Sophia e o espírito do mar

É um vulto feminino envergando uma túnica branca, os pés descalços na areia molhada. É o extenso areal da Meia-Praia. Antigamente, mesmo em setembro, as dunas estavam desertas e no ligeiro declive mais atrás havia, aqui e ali, alfarrobeiras que deixavam um odor intenso. Via-se a escola, o recorte da baía e a linha férrea onde, de tempos a tempos, passava um comboio vagaroso que anunciava aos silvos a sua aproximação.
Mas também em Cacela, o mesmo vulto se vislumbra. A língua de areia separa a vila do oceano. Ao entardecer daquele pequeno largo junto à Fortaleza vêm-se pessoas à procura de lingueirões e conquilhas, na ria estão demarcados os viveiros de ostras. O mar é azul, desfaz-se em espuma branca. Os pés imprimem marcas, há gaivotas planando. De pequenos orifícios na areia emergem caranguejos. Adiante jaz uma alforreca esponjosa trazida pela maré cheia. Fitas de algas, conchas, búzios e, mesmo junto à linha de água, calhaus rolados. E um solo lodoso.
É dessas praias, das falésias e rochas, desse mar, às vezes verde, outras, azul, às vezes sereno outras vezes bravio, dessa luz, do rebentar das suas vagas, dos odores, da magia, – que a poesia parte e regressa, descobre, inventa e justifica. Mar de pescadores e marinheiros, das viagens, das ilhas, dos naufrágios e das descobertas. O mar – para quem tem o privilégio de o desfrutar, espaço de apaziguamento, gestor do equilíbrio cósmico. Pelo mar, reconciliamo-nos com a vida e percebemos de modo agudo o sentido da Verdade e da Justiça.
O vulto é o espírito do mar. Nele habitam seres assombrosos – os deuses fantásticos que representam o destino, os conflitos, os medos, os desafios e a morte. Nesse espírito transparece o fascínio pelas grutas, amostras do fundo do mar. Este é límpido e transparente, milagre de cores e formas, carregadas de símbolos. A medusa e a inevitabilidade do desconhecido. Os cascos de velhos veleiros de mastros partidos cobertos por limos, como farrapos da nossa memória. As ilhas, expressão da alegria de estar vivo e no fulgor da vida, mito do eterno retorno, como de Ulisses a Ítaca, para a sua renovação ou ressurreição. Mas também a solidão e a saudade dos que, como Penélope, aguardavam o seu regresso. E, sempre o mar.
É o espírito do mar, que transparece da poesia de Sophia de Melo Breyner Andresen. Com ele, tudo começou.
O vulto que deambula pela praia, transporta a simplicidade essencial coexistindo com a erudição e a paixão pela cultura grega. Mas, também nela se encontra inscrito o amor. Eros, Apolo, Teseu são deuses belos, irresistíveis e cúmplices das paixões humanas. Como não levantar os olhos para a majestade de uma estátua e de não projetar nela a admiração pela grandeza de quem se ama?
O mergulho metafórico no mar leva Sophia ao encontro de tudo aquilo que é ancestral na cultura greco-romana – das tradições, lendas e mitos, patentes nas tragédias e poesia clássicas. Quem foi o deus, diante de cujos cânticos as folhas se curvavam para melhor escutar? Quem, generoso e forte, teve coragem de desafiar a bestialidade e a opressão? Quem, depois de grave perda, cometeu o erro de olhar para trás e não perceber que algo que já foi, jamais regressa? Quem sonhou os maiores cometimentos, mas não teve a sensatez de medir as dificuldades, os riscos de queda e ao soçobrar, mudar para sempre o curso da sua vida? Quem eram as divindades que personificavam o rancor, a cobiça, o ciúme e a inveja? Como sair de um labirinto, construído para nos desorientar e perder? Onde encontrar o fio de Ariadne que nos auxilie nos labirintos da vida?

Deuses pagãos ou o mesmo único Deus, telúrico, cristão, eis uma questão em aberto. Mas talvez a resposta esteja na procura do cristianismo através da limpidez das águas, do encantamento das praias, dos símbolos das lendas antigas. Mas também, no louvor da coragem e generosidade dos que nada para si quiseram, quando tudo podiam ter exigido. Dos heróis modestos que se levantaram quando era preciso, mas que se desvaneceram ao entender que o seu papel estava cumprido. Daqueles, cujo sofrimento exige reparação, para que os justos prevaleçam, pelo menos para que se faça justiça à sua memória. É uma liturgia feita de palavras solares, luminosas segundo os princípios da Liberdade.

Na obra de Sophia têm papel incontornável os contos infantis. Fantasias maravilhosas protagonizadas por crianças em ambientes mágicos. Sempre o mar e a praia, mas também a floresta e animais, e com a presença de fadas, anões, animais humanizados, sempre numa perspetiva ética, no seu apelo à Harmonia e Natureza. Como esquecer A Menina do Mar e dos seus amigos caranguejo, polvo e peixe…

Folhear Uma vida de poeta, além de manuscritos, alguns inéditos, é descobrir reflexões, desenhos, postais, fac-simile da capa dos seus livros, vê-la com o marido Francisco Sousa Tavares e os filhos, e no meio de amigos. De repente, recordar, também, Eugénio de Andrade, Agustina, Jorge de Sena, João Gaspar Simões, Graça Morais, Miguel Torga, José Régio, José Cardoso Pires, João Bénard da Costa, Ruben A., Luis Lindley Cintra e tantos outros. Causa um frémito esta amostra do espólio de Sophia.
Em Lisboa, no bairro da Graça, onde Sophia morou, é possível ver o Tejo, como também o Castelo de S. Jorge. Da sua janela talvez tivesse imaginado as viagens antigas e as descobertas, como o Cabo Bojador e Gil Eanes, que ao dobrá-lo derrotou o medo e os preconceitos antigos. Mas não só no Tejo, nem nas navegações henriquinas. Desde criança, muitos momentos felizes passaram-se na Praia da Granja (Gaia), de que faz relatos das dunas e da Casa da Praia. Aliás, as Casas, como a de Campo Alegre, grandes ou pequenas, têm descrições vivas por toda a sua obra. Fala dos jardins, dos quartos, dos objetos que neles havia, na tentativa de materializar a memória deles. As Casas, local de refúgio e de segurança, em contraponto à Cidade, hostil e desumanizada.
O espírito do mar adensou-se na descoberta do Algarve, nas suas viagens às ilhas gregas e dos Açores, como nas viagens a Macau e Timor, nas leituras dos clássicos, talvez trazido por um seu bisavô que, de uma ilha da Dinamarca, embarcou à aventura e arribou ao Porto. A ele se atribui a frase que tão próxima é de si. “O mar é o caminho para minha casa”. O espírito do mar em Sophia.

FM

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen (1912-2004), natural do Porto, proveio de uma família tradicional e aristocrática. Quando nasceu, seu avô recebeu um cartão da rainha D. Amélia felicitando-o pelo nascimento da sua neta Andresen (o pai de Sophia era dinamarquês). Viveu uma infância feliz e dessa época – dos jardins da casa de família, das férias passadas na praia da Granja, veio material que aparece projectado nos seus contos infantis. Aos 10 anos foi viver para Lisboa e, depois, durante a frequência do Curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras, nasceu a paixão pela mitologia grega. (Desenho de Arpad Szenes)

Na sua poesia está patente o ideal de beleza das esculturas e cerâmica clássicas como dos mitos, relatos e suas interpretações, feitos ao longo de toda a Antiguidade na poesia ou no teatro. Mas também o mar, o sol, não só das ilhas gregas como do Algarve de Lagos. E a luta pela Liberdade e pela Justiça.

Casou-se com Francisco Sousa Tavares, que foi dos principais oposicionistas do regime de Salazar, como também durante o PREC, senhor de uma escrita vigorosa, galvanizou a maioria do povo, atordoada pela nova tentativa totalitária. Ao lado do marido, Sophia teve uma militância política ativa. Integrou a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos, subscreveu o “Manifesto dos 101”, um documento com críticas desassombradas ao salazarismo. Já depois do 25 de Abril, foi eleita deputada à Assembleia Constituinte, nas listas do Partido Socialista (fotografia de João Cutileiro)

“Lagos onde reenventei o mundo num verão ido/ Lagos onde encontrei/ Uma nova forma do visível sem memória/ Clara como a cal concreta como a cal/ Lagos onde aprendi a viver rente/ Ao instante mais nítido e recente// Lagos que digo como passado agora/ Como verão ido absurdamente ausente//Quase estranho a mim e nunca tido”

“Foi um país que encontrei de frente/ Desde sempre esperado e prometido/ O puro dom de ter nascido/ E o sol reinava em Lagos transparente”

“Lagos lição de lucidez e liso/ Onde estar vivo se torna mais completo/ – Como pode meu ser ser distraído/ De sua luz de prumo e de projecto?”

“Ou poderemos Abril ter perdido/ O dia inicial inteiro e limpo/ Que habitou nosso tempo mais concreto?/ Será que vamos paralelamente/ Relembrar e chorar como um verão ido/ O país linear e transparente//E sua luz de prumo e de projecto

“Em Lagos/ Virada para o mar como a outra Lagos/ Muitas vezes penso em Leopoldo Sedar Senghor:/ A precisa limpidez de Lagos onde a limpeza/ É uma arte poética e uma forma de honestidade/ Acorda em mim a nostalgia de um projecto/ Racional limpo e poético// Os ditadores – é sabido – não olham para os mapas/ Suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões/ O seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos/ Jovens corpos mortos ao longo das extensões/ Na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil/ Aceitar o confuso o disforme a ocultação//…

…Na nitidez de Lagos onde o visível/ Tem recorte simples e claro de um prjecto/ O meu amor da geometria e do concreto/ Rejeita o balofo oco da degradação// Na luz de Lagos matinal e aberta/ Na praça qudrada tão concisa e grega/ Na brancura da cal tão veemente e directa/ O meu país se invoca e projecta.”

A CONQUISTA DE CACELA: As praças fortes foram conquistadas /Por seu poder e foram sitiadas/ As cidades do mar pela riqueza //Porém Cacela /Foi desejada só pela beleza

PRAIA: “Os pinheiros gemem quando passa o vento/ O sol bate no chão e as pedras ardem./ Longe caminham os deuses fantásticos do mar/ Brancos de sal e brilhantes como peixes.// Pássaros selvagens de repente,/ Atirados contra a luz como pedradas,/ Sobem e morrem no céu verticalmente/ E o seu corpo é tomado nos espaços./ As ondas marram quebrando contra a luz/ A sua fronte ornada de colunas.// E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro/ Baloiça nos pinheiros.”

“Reino de medusas e água lisa/ Reino de silêncio luz e pedra/ Habitação das formas espantosas/ Coluna de sal e círculo de luz/ Medida da Balança misteriosa”

A ANÉMONA DOS DIAS: Aquele que profanou o mar / E que traiu o arco azul do tempo / Falou da sua vitória // Disse que tinha ultrapassado a lei / Falou da sua liberdade / Falou de si próprio como de um Messias// Porém eu vi no chão suja e calcada / transparente anémona dos dias.

“Para atravessar contigo o deserto do mundo/ Para enfrentarmos juntos o terror da morte/ Para ver a verdade, para perder o medo/ Ao lado dos teus passos caminhei// Por ti deixei meu reino meu segredo/ Minha rápida noite meu silêncio/ Minha pérola redonda e seu oriente/ Meu espelho minha vida minha imagem/ E abandonei os jardins do parais// Cá fora à luz sem véu do dia duro/ Sem os espelhos vi que estava nua/ E ao descampado se chamava tempo// Por isso com teus gestos me vestiste/ E aprendi a viver em pleno vento.”

“Bebido o luar, ébrios de horizontes,/ Julgamos que viver era abraçar/ O rumor dos pinhais, o azul dos montes/ E todos os jardins verdes do mar.// Mas solitários somos e passamos,/ Não são nossos os frutos nem as flores,/ O céu e o mar apagam-se exteriores/ E tornam-se os fantasmas que sonhamos.// Por que jardins que nós não colheremos,/ Límpidos nas auroras a nascer,/ Por que o céu e o mar se não seremos/ Nunca os deuses capazes de os viver”

UM DIA: Um dia, gastos, voltaremos/ A viver livres como os animais/ E mesmo tão cansados floriremos/ Irmãos vivos do mar e dos pinhais.//O vento levará os mil cansaços/ Dos gestos agitados irreais/ E há-de voltar aos nosso membros lassos/A leve rapidez dos animais.//Só então poderemos caminhar/ Através do mistério que se embala/ No verde dos pinhais na voz do mar/ E em nós germinará a sua fala.

“Se todo o ser ao vento abandonamos/ E sem medo nem dó nos destruímos,/ Se morremos em tudo o que sentimos/ E podemos cantar, é porque estamos/ Nus em sangue, embalando a própria dor/ Em frente às madrugadas do amor./ Quando a manhã brilhar refloriremos/ E a alma possuirá esse esplendor/ Prometido nas formas que perdemos.”

DE UM AMOR MORTO: “De um amor morto fica/ Um pesado tempo quotidiano/ Onde os gestos se esbarram/ Ao longo do ano// De um amor morto não fica/ Nenhuma memória/ O passado se rende/ O presente o devora/ E os navios do tempo/ Agudos e lentos/ O levam embora// Pois um amor morto não deixa/ Em nós seu retrato/ De infinita demora/ É apenas um facto/ Que a eternidade ignora”

AS PESSOAS SENSIVEIS: “As pessoas sensíveis não são capazes/ De matar galinhas/ Porém são capazes/ De comer galinhas// O dinheiro cheira a pobre e cheira/ À roupa do seu corpo/ Aquela roupa/ Que depois da chuva secou sobre o corpo/ Porque não tinham outra/ O dinheiro cheira a pobre e cheira/ A roupa/ Que depois do suor não foi lavada/ Porque não tinham outra// “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”/ Assim nos foi imposto/ E não:/ “Com o suor dos outros ganharás o pão.”// Ó vendilhões do templo/ Ó constructores/ Das grandes estátuas balofas e pesadas/ Ó cheios de devoção e de proveito// Perdoai-lhes Senhor/ Porque eles sabem o que fazem.”

“Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo//Mal de te amar/ neste lugar de imperfeição/ Onde tudo nos quebra e emudece/ Onde tudo nos mente e nos separa”

“A hora da partida soa quando / Escurece o jardim e o vento passa, // Estala o chão e as portas batem, quando / A noite cada nó em si deslaça. //A hora da partida soa quando / as árvores parecem inspiradas / Como se tudo nelas germinasse. //Soa quando no fundo dos espelhos / Me é estranha e longínqua a minha face / E de mim se desprende a minha vida.”

Fortaleza de Sagres

IMPROVISO QUASE RELIGIOSO… Discordarei do mar/ enquanto a terra me for tão próxima/ tenho saudades de ondas/ que façam parte de nós/ e nos prolonguem/ já nos vimos tão perto/ de todos os cais/ já tivemos um pé/ em todos os barcos/ já fomos livres/ de nos prendermos/ talvez nos falte apenas a sabedoria /do amanhecer ou do pôr-do-sol/ uma espécie de livro sagrado/ antes da sagração de todos os deuses.”

O POEMA: “O poema me levará no tempo/ Quando eu já não for eu/ E passarei sozinha/ Entre as mãos de quem lê// O poema alguém o dirá/ Às searas// Sua passagem se confundirá/ Como rumor do mar com o passar do vento// O poema habitará/ O espaço mais concreto e mais atento/ No ar claro nas tardes transparentes/ Suas sílabas redondas// (Ó antigas ó longas/ Eternas tardes lisas)//Mesmo que eu morra o poema encontrará/ Uma praia onde quebrar as suas ondas// E entre quatro paredes densas/ De funda e devorada solidão/ Alguém seu próprio ser confundirá/ Com o poema no tempo/”

O mar azul e branco e as luzidias/ Pedras – O arfado espaço/ Onde o que está lavado se relava/ Para o rito do espanto e do começo/ Onde sou a mim mesma devolvida/ Em sal espuma e concha regressada/ À praia inicial da minha vida.

Aqui nesta praia onde/ Não há nenhum vestígio de impureza/ Aqui onde há somente/ Ondas tombando/ininterruptamente. /Puro espaço e lúcida unidade.

Na luz oscilam os múltiplos navios/ Caminho ao longo dos oceanos frios// As ondas desenrolam os seus braços/ E brancas tombam de bruços// A praia é lis e longa sob o vento/ Saturada de espaços e maresia// E para trás fica o murmúrio//Das ondas enroladas como búzios.

AÇORES: “Há um intenso orgulho/Na palavra Açor /E em redor das ilhas/O mar é maior/ Como num convés/ Respiro amplidão/ No ar brilha a luz/ Da navegação//Mas este convés é de terra escura de lés a lés/ Prado agricultura/ É uma terra lavrada /Por navegadores/ E os que no mar pescam/ São agricultores//Por isso há nos homens /Aprumo de proa/ E não sei que sonho/ Em cada pessoa /As casas são brancas/ Em luz de pintor /Quem pintou as barras/ Afinou a cor//Aqui o antigo/Tem o limpo do novo./É o mar que traz/ Do largo o renovo//…

…E como num convés /De intensa limpeza /Há no ar um brilho/ De bruma e clareza//É convés/ lavrado/ Em plena amplidão/ É o mar que traz/ As ilhas na mão//Buscámos no mundo/ Mar e maravilhas/ Deslumbradamente/ Surgiram nove ilhas//E foi na Terceira/ Com o mar à proa/ Que nasceu a mãe/ Do poeta Pessoa//Era cujo poema/ Respiro amplidão/ E me cerca a luz/ Da navegação//Em cujo poema/ Como num convés/ A limpeza extrema/Luz de lés a lés//Poema onde está/A palavra pura/De um povo cindido /Por tanta aventura.”

GRUTA DE CAMÕES: “Dentro de mim sobe a imagem dessa gruta/ Cujo silêncio ainda escuta/ Os teus gestos e os teus passos.// Aí, diante do mar como tu transbordante/ De confissão e segredo,/ Choraste a face pura/ Das brancas amadas/ Mortas tão cedo.”

Heraclito de Epheso diz: “O pior de todos os males seria/ a morte da palavra”// Diz o provérbio do Malinké: “Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento/ Mas não pode/ Enganar-se na sua parte de palavra”

PORQUE: “Porque os outros se mascaram mas tu não/ Porque os outros usam a virtude/ Para comprar o que não tem perdão/ Porque os outros têm medo mas tu não//Porque os outros são os túmulos caiados/ Onde germina calada a podridão./ Porque os outros se calam mas tu não.//Porque os outros se compram e se vendem/ E os seus gestos dão sempre dividendo./ Porque os outros são hábeis mas tu não.//Porque os outros vão à sombra dos abrigos/ E tu vais de mãos dadas com os perigos./ Porque os outros calculam mas tu não”. (Apolo)

Chimera Apulia Louvre

“As três Parcas que tecem os errados/ Caminhos onde a rir atraiçoamos /O puro tempo onde jamais chegamos/ As três Parcas conhecem os maus fados//Por nós elas esperam nos trocados/ Caminhos onde cegos nos trocamos/ Por alguém que não somos nem amamos/ Mas que presos nos leva e dominados.//E nunca mais o doce vento aéreo/ Nos levará ao mundo desejado/ E nunca mais o rosto do mistério//Será o nosso rosto conquistado/ Nem nos darão os deuses o império/ Que à nossa espera tinham inventado.”

DIONYSOS: “Entre as árvores escuras e caladas/ O céu vermelho arde,/ E nascido da secreta cor da tarde/ Dionysos passa na poeira das estradas// A abundância dos frutos de Setembro/ Habita a sua face e cada membro/ Tem essa perfeição vermelha e plena,/ Essa glória ardente e serena/ Que distinguia os deuses dos mortais.”

ânfora

As aventuras de Teseu são referidas desde a Antiguidade na literatura e cerâmica, com diferentes interpretações e relatos. A sua origem é obscura – descende longinquamente de Zeus, e é filho de Posídon. No entanto, Egeu, rei de Atenas, julga-o seu filho. Quando Teseu nasce, Egeu já desesperava por descendência e temendo a cobiça dos seus sobrinhos, que ambicionavam a sucessão, deixou-o entregue à mãe e avô, recomendando que ele só viesse para Atenas quando fosse suficientemente forte. É na adolescência que Teseu parte, lutando e matando diversos monstros sanguinários.

O Minotauro nasceu da união contra-natura de Pasífae, esposa de Minos, com um toiro belíssimo, que Posídon fizera sair do mar, como prova do favor divino que fizera Minos reinar em Creta. Minos prometeu sacrificá-lo mas não cumpriu a promessa. Furioso, Posídon enlouqueceu o toiro que devastava toda a ilha e fez despertar uma paixão louca de Pasífae pelo animal. Dédalo, arquitecto ateniense exilado em Creta, a pedido de Pasífae, constrói uma vaca oca de madeira, dentro da qual a rainha se escondeu, enganando o toiro, e, assim, conseguir unir-se a ele.

O Minotauro tinha corpo de homem e cabeça de touro, era extremamente feroz e alimentava-se de carne humana. Minos, aterrado e envergonhado, mandou construir um intrincado labirinto, do qual ninguém conseguia sair, e prendeu o Minotauro no seu interior. Segundo a lenda, o Labirinto, foi também construído por Dédalo, que o fez cheio de desvios enganosos, sinuosidades, comunicações inumeráveis, como o rio Meandro. Quem entrasse, mal acabasse de sair, logo se introduzia noutro labirinto.

Como tributo de uma guerra travada contra Atenas, motivada pela morte de seu filho Androgeu, Minos exigiu que os atenienses mandassem anualmente a Creta sete rapazes e sete moças, que seriam oferecidos para alimento do Minotauro. Se o Minotauro morresse, o tributo cessaria. Teseu decide incorporar um desses grupos. É introduzido no Labirinto, liquida o monstro e consegue sair daquele dédalo, graças à ajuda de Ariane, filha de Minos, que por ele se apaixonara. Ariane entregou-lhe um novelo de fio que Teseu deveria ir desenrolando quando entrasse no Labirinto, o qual lhe indicaria o caminho de regresso. O Fio de Ariane.

Eliminado o monstro, Teseu parte de Creta com Ariadne que depois abandona na ilha de Naxos, onde Dioniso a encontra, desposa e leva para o Olimpo. Toda a vida de Teseu é repleta de aventuras.

Labirinto de Cnossos – As ruínas que hoje perduram em Cnossos são as do edifício destruído no século XIV AC, mas a sua estrutura não deve ser muito diferente do que o antecedeu. Era um edifício quase quadrado, de cerca de cento e cinquenta metros de lado, com um amplo espaço aberto ao centro, de forma rectangular. Para José Ribeiro Ferreira, o Labirinto simboliza a complexidade e insolubilidade da vida actual e Minotauro, algo de monstruoso que nasce do homem e que cada um arrasta consigo – tempo que tudo devora, paixões e desejos, poder económico.

TESEU E MINOTAURO “Assim o “Minotauro longo tempo latente/ De repente salta sobre a nossa vida /Com veemência vital de monstro insaciado”

O MINOTAURO: “Em Creta/ Onde o Minotauro reina/ Banhei-me no mar// Há uma rápida dança em frente de um toiro/ Na antiquíssima juventude do dia// Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu/ Só bebi retsina tendo derramado na terra a parte que pertence aos deuses// De Creta Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas/ Para inteiramente acordada comungar a terra/ De Creta/ Beijei o chão como Ulisses/ Caminhei na luz nua// Devastada era eu própria como a cidade em ruína/ Que ninguém reconstruiu/ Mas o sol dos meus pátios vazios/ A fúria reina intacta/ E penetra comigo no interior do mar/ Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos/ E reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor/ E o mar de Creta por dentro é todo azul/ Oferenda incrível de primordial alegria/ Onde o sombrio Minotauro navega/ Pinturas ondas colunas e planícies/…

…Em Creta/ Inteiramente acordada atravessei o dia/ E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos/ Palácios sucessivos e roucos/ Onde se ergue o respirar de sussurrada treva/ E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e terror/ Imanentes ao dia -/ Caminhei no palácio dual de combate e confronto/ Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais// Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu/ O Dionysinos que dança comigo na vaga não se vende em nenhuma mercado negro/ Mas cresce como flor daqueles cujo ser/ Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne/ E esta é a dança do ser//

..Em Creta/ Os muros de tijolo da cidade minóica/ São feitos de barro amassado com algas/ E quando me virei para trás da minha sombra/ Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro//Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga/ De olhos abertos inteiramente acordada/ Sem drogas e sem filtro/ Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas -/ Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto/ Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.”

LABIRINTO: “Sózinha caminhei no labirinto/ Aproximei meu rosto do silêncio e da treva/ Para buscar a luz dum dia limpo.”

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA OU O ITINERÁRIO INELUTÁVEL: “Minúcia é o labirinto muro por muro/ Pedra contra pedra livro sobre livro/ Rua após rua escada após escada/ Se faz e se desfaz o labirinto/ Palácio é o labirinto e nele/ Se multiplicam as Salas e cintilam/ Os quartos de Babel roucos e vermelhos/ Passado é o labirinto: seus jardins afloram/ E do fundo da memória sobem as escadas/ Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta/ Biblioteca rede inventário colmeia-/Itinerario é o labirinto/ Como o subir dum astro inelutável-/ Mas aquele que o percorre não encontra/ Toiro nenhum solar nem sol nem lua/ Mas só o vidro sucessivo do vazio/ E um brilho de azulejos íman frio/ Onde os espelhos devoram as imagens/ Exauridos pelo labirinto caminhamos/ Na minúcia da busca na atenção da busca/ Na luz mutavel: de quadrado em quadrado/ Encontramos desvios redes e castelos/ Torres de vidro corredores de espanto// Mas um dia emergiremos e as cidades/ Da equidade mostrarão sen branco/ Sua cal sua aurora seu prodígio”

A amizade entre Sophia e Maria Helena Vieira da Silva é comprovada em numerosa correspondência. Uma estreita relação de cumplicidades pessoais, não só na vida como na arte, ou seja entre e a pintura e a poesia. Maria Helena ilustrou poemas de Sophia, como esta utilizou títulos de quadros e elementos da obra da pintora na sua poesia. Há menção a bibliotecas, ruas, cidades, quartos, ateliers de Vieira da Silva. O labirinto dos elementos da pintura como as linhas, cores, formas geométricas, com paredes que se movem e espelhos, todos contribuindo para a desorientação, é percorrido pela voz poética de Sophia que nos sugere espaços reconhecíveis mas intermináveis. Noutro poema é a atenção do olhar como condição prévia à escrita (Vieira da Silva: Atenta antena/Athena) . Noutro ainda, estar dentro do quadro e pintar o quadro, num tríptico sobre Maria Helena, Arpad e a pintura.

VIEIRA DA SILVA: “Atenta antena/ Athena/ De olhos de coruja/ Na obscura noite lúcida”

TRÍPTICO OU MARIA HELENA, ARPAD E A PINTURA: Eles não pintam o quadro: estão dentro do quadro//II Eles não pintam o quadro: julgam que estão dentro do quadro// III Eles sabem que não estão dentro do quadro: pintam o quadro

TÚMULO DE LORCA: “Em ti choramos os outros mortos todos/ Os que foram fuzilados em vigílias sem data/ Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias/ Tão ignorados que nem sequer podemos/ Perguntar por eles imaginar seu rosto/ Choramos sem consolação aqueles que sucumbem/ Entre os cornos da raiva sob o peso da força// Não podemos aceitar. O teu sangue não seca/ Não repousamos em paz na tua morte/ A hora da tua morte continua próxima e veemente/ E a terra onde abriram a tua sepultura/ É semelhante à ferida que não fecha// O teu sangue não encontrou nem foz nem saída/ De Norte a Sul de leste a Oeste/ Estamos vivendo afogados no teu sangue/ A lisa cal de cada muro branco/ Escreve que tu foste assassinado// Não podemos aceitar. O processo não cessa/ Pois nem tu foste poupado à patada da besta/ A noite não pode beber nossa tristeza/ E por mais que te escondam não ficas sepultado.”

SALGUEIRO MAIA: “Aquele que na hora da vitória/ Respeitou o vencido// Aquele que deu tudo e não pediu a paga// Aquele que na hora da ganância/ Perdeu o apetite// Aquele que amou os outros e por isso/ Não colaborou com sua ignorância ou vicio.// Aquele que foi «Fiel a palavra dada à ideia tida»/ Como antes dele mas também por ele/ Pessoa disse”

25 DE ABRIL: “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”

Na mitologia grega, Orpheu era o poeta mais talentoso que alguma vez existira. Diante da beleza do seu canto, os pássaros deixavam de voar para escutá-lo, os animais selvagens perdiam o medo, as sereias responsáveis pelos naufrágios ficavam silenciosas e os monstros encantavam-se.

“Orpheu/ seu canto alto e grave/ O canto de oiro o êxtase da lira/ Orpheu/ A palidez sagrada de seu rosto/ Que de clarões e sombras se ilumina/ Ante seus pés se deitam mansas feras/ Vencidas pela música divina” (Orfeu rodeado de animais, Museu Cristão-Bizantino, Atenas)

Orpheu apaixonou-se pela bela ninfa dos arvoredos, Eurídice, e casou com ela. Porém, Eurídice é mordida por uma serpente e morre. Transtornado, Orpheu vai ao Mundo dos Mortos, tentar resgatá-la. Lá, o Rei dos Mortos comoveu-se com a tristeza da música de Orpheu e permitiu que ele a trouxesse de volta, mas, com uma condição: que não olhasse para ela, até que Eurídice, de novo, estivesse à luz do sol.

No regresso, Orpheu tocava músicas de alegria e celebração que guiavam a sombra de Eurídice. Porém, ao chegar à luz do sol, Orpheu virou-se para se certificar de que ela o seguia. Ainda a viu, mas Eurídice transformou-se de novo em fantasma. Perdera-a para sempre. A mágoa deixou-o amargo, recusando-se a olhar para qualquer outra mulher. Até ser morto, errou por terras da Grécia. Foram musas chorosas que o enterraram no Olimpo. Dizem que, desde então, os rouxinóis das proximidades cantam mais docemente que os outros.

ELEGIA: Aprende/ A não esperar por ti pois não te encontrarás// No instante de dizer sim ao destino/ Incerta paraste emudecida/ ? os oceanos depois devagar te rodearam// A isso chamaste Orpheu Eurydice —/ Incessante intensa lira vibrava ao lado/ Do desfilar real dos teus dias / Nunca se distingue bem o vivido do não vivido/ O encontro do fracasso —./ Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta/ Quando se ergue o canto/ Por isso a memória sequiosa quer vir à tona/ Em procura da parte que não deste/ No rouco instante da noite mais calada/ Ou no secreto jardim à beira rio/ Em Junho

“Eurydice perdida que no cheiro /E nas vozes do mar procura Orpheu:/ Ausência que povoa terra e céu/ E cobre de silêncio o mundo inteiro.//Assim bebi manhãs de nevoeiro/E deixei de estar viva e de ser eu/Em procura de um rosto que era o meu/ O meu rosto secreto e verdadeiro.//Porém nem nas marés nem na miragem/ Eu te encontrei. Erguia-se somente/ O rosto liso e puro da paisagem.//E devagar tornei-me transparente/ Como morta nascida à tua imagem/ E no mundo perdida esterilmente.”

FÚRIAS: “Escorraçadas do pecado e do sagrado/ Habitam agora a mais íntima humildade/ Do quotidiano. São/ Torneira que se estraga atraso de autocarro/ Sopa que transborda na panela /Caneta que se perde aspirador que não aspira/ Táxi que não há recibo extraviado/ Empurrão cotovelada espera/ Burocrático desvario// Sem clamor sem olhar/ Sem cabelos eriçados de serpentes/ Com as meticulosas mãos do dia-a-dia/ Elas nos desfiam// Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno/ Sem rosto e sem máscara/ Sem nome e sem sopro/ São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria// Já não perseguem sacrílegos e parricidas/ Preferem vítimas inocentes/ Que de forma nenhuma as provocaram/ Por elas o dia perde seus longos planos lisos/ Seu sumo defruta/ Sua fragrância de flor/ Seu marinho alvoroço/ E o tempo é transformado/ Em tarefa e pressa/ A contra tempo.”

PÁTRIA: “Por um país de pedra e vento duro/ Por um país de luz perfeita e clara/Pelo negro da terra e pelo branco do muro//Pelos rostos de silêncio e de paciência/ Que a miséria longamente desenhou/ Rente aos ossos com toda a exactidão/ Dum longo relatório irrecusável// E pelos rostos iguais ao sol e ao vento// E pela limpidez das tão amadas/ Palavras sempre ditas com paixão/ Pela cor e pelo peso das palavras/ Pelo concreto silêncio limpo das palavras/ Donde se erguem as coisas nomeadas/ Pela nudez das palavras deslumbradas//— Pedra rio vento casa/ Pranto dia canto alento / Espaço raiz e água / Ó minha pátria e meu centro/ /Me dói a lua me soluça o mar/ E o exílio se inscreve em pleno tempo” (Vieira da Silva/ Naufrágio)

Fernando Pessoa exerceu enorme fascínio sobre Sophia: ”…Eu pertenço a uma geração que vem depois do Fernando Pessoa e que de uma certa forma não aceita essa teologia do nada, e há uma tentativa de um certo regresso à inteireza. Eu escrevi muito sobre o Fernando Pessoa porque justamente essa capacidade de não ser ninguém me faz uma certa angústia. Porque a morte não é só decomposição… também pode ser perda de identidade. Fernando Pessoa perdeu a identidade em vida, vive uma perda de identidade. Ele vive com isso percebe? É como se a vida fosse qualquer coisa que existe, mas era para ser dele, percebe?”(entrevista em 1982)

FERNANDO PESSOA: “Teu canto justo que desdenha as sombras/ Limpo de vida viúvo de pessoa/ Teu corajoso ousar não ser ninguém/ Tua navegação com bússola e sem astros/ No mar indefinido/ Teu exacto conhecimento impossessivo// Criaram teu poema arquitectura/ E és semelhante a um deus de quatro rostos/ E és semelhante a um deus de muitos nomes/ Cariátide de ausência isento de destinos/ Invocando a presença já perdida/ E dizendo sobre a fuga dos caminhos/ Que foste como as ervas não colhidas”

HOMENAGEM A RICARDO REIS: “Não creias Lídia, que nenhum estio/ Por nós perdido possa regressar/ Oferecendo a flor/ Que adiámos colher// Cada dia te é dado uma só vez/ E no redondo circulo da noite/ Não existe piedade/ Para aquele que hesita// Mais tarde será tarde e já é tarde/ O tempo apaga tudo menos esse/ Longo indelével rasto/ Que o não.vivido deixa// Não creias na demora em que te medes./ Jamais se detem Kronos cujo passo/ Vai sempre mais à frente/ Do que o teu próprio passo.”

CIDADE: “Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,/ Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,/ Saber que existe o mar e as praias nuas,/ Montanhas sem nome e planícies mais vastas/ Que o mais vasto desejo,/ E eu estou em ti fechada e apenas vejo/ Os muros e as paredes, e não vejo/ Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.// Saber que tomas em ti a minha vida/ E que arrastas pela sombra das paredes/ A minha alma que fora prometida/ Às ondas brancas e às florestas verdes.”

Vista de Lisboa do Miradouro da Senhora da Graça

Rodhes. “Desde a orla do mar/ Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim/ Desde a orla do mar/ Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas/ Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo/ Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas/ Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas/ E nadei de olhos abertos na transparência das águas/ Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa/ Para fundar no sal e na pedra o eixo recto/ Da construção possível//…

Delphos …Desde a sombra do bosque/ Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite/ E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla.// Desde a sombra do bosque desde a orla do mar//…

… Caminhei para Delphos/ Porque acreditei que o mundo era sagrado/ E tinha um centro/ Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado// Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e destruído/ As águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga/ A língua torceu-se na boca de Sibila/ A água que primeiro eu escutei já não se ouvia//…

…Só Antinoos mostrou o seu corpo assombrado/ Seu nocturno meio-dia.”

COM FÚRIA E RAIVA: “Com fúria e raiva acuso o demagogo/ E o seu capitalismo das palavras / Pois é preciso saber que a palavra é sagrada/ Que de longe muito longe um povo a trouxe/ E nela pôs sua alma confiada// De longe muito longe desde o início/ O homem soube de si pela palavra/ E nomeou a pedra a flor a água/ E tudo emergiu porque ele disse/ Com fúria e raiva acuso o demagogo/ Que se promove à sombra da palavra/ E da palavra faz poder e jogo/ E transforma as palavras em moeda/ Como se fez com o trigo e com a terra” (Casa das Atridas)

O REI DA ÍTACA: “A civilização em que estamos é tão errada que/ Nela o pensamento se desligou da mão/ Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco/ E gabava-se também de saber conduzir/ Num campo a direito o sulco do arado”

PENÉLOPE: “Desfaço durante noite o meu caminho./ Tudo quanto teci não é verdade,/ Mas tempo, para ocupar o tempo morto,/ ? cada dia me afasto a cada noite me aproximo.”

Miradouro da Senhora do Monte, Graça

O ANJO DE TIMOR: “Há muitos, muitos anos, em Timor, vivia um liurai muito poderoso e muito bom. Na sua juventude resolveu ir correr mundo, para se tornar mais sábio. /Foi viajando de barco, de ilha em ilha, até chegar a uma terra muito distante. /Ali, um dia, conheceu um mercador vindo de muito longe, dos países do lado do Poente e que, também ele, andava há longos anos no caminho./Esse mercador disse-lhe que, numa das suas viagens, tinha ouvido contar que, ainda muito mais longe, para além de montanhas, oceanos e dos imensos desertos de areia, vivia um povo que adorava um Deus único e todo-poderoso, criador do Universo e de todas as suas criaturas. E esse povo acreditava que o seu Deus, um dia, desceria à terra para salvar todos os homens. – Quero ir ao país onde mora esse povo, disse o timorense./ Quero ouvir mais notícias do Deus que um dia viverá entre nós./ – Ai, é impossível, respondeu o mercador. Esse país fica tão longe que mesmo se viajasses a tua vida inteira não conseguirias lá chegar…

…- Já vi tantos lugares e tantos povos, mas não posso encontrar o povo que adora o Deus único, porque mesmo que viajasse a vida inteira não conseguiria lá chegar. Por isso, de que me serve viajar mais?/ E voltou para a sua terra./ E enquanto dormia, ouviu em sonhos uma voz que lhe disse que esperasse, esperasse sempre, pois um dia, a meio da noite, Deus lhe mandaria um sinal….//… Daí em diante, foi sempre assim. … quando todos tinham adormecido, sentava-se de novo sozinho, à porta da sua casa, à espera de um sinal de Deus. … ia envelhecendo, mas todas as noites se sentava à entrada da sua casa, à espera do sinal de Deus. Poisava sempre ao seu lado a pequena caixa de sândalo onde estavam guardadas as pedrinhas com as quais na sua infância jogava o hanacaleic…//… E o jovem disse: /- Sou o Anjo de Timor. Alegra-te, liurai, porque o Deus que tanto tens esperado se fez homem e desceu hoje à terra. … Gaspar traz uma caixa com oiro. Melchior uma caixa com mirra e Baltasar uma caixa com incenso…

…- Quero ir com eles, exclamou o chefe timorense./- É impossível. Belém fica tão longe que nem que caminhasses a tua vida inteira lá chegarias./ – Então, Anjo, tu que és mais rápido que o pensamento, leva o meu presente ao Menino. É uma caixa de sândalo que tem lá dentro as pedras com que eu brincava ao caleic quando era pequeno. O Anjo tomou a caixa nas mãos e disse:/ – Ainda bem que te lembraste de Lhe mandar um brinquedo…//… Este Natal, de novo, o Anjo de Timor se ajoelhou e ofereceu uma vez mais a caixa de sândalo e as pedras do caleic:/ – Menino Deus, Príncipe da Paz, Deus todo Poderoso, lembra-Te do povo de Timor que por Ti foi confiado à minha guarda. Vê como não cessam de Te invocar, mesmo no meio do massacre. Senhor, libertai-os do seu cativeiro, dai-lhes a paz, a justiça, a liberdade. Dai-lhes a plenitude da Vossa graça./ Glória a Ti, Senhor!”

PARA RUY CINATTI AUSENTE EM TIMOR E ALGURES: “Aquele que partiu/ precedendo os próprios passos como um jovem morto/ deixou-nos a esperança.// Ele não ficou para connosco/ destruir com amargas mãos seu próprio rosto. Intacta é a sua ausência/ como a estátua de um deus/ poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas./ Ele não ficou para assistir/ à morte da verdade e à vitória do tempo./Que ao longe, na mais longínqua praia,/ onde só haja espuma, sal e vento,/ ele se perca, tendo-se cumprido segundo a lei do seu próprio pensamento.// E que ninguém repita o seu nome proibido.”

O poeta Ruy Cinatti esteve profundamente ligado a Timor onde viveu por várias ocasiões. Entre outras funções profissionais foi chefe dos Serviços de Agricultura. Em 1975 dirigiu uma carta ao Diário de Notícias, prevenindo o país do perigo que Timor corria, carta nunca publicada. A invasão indonésia foi para ele um golpe rude. Esta foi mais uma razão da sua proximidade com Sophia.

Sophia de Mello Breyner Andresen deixou uma obra vastíssima, principalmente na poesia. Relevo para “Dia do Mar” (1947), “Mar Novo” (1958), “O Cristo Cigano” (1961), “Livro Sexto” (1962), “O Nome das Coisas” (1977), “Ilhas” (1989), “O Buzio de Coz” (1997), Orpheu e Eurydice (2001). Na ficção, contos para crianças como “A Menina do Mar” (1958), “A Floresta” (1968) ou “Noite de Natal” (1960), contos para adultos “Contos Exemplares” (1962) e “Histórias da Terra e do Mar” (1984). Escreveu também teatro e ensaio e traduziu diversos clássicos como “O Purgatório” (Dante), “Medeia” (Eurípedes) ou “Hamlet “(Shakespeare). A Editorial Caminho reuniu num único volume a obra poética de Sophia, cuja 2ª edição apareceu em 2011.

Entre os numerosos prémios e distinções que recebeu, destaque para o Prémio Camões (1999) e Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana (2003)

Consultados: A Aliança com as Coisas. O mito de Orfeu em Sophia de Mello Breyner Andresen, Ewa Lukaszyk http://publib.upol.cz/~obd/fulltext/Romanica7/Romanica7-07.pdf / Mar Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: Poética do Espaço e da Viagem, Helena Conceição Langrouva, http://triplov.com/sophia/helena.html /O mar na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, Klára Šime?ková, http://is.muni.cz/th/75309/ff_m/O_mar_na_obra_de_Sophia_de_Mello_Breyner_Andersen.pdf / Labirinto e Minotauro Mito de ontem e de Hoje, , José Ribeiro Ferreira, http://www.fluirperene.com/livros/labirinto_e_minotauro.pdf / O tema de Orfeu em Musa em Sophia de Mello Breyner Andresen, José Ribeiro Ferreira, http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas50/55.2_Ribeiro_Ferreira.pdf/ Sophia de Mello Breyner Andresen: Mitos gregos e encontros com o Real, Antonio Manuel dos Santos Cunha, http://www.incm.pt/site/anexos/10044320090319170206876.pdf

A paisagem “de quadrado em quadrado”: a pintura de Vieira de Silva na poesia de Sophia Andresen, Virgínia Bazzetti Boechat, http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/039/VIRGINIA_BOECHAT.pdf

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

 

Ouça o conto:

A Menina do Mar

A menina do Mar

      Menina_do_Mar

One thought on “Sophia e o espírito do mar”

  1. O texto introdutório é, para mim, um dos mais brilhantes escritos pelo Autor nestes Cadernos. Sophia merece o amor que perpassa nessas palavras. A consistência da sua vida, a espessura do seu pensamento, quase surpreendem perante a elegância da sua sensibilidade. A força e a delicadeza. A política e a poesia. Uma mulher inteira. E uma menina. Do Mar.

    Deixo este poema:

    “MADRUGADA

    Um leve tremor precede a madrugada
    Quando mar e céu na mesma cor se azulam
    E são mais claras as luzes dos barcos pescadores
    E para além de insânias e rumores
    A nossa vida se vê extasiada”

    Obrigada ao Autor, à sua sensibilidade de Poeta.

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