Coisas da vida

São factos vulgares, mas que nos tocam. A memória é um arquivo vivo de episódios e emoções, em que os mais banais não são por isso menos importantes. Um dos meus filhos um dia destes despertou-me, chamando “Pai!”, e como isso ecoou na minha cabeça e me encheu de orgulho!

Às histórias que lhes contei para adormecerem, ia sempre acrescentando personagens inverosímeis, em situações burlescas que eram caricaturas rascas do suburbano lisboeta. O Lucas Serapião, a Sara, o Quinhones e o Quincas Berro-de-Água (roubado ao Jorge Amado) e tantos outros “heróis” de que já não me lembro. Terei estimulado o imaginário de cada um? Pelo menos, demarquei uma fronteira do ridículo e mau gosto.

Como me recordo, uma vez com o outro filho, depois de eu ter passado uma noite sem dormir, irmos ao velho cinema Alvalade, às 18,30h ver os “101 Dálmatas” e quando a luz se apagou, quase em simultâneo receber uma cotovelada e um aviso: “Estás a ressonar!”

Mas há também acontecimentos inesperados que originam alterações da rotina, muitas vezes dolorosos. E, no entanto, talvez subjacente exista uma atitude resignada perante aquilo que se acha não ter remédio. São as “coisas da vida”, e, segundo um provérbio chinês, há três que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida.

Aquilo que apresento são ficções, mas podiam ser realidade.

FM

 

 

E às vezes tudo fica suspenso. Uma formiga caminha nas ervas próximas dos meus olhos. Começo a lembrar-me do que aconteceu. Ouço vozes em fundo comentando o acidente. Tudo tão inesperado e, de repente, apercebo-me do fim. Talvez, não. Sinto calor, mas choveu toda a noite… Estou caído de bruços. A vida recente passa em retrospectiva. A sirene duma ambulância.?

Os rostos dos curiosos. Ah não consigo mexer as pernas! O carro está a arder, fui cuspido no acidente. Faz umas grandes labaredas. Sinto-me desfalecer. Passa-me como num écran o rosto de Helène e Catherine. A viagem projectada à Tunísia para recomeçar uma nova vida com Helène. As dificuldades dela para encarar a minha pouca disponibilidade.

Como tudo isto é estranho. Apetece-me um cigarro. Lembro-me do rosto do meu filho, do meu pai que me procura para o ajudar nos apertos financeiros. A vista desfoca-se, sinto-me esvair. É curioso tudo parece por vezes branco, a memória atraiçoa-me, depois recupero. Estarei a morrer?

A Tunísia, será aí que a minha vida recomeçará. Consigo abrir as pálpebras! Como tudo pode, de repente, modificar-se. Vinha a guiar depressa, é verdade, mas para evitar um acidente com aquelas furgonetas atravessadas na estrada, despistei-me. Mas não tive culpa. Amo Helène, a Catherine é compreensiva, mas a relação esgotou-se. Tudo fica cada vez mais tempo branco. Estou já no Hospital, isto é o bloco operatório. Vejo as coisas, o meu barco, eu a beijar Helène, a tomar banho, mas a afundar-me, perco o pé…mas não as percebo, os sons tornam-se mais longínquos. A Tunísia, sim, mas o que é? A Helène parece-se com a Catherine. Vão-se afastando, mas são uma só. Uma parte de mim. Branco, tudo branco.

Os acidentes que interrompem brutalmente a vida, fazem parte dos acasos, dos imprevistos. Sorte ou azar. Mas há outras histórias que envolvem cobardias, remorsos, equívocos. São também coisas da vida. Temos de desconfiar de tudo e todos? Perceber se um sorriso traz qualquer premeditação malévola? Resignarmo-nos a deixar de valer pelo que somos, mas por aquilo que temos? Não.

A fidelilidade (I) in Não te deixarei morrer, David Crockett. Miguel Sousa Tavares. 1ª edição em 2001

Não me sinto culpada, embora os teus olhos fossem acusadores. Não me apetecia fazer amor. Ao princípio condescendia, mas, depois, quando te sentia a chegar ao fim, semi-abria os olhos e olhava para o tecto. Porque serão as coisas assim? Não me excitavas, não tinha desejo. Tu sentias-te vexado e às vezes colérico, sobretudo quando eu passei a dizer que não queria. A rotina dum casal vai desgastando o entusiasmo. Tu não percebes isto, no teu egoísmo de viver para a profissão. Acho que não percebes nada do que se passa na cabeça de uma mulher.

Quiseste fazer-me sentir responsável pela nossa frieza. Não sei se me detestava mais a mim se a ti. A velha cumplicidade desapareceu qundo te começaste a afastar para falar ao telemóvel ou saíres para “dar uma volta”. Aí suspeitei que houvesse outra mulher. Mas sabes, não me importei, assim não me procuravas. Vazio, era isso. Um enorme vazio que eu sentia. Procurei refúgio nos meus amigos, no trabalho. Mas sentia-me afundar.

O Joaquim apareceu como uma bóia de salvação. Eu que detestava o meu corpo, reaprendi a gostar dele: melhorei a minha auto-estima. E tu, tão distante, nada deste por isso. Suspeito que era isso mesmo que pretendias. Deixar-me tomar a iniciativa da ruptura. Foste ou eras um bocado sabujo. Hoje, já nada disso tem importância.

Quando te levaram para o Hospital senti um misto de aflição e alívio. Apesar de tudo, talvez o hábito de me preocupar contigo, com a tua segurança e a tua saúde, me inquietassem; mas, a perspectiva de uma vez por todas acabarmos com aquele equívoco mastigado, fosse uma libertação..Era um aneurisma cerebral, não resististe. Serei um traste assim tão grande?! As coisas da vida!

A fidelidade (II)

Tu não sabes quanto te achava linda! Era um fascínio, um frémito que me percorria o corpo e me fazia crescer o desejo. Olhava-te daquele modo em que tudo à volta desaparece. E julgava que o mesmo se passava contigo. Quando me falaste da Carla, tua companheira e colega do Jornal, senti-me lisonjeado: ser capaz de te desencadear um orgasmo, tu que dizias nunca o ter conseguido com um homem.

Planeámos as férias…Depois aquelas tardes loucas, onde a refeição parca antecipava o gozo de fazermos amor tão avidamente que eu não deixava de me surpreender. Admirável, ver-te montada em mim, olhos semicerrados, como se procurasses sozinha, não tanto o teu prazer como o meu.

Mas, porquê as pequenas mentiras, as omissões? Quando te perguntava se se passava alguma coisa, negavas e dizias para eu ter confiança em ti. O que seria tão importante que te fazia saíres de madrugada, depois de quase 2 noites sem dormir? As incompreensíveis mudanças de humor…

Mas, claro que se passava, era a tua namorada, hesitavas… Acabou, ali. Hoje, se passo nos locais por onde andámos, vejo-os como lugares sem alma. O pequeno restaurante onde saia de manhã para comprar o pequeno-almoço com que te despertava, a Agência para marcar as passagens para Madrid, a farmácia, o quiosque do jornal, esse Agosto quente quando tudo parecia possível. Virado para ti enquanto almoçávamos, suspendia-me nos teus olhos, pretensão de te agarrar, âncora para eternizar aqueles momentos que o vinho adoçava. Esse encantamento insensato de acreditar que tínhamos futuro!

O meu amor-próprio de macho ficou duplamente ferido. Há momentos exaltantes de felicidade, que habitualmente se pagam com juros de sofrimento. A tua passagem pela minha vida foi um toque de magia; de repente os dias iluminaram-se, tudo voltou a ter sentido. Mas olho para este entardecer, e se sinto o crepúsculo e a enorme tristeza de te não ter, dou-me conta que não eras quem eu imaginei que fosses e percebo dolorosamente que o teu destino não passava por mim.

São coisas da vida!

É uma história de amor, simples e apaixonada. Alain Josseret, etnólogo francês, tem um mês para estar em Paris antes de se juntar a um grupo de exploradores na América do Sul. Conhece Anna, jornalista, numa viagem de comboio e acabam por se apaixonar. A sua relação é ardente mas não conseguem ignorar a separação próxima. Têm de tirar partido de todos os momentos de felicidade, sabendo que quanto maior for o seu envolvimento, mais sofrerão quando se separarem. Aqui fica o episódio do jogo de sedução e conquista.

…”Anna tem uma marca de vacina no seu ombro…como ela dormia tão profundamente. Que situação embaraçosa!”…

Je t’ai cherchée au bout des chambres/Où la lampe était allumée/Nos pas n’y sonnaient pas ensemble/Ni nos bras sur nous refermés//Que sais-tu du malheur d’aimer/Je t’ai cherchée à la fenêtre/Les parcs en vain sont parfumés/Où peux-tu où peux-tu bien être A quoi bon vivre au mois de mai/Que sais-tu du malheur d’aimer//Que sais-tu de la longue attente/Et ne vivre qu’à te nommer/Dieu toujours même et différente/Et de toi moi seul à blâmer/Que sais-tu du malheur d’aimer//Que je m’oublie et je demeure/Comme le rameur sans ramer/Sais-tu ce qu’il est long qu’on meure/A s’écouter se consumer/Connais-tu le malheur d’aimer (Louis Aragon)

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

Olhares (e ver)