A Ericeira e as mudanças do Tempo

introEsta é uma vila de fervorosos adeptos, que o são desde sempre, que aqui regressam sempre que podem, juntando-se aos que aqui nasceram e aos que aqui fazem a sua vida.

Não pretendemos fazer um roteiro turístico nem qualquer tipo de ensaio – nunca seríamos exaustivos. São cogitações de quem ama este lugar que desperta sentimentos contraditórios que vão do fascínio à tristeza como se fosse uma doença bipolar. Como, aliás, o próprio clima: manhãs cinzentas e brumosas seguidas de tardes ensolaradas.

Consultámos textos antigos e damo-nos conta de como as características geográficas e climáticas ajudaram a surgir aqui uma das figuras mais arreigadas à mitologia portuguesa – o Sebastianismo.

As escarpas da costa, o rugido do mar, a névoa ou nevoeiro denso eram propícios a que um farsante, depois da derrota de Alcácer-Quibir e da ascensão ao trono de Filipe II de Castela, fizesse constar tratar-se do Rei desejado e fosse aclamado “Rei da Ericeira”, quando, afinal, tratar-se-ia de um noviço em crise patriótica. Do levantamento popular que causou, resultaram enforcamento de inocentes, arrombamentos, pilhagens e outros excessos…

Vila piscatória com um porto e Alfândega de relativa importância até ao Séc. XIX, foi passando a local de veraneio e banhos de gente abastada. A sua história estará para sempre ligada ao final da Monarquia em Portugal. As suas cores tradicionais – branco e azul, são as cores da bandeira monárquica

Mesmo aqueles que não apreciam a temperatura fria das águas das praias da Ericeira, aproveitam-se do mar batido ou extasiam-se com o pôr-do-sol, que sempre que o céu está descoberto, a localização da Vila virada a ocidente oferece. Se de dia está calor, as noites são frescas. E a luminosidade das ruas depois da chuva e há pouca gente nas ruas, é das melhores memórias que dela conservamos…instável, não se pode nunca estar seguro do que virá a seguir!

FM

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Ericeira fica a cerca de 50 Km de Lisboa, com dois possíveis acessos. Longe vão os tempos heróicos das curvas da Malveira ou a longa viagem pela Granja do Marquês. O acesso hoje está facilitado (auto-estrada ou o IC-19/via mais ou menos rápida), o que a transformou de local-de-veraneio-enquistado-em aldeia-de-pescadores num dormitório de muitas famílias.

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Mas a Ericeira mantém traços que evocam o seu passado. Não vamos discorrer sobre a toponímia da vila, mas lembrar apenas algumas individualidades que no Séc. XIX muito contribuíram para o desenvolvimento da vila: Eduardo Burnay, irmão do banqueiro e genro de Ramalho Ortigão e Francisco José da Silva Ericeira que conseguiu entre outras coisas elevar o porto da vila a Capitania e mandar calcetar muitas das ruas.

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O principal Hotel da Vila, hoje integrado numa cadeia hoteleira, resultou da recuperação do famoso Hotel de Turismo, tem uma localização privilegiada proporcionando um ambiente romântico. O início do romance Equador de Miguel Sousa Tavares que decorre durante o reinado de D. Carlos, passa-se aqui. É aqui que se inicia a saga de Luís Bernardo.

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O antigo Casino esteve em funcionamento entre 1919-27. Depois foi transformado em cinema, que funcionou até aos anos 80. Actualmente é a Casa da Cultura Jaime Lobo e Silva. Com a atribuição deste nome homenageia-se um historiador a quem muito a Ericeira deve no esclarecimento do seu passado.

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O Jogo da Bola é considerado a Sala de Visitas da Ericeira com os seus vários cafés e esplanadas com clientela fidelizada. Outro tipo de comércio nesta praça e nas ruas pedonais adjacentes dão-lhe grande vida. Ao entardecer o chilrear dos pássaros nas copas das árvores sobrepõe-se a todos os ruídos.

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Eis um dos acessos mais importantes ao Jogo da Bola. É a Rua Prudêncio Franco da Trindade, antiga Calçada Real, e que deve ter sido o embrião daquilo que hoje é a vila. O actual topónimo foi um ericeirense de fortes convicções democráticas e republicanas capaz de se recusar a receber o Presidente Sidónio Paes quando este visitou a Ericeira por discordar da sua política, o que lhe terá valido alguns dissabores. A Escola em que leccionava localizava-se no Jogo da Bola onde hoje existe o Centro Comercial.

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Podem encontrar-se hoje os seguintes tipos de habitantes: os “jagozes” (que são os únicos nativos do concelho de Mafra que não são considerados saloios), os moradores que trabalham em Lisboa e que aqui vivem em permanência, aqueles que têm uma segunda casa e vêm à Ericeira passar o fim de semana, os imigrantes (na grande maioria brasileiros) e os veraneantes (muitos atraídos pelo parque de campismo, mas também estrangeiros).

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O Xico foi durante décadas a pastelaria mais chic da Ericeira. No Verão era aí que as senhoras da “melhor sociedade” se encontravam a tomar chá e trocar bisbilhotices. O Xico fechou, como já antes o café Arcadas, mas sempre houve outras pastelarias com clientela fixa. O Central, A Veneza, O Salvador…pontos de encontro sobretudo aos fins-de-semana.

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A Ericeira foi local de passagem de Fenícios e Romanos. Ao seu porto ficou a dever-lhe muito do seu desenvolvimento. Aqui chegavam veleiros transportando mercadorias, nomeadamente cereais, como o testemunham as ruínas dos muitos moinhos na região. As características do porto na época eram diferentes das actuais e permitiam a entrada de grandes veleiros. Foi considerado o 4º mais importante do país. Depois, ao longo do Séc. XIX, foi perdendo importância.

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Mas no início daquele século havia uma Alfândega, por onde se fazia o abastecimento de quase toda a Estrematura. É óbvio que o actual porto de pesca não poderia receber navios de grande calado e essa terá sido também uma das razões para o seu declínio, compensado pela actividade turística.

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A paixão pela Ericeira em muitos casos vem desde a meninice. Aprende-se a gostar das águas revoltas e frias, da neblina matinal, do odor da maresia, do casario caiado do bairro dos pescadores, da gente bronzeada que se vê ao final das tardes de Verão nas esplanadas do Jogo da Bola, do fresco nocturno que aconselha uma camisola quando em Lisboa está um calor de rachar, pelo footing ou corrida pelo passeio à beira-mar.

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Este é o espírito de muitas gerações que aqui passaram as férias escolares, organizaram festas, pequenas revistas teatrais, bailes de chita e que hoje ainda com o brilho da cumplicidade falam daquele tempo. Uma referência incontornável da Ericeira é a sua discoteca: O Ouriço, que dizem ser a 2ª mais antiga do País. No final de Agosto a festa de aniversário recebe centenas de antigos frequentadores que regressam por instantes aquele som, às Ribas, à maresia, ao mar em frente, ao fresco da noite.

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Para muitos homens, hoje de meia-idade, a Ericeira representou a saída dos horrores da EPI de Mafra. Aos cadetes pretendiam impor-lhes em 3 ou 6 meses, conforme os casos, as noções de disciplina militar. A Ericeira significava um tanto o regresso à normalidade, embora travestidos de militares.

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O ritmo de construção foi grande até recentemente, mas, apesar de tudo, não terá atraiçoado alguns padrões típicos: o branco predominante e o azul. Mas é necessário que as novas urbanizações não descaracterizem aquilo que é essencial e vem já descrito sobretudo em vários escritores a partir do Séc. XIX. Os aglomerados populacionais crescem, os hábitos, as culturas e as profissões modificam-se. Mas é indispensável guardar os traços do passado e conservar um urbanismo harmonioso.

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Casas típicas do Norte, no mês de Agosto.

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Casario e a calçada típicas da zona norte.

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Um contraste cromático na tranquilidade do Norte.

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Largo de Santa Marta.

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A Igreja de S. Pedro no Largo de Santa Marta.

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Rua Capitão João Lopes que liga as Ribas às Furnas e que vai desembocar no Largo de Santa Marta.

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Praia do Sul.

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“Não tardará a chegar ao fim /este agosto que te viu passar com a luz, /a teus pés. Somos eternos, dizias. /Eu pensava antes na danação/ da alma ao faltar-lhe o alimento/ que lhe trazias. Agora a cidade vive/ do peso incomensuravelmente morto/ dos dias sem a tua presença. Deixo /a mão correr sobre o papel tentando/ captar o eco de uma palavra,/ um sinal de quem em qualquer parte /cintila, e confia ao vento o segredo/ da nossa tão precária eternidade.” (Eugénio de Andrade)

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“Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim./ A tua beleza aumenta quando estamos sós./E tão fundo intimamente a tua voz7 Segue o mais secreto bailar do meu sonho/ Que momentos há em que eu suponho/ Seres um milagre criado só para mim.” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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Furnas, assim chamadas a este local rochoso com grutas, junto ao mar.

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“São coisas vindas do mar. /Ou doutra estrela./Seixos, ouriços, astros /pequenos e vagabundos,/ sem bússola, /sem norte, os passos incertos. Pouco /se demoram. Como a felicidade./Seguem outra canção, outra bandeira. /Tudo isso os olhos traziam. /Do mar. Ou doutra idade.” (Eugénio de Andrade)

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“Voltar ali onde/ A verde rebentação da vaga/A espuma o nevoeiro o horizonte a praia/ Guardam intacta a impetuosa/ Juventude antiga —/ Mas como sem os amigos/ Sem a partilha o abraço a comunhão/ Respirar o cheiro a alga da maresia/E colher a estrela do mar em minha mão” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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“Não voltarei à fonte dos teus flancos /ao fogo espesso do verão /a escorrer infatigável dos espelhos, não voltarei. //Não voltarei ao leito breve / onde quebrámos uma a uma todas as frágeis/hastes do amor. //Eis o outono: cresce a prumo. /Anoitecidas águas /em febre em fúria em fogo /arrastam-me para o fundo.” (Eugénio de Andrade)

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“Não posso adiar o amor para outro século /não posso /ainda que o grito sufoque na/garganta /ainda que o ódio estale e crepite e arda /sob as montanhas cinzentas /e montanhas cinzentas //Não posso adiar este braço /que é uma arma de dois gumes amor e ódio //Não posso adiar /ainda que a noite pese séculos sobre as costas /e a aurora indecisa demore /não posso adiar para outro século a minha vida /nem o meu amor /nem o meu grito de libertação //Não posso adiar o coração.” (Antonio Ramos Rosa)

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“Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto do mar” (Sophia de Mello Breyner Andren)

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Hoje, se a pesca mantem a sua importância, a vila viu crescer o comércio e o turismo. As casas continuam a ser alugadas aos turistas, apesar dos hotéis e das hospedarias que existem. Nos últimos anos, tornou-se uma rota obrigatória para portugueses e estrangeiros que praticam surf, graça às ondas da Ribeira d’Ilhas ou da praia dos coxos.

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Talvez Luís Bernardo não se tivesse suicidado naqueles distantes 1906, em que se considerava monárquico e liberal, traído por Ann, a única mulher que amou e incapaz de resolver em S. Tomé e Príncipe o conflito de interesses entre os fazendeiros que mantinham os negros trazidos de Angola a trabalhar nas roças de cacau contra a sua vontade e as imposições vindas de Inglaterra que exigiam a Portugal, que de uma vez por todas, pusesse fim à mão-de-obra escrava, que se dizia existir naquelas ilhas. Tal tarefa fora-lhe atribuída pelo Rei D. Carlos. Talvez o fiel Sebastião que insistia em tratá-lo por Patrão, em vez de Doutor, como ele corrigia sem sucesso, talvez suspeitando do que iria acontecer lhe tivesse escondido o revólver e, com isso, tivesse saído de S. Tomé, vivo, para alívio dos colonos, sem glória, sem qualquer vestígio de romantismo, com o resto da vida para digerir aquela passagem solitária pelo Poder e uma traição totalmente inesperada.

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Talvez toda a sua vida pudesse ter sido imaginada no Hotel da Ericeira onde trocou um beijo com Matilde, mas não no Hotel porque à época talvez existisse a casa Ulrich, que o antecedeu. Na Ericeira, onde desde Eça e Ramalho Ortigão se criara o hábito dos veraneios.

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Talvez pudéssemos encontrar Luís Bernardo um século depois, só ligeiramente mais velho, não como ex-Governador, mas como alguém que passara vários anos em Moçambique, no papel de Responsável duma área crítica do Estado, e que na sua juventude vira negros agrilhoados a trabalharem nas ruas, e que depois assistira à tentativa de Marcelo Caetano – como a de D. Carlos, de reparar os excessos dos colonos e estabelecer (tarde demais) um estatuto de igualdade, mas a quem faltou coragem para encontrar o entendimento com os movimentos de libertação, para perceber que o colonialismo tinha os dias contados.

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Entre Luís Bernardo e Ann houve um romance dificultado pelo facto dela ser casada e pelas intrigas que os fazendeiros pretenderam tirar do facto. Após um período de separação, noite dentro, Luís Bernardo aproximou-se da casa. Queria resolver tudo de vez, sair dali, abandonar o cargo, partir com ela. Chegou-se à janela do quarto e ouviu gemidos. Pensou que o marido tivesse regressado mais cedo da pesca, para onde partira. Os gemidos que ele imaginara só ele ter sido capaz de despertar, afinal eram iguais…E quando se aproximou mais, roído de ciúme verificou que não era o marido quem em cima dela a penetrava e lhe arrancava aqueles gemidos…! O destino de certos homens é o de amarem quem não deviam, pensaria, pouco depois

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Um século depois Ann não era já inglesa, tinha uma tez morena, um sorriso lindo, um gosto a água de coco e o seu deslizar evocava Copacabana e Ipanema, e o Sofitel, onde ele estivera hospedado e que fazia a transição entre as duas praias, música de Djavan ou frutos tropicais, manga, goiaba, papaia. Luís Bernardo vivia uma época difícil. Embora pressentindo que qualquer coisa não estava bem, não foi pela calada da noite espreitá-la. Os contornos da traição e da mentira meticulosamente preparada, nunca os conheceu e, talvez, nem quisesse saber. O que imaginou chegava. Com uma humilhação funda para digerir até ao resto da vida e apenas com o Hotel como testemunha, decidiu-se a continuar. Porque o mar tem marés e, periodicamente, algumas são vivas.

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O pôr do sol. o crepúsculo, o início da noite.

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Em 1 de Fevereiro de 1908 (portanto, dois anos após a estória contada), a Família Real que regressava de Vila Viçosa, é vítima de uma emboscada morrendo o Rei e o Príncípe Herdeiro. D. Manuel, com 18 anos é proclamado Rei. Mas, o Partido Republicano tendo ou não estado por detrás do atentado, viria a assumir o Poder a 5 de Outubro de 1910. O Rei D. Manuel parte para o exílio, tomando um bote na Praia dos Pescadores, depois de atravessar parte da vila, conforme se pode ler. A Ericeira era palco dum facto histórico.

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“Estive sempre sentado nesta pedra/ escutando, por assim dizer, o silêncio/ Ou no lago cair um fiozinho de água./ O lago é o tanque daquela idade/ em que não tinha o coração/ magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,/ dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,/ tão feito de privação.) Estou onde/ sempre estive: à beira de ser água./ Envelhecendo no rumor da bica/ por onde corre apenas o silêncio.” (Eugénio de Andrade)

      Ouça o poema

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Rua Dr. Eduardo Burnay, hoje uma artéria pedonal

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O “Forte de Milreu” ergue-se de forma destacada junto à orla marítima, sobre uma pequena enseada localizada a Norte da Ericeira, acompanhando o desnível observado no terreno.

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Praia dos Pescadores

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Pormenor da Praia dos pescadores

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Um acesso à praia

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Entrada do Parque de Santa Marta. No Séc. XIX havia aqui como nas Furnas fontes termais.

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Esta fonte, situada nas traseiras do antigo Casino, exibe um painel de azulejos, no qual está representado um tritão que numa das mãos segura um ouriço-do-mar e na outra segura um búzio. O ouriço-do-mar constitui uma alusão à Ericeira (ouriceira); o búzio foi, no passado, um fiel companheiro dos marinheiros durante a faina da pesca, tendo servido como instrumento sonoro de aviso.

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Pelourinho em estilo manuelino. A sua vida foi atribulada pois foi vandalizado e depois escondido. Provavelmente construído no Séc. XVIII só em 1924 foi “inaugurado” no local onde hoje se encontra e se presume possa ter sido o original.

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Este Cruzeiro, inaugurado em 1940, comemora várias efemérides, umas ligadas estritamente à Ericeira e outras ao País.

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Ermida de S. Sebastião

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Vista da Praia do Sul, tirada do Hotel

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Edifício no Largo das Ribas

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A gastronomia é rica e variada. São famosos os mariscos, peixes, carnes. Alguns restaurantes: A Brasa na Gruta; A Panela dos Petiscos; A Parreirinha; Bar do Algodio; Byte; Dom Carlos; Esplanada Furnas; Estrela do Mar; Gafanhoto; Golfinho Azul; Mar Azul; Marisqueira César; Marisqueira Furnas; Onda dos Navegantes; Pátio dos Marialvas; Prim; Tik-Tak; Toca do Caboz; Viveiros do Atlântico.

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Que dúvida Que dívida Que dádiva/ Que duvidávida afinal a vida (David Mourão Ferreira)

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Foram consultados: Toponímia Histórica da Vila da Ericeira, Leandro Miguel dos Santos; Ericeira Um lugar na Literatura, Sebastião Diniz; A Ericeira vista por quatro gerações, Franco Caiado; Ericeira Um mar de tradições, André Pipa.

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

Olhares (e ver)