As Linhas de Torres e as encruzilhadas da História

Quando Luis XVI foi guilhotinado (1793), as monarquias europeias sentiram-se seriamente ameaçadas. Já não bastava a supressão da nobreza e dos direitos da Igreja – que viram ambas os seus bens confiscados. Agora, a revolução radicalizava-se. Ia entrar-se no período do Terror, protagonizado principalmente por Robespierre.

Espanha e Inglaterra decidem agir e Portugal vai a reboque. Envia uma força de 5400 homens para a Catalunha, que reforça o exército espanhol. As operações militares são um malogro para a coligação. É a Campanha do Rossilhão que termina com uma paz assinada apenas por representantes da Espanha e Inglaterra (1795).

Em Portugal reina D. Maria I. A política externa tinha-se pautado pela tentativa de Portugal se conservar neutral entre as duas principais potências europeias da época – Inglaterra e França, o que garantia o comércio com ambos os lados. Napoleão, entretanto, chegara ao Poder (1799). Espanhóis e franceses assinam uma convenção (1801), e onde firmam a paz e intimam Portugal a fechar os portos aos navios ingleses, a declarar guerra a Inglaterra e a sequestrar bens e prender os súbditos ingleses residentes. Apesar de ainda decorrerem negociações diplomáticas, o exército espanhol invade o Alentejo e em 18 dias fica senhor do Alto-Alentejo. O exército português era composto por 18000 homens que se opuseram a 30000 invasores. Foi a chamada Guerra das Laranjas.

Este conflito antecedeu o Bloqueio Continental, através do qual os franceses, depois de terem visto a sua armada destruída em Trafalgar (1805), pretendiam impedir o comércio inglês.

Portugal, dada a sua Aliança com Inglaterra, era uma falha no bloqueio aos navios e comércio ingleses. Napoleão decide invadir Portugal. Espanhóis e franceses estabelecem um Tratado (Fontainebleu, 1807), pelo qual se acorda a passagem de tropas franceses e a invasão militar franco-espanhola de Portugal. O país seria retalhado em três partes, das quais uma para espanhóis, e outra para franceses.

O rei Carlos IV de Espanha recebe os franceses como aliados. É o General Junot a comandar a 1ª Invasão. Mas, a pretexto de reforçar as suas forças em Portugal, os franceses tomam várias cidades de Espanha e cerca de 100.000 homens chegam também a Madrid. Entretanto, o rei Carlos IV era deposto (1808) por seu filho (futuro Fernando VII). Para resolver o conflito sucessório é pedida a intervenção de Napoleão, a quem ambos afirmavam fidelidade. O Imperador atrai-os a uma cilada palaciana em Bayonne e proclama rei seu irmão, José Bonaparte. Era a eliminação da dinastia dos Borbons. Mas, patriotas espanhóis revoltam-se. A repressão é feroz. Eclodem insurreições por toda a Espanha. As implicações destes levantamentos em Espanha seriam enormes e estão na origem na Constituição de Cadiz de 1812 (primeiro documento constitucional aprovado na Península Ibérica) e na instauração dum modelo liberal.

Quando a corte de Portugal se transfere para o Brasil (1807), na véspera da chegada de Junot a Lisboa, é sobre o Príncipe Regente, que recaem decisões críticas. A Rainha sofre de distúrbios psiquiátricos e está incapacitada. O governo é entregue a um Conselho de Regência, que será rapidamente demitido por Junot, considerando banida a Casa de Bragança. Os invasores entram sem oposição. O Príncipe Regente dera instruções para que não houvesse resistência. Porém, gradualmente, aqui e ali, estalam revoltas, actos sediciosos quase sempre praticados por populares contra os “colaboracionistas” , principalmente padres, magistrados e senhores das terras e, evidentemente, contra os soldados franceses. É uma insubordinação de cariz nacionalista, politicamente mal enquadrada e sem um exército organizado.

O Exército de Linha português, mesmo com as reformas introduzidas, anos antes, pelo conde de Lippe – convidado pelo Marquês de Pombal, estava em estado calamitoso – dividido entre o entusiasmo de alguns generais pelas conquistas napoleónicas e o patriotismo de outros, descaracterizado pela introdução de oficiais estrangeiros, e sem armas nem organização. Depois das derrotas do Rossilhão e da Guerra das Laranjas e da retirada da maioria dos oficiais portugueses (que eram fidalgos) para o Brasil, os efectivos eram reduzidos e o pouco armamento, arcaico. Junot desarmara a maior parte das forças, e muito do Exército de Linha (o equivalente ao Quadro Permanente), fora integrado nas forças napoleónicas (a “Legião Portuguesa”, a qual veio a lutar contra o exército anglo-luso). As forças militares portuguesas restantes eram provenientes do Serviço Militar obrigatório: as ordenanças – tropa irregular destinada a operações de guerra local e circunscrita, e a funcionar como depósito de recrutamento; e as milícias – cuja missão era acudir às fronteiras em situações de guerra, as quais tinham sido também desarmadas.

Porém, os ingleses, depois de muitas hesitações, tinham enviado um contingente, comandado pelo Marechal Beresford, onde se incluía Arthur Wellesley, mais tarde duque de Wellington. Os franceses são expulsos pelo exército anglo- luso.

Depois de Junot, foi Soult, que não passou do Porto. E, finalmente, o Marechal André Masséna, l’Enfant chéri de la Victoire, tornado Príncipe d’ Essling, por feitos nas Campanhas de Itália. Para Napoleão, o objectivo, agora, não era só o bloqueio dos portos aos ingleses, era também a pacificação de Espanha, em ebulição.

O tema que aqui se trata são as Linhas de Torres, complementado por excertos de ficções sobre a ocupação de Portugal pelas tropas de Junot e Soult e que ajudam a explicar a abnegação das populações aos sacrifícios que lhes foram impostos.

A ambição sem escrúpulos de Napoleão teve implicações drásticas – estendeu o conflito a toda a Península Ibérica. As invasões francesas a Portugal passaram, assim, a fazer parte da Guerra de Espanha, como os franceses a denominam, mesmo que de início o não fosse. Mas, também, facilitaram as ideias liberais e, a médio prazo, deram origem à independência do Brasil e das colónias espanholas da América.

A Guerra Peninsular continuou muito para lá da expulsão de Masséna e, nos seus desenvolvimentos vamos encontrar Wellington, como na importante batalha de Vitoria (1813) – que envolveu também forças portuguesas, e na perseguição aos franceses, até 1814.

Wellington desempenhou um papel militarmente excepcional. Só travou batalhas em locais e em condições que lhe pareceram propícias. As tácticas revolucionárias das tropas napoleónicas, que estiveram na origem do Imperio francês, não foram suficientes.

Wellington mostrou-se desdenhoso acerca da competência das tropas portuguesas. Porém, o seu êxito deveu-se também à erosão que as guerrilhas populares causaram nos invasores e ao sacrifício das populações civis portuguesas. O país ficou arrasado. O prestígio de Wellington estava feito e consagrou-se ao infligir a derrota final de Napoleão, em Waterloo (1815). Mas o Imperador começou a ser derrotado na Península Ibérica e, mais precisamente, nas Linhas de Torres, sempre com Wellington como instrumento.

 

Os traumas causados nas populações pela política de “terra queimada” deverão ter sido um dos factores que estiveram na origem da reserva em relação a todos os “estrangeirismos”. Quando D. Pedro, já em 1832, desembarcou no Mindelo à frente de um exército maioritariamente inglês para combater as forças absolutistas, comandadas por seu irmão Miguel, as populações tinham motivos para estar desconfiadas. E o poder dos senhores das terras e do clero, apesar dos jogos de cintura entre Junot e o Príncipe Regente – que muitos praticaram, não sofrera alteração…O liberalismo teve de lutar arduamente.

FM

A astúcia de Napoleão, antes da embriaguês do consulado vitalício e da coroação em Notre-Dame, mantivera o verniz dos ideais da Revolução que ainda se ouviam nas canções dos soldados, nas arengas dos oficiais e no tratamento de citoyen. Mas, se eles ainda cantavam “les moles aristocrates à la lanterne», os lampiões haviam voltado à sua função exclusiva de iluminar as ruas das cidades que viam crescer a nova aristocracia, pouco a pouco criada por um corso filho da Revolução que, sob a bandeira da Liberdade-Igualdade-Fratemidade, abalava o fantasmagórico entorpecimento das velhas sociedades, mas usurpava a soberania das nações e restaurava o poder do Estado à escala da Europa.” in Razões do coração/Álvaro Guerra

Quando Masséna, em Setembro de 1810 invadiu Portugal, terá talvez julgado que não encontraria obstáculos de monta no seu caminho para Lisboa, tanto mais que a vila de Almeida onde os portugueses esperavam poder retardar o exército invasor, caíra fácilmente, após uma explosão num paiol que matou soldados e muitos civis que ali se tinham refugiado.

Convicção reforçada quando, após a batalha do Buçaco, mesmo após uma derrota no terreno, a vantagem não foi convenientemente explorada pelo exército anglo-luso, e os franceses puderam reagrupar-se e prosseguir o seu avanço. Aliás, era também convicção de Napoleão que Masséna tomaria Lisboa. E, para este, a conquista de Portugal levaria à expulsão dos ingleses, à submissão dos espanhóis e, logo, à paz na Península.

As condições metereológicas, excelentes desde a saída de Almeida, alteraram-se no final de Setembro. Napoleão recomendara que evitassem o sol quente que tornava penosa a deslocação e que Masséna não tivesse pressa. Mas, a chuva copiosa tornou os caminhos impraticáveis. As estradas estavam em mau estado – a maior parte intransitáveis, escarpadas, mal desenhadas, cheias de pedras, apertadas. Nas aldeias, eram ladeadas por pequenos muros e casas, o que as estreitavam ainda mais.

Os veículos franceses não estavam preparados para aqueles caminhos: puxados por 3 parelhas de cavalos, eram largos, avariavam-se e não podiam ser reparados. As munições estragavam-se os víveres perdiam-se.

O acesso a Lisboa estava bloqueado: nos primeiros dias de Outubro, Masséna é avisado da existência de uma série de fortificações, constituindo uma muralha cujo franqueamento se presumia difícil. Ele mesmo se dá conta disso e se surpreende. Colinas escarpadas, ravinas profundas, desfiladeiros e muralhas de rochedos fortificados e dispondo de poderosa artilharia. Era um dispositivo que ficou conhecido por Linhas de Torres (Vedras).

Travam-se combates no Sobral de Monte Agraço. Os franceses desalojam postos avançados aliados e entram na povoação, onde se luta casa a casa, com vantagem para os franceses. As perdas são estimadas em cerca de centena e meia de homens para cada lado.

Sobral de Monte Agraço – Nos dias seguintes novos combates. Dois Portos, Caixaria e Seramena.

Sobral – Bombardeamentos, lutas nas barricadas. O exército anglo-luso consegue travar o avanço francês, que suspende os ataques

Também em Alhandra se combate. A vila estava barricada e a estrada bloqueada. As tropas francesas procuram forçar a passagem, mas são derrotadas.

Alhandra – Monumento às linhas de Torres, erguido em 1883, no local onde existiu o Reduto n.º 3, designado por Reduto da Boa Vista.

Sobral

Sobral – Os invasores contavam conseguir géneros durante a sua progressão. Porém, Wellington (comandante em chefe do exército anglo-luso) dera instruções para que as populações não só abandonassem as suas casas como destruíssem o que pudesse der útil aos franceses. E, apesar de muitos portugueses, não terem respeitado essas ordens e parte dos cereais não ter sido destruída, rapidamente eles se esgotaram. Aliás, muitas das colheitas não tinham sido ainda realizadas naquele ano.

As populações fogem em massa. Arrastam à passagem das Linhas os operários que as constroem. Trazem animais – mulas, burros, bois, com tudo o que podem transportar. É um cortejo de refugiados exaustos, doentes, desesperados. Direcção: Lisboa. Tudo parece perdido.

Gradil – A fuga das populações impressiona os franceses. Parte daquela gente destruíra os próprios meios de subsistência. Nunca antes tinham deparado com situação idêntica.

Masséna apelara junto das suas tropas para que respeitassem as populações e os seus bens, de modo a não criarem hostilidade e fizera uma proclamação, argumentado que os portugueses se encontravam numa guerra que não era a deles e que os ingleses queriam explorar e destruir o país…Mas os portugueses tinham já a experiência das tropas de Junot, que por ali tinham estado.

Inicia-se então o cerco das Linhas de Torres Vedras, uma longa espera, entrecortada por pequenas escaramuças, sobretudo nas missões de reconhecimento.

Forte do Arpim/ Bucelas – Masséna comandava um exército de 36.000 homens. Um ataque contra as Linhas infligiria pesadas baixas naquelas forças já enfraquecidas. Masséna pede reforços a Napoleão.

Forte de Alhandra – Contra a opinião de alguns dos seus generais, que entendiam não serem as Linhas suficientemente fortes para impedir o avanço, Masséna opta por estacionar em observação, esperando a chegada de reforços ou que Wellington se decida a sair das fortificações e a travar batalha. Este, entretanto, aproveita a mão-de-obra suplementar que representam os refugiados para concluir algumas fortificações e construir novas.

Castelo de Torres Vedras – Assim entre 15 e 18 de Novembro, o exército francês retira-se das Linhas de Torres Vedras, agrupando-se à volta de Santarém, onde Masséna pensa encontrar provisões que permitam subsistir em território inimigo. Pouco mais de um mês durara a sua permanência diante das Linhas.

Mas os reforços que chegam serão cerca de seis mil homens, enviados com a missão de restabelecer as ligações com Espanha, que estavam interrompidas desde a partida de Coimbra, o que não conseguirão. A posição de Masséna é cada vez mais delicada.

Desde a chegada do «Exército de Portugal» às Linhas, o problema dos abastecimentos torna-se prioritário. Masséna partira de Almeida levando uma reserva para apenas quinze dias, o tempo que estimara necessário para chegar até Lisboa. Para além deste período, o exército deveria viver dos recursos da região.

Sobral – Para procurar aprovisionamentos, os soldados afastam-se das colunas militares, pilhando as aldeias que encontram, regressando com grandes quantidades de vinho e peças de mobiliário. As casas abandonadas foram vandalizadas. Tetos, madeiras, recheios serviram para os invasores construírem os seus abrigos. Não raras vezes ocorreram violações e assassinatos. Os oficiais perdiam o controlo dos soldados. A disciplina do “Exército de Portugal” esfumava-se.

Forte do Zambujal/Carvoeira – As dificuldades dos franceses eram grandes. Durante o período passado diante das Linhas e depois nas posições na retaguarda, as tropas viveram em condições de grande adversidade. Fardas rotas, meio descalços, sacrificando os próprios animais de transporte. Nos últimos dias, os soldados alimentavam-se apenas com um pouco de papas de milho.

Em Fevereiro de 1811, Masséna decide retirar-se para o Mondego. Tentava uma última manobra que permitisse a manutenção das suas forças em Portugal. No entanto, o exército anglo-luso sai-lhes ao encalço e ocorrem combates. Retiram. A 21 de Março as tropas francesas encontram-se perto da fronteira com a Espanha. Era o ocaso de Masséna e o princípio do fim de Napoleão. Este aguardaria por Waterloo. Seria daí a 4 anos.

As chamadas Linhas de Torres Vedras foram um sistema de defesa que procurava impedir o acesso a Lisboa ou no caso de derrota, permitir a retirada dos ingleses em segurança. Estendia-se ao longo de mais de 88Km, e foi mandado construir por Wellington. Este participara já em 1808 nos combates que tinham expulso Junot do país e era, agora, comandante em chefe.

Para ele, a defesa da fronteira, vasta e aberta como a portuguesa, não era possível com os efectivos de que dispunha e o objectivo dos invasores, fosse qual fosse o itinerário escolhido, seria Lisboa. Por estas razões, optou pela fortificação do relevo acidentado à volta da capital, que protegia as suas tropas e dificultava a progressão do inimigo, expondo-o aos fusis e canhões anglo-lusos, bem como aos obstáculos que tinham sido levantados ou melhorados.

Além da restauração de fortificações já existentes, como o Castelo de Torres Vedras, foram construídos redutos em cumeadas de cabeços escarpados, que fechavam desfiladeiros.

A primeira linha defensiva ligava Alhandra (na imagem) à foz do rio Sizandro (em Torres Vedras), com 46 km de extensão. Aproveitava o perfil escarpado da serra de Montejunto, que constituía um obstáculo à artilharia francesa.

As posições avançadas de Torres Vedras e de Monte Agraço, destinavam-se, quando ocorresse a invasão, a proteger a retirada das tropas e a dar tempo para ocuparem a posição que lhes tivesse sido destinada.

Rio Sisandro

S. Lourenço – A segunda linha, construída a cerca de 13 Km a Sul da primeira, tinha uma extensão de 39 Km e ligava o Forte da Casa (Póvoa de Santa Iria) a Ribamar.

Forte da Casa – Compunham-na uma série de redutos, uns destinados a interceptar as estradas, outros a ligar as posições principais entre si, de modo a que o inimigo não pudesse passar pelos intervalos.

A terceira linha consistia no perímetro defensivo da praia de embarque (S. Julião da Barra), a cerca de 40 Km a Sul da segunda linha. Tinha uma extensão de 3 Km e ligava Paço de Arcos à Torre da Junqueira.

Forte de S. Julião – Até na cidade de Lisboa se repararam antigas fortificações e se ampliaram redutos e baterias.

Estas fortificações serviam também de refúgio para a população, obrigada a abandonar as terras. Quando acontecesse a invasão, o exército anglo-luso retirava para as linhas, onde se entrincheirava. Se os invasores as conseguissem romper, os ingleses retiravam por mar. Se o não conseguissem, a falta de reabastecimentos acabaria por obrigar os franceses a retirar.

Montachique – Ao mesmo tempo uma força móvel actuaria na retaguarda dos invasores procurando retardá-los e desmoralizá-los. Nestas missões desempenhariam importante papel as milícias e ordenanças em actos de guerrilha contra os soldados franceses, nomeadamente quando estes procuravam géneros de subsistência.

Senhora do Ó – Outro ponto-chave da estratégia de Wellington: ser capaz de obrigar as populações a destruir culturas, géneros alimentares e deixar muitos dos seus haveres, tudo o que pudesse aproveitar o inimigo!

Enquanto a nós – continuou Fernão Silvestre – pôr-nos-emos à frente dessa brava companhia de velhos camaradas das nossas companhas, que me seguem e que eu há tanto tempo centralizo com todas as forças da velha disciplina. O nosso quartel general será ali, no alto da planura do Airó.”…

Mafra…”De lá nos arrojaremos ao inimigo quando nos convier; de lá lhe faremos guerra de guerrilhas, mas guerrilhas que sabem o que é guerra, já que não lhe podemos fazer mais do que isto. Assim viveremos até que as coisas mudem, porque hão de mudar, espero-o em Deus, porque, como diz o poeta: Assi vai alternando o tempo iroso /O bem co’o mal, o gosto co’a tristeza. Todos os dias iremos tendo mais gente, João Peres e tendo, portanto, maiores meios de fazer aqui a guerra aos inimigos da nossa pátria.”in O Sargento-Mor de Vilar/Arnaldo Gama

Como fora possível construir um dispositivo defensivo desta envergadura sem que os espiões franceses dele se tivessem dado conta, ou, no mínimo, que eventuais informações não tivessem sido tomadas em conta?

Aliás, já durante a 1ª Invasão, a topografia da região circundante a Lisboa e as suas vantagens defensivas tinham sido reportadas por um Oficial Francês. Quando Wellington urdiu o seu plano de defesa, foi coadjuvado pelo Eng. português Neves Costa, que colaborara anteriormente com os franceses.

Forte de S. Vicente – Wellington foi capaz de mandar executar estas obras no maior segredo. Nem o próprio Conselho de Regência delas teve conhecimento. O Parlamento britânico ignorava-as. Os operários eram na maioria refugiados que se tinham deslocado para sul na iminência da invasão. Ainda durante o cerco se concluíram obras.

O sucesso militar de Wellington ter-se-á devido muito ao carisma disciplinador e autoritário. Durante as três invasões sempre teve papel relevante.

Caricatura de Wellington

Forte do Zambujal – As fortificações dispunham de guarnição própria, composta por corpos de milícia e ordenanças e por artilheiros, enquadrados por oficiais ingleses.

Forte da Malveira – Quando completadas as três linhas dispunham de 152 obras militares, armadas com mais de 1 000 peças de artilharia e guarnecidas por mais de 68 000 homens.

Forte de Olheiros – De qualquer reduto podiam observar-se os mais próximos situados de um lado e outro.

Forte do Zambujal – Cada um deles era protegido por cortinas de lanças, colocadas trinta metros adiante e enterradas no solo. Dispunha de fossos protegidos por paliçadas de estacas.

Forte do Zambujal – Instalaram-se plataformas sobre as quais se dispôs a artilharia. Havia peças de artilharia, obuses e morteiros, cujo número variava consoante a importância da fortificação.

Forte de S. Vicente – Era o mais poderoso forte das linhas, pois defendia a estrada principal de Coimbra a Lisboa. Era formado por um conjunto de 3 redutos, rodeados por um muro perimétrico com cerca de 1.500 m.

Forte de S. Vicente – Contava com um conjunto de fossos, trincheiras, traveses e de um posto de transmissoes, que era novidade na época

Forte de S. Vicente – Comportava uma guarnição que podia atingir os 4000 homens e 39 peças de artilharia.

Aqui se observa como moinhos foram adaptados a estruturas militares

Torres Vedras: Castelo visto do Forte de S. Vicente

A data da construção do castelo é difícil de estabelecer. Julga-se que a primeira fortificação terá sido levantada pelos muçulmanos, sofrendo várias transformações até aos dias de hoje

Pormenor da cintura de muralhas

Castelo de Torres Vedras

Castelo de Torres Vedras: vista interior junto ao portão de armas

Forte de S. Vicente – Foi, assim, criado um dispositivo entre Peniche e o Tejo para impedir a passagem do exército invasor e, mesmo que este conseguisse romper as linhas em qualquer local, as forças defensivas poderiam ainda neutralizá-lo.

Forte de Alhandra – A instrução militar foi intensificada e os soldados das milícias e ordenanças repartiram-na com a construção das fortificações. Os ingleses desconfiavam da disciplina e da competência dos portugueses.

Forte da Malveira – E, de facto, o estado do exército era deplorável.

Era ridículo e muito ridículo o aspecto daquele exército de aldeões vestidos de rabonas e de carapuças ou enormes chapéus de Braga na cabeça, aprumados desjeitosamente e tendo cada um ao ombro uma espingarda de caça, um mangual ou uma foice roçadoira; mas o entusiasmo que animava aquela multidão indisciplinada manifestava bem ao vivo que, arregimentados militarmente, os homens semi-selvagens das margens do Cávado e das fraldas da serra do Aixó seriam muralha inexpugnável, de encontro à qual era mais que provável que se esmagassem inutilmente os soldados aguerridos de Soult. Milhares de desesperos e de raivas custara, porém, ao bom do Sargento-mor a meter aquela populaça em linha. Se assim como durou trinta, durasse trinta e um minutos, aquela empresa quase impossível dava decerto com João Peres doido varrido. -Ah! bruto, não ouves? Chega mais atrás – bradava esbaforido.”…

…”E logo um encontrão num selvagem que, por mais que ele lhe tinha gritado, não atinara a pôr-se ombro a ombro com o camarada. – ó Zé da Cancela, põe essa perna unida à outra, alma de cântaro! Ó Tadeu Capote, dá aí um cachação nesse bruto que tens à esquerda! Isso, homem; mais rijo, entendes? Meter em linha, lá os da direita. Ai que eu arrebento, ladrões dos meus pecados! – E nisto era alabardada que te parto num renque de alarves, que não acertavam a pôr-se ora de um lado ora do outro, e alguns até de costas, às vozes do sargento-mor. – ó Zé do Nuno, põe essa espingarda ao ombro, ladrão: olha que te racho, entendes? Assim. Um, dois… Sentido! Um passo em frente. Ai, que alarves estes! Lá se vai com seiscentos diabos a forma!” in O Sargento-Mor de Vilar/Arnaldo Gama

Forte da Casa – No princípio de Outubro de 1810 nem todas as fortificações estavam concluídas.

À medida que o tempo passava e era iminente a invasão, Wellington requisitou toda a gente – mulheres e crianças, membros do clero, da Jurisdição Civil, das oligarquias locais… Levantaram-se coros de protestos que, em alguns casos, roçaram a insubordinação. Um sentimento anti-inglês foi-se instalando, ao mesmo tempo que crescia a consciência nacional.

Forte da Carvalha/Arruda dos Vinhos – Em resumo, o plano de defesa de Wellington assentava numa linha fortificada que defendia os acessos a Lisboa, atrás da qual se dispunham as forças anglo-lusas, preparadas para combater nas melhores condições possíveis. As populações civis eram obrigadas a abandonar as suas terras e a refugiar-se sobretudo na capital.

Forte da Malveira – Mais, eram obrigadas a destruir tudo o que pudesse abastecer o exército invasor, sobretudo na região da Estremadura e Beiras, das regiões mais ricas do país.

Ribeira d’Ilhas

Foz do Lizandro – Wellington sentia-se com uma espada sobre a cabeça. De Inglaterra sabia que a opinião pública e a situação política não admitiam qualquer desaire. Em Portugal, o Conselho de Regência (ou parte dele) defendia que a luta se devia travar nas fronteiras naturais e poupar o aparelho produtivo. Mas, Wellington entendia que, com as forças de que dispunha, não poderia travar os franceses naquelas condições.

Alhandra – Conseguir que grande parte das populações abandonasse os seus haveres e ainda destruísse parte deles, é motivo de admiração. Em muitas aldeias apenas ficaram velhos e doentes. Mais do que qualquer noção de patriotismo, terão sido provavelmente os excessos, crimes e desrespeitos de toda a ordem ocorridos nas duas anteriores invasões, que o determinaram.

Forte do Milreu/Ericeira “Vai um reboliço na alfândega da Ericeira.Três rascas balouçando nas ondas esperam para carregar as barricas de vinho alinhadas na praia, entre molhos de hortaliça, sacos de farinha, de castanhas, de nozes, no meio de uma quantidade de botes de pesca varados no areal. É que o estômago de Lisboa não passa sem as hortas dos saloios e o mar é a melhor estrada. Camponeses misturam-se com pescadores, sob o olhar de dois pelotões da infantaria de Loison, de equipamento de campanha e fuzis aperrados. O exercício costumeiro destes embarques, que se o mar o não impede, garante boa parte da comida e bebida da capital do reino, não é hoje uma rotina. Há tensão no ar, palavras desabridas, maus modos, queixas. Querem roubar o nosso pão —, diz, comum suspiro, uma mulher de tamancos, vestida de preto.”…

…”Chegam o tenente que comanda a tropa e o meirinho sobraçando uma pasta com papéis. No meio de um círculo de soldados empunhando as espingardas de baioneta calada, o meirinho sobe a um caixote, auxiliado pelo tenente. Começa a arengar, dirigindo-se ao «bom povo». Que vieram ordens de Lisboa, do senhor general Junot, a dar regulamentos à navegação das embarcações de pescadores. Doravante, — esganiça-se o meirinho — todos os barcos têm que ter pintados a branco, à proa e à popa, uma letra e um número, que constarão de um lista que será entregue a cada patrão de barca com o seu nome e o de todos os pescadores da companha.”…

S. Lourenço …”Mais: que toda a embarcação de pescaria que não esteja numerada e não traga esse documento de passaporte, cinco dias depois desta proclamação, será apresada; que toda a embarcação que tiver comunicado com a esquadra inglesa será apresada; que toda a embarcação deverá regressar à praia antes do Sol posto, sob pena de pagar, pela primeira vez, quarenta francos, pela segunda, cento e vinte, e confisco da embarcação e pena corporal, pela terceira.”...

S. Lourenço …”É quanto decretou o comandante-em-chefe do exército francês, senhor general Junot, no Quartel General de Lisboa, aos cinco de Janeiro de 1808. E estas disposições — conclui o meirinho, no seu pedestal de tábuas, vigiado pelo tenente do 22 Ligeiro — aplicam-se também às embarcações da Carvoeira e S. Lourenço.”

Os ingleses eram tidos como defensores das liberdades e protectores das monarquias em perigo. Mas, ao longo do tempo, surgiram actos de rebelião e resistência anti-inglesa, como quando foi determinado o trabalho compulsivo na construção das fortificações ou por actos de pilhagem também praticados por militares ingleses.

Ribeira d’Ilhas

Mafra – “Veio um almocreve do Norte e pôs-se a tartamudearem voz baixa um conto atrapalhado sobre a desgraça que o Maneta Loison levou às Caldas da Rainha. Que arcabuzaram nove soldados portugueses do Regimento do Porto lá aquartelados, por uma zaragata de vintém, começada com um beijo roubado por um francês bexigoso à mulher de um tambor carrapato e zangaralhão, mas fortalhaço e sanguinho, que saltara à bordoada ao bexigoso.”...

Mafra – …”Vieram companheiros e vá de malhar nos de França, que todos vinham com moléstias de pele, sarnas e borbulhas, a abeberarem-se nas águas santas. Pior que feira varrida à paulada, quando os franceses responderam e se zangou um cadete de Gaia que parecia um touro de cajado nas unhas, que até nem se entende como não houve morte de homem.”…

Mafra …”No dia seguinte, veio o Maneta coma sua tropa, cercou as Caldas e, pelas matinas do outro dia, prendeu os soldados portugueses todos, tirou-lhes a malhado, que eram todos inocentes de crimes graves, e mandou que os fuzilassem sem mais demoras. Eram nove e o tambor um deles, que os xingou de cabrões e outros nomes piores, e alguns choravam, e até um oficial português se pôs de joelhos a pedir clemência ao malvado do Maneta.”…

Gradil -… “Cai um silêncio tenebroso sobre os comensais da Estalagem. E nem a sombra de um riso altera a crispação daquelas caras rudes e mudas, quando o papagaio se põe a palrar vivó Jinot, vivó Jinot cabrão. ” in Razões do coração/Álvaro Guerra

Forte do Milreu/Ericeira

Sobral – De entre todas as fortificações da primeira linha, o Forte Grande ou do Alqueidão, como é hoje conhecido – assumiu uma importância militar estratégica de relevo, pois era aquele que tinha maior capacidade, quer em guarnição, quer em número de peças de artilharia.

Era neste Forte que se situava o posto de comando das Linhas. À sua frente abria-se um possível campo de batalha, situado no ponto de cota mais elevado de todo o sistema defensivo, o que que favorecia quem estava na defensiva

A suspeita de ser simpatizante dos “Jacobinos e Hereges” deu origem a perseguições, vinganças e linchamentos. O caso mais dramático teve como vítima Bernardim Freire de Andrade. Oficial prestigiado, participou na Campanha do Rossilhão, onde foi ferido, e, depois na Guerra das Laranjas, em teve papel de destaque.

Alhandra – Durante a invasão de Junot, já com a patente de marechal-de-campo, as suas topas, mal treinadas e equipadas, contribuíram para os sucessos das forças inglesas. Já durante a 2ª invasão, comandando um pequeno corpo de forças, com falta de armas e de instrução militar, impediu a travessia do Minho pelas tropas de Soult. As movimentações para procurar um local adequado para travar os franceses fez os populares acusarem-no de colaboracionismo. A indisciplina das suas tropas, levaram-nas a amotinarem-se e a prendê-lo. Foi ainda libertado, mas acabou por ser assassinado e depois reabilitado. A título póstumo, como a muitos.

Ten-Gen Bernardim Freire de Andrade

Houve generais franceses que participaram em todas as invasões. Em primeiro lugar, Junot. “Junot era homem pouco ilustrado, tinha um temperamento sanguíneo e facilmente irritável. Conservava por baixo da farda bordada do general e dos arminhos do duque uns restos da brutalidade da caserna; era um pouco tarimbão, segundo a frase entre nós adoptada. Loison também não primava pela delicadeza” in Os guerrilheiros da morte/Pinheiro Chagas

Restaurante à beira da estrada perto de Torres Vedras – Mas, de todos, o que piores recordações deixou foi Loison (o “maneta”). Para defrontar as guerrilhas que os emboscavam e flagelavam, sobretudo na invasão de Junot, passou a fazer uma repressão sanguinária sobre as populações civis indefesas. Velhos, mulheres, crianças, deficientes, todos os que não podiam fugir, eram passados pelas armas, com o intuito de atemorizar os sublevados. Foram dezenas de milhares de mortos. Como a História mostrou até hoje, a repressão brutal só engrossa os rebeldes. Foi já, assim, em Portugal do princípio do séc. XIX.

Estas atrocidades associadas a violações, pilhagens, incêndios e profanações de Igrejas constituiram importante factor de mobilização na resistência contra Masséna.

Sobral – “A soldadesca desenfreada, abandonada aos seus instintos ferozes por Loison, que jurara vingar-se na paisanada portuguesa da humilhação da Beira, enchia de horror a capital do Alentejo. A população refugiava-se nas igrejas. Ali a perseguia a turba guerreira. As praças eram lagos de sangue. As casas incendiadas rasgavam com a sua luz sinistra as trevas da noite que principiava. Abrigavam-se aos altares as mulheres, e dali eram arrancadas pelos soldados, ou ali as ultrajavam.” -Excerto de Os guerrilheiros da morte/Pinheiro Chagas.

Quando os franceses de Masséna retiraram, a devastação causada era tremenda. Casas arruinadas, sem janelas, tetos, móveis arrancados para servirem de lenha. Não havia cereais, nem sementes para os cultivar. Muito do gado, vacas, porcos, tinha sido dizimado. Os moinhos, muitos estavam destruídos. As epidemias resultado das péssimas condições sanitárias eclodiam, a mortalidade aumentava. As ajudas do Príncipe Regente e dos ingleses ficavam muito aquém do preciso. As medidas de emergência eram insuficientes. A fome e a especulação cresciam. Como o desespero.

Reduzir as Linhas de Torres a uma simples estratégia militar, por muito brilhante que tivesse sido, é redutor. Na invasão de Masséna, essa estratégia foi imposta por um General estrangeiro, mesmo aliado, arrogante, preocupado, sobretudo, em resguardar as costas do Atlântico do exército francês e, provavelmente, desprezando as consequências que daí adviriam para as populações e para Portugal.

Porque foi também o povo quem atacou os soldados franceses postados diante das Linhas e os desgastou, quando procuravam comida, se atrasavam nas colunas e lhes montou emboscadas. Não se tratava de uma guerra convencional, foi um levantamento nacional, de gente mal armada, iletrada, que defendia a sua terra, que tinha abandonado os haveres e que procurava derrotar o inimigo também pela fome. Sem essa obstinação e firmeza, digamos patriotismo, não teria sido possível expulsar os invasores e a estratégia de Wellington não teria vingado. Cometeram-se erros e crimes, como em todas as revoluções, é certo. Wellington venceu, como os portugueses conquistaram uma nova consciência dos seus direitos e questionaram a velha ordem social. Wellington venceu. Porém, Portugal passou a ser um protectorado inglês ainda por muitos anos. Essa é outra história.

Consultados: As Linhas de Torres Vedras Invasão e Resistência, Cristina Climaco. 2010/O Porto e as Invasões Francesas Vol I. Coordenação de Valente de Oliveira. 2009/Um país silencioso. Uma História das Linhas de Torres. Carlos Guardado da Silva e Daniel Silvestre da Silva, 2010/ As Linhas de Torres Vedras, Carlos Guardado da Silva, 2010 /Um país silencioso. Uma história das Linhas de Torres Vedras. Carlos Guardado da Silva, 2010/ Ir prò Maneta. Vasco Pulido Valente, 2007/ História de Portugal (Quinto Volume) Coordenação de José Mattoso / La España de Fernando VII. Miguel Artola, 2008 / Les hommes de Napoléon. Témoignages 1805-1815. Cristophe Bourachot, 2011

Veja o vídeo: