cúmplice. Nas novelas e contos, as frases são depuradas. Há contenção verbal, raros os adjectivos. Os diálogos estão escritos como em teatro (e ele foi também autor de teatro). Mas, a poesia é a sua arte maior. Poeta dos sentidos, a sua escrita é erótica, sensual, como elegante e erudita.
No jogo entre dois corpos, o relato do marinheiro a navegar da boca à nuca e seio e anca, a descoberta das correntes, das enseadas e marés, a assombração e a tempestade, a brisa e a linha do horizonte. É um marinheiro que percorre uma e outra vez aquelas costas, que as conhece pelo tacto e pela voz, com a segurança da cabotagem.
O marinheiro tem os olhos inundados não só de mar como das vidas aportadas. Em muitas fundeou e de muitas trouxe notícia. E a todas elas acrescentou uma marca vitalícia. O marinheiro é mágico. Tudo em que toca se enobrece. É uma alquimia que faz do corpo amado, do seu rugido, do esplendor dos seus seios, sexo, língua, um mapa de volúpia e de desejo, onde a lascívia é um borbulhar de palavras sábias, rítmicas e medidas.
Foi Erhos quem iluminou David, porque o seu olhar enfeitiça quem o perscruta. E foi esse fulgor que se lhe estendeu aos sentidos. Só raros são contemplados. Chamam-lhe excepcional sensibilidade. Mas, David, foi mais além. Trabalhou amorosamente as palavras, feito ourives da língua portuguesa. E leu, estudou, traduziu e ensinou. A erudição metamorfoseou-a em conhecimento ao serviço dos olhos. Ele viu e ensinou algumas gerações a semiologia dos sentidos.
A mulher é o centro do mundo, para David. A mulher, cada mulher amada, é o ponto de partida para a aventura de viver, que se repete a cada ciclo ou que pode coexistir com outras histórias. Os pormenores dos encontros clandestinos (o copo de água, a fruta, a toalha) e os diálogos breves – mostram os vários protagonistas ligados pela cumplicidade, pelos projectos de vida em comum que não virão a concretizar-se. Em “Um amor feliz” os protagonistas têm percursos semelhantes – vivem adultérios com amigos dos cônjuges, cujas referências são as mesmas e que mais não são que as imagens ao espelho uns dos outros. Cujas histórias deixam em aberto a questão de saber se são amores felizes.

FM

 

 

Está feita a biografia de David Mourão-Ferreira (DM-F), nada temos a acrescentar. Sobre ele foram publicados numerosos ensaios, artigos e monografias académicas.Dum excelente programa, apresentado pela RTP2, após a sua morte em 1996, apresentamos uma versão “fatiada” pelas exigências do YouTube. Assim, apenas destacaremos os dados mais relevantes, convidando-os a visionar o referido programa

Poeta, professor universitário, ficcionista, ensaísta, crítico literário, dramaturgo, jornalista, tradutor e homem de televisão. “Imagens da Poesia Europeia » foi o programa que apresentou na RTP, e que o tornaram mais próximo do público. Aqui, recorria ao seu traquejo de professor-sedutor, lendo poemas na sua voz bem modulada, alguns dos quais ele mesmo traduzira. Foi uma presença à altura de João de Freitas Branco, que anos antes fora responsável pela mais fascinante divulgação da música dita clássica realizada na TV em Portugal. Ou de Vitorino Nemésio, de quem foi aluno.

Ficcionista, deixou alguns livros notáveis, como esse “Um amor feliz”. A sua escrita evoca a de Claude Roy, seu contemporâneo e com quem teve outras afinidades, como a de crítico, não de pintura, mas de poesia. E é a poesia o seu legado mais importante. A matriz erótica é uma característica importante, talvez a que mais perdura, mas não exclusiva.

DM-F deve ter sido o único grande poeta português que escreveu de propósito para ser cantado, mesmo que isso lhe merecesse reparos por parte da aristocracia académica. Ignorou-os. E, com isso, lucrou o fado que deixou de ser exclusivamente canção de marialvas e de tragédias de faca-e-alguidar. Com isso ganhou Amália ao saber saborear os versos frescos de DM-F e, depois, ela mesmo a exigir outros poemas e autores. Ganhámos todos.

“Deixa ficar comigo a madrugada, /para que a luz do Sol me não constranja. /Numa taça de sombra estilhaçada, /deita sumo de lua e de laranja. /Arranja uma pianola, um disco, um posto, /onde eu ouça o estertor de uma gaivota… /Crepite, em derredor, o mar de Agosto… /E o outro cheiro, o teu, à minha volta! /Depois, podes partir. Só te aconselho que acendas, para tudo ser perfeito, /à cabeceira a luz do teu joelho, /entre os lençóis o lume do teu peito… /Podes partir. De nada mais preciso /para a minha ilusão do Paraíso.” (Paraíso)

Oiça o poema

“Calidamente nua, /sob o vestido leve, /tua carne flutua /no desejo que teve.//Timidamente nua, /revelas, num /olhar, /em minhas mãos a lua /que te fez oscilar.” (Teoria das marés)

“Deitada és uma ilha E raramente /surgem ilhas no mar tão alongadas com tão prometedoras enseadas /um só bosque no meio florescente //promontórios a pique e de repente /na luz de duas gémeas madrugadas o fulgor das colinas acordadas /o pasmo da planície adolescente //Deitada és uma ilha Que percorro /descobrindo-lhe as zonas mais sombrias /Mas nem sabes se grito por socorro //ou se te mostro só que me inebrias /Amiga amor amante amada eu morro /da vida que me dás todos os dias “(Ilha)

“Desejei-te pinheiro à beira-mar /para fixar o teu perfil exacto. //Desejei-te encerrada num retrato /para poder-te contemplar. /Desejei que tu fosses sombra e folhas /no limite sereno desta praia. //E desejei: “Que nada me distraia /dos horizontes que tu olhas!”/ Mas frágil e humano grão de areia /não me detive à tua sombra esguia. //(Insatisfeito, um corpo rodopia na solidão que te rodeia.)” (Paisagem)

“Tudo que sou, no imaginado /silêncio hostil que me rodeia, /é o epitáfio de um pecado /que foi gravado sobre a areia. //O mar levou toda a lembrança. /Agora sei que me detesto: /da minha vida de criança /guardo o prelúdio dum incesto. /O resto foi o que eu não quis:/perseguição, /procura, enlace, /desse retrato feito a giz /pra que não mais eu me encontrasse. //Tu foste a noiva que não veio, /irmã somente prometida! /— O resto foi a quebra desse enleio. /O resto foi amor, na minha vida.” (Memória)

Professor convidado da Faculdade de Letras chegou a Catedrático sem ter feito doutorameneto, tal o prestígio que obteve. A sua actividade docente foi reconhecida internacionalmente, com a criação de cátedras pela Europa com o seu nome

Licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1951. Foi professor do Ensino Técnico e Liceal. Entre 1957 e 1963 foi assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde após afastamento político foi readmitido, como professor auxiliar, em 1970. O seu papel na regência das cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura Portuguesa marcou várias gerações de estudantes. A actividade docente posterior apenas foi interrompida para o exercício do cargo de Secretário do Estado da Cultura.

“Todo o amor que nos prendera/como se fora de cera se quebrava e desfazia ai funesta primavera /quem me dera, quem nos dera /ter morrido nesse dia//E condenaram-me a tanto /viver comigo meu pranto /viver, viver e sem ti/vivendo sem no entanto/eu me esquecer desse encanto /que nesse dia perdi //Pão duro da solidão /é somente o que nos dão /o que nos dão a comer /que importa que o coração /diga que sim ou que não /se continua a viver //Todo o amor que nos prendera /se quebrara e desfizera /em pavor se convertia /ninguém fale em primavera /quem me dera, quem nos dera /ter morrido nesse dia”

A persistência da memória – Salvador Dali (1931) “E por vezes as noites duram meses /E por vezes os meses oceanos /E por vezes os braços que apertamos /nunca mais são os mesmos E por vezes //encontramos de nós em poucos meses /o que a noite nos fez em muitos anos /E por vezes fingimos que/lembramos /E por vezes lembramos que por vezes //ao tomarmos o gosto aos oceanos /só o sarro das noites não dos meses /lá no fundo dos copos encontramos //E por vezes sorrimos ou choramos /E por vezes por vezes ah por vezes /num segundo se envolam tantos anos. (E por vezes as noites duram meses)”

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A sua obra poética é extensa. De salientar: Tempestade de Verão (1954, Prémio Delfim Guimarães), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), In Memoriam Memoriae (1962), Infinito Pessoal ou A Arte de Amar (1962), Do Tempo ao Coração (1966), A Arte de Amar (1967, reunião de obras anteriores), Lira de Bolso (1969), Cancioneiro de Natal (1971, Prémio Nacional de Poesia), Matura Idade (1973), Sonetos do Cativo (1974), As Lições do Fogo (1976), Obra Poética (1980, inclui as obras À Guitarra e À Viola e Órfico Ofício), Os Ramos e os Remos (1985), Obra Poética, 1948-1988 (1988) e Música de Cama (1994, antologia erótica com um livro inédito).

A bibliografia de ensaísta é também rica, com a atribuição de numerosos prémios. No que se refere à ficção: estreia em 1959 com as novelas de Gaivotas em Terra (Prémio Ricardo Malheiros), os contos de Os Amantes (1968), e ainda As Quatro Estações (1980, Prémio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários), Um Amor Feliz, romance que o consagrou como ficcionista em 1986 e que lhe valeu vários prémios, entre os quais o Grande Prémio de Romance da APE e o Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, e Duas Histórias de Lisboa (1987).

Nu de Gala, mulher de Salvador Dali (1945) “Quantos em ti lagos e rios /Quantos em ti os oceanos //Água vermelha que aos ouvidos /traz o aviso /de nenhuns campos //É bom sondarmos os abismos /que nunca vão cicatrizando //E ao som da água pressentirmos /de onde provimos /aonde vamos” (XXV)

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“É isto vivemos dentro /de grandes blocos de gelo /sem aquecermos ao menos /com os dedos outros dedos /No fundo de nós temendo /que um dia se quebre o gelo ” (Blocos)

“Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo. /Que dizer do pescoço, às vezes mármore, /às vezes linho, lago, tronco de árvore, /nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco … ?//E o ventre, inconsistente como o lodo? … /E o morno gradeamento dos teus braços? /Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne: /é também água, terra, vento, fogo …//É sobretudo sombra à despedida; /onda de pedra em cada reencontro; /no parque da memória o fugidio//vulto da Primavera em pleno Outono … /Nem só de carne é feito este presídio, /pois no teu corpo existe o mundo todo!” (Música)

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“Desvio dos teus ombros o lençol, /que é feito de ternura amarrotada, /da frescura que vem depois do sol, /quando depois do sol não vem mais nada …//Olho a roupa no chão: que tempestade! /Há restos de ternura pelo meio, /como vultos perdidos na cidade /onde uma tempestade sobreveio …//Começas a vestir-te, lentamente, /e é ternura também que vou vestindo,/para enfrentar lá fora aquela gente //que da nossa ternura anda sorrindo … Mas ninguém sonha a pressa com que nós /a despimos assim que estamos sós!”

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A Távola Redonda foi uma revista literária que apareceu nos anos 50, criada por um grupo de jovens poetas, entre os quais António Manuel Couto Viana (recentemente falecido) e David Mourão-Ferreira. Sem ter uma linha programática definida, pretendia-se sem reservas ideológicas ou preconceitos de ordem estética. Insurgia-se contra a literatura empenhada e social que, segundo eles, imperava no panorama poético português. A originalidade da publicação consistiria em procurar dar voz a uma poesia mais próxima da tradição lírica portuguesa.

Talvez que pelo seu afastamento do neo-realismo e da literatura politicamente engajada, DM-F não tivesse sido “banido” pelo Estado Novo, mesmo tendo sido membro do MUD Juvenil. No entanto, foi afastado do ensino entre 1963 e 1970, na sequencia da Crise Académica de 62

Fac-similae de Vértice

“Sem sombra de pecado” (1982), filme de José Fonseca e Costa, a partir de conto de DM-F. Baseado em “Um amor feliz”, Artur Ramos realizou uma série televisiva de quatro episódios, apresentada pela RTP em 1990.

“Os Amantes”, livro de contos

“Deixa ficar a flor, /a morte na gaveta, /o tempo no degrau. /Conheces o degrau: /o sétimo degrau /depois do patamar; /o que range ao passares; /o que foi esconderijo /do maço de cigarros /fumado às escondidas… /Deixa ficar a flor. /E nem murmures. Deixa/o tempo no degrau, /a morte na gaveta. /Conheces a gaveta: /a primeira da esquerda, /que se mantém fechada. /Quem atirou a chave /pela janela fora? /Na batalha do ódio, /destruam-se, fechados, /sem tréguas, os retratos! /Deixa ficar a flor. /A flor? Não a conheces. /Bem sei. Nem eu. Ninguém. /Deixa ficar a flor. /Não digas nada. Ouve. /Não ouves o degrau? /Quem sobe agora a escada? /Como vem devagar! /Tão devagar que sobe… /Não digas nada. Ouve: /é com certeza alguém, /alguém que traz a chave. /Deixa ficar a flor.” (As últimas vontades)

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Colectânea da Obra Poética

“Nem o Tempo tem tempo /para sondar as trevas //deste rio correndo/entre a pele a pele //Nem o Tempo tem tempo /nem as tréguas dão tréguas //Não descubro o segredo /que o teu corpo segrega.” (Segredo)

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Oiça o excerto

“Que importa o gesto não ser bem /o gesto grácil que terias? /— Importa amar, sem ver a quem… /Ser mau ou bom, conforme os dias. //Agora, tu só entrevista, /quantas imagens me trouxeste! /Mas é preciso que eu resista /e não acorde um sonho agreste. //Que passes tu! Por mim, bem sei /que hei-de aceitar o que vier, /pois tarde ou cedo deverei de sonho e pasmo apodrecer. //Que importa o gesto não ser bem /o gesto grácil que terias? /— Importa amar, sem ver a quem… /Ser infeliz, todos os dias!” (Canção amarga)

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A Itália era para David uma paixão. Sobre Roma: “Há cidades que nos voltam as costas, sem chegarem sequer a olhar para nós. Há outras que nos sacodem a mão, cordialmente, num sóbrio shake-hand de boas-vindas, e que depois lá seguem para os seus afazeres, os seus divertimentos, os seus labirintos em que nunca haveremos de penetrar. Há também as que discutem connosco, logo desde o primeiro encontro, mas que por isso mesmo se nos tornam indispensáveis. E as que nos provocam; as que nos irritam; as que se divertem à nossa custa. Há ainda as que sabem de cór os mais secretos dialectos do desejo – para nos deixarem enrodilhados, insatisfeitos e melancólicos, na madrugada de frios arrabaldes. Há todavia, pelo contrário, as que nos vestem de música e de luz; que nos fazem lembrar, a cada passo, as irmãs mais velhas que não tivemos; que nos escutam com atenção – quando ficamos em silêncio – nas esplanadas do crepúsculo. Mas há apenas uma, entre todas, longe ou perto, que maternalmente nos estende os braços.”

Tentei fugir da mancha mais escura /que existe no teu corpo, e desisti. /Era pior que a morte o que antevi: /era a dor de ficar sem sepultura.//Bebi entre os teus flancos a loucura /de não poder viver longe de ti: /és a sombra da casa onde nasci, /és a noite que à noite me procura.//Só por dentro de ti há corredores /e em quartos interiores o cheiro a fruta /que veste de frescura a escuridão…//Só por dentro de ti rebentam flores. /Só por dentro de ti a noite escuta /o que sem voz me sai do coração. (Música)

Oiça o poema

Ainda sobre Roma: “Mas como hei-de explicar, perante mim próprio, a inquietante fascinação que me produzem as formas elípticas de algumas destas praças, as cúpulas e as abóbadas da maior parte destes templos, os vermelhos vivos e os ocres quentes de que estão pintados tantos destes prédios? Sento-me na esplanada de um café, em plena Via Nazionale, e basta-me contemplar o alto de um edifício, onde essas duas cores tão depressa se contrapõem como logo se fundem uma na outra, para imediatamente experimentar uma estranha sensação de paz e de segurança, um halo de intimidade, uma espécie de abrigo contra o frenético movimento que vai na rua. Mais tarde, na Piazza Navona, surpreendo-me a girar como que dentro de um aquário, a sentir-me incapaz de me arredar dali…

Após a revolução, DM-F foi director do jornal A Capital e depois director-adjunto de O Dia, sob a direcção de Vitorino Nemésio; entre 1984 e 1986 foi presidente da Associação Portuguesa de Escritores, entre 1984 e 1992 vice-presidente da Association Internationale des Critiques Littéraires e, em 1991, presidente do Pen Club Português; foi responsável pelo Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian a partir de 1981; e dirigiu, desde 1984, a revista Colóquio/Letras, da mesma instituição.

DM-F (1927-1996) pôde assistir à sua própria entronização. O reconhecimento público não necessitou do futuro. Já doente, as homenagens sucederam-se. Conseguira uma quase unanimidade. O seu talento multifacetado tinha-o feito atingir todas as camadas sociais. Agora, passados 14 anos sobre a sua morte, deve sublinhar-se aquilo que de facto é mais importante: a poesia. A poesia da sensualidade, do gosto assumido pela mulher pelo seu corpo pelo seu amor e pela memória dele. Poucos são os que deambulam pelas margens do fogo com a distinção de um cavalheiro.

Chamo-lhe David, como diria Sophia ou Eugénio. São poetas de cabeceira, os arautos dos nossos sonhos, aqueles mais nos enternecem, os nossos íntimos. Aqueles que melhor exprimiram os afectos, os que perceberam a imensidade de tantas coisas pequenas: um búzio do tamanho do mar, uma anémona como um entardecer ou a descoberta do corpo amado, tão grande como uma vida, que com ele nasceu e que com ele morre. Outros grandes poetas são-nos mais distantes. Não chamo Fernando ao Pessoa ou Luís ao Camões.
Artesão das palavras, as frases foram construídas como aguarelas, com suas cores, seus contrastes, sua riqueza de matizes. Expõem ideias como definem emoções que se projectam no leitor feito cúmplice. Nas novelas e contos, as frases são depuradas. Há contenção verbal, raros os adjectivos. Os diálogos estão escritos como em teatro (e ele foi também autor de teatro). Mas, a poesia é a sua arte maior. Poeta dos sentidos, a sua escrita é erótica, sensual, como elegante e erudita.
No jogo entre dois corpos, o relato do marinheiro a navegar da boca à nuca e seio e anca, a descoberta das correntes, das enseadas e marés, a assombração e a tempestade, a brisa e a linha do horizonte. É um marinheiro que percorre uma e outra vez aquelas costas, que as conhece pelo tacto e pela voz, com a segurança da cabotagem.
O marinheiro tem os olhos inundados não só de mar como das vidas aportadas. Em muitas fundeou e de muitas trouxe notícia. E a todas elas acrescentou uma marca vitalícia. O marinheiro é mágico. Tudo em que toca se enobrece. É uma alquimia que faz do corpo amado, do seu rugido, do esplendor dos seus seios, sexo, língua, um mapa de volúpia e de desejo, onde a lascívia é um borbulhar de palavras sábias, rítmicas e medidas.
Foi Erhos quem iluminou David, porque o seu olhar enfeitiça quem o perscruta. E foi esse fulgor que se lhe estendeu aos sentidos. Só raros são contemplados. Chamam-lhe excepcional sensibilidade. Mas, David, foi mais além. Trabalhou amorosamente as palavras, feito ourives da língua portuguesa. E leu, estudou, traduziu e ensinou. A erudição metamorfoseou-a em conhecimento ao serviço dos olhos. Ele viu e ensinou algumas gerações a semiologia dos sentidos.
A mulher é o centro do mundo, para David. A mulher, cada mulher amada, é o ponto de partida para a aventura de viver, que se repete a cada ciclo ou que pode coexistir com outras histórias. Os pormenores dos encontros clandestinos (o copo de água, a fruta, a toalha) e os diálogos breves – mostram os vários protagonistas ligados pela cumplicidade, pelos projectos de vida em comum que não virão a concretizar-se. Em “Um amor feliz” os protagonistas têm percursos semelhantes – vivem adultérios com amigos dos cônjuges, cujas referências são as mesmas e que mais não são que as imagens ao espelho uns dos outros. Cujas histórias deixam em aberto a questão de saber se são amores felizes.

FM

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