A travessia do Deserto

Falamos em atravessar o deserto quando perseguimos obstinadamente um objetivo, talvez só uma ilusão, defrontando obstáculos, incompreensões, mas seguimos sempre contra tudo e contra todos, apoiados na nossa determinação. O sofrimento pode ser grande e os custos impossíveis de suportar. Cada um arranja estratégias para lidar com as dificuldades e frustrações, estratégias essas nem todas eficazes. Muitos desistem, alguns sucumbem. Este caderno é uma alegoria sobre o recurso ao sentido estético para, nas piores circunstâncias, se atingir um sonho, uma meta.

Falemos, então, de beleza e afetos. Em cada um de nós coexiste um lado luminoso e outro sombrio, verso e reverso da mente humana. Olhar a devastação e a miséria, as ruínas e o grotesco, não provoca as mesmas sensações em toda a gente. Mesmo ao longo dos séculos, a noção de beleza evoluiu. Por exemplo, a opulência de adornos nos estilos barroco e rococó, contrasta com o ascetismo e a pureza dos neoclássicos. Na mesma época podem encontrar-se estéticas contraditórias – abstração na pintura e lirismo na poesia, como, o que é frequente, encontrar grandes pintores que passaram por “fases” distintas. E, no entanto, os diferentes estilos podem desencadear emoções semelhantes. O que é o belo, o que é o feio? Também estes conceitos se alteraram ao longo do tempo, como mostra Umberto Eco.

Mas, até o horror, à força de se repetir quotidianamente, perde impacto. Desejável é não imbecilizar irreversivelmente o protagonista/espectador. Haverá meios para contrariar esta degradação? Tudo o que se achar belo e esteja disponível – romance, poesia, música, isto, se o instinto de sobrevivência conceder algum espaço. É importante que a obra de arte estimule a irreverência e o gosto de estar vivo, mesmo que provoque, ofenda critérios morais correntes ou subverta os conceitos “bem-pensantes”.

A desolação interior é algo diferente. A monotonia e fealdade transferiram-se para dentro de nós. Chega-se àquela, principalmente por razões afetivas.  Rejeições, perdas, fracassos profissionais podem originar um quadro depressivo ou perturbações de ansiedade graves, a exigir terapêutica adequada. O portador pode tentar defender-se pela busca repetitiva de novas emoções, que, porém, envolvem o risco de acrescentar sempre novas frustrações e adensar o vazio.

Uma estratégia possível faz apelo ao que nos estimula esteticamente. Mesmo no limiar da desistência, saber olhar para a Natureza, para quadros, esculturas, edifícios. Como para os objetos, os rostos, para tudo que achamos belo. Visitar museus e emocionarmo-nos com as telas de que só conhecemos reproduções ou com esculturas de que observámos apenas imagens; rever os grandes filmes e os conflitos eternos – a cobiça, a inveja, o ciúme, a avareza, a ambição, etc.; o romance e a poesia, o teatro. Mas, também calcorrear as cidades, visitar os centros históricos, maravilharmo-nos com monumentos ou edifícios inovadores, as soluções arquitetónicas, a decoração, as pessoas – o olhar das pessoas e as suas mãos, e as aves, a harmonia.

Olhar e lançar uma boia solidária ao desespero dos outros, saber entender a sofreguidão, os silêncios e as hesitações, e sermos capazes de nos encantar. Como, dentro de nós, encontrar a centelha de humor que ainda faça brincar; valorizar uma recordação; no recôndito do último sopro, o esboço dum sorriso.

As relações conjugais podem afundar quem já está fragilizado. A perda de respeito entre os membros de um casal é um atentado à sua autoestima. É importante fugir daquilo que é vulgar, como da futilidade das revistas de mexericos, da boçalidade, da sordidez pornográfica, da promiscuidade e conservar um distanciamento sensato em relação às modas, a todas as modas. Que gerações sem princípios éticos, sem cultura, sem dinheiro e sem esperança, se estão a criar? 

 Poucos têm coragem para empreender, sozinhos, uma travessia do deserto, mas se o fazem, estão convencidos que irão conseguir, que “nada está escrito” e acreditam, como no filme “Lawrence da Arábia”,  que conseguirão atingir o mar.

 FM

 

 

Longo foi o deserto. A marcha, uma respiração suspensa sobre a atração do vazio. Houve oásis de gente afável, de velhos amigos, de celebrações, de encontros. Entretanto, nasceu um projeto de vida que dia a dia cresceu, criou autonomia, ensaiou passos, balbuciou as primeiras palavras e o reconhece com um sorriso e palmas. Mas nos olhos manteve-se a paisagem árida de enorme lonjura. Não seria o horizonte real, mas reverberações de fracassos antigos. E houve os filhos. Poucos se podiam orgulhar tanto dos filhos, como ele.

O deserto, porém, sempre se manteve nos silêncios, nos ócios raros. Aprendeu a iludi-lo, essa foi a maior façanha. Se não fosse a música e os livros, e a memória de quadros, esculturas, edifícios, talvez o deserto o tivesse soterrado. Em África, cercado de desolação, leu Eça, Vailland e Camus; no mais fundo de si agarrou-se a Mozart. Pôde, assim, olhar e imaginar outros rios, outros rostos, a alvorada noutros sítios. As ruas de cidades, casas, pessoas anónimas, amores. Inventou um mundo. Sobreviveu na paz possível.

“Só quem procura sabe como há dias /de imensa paz deserta; pelas ruas /a luz perpassa dividida em duas: /a luz que pousa nas paredes frias, /outra que oscila desenhando estrias nos corpos ascendentes como luas /suspensas, vagas, deslizantes, nuas, /alheias, recortadas e sombrias. //E nada coexiste. Nenhum gesto /a um gesto corresponde; olhar nenhum /perfura a placidez, como de incesto, //de procurar em vão; em vão desponta /a solidão sem fim, sem nome algum – /- que mesmo o que se encontra não se encontra.” (Jorge de Sena, in ‘Post-Scriptum’)

O deserto interior transborda para tudo o que está à volta, mas às vezes nem era preciso, que a devastação é a perder de vista. Quase no limite da sobrevivência, a higiene precária e o desconforto, são desprezados. A imundície, as moscas, o calor húmido, os mosquitos, tornam-se banais. Um barracão de madeira com telhado de zinco no meio de soldados bestializados, com uma linguagem de frases feitas e de adjetivos reduzidos a meia dúzia de obscenidades repetidas ate à exaustão. Foi aí que se iniciou o conhecimento do deserto.

As primeiras imagens da “sua” guerra ocorreram no navio Niassa, num regresso que pôde presenciar e devolvia ao país a maioria dos soldados que dois anos antes partira, apenas com uma difusa apreensão pelo que iriam encontrar, mas confortados pela resignação e pela esperança em Nossa Senhora de Fátima. No salão de primeira classe – adaptado a messe de oficiais, os militares, sentados a quatro,  automaticamente, sem palavras, destrunfavam os adversários, adivinhavam o ás do parceiro, em rituais de cartas que se sucediam. Eram adultos a cuja juventude fora removida a inocência. A eles o deserto secara-lhes os olhos e os afetos. As picadas do mato tinham ficado para trás, mas não a areia, essa ficaria impregnada para sempre; em muitos deles povoar-lhes-ia os sonhos até ao fim da vida. Gestos mecânicos, sem emoção, onde o que mais impressionava era o silêncio pesado, fundo.

E, no entanto, há quem, em situações de sofrimento extremo, onde toda a esperança morreu, ainda invente brincadeiras para divertir alguém que ama, tentando poupá-la à evidência do pavor. Talvez nada possa destruir a capacidade de encantamente que existe em alguns. De inventar um mundo de sonhos,  para esconder as ruínas, a devastação. Nos outros e neles próprios.

A vida é bela (Roberto Benigni, 1998) é um filme comovente. Passa-se nos anos 30/40 e é uma metáfora sobre a bestialidade e a ternura. Num campo de concentração nazi o pai conta histórias ao filho, tentando convencê-lo que todo aquele horror é, afinal, uma gincana para ganhar um tanque de guerra, embora os vá levar a passar por muitas privações para o conseguirem. Mesmo submetido às maiores crueldades, há quem consiga não perder a doçura, olhar o horror e descrevê-lo como um jogo. São os olhos que, mesmo rasos de desespero, recusam a monstruosidade e encontram em si ou no amor por uma criança, a força para essa alquimia.

Num bar a tripular um Gin, aguarda-se o improvável. O diálogo do solitário consigo mesmo até moderada euforia. Não há deserto, há memórias. Muitos são os locais que o reabilitaram, as leituras e os filmes que lhe incendiaram a imaginação. O desejo e a paixão estarão interditos? O resto da vida, apenas um balanço do passado? O papel que lhe atribuem é de reformado da vida? Declinou deserto em  idiomas e locais diferentes, como se de rosa-rosae ou dominus-domini, se tratasse. Viajou, olhou, não deixou de se comover. Juntou escultura, crepúsculo,  montanhas e erotismo. Foi neles que se escorou, são amostras deles que aqui se mostram. No deserto há sempre miragens, mas atingirá ele realmente o mar, para o deslumbramento dum poente?

Caspar David Friedrich (Abadia no bosque de carvalhos) Berlim, Nationalgalerie

“Antigamente escrevia poemas compridos/Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema /São elas: desalento prostração desolação/desânimo //E ainda me esquecia de uma: desistência /Ocorreu-me antes do fecho do poema /E em parte resume o que penso da vida/Passado o dia oito em cada mês /Destas cinco palavras me rodeio /E delas vem a música precisa /Para continuar. Recapitulo: /Desistência desalento prostração desolação/ desânimo //Antigamente quando os deuses eram grandes /Eu sempre dispunha de muitos versos/ Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas.” (Ruy Belo)

 

A total desolação, tórrida ou gelada, tanto faz. O deserto ou a planura siberiana. Na solidão fazemo-nos perguntas. A paisagem branca confronta-nos com o íntimo. Os adereços do cenário são monótonos. Nós e os fantasmas, as dúvidas existenciais. Deus, o desejo e a morte. Os amigos que voluntariamente desertaram da vida e que não fomos capazes de ajudar. Perceber quanto, por vezes, a gargalhada disfarça a beira do abismo.

Ingmar Bergman encontrou respostas. Filmar foi um meio de as conseguir. Afirmou que criara outra pessoa que exteriormente nada tinha a ver com o seu verdadeiro eu. Em Morangos Silvestres, o desejo de regressar à inocência e pureza dos primeiros anos, apesar da máscara austera, que os compromissos e sofrimentos da idade adulta obrigam a usar. A amargura e a insegurança.

Mas qualquer forma de criação artística ou de profissão mais prosaica, permite a revisitação dos lugares da memória e dos sonhos. Muitos blindam-se e tornam-se cegos. Manter um olhar sensorial que apreenda os ínfimos pormenores sem deixar que as misérias ou o desespero asfixiem. É possível conservar um sopro romântico, mesmo quando tudo se desmorona à nossa volta.

Michelangelo, David, Florença

Pai e filho,Vigeland Sculpture Park, Oslo

Aristide Maillol, Museu des Belas Artes de Lyon

“Pelo sonho é que vamos, /comovidos e mudos //Chegamos? Não chegamos? /Haja ou não haja frutos,/ pelo sonho é que vamos //Basta a fé no que temos. /Basta a esperança /naquilo /que talvez não teremos. /Basta que a alma demos, /com a mesma alegria, /ao que desconhecemos /e ao que é do dia a dia //Chegamos? Não chegamos? /- Partimos. Vamos. Somos.” (Pelo sonho é que vamos, Sebastião da Gama)

Velásquez (Vénus ao espelho), Londres, National Gallery

Ingres (A grande odalisca), Paris, Museu do Louvre

Goya (Maja desnuda), Madrid, Museu do Prado

Uppsala, cidade onde nasceu Ingmar Bergman

“Sempre senti que há algo em Buenos Aires que me agrada. Agrada-me tanto que não me agrada que agrade a outras pessoas. É um amor assim, zeloso.”  (Jorge Luis Borges)

“As ruas de Buenos Aires / Passaram já para o meu corpo. / Não as ruas insaciáveis/ Que estorvam a multidão e a agitação/ Mas sim as ruas de bairro habitadas pelo tédio preguiçoso/ Tornando-se invisíveis por serem vulgares/ Tocadas pela penumbra e poente/ E aquelas mais longínquas / Privadas de árvores piedosas/ Onde apenas casitas austeras se aventuram,/ Esmagadas por distâncias imortais/ A perder de vista no horizonte/ Entre céu e planície. / Elas são para o solitário uma promessa/ Porque são povoadas por milhares de almas singulares / Únicas diante de Deus e do tempo/ E sem dúvida preciosas./ Em direcção a oeste, norte e sul / Se estenderam as ruas – e elas são também a pátria;/ Felizes os versos que componho/ Se estas bandeiras se encontrarem.” (As ruas de Buenos Aires, Jorge Luis Borges)

“Y la ciudad, ahora, es como un plano/ de mis humillaciones y fracasos;/ desde esa puerta he visto los ocasos/y ante ese mármol he aguardado en vano.// Aquí el incierto ayer y el hoy distinto/ me han deparado los comunes casos/ de toda suerte humana; aquí mis pasos/ urden su incalculable laberinto.// Aquí la tarde cenicienta espera/ el fruto que le debe la mañana;/ aquí mi sombra en la no menos vana// sombra final se perderá, ligera./ No nos une el amor sino el espanto/ será por eso que la quiero tanto.”   (Buenos Aires, Jorge Luis Borges)

“Entre mi amor y yo han de levantarse / trescientas noches como trescientas paredes / y el mar será una magia entre nosotros. // No habrá sino recuerdos. / Oh tardes merecidas por la pena,  / noches esperanzadas de mirarte, / campos de mi camino, firmamento / que estoy viendo y perdiendo… / Definitiva como un mármol / entristecerá tu ausencia otras tardes.” (Despedida, Jorge Luis Borges)

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Ya no seré feliz. Tal vez no importa. / Hay tantas otras cosas en el mundo; / un instante cualquiera es más profundo / y diverso que el mar. La vida es corta //y aunque las horas son tan largas, una / oscura maravilla nos acecha, / la muerte, ese otro mar, esa otra flecha / que nos libra del sol y de la luna //y del amor. La dicha que me diste / y me quitaste debe ser borrada; / lo que era todo tiene que ser nada. // Sólo que me queda el goce de estar triste, / esa vana costumbre que me inclina / al Sur, a cierta puerta, a cierta esquina.”

“¿Quién los ve andar por la ciudad / si todos están ciegos ? / Ellos se toman de la mano: algo habla / entre sus dedos, lenguas dulces / lamen la húmeda palma, corren por las falanges, /y arriba está la noche llena de ojos. // Son los amantes, su isla flota a la deriva / hacia muertes de césped, hacia puertos / que se abren entre sábanas. / Todo se desordena a través de ellos, / todo encuentra su cifra escamoteada; / pero ellos ni siquiera saben/ que mientras ruedan en su amarga arena / hay una pausa en la obra de la nada, / el tigre es un jardín que juega.// Amanece en los carros de basura, / empiezan a salir los ciegos, / el ministerio abre sus puertas. / Los amantes rendidos se miran y se tocan / una vez más antes de oler el día. // Ya están vestidos, ya se van por la calle. / Y es sólo entonces / cuando están muertos, cuando están vestidos, / que la ciudad los recupera hipócrita/ y les impone los deberes cotidianos.” (Los amantes, Julio Cortázar)

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“Somos nuestra memoria, somos ese quimérico museo de formas inconstantes, ese montón de espejos rotos.”

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“Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente. No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso.”
(frases de Jorge Luis Borges)

Ludwig I da Baviera (rei, entre 1825 e 1848). Estátua em Bad Kissingen.

Jardim interior em palácio neo-clássico em Bad Kissingen, Baviera/Alemanha

Sacré Cœur, Paris:«La solitude l’absence/ Et ses coups de lumière/ Et ses balances/ N’avoir rien vu rien compris// La solitude le silence/ plus émouvant/ Au crépuscule de la peur/ Que le premier contact des larmes/ L’ignorance l’innocence/ La plus cachée/ La plus vivante/ Qui met la mort au monde.//La solitude l’absence/ Et ses coups de lumière/ Et ses balances/ N’avoir rien vu rien compris// La solitude le silence/ plus émouvant/ Au crépuscule de la peur/ Que le premier contact des larmes/ L’ignorance l’innocence/ La plus cachée/ La plus vivante/ Qui met la mort au monde.»(Paul Éluard)

Roma

Roma

Roma

SienaSiena: ” O amor-próprio é um animal curioso, que consegue dormir sob os golpes mais cruéis, mas que acorda, ferido de morte perante uma simples beliscadura.” (Alberto Moravia)

“Diz-me devagar coisa nenhuma, assim/ como só a presença com que me perdoas /esta fidelidade ao meu destino./ Quanto assim não digas é por mim/ que o dizes. E os destinos vivem-se/ como outra vida. Ou como solidão./ E quem lá entra? E quem lá pode estar/ mais que o momento de estar só consigo// Diz-me asim devagar coisa nenhuma:/ o que à morte se diria, se ela ouvisse,/ ou se diria aos mortos, se voltassem.” (Jorge de Sena)

“Somos a grande ilha do silêncio de deus /Chovam as estações soprem os ventos /jamais hão-de passar das margens /Caia mesmo uma bota cardada /no grande reduto de deus e não conseguirá /desvanecer a primitiva pegada /É esta a grande humildade a pequena /e pobre grandeza do homem.”  (Ruy Belo, in “Aquele Grande Rio Eufrates“)

“Nunca estive tão perto da verdade. /Sinto-a contra mim, /Sei que vou com ela. //Tantas vezes falei negando sempre, /esgotando todas as negações possíveis, /conduzindo-as ao cerco da verdade, /que hoje, côncavo tão côncavo, //sou inteiramente liso interiormente, sou um aquário dos mares, /sou apenas um balão cheio dessa verdade do mundo. //Sei que vou com ela, /sinto-a contra mim, – /nunca estive tão perto da verdade.” (Jorge de Sena, in ‘Perseguição‘)

“Ir levando no caminho os amores perdidos / e os sonhos idos / e os fatais sinais do olvido. //Ir seguindo na dúvida das horas apagadas, / pensando que todas as coisas se tornaram amargas / para alongarmos mais a via dolorosa. //E sempre, sempre, sempre recordar a fragrância / das horas que passam sem dúvidas e sem ânsias / e que deixamos longe na estéril errância.” (Pablo Neruda)

E em Junho os dias são longos. O crepúsculo cada dia mais se atrasa, a noite é uma curta interrupção logo a anunciar a madrugada. Nuvens dispersas coam o resto da claridade, farrapos vermelhos sobrepostos ao branco e negro que o sol rasante, ainda acende no dia – é o solstício quase no sol da meia noite.

É, pois, o crepúsculo que estende os dias. Os vultos das árvores, os espectros dos monumentos, as sombras dos caminhos não deixam vingar a noite. E, no entanto, à medida que o ano avança e o sol se afasta, é a noite que tomba sempre mais longa, os dias ficam sempre mais frios, a neve entristece a paisagem. Os dias são breves, a melancolia  mora nas pessoas.

Aos que a Felicidade é Sol, Virá a Noite Quero ignorado, e calmo  /Por ignorado, e próprio /Por calmo, encher meus dias /De não querer mais deles. //Aos que a riqueza toca /O ouro irrita a pele. /Aos que a fama bafeja /Embacia-se a vida. //Aos que a felicidade /É sol, virá a noite. /Mas ao que nada ‘spera /Tudo que vem é grato. (Ricardo Reis, in “Odes“)

“Raro e vazio dia./  Calmo e velho dia./  Os membros lassos debruados deste cansaço sem porquê. / Raro e vazio dia, / assim inteiro e implacável / na solidão grave e trágica do meu quarto nu. //Perdido, perdido, este vagabundear dos meus olhos / sobre os livros fechados e decorados, / sobre as árvores roídas, / sobre as coisas quietas, quietas… //Raro e vazio dia / na minha boca pálida e pouca, / sem uma praga para quebrar a magia do ópio!”  (Fernando Namora)

Petite-France, Strasbourg, França “Nesta melancolia verdadeira/ a súbita pancada do outono/ pequena embora fosse, foi tamanha/ que teve quase o gosto duma posse”  (David Mourão-Ferreira)

Place Stanislas, Nancy: «Amar é… / sorrir por nada e ficar triste sem motivos/ é sentir-se só no meio da multidão,/ é o ciúme sem sentido,/ o desejo de um carinho; / é abraçar com certeza e beijar com vontade,/ é passear com a felicidade, / é ser feliz de verdade! (Albert Camus)

 

Praga

Relógio Astronómico, Praga

Praça Staromestske, Praga

Budapeste

Lagoa das Sete Cidades, S. Miguel, Açores

A miragem do deserto pode ser não um oásis com palmeiras e um poço de água, numa vastidão de fornalha; nas pistas os camelos vagarosos serão jeeps. Podem surgir algumas montanhas com escarpas. Mas as dunas podem escavar-se, entre os seus recortes desenhar-se um ventre e o púbis, e a sugestão de coxas opulentas e do perfil dos seios. Não é uma alucinação, é um corpo de mulher no horizonte, feito de areia que os caprichos do vento podem apagar. São os olhos que vêm, a sede que se não mitiga na exaustão da viagem, e o corpo de areia que nos espera, para logo se desfazer.

Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.” (Julio Cortazar, esboço de Antonio Nazaré Vaz)

“Rígidos seios de redondas, brancas,/ frágeis e frescas inserções macias,/ cinturas, coxas rodeando as ancas/ em que se esconde o corredor dos dias;// torsos de finas,penugentas, frias,/ enxutas linhas que nos rins se prendem,/ sexos, testículos, que inertes pendem/ de hirsutas liras, longas e vazias// da crepitante música tangida, húmida e tarsa, na sangrenta lida/ que a inflada ponta penetrante trila;// dedos e nádegas, e pernas, dentes./ Assim, no jeito infiel de adolescentes,/ a carne espera, incerta, mas tranquila” (Jorge de Sena, esboço de Antonio Nazaré Vaz)

“Dos ensinamentos que me resta dar / já me sinto corar. / Mas diz-me a benévola Dione: «o que causa vergonha, eis a nossa tarefa.» / Que cada uma de vós a fundo se conheça / e escolha a atitude / que mais em harmonia com o corpo lhe pareça. / A mesma posição a todas não convém. / Se o teu corpo é bonito deita-te sobre as costas / e é de costas que deves tua nudez mostrar, / se à perfeição do dorso nada tens a apontar. / Também tu cujo ventre Lucina encheu de rugas / faz como o Parto que no combate volta o dorso. / Milanion trazia sobre os ombros as pernas de Atalanta; / se as tuas mãos são belas do mesmo modo as mostrarás. / Se a mulher é pequena, / que tome a posição do cavaleiro. / Porque era altíssima / nunca a tebana mulher de Heitor /fez de cavalo em cima do marido. //Se procuras que o homem admire / da tua anca a linha inteira, / com a cabeça atirada para trás / na cama te ajoelha. // Se as tuas coxas têm da juventude o viço / e é impecável o teu peito / fique o homem direito / e obliquamente a ele estende-te no leito. //… (esboço de Antonio Nazaré Vaz)

…”Não te envergonhes dos cabelos soltar como as Bacantes / e faz girar o colo emoldurado pela solta cabeleira. / Para os prazeres de Vénus praticar há mil maneiras. / Mas a mais repousante e menos complicada / é ficares sobre o flanco direito / meia deitada. / Sinta a mulher que os deleites de Vénus / ressoam nos abismos do seu ser; / e para os dois amantes / seja igual o prazer. / Nunca os doces murmúrios se interrompam / nem as palavras que escorrem quais carícias / e no meio das volúpias não se calem / aquelas que soam mais lascivas. // Mesmo se a natureza te negou / de Vénus as frementes sensações, / finge o doce prazer experimentar / com mentirosas inflexões./ Infeliz da mulher se o órgão de prazer permanece insensível /e que volúpias deve  originar para ela e para o amante. / Mas cuidado não seja o fingimento / manifesto e visível. / Que a fingida expressão e os movimentos / que o teu amante enganam / seja aos teus olhos crível. / A volúpia, as palavras e a respiração / serão os instrumentos / com que fabricarás sua ilusão. / Impede-me o pudor de prosseguir. / Do teu órgão, mulher, / são secretos os meios de expressão” (Ovídeo, a Arte de Amar)

“Anda-me o amor tomando a própria vida,/ como se, amando, eu existisse mais./ E leva-me o Destino em voz traída, como se houvera encontros desiguais// A multidão me cerca, e, renascida,/ já dela terei fome de sinais./ E, mal a noite se demora ardida, o medo e a solidão me esfriam tais// as cinzas desse amor que sacrifico./ Não é futura a só miséria. A queixa/ também, não é: e apenas acontece// no vácuo imenso que este amor me deixa,/ quando maior, quando de si mais mais rico,/ se dá de mundo em mundo, elá me esqueca.” (Jorge de Sena, Lamento do poeta objectivo)

“O poeta beija tudo, graças a Deus… E aprende com as coisas a sua lição de /sinceridade //E diz assim: “É preciso saber olhar…” //E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos…””E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás //E perde tempo (ganha tempo…) a namorar uma ovelha… //E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso //E acha que tudo é importante //E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim //E reparou que os homens estavam tristes //E escreveu uns versos que começam desta maneira: “O segredo é amar…” (Sebastião da Gama, O poeta beija tudo)

Não é o Nilo, nem o Canal do Suez, a geografia é outra. Na proximidade da foz, uma embarcação ronrona contra a corrente, o seu destino é o mar. Mas, as margens do deserto ficam por perto. Alguma vez lhe virará as costas? Chegar ao oceano para um derradeiro mergulho, na paz das ondas, da brisa e dos pequenos seixos? Eis as margens das coxas, a boca húmida, a volúpia readquirida, a nuca e o vale que se estende até às nádegas, a fina penugem que se sente desde os tornozelos. Foi na contemplação do deserto e suas dunas, que se inventou um corpo. Será um sonho?

A luz  revela tetos de Lisboa, o recorte da ponte, do Cristo-Rei e dos Jerónimos. Há gente encoberta pelas árvores nas ruas. Em muitos pesará o desânimo, alguns disfarçarão uma alegria secreta. Pressentir o que se não vê – o rio a desembocar no oceano. É o mar que está próximo. O que é mais importante? O que se vê ou o que se imagina? O sol está alto, é preciso aproveitá-lo antes que a noite chegue.

“Não restará na noite uma só estrela. /Não restará a noite. / Morrerei e comigo irá a soma /Do intolerável universo. /Apagarei medalhas e pirâmides, /Os continentes e os rostos /Apagarei a acumulação do passado. /Farei da história pó, do pó o pó. /Estou a olhar o último poente. /Oiço o último pássaro. / Lego o nada a ninguém.” (Jorge Luis Borges)

Olhares (e ver)