(João Bénard da Costa)
JbC era um homem culto, apaixonado pelo cinema (que até escrevia muito bem) ou era um escritor que falava de arte (e da vida), a partir de filmes? Provavelmente, as duas coisas. O conhecimento, conseguiu-o de um modo sistematizado (ele mesmo dizia ter passado anos da sua vida a organizar enciclopédias), mas o seu gosto por Mozart, Wagner, Mahler, Verdi, p.ex., de tanta literatura, ”cúmplice” da poesia de Ruy Belo, Sophia, Sena, etc, excederam a erudição regrada da gente bem pensante e educada.
Ele amou actores e actrizes como se as suas figuras saíssem da tela e por magia o tocassem e foi capaz de alargar tal prodígio a muitos afortunados alunos e leitores. Transformou cenas de filmes em vivências pessoais que passaram a fazer parte do nosso imaginário. Recordou-nos a voz de cantores e actores, os seus timbres e versatilidade (como esquecer Mason ou Burton?!), a inocência e a perversidade, a beleza e a sensualidade, tudo isso numa perspectiva também pictórica, onde quadros de Rubens, Raphael, como de pintores modernos, ele associou. Testemunhou a importância de Manoel de Oliveira e César Monteiro, como da escrita de Agustina. Foi interventivo, apaixonado, arrebatado – a sua cultura, era uma cultura de afectos.
Não poderia ser um verdadeiro crítico de cinema, mesmo que isento, pois não mantinha a distância que a avaliação que uma obra exige. Gostava ou não (e ensinava-nos a olhar e a ver), mas daquilo que gostava, servia-se como gatilho para efabulações que só a sua cultura permitiam. A prosa de JbC é o trabalho fantástico de tessitura dum casulo de palavras de seda, segregadas por todas as referências que o estudo e a contemplação lhe trouxeram e a sua sensibilidade matizou e hierarquizou.
Nunca deixou de ser um cineclubista, fossem quais fossem as funções que tivesse desempenhado. Como tal privilegiou o que não passava nas sessões comerciais. Mas não se referiu apenas aos filmes do “tempo da Maria Cachucha” (a expressão foi dele). Filmes mais recentes e de autores vivos (Coppola, Scorsese, etc.), mereceram-lhe atenção.
Hoje, as novas tecnologias permitem ver filmes em dimensões e qualidade que não ficam atrás de muitas salas de cinema. Os filmes (muitos deles) estão editados em DVD ou acessíveis na internet, só é preciso ir buscá-los e possuir um razoável sistema de reprodução. Mas, o essencial é o gosto, a cultura e haver quem os possa promover. E, isso, JbC fez: o crítico de cinema Jorge Leitão Ramos, do Expresso, afirmou ter sido JbC “responsável por uma geração inteira de cinéfilos ter descoberto mais cinema”.
A sua mais importante actividade foi a de Director da Cinemateca Portuguesa, entre 1991 a 2009. Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas, dirigente cineclubista, presidiu à Juventude Universitária Católica (1957-1958) e foi um dos fundadores da revista O Tempo e o Modo, que dirigiu até 1970. Activista político, foi-lhe vedado o acesso à carreira universitária, durante a ditadura de Salazar. Dirigiu o Sector de Cinema do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian e presidiu à Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal. Em 1973, exerceu funções docentes na Escola Superior de Cinema do Conservatório Nacional, onde se manteve a leccionar História do Cinema, até 1980. Além de colaboração dispersa por vários jornais e revistas, publicou obras de filosofia, pedagogia e história do cinema. Entre estas últimos avultam monografias sobre Alfred Hitchcock, Luis Buñuel, Fritz Lang, John Ford, Nicholas Ray ou Howard Hawks. São também de salientar, entre outros, os livros “Os Filmes da Minha Vida”, “Histórias do Cinema Português”, “Muito Lá de Casa” e “O Cinema Português Nunca Existiu”. Entre outras distinções saliente-se o Prémio Pessoa, atribuído em 2001.
Reflectindo sobre a obra de JbC, creio que o seu modo apaixonado de ensinar e arregimentar prosélitos, não só para o Cinema em particular como para a Arte em geral, o fazia um Homem fora deste tempo, um dos raros e que cada vez são menos.
FM
Não somos dos “suspeitos do costume”, embora amemos Música e Cinema e a Liberdade sempre fosse um Bem sagrado. Nas palavras, somos coniventes com Ruy Belo e Sophia, como com Eugénio e tantos outros. Nunca privámos com Bénard da Costa, mas nele, nas suas crónicas do Independente e do Público, nos seus livros, encontrámos o GPS que nos conduziu à sedimentação de referencias incontornáveis do cinema (Godard, Visconti, Buñuel, Truffaut…), não como arte isolada, mas integrada na Vida e na Música e na Pintura… Esse modo global de olhar (e ver) as coisas. Quando alguém notável morre, habitualmente rebentam os ditirambos e chovem as lágrimas de crocodilo. No caso do João, paradoxalmente, não foi assim.
Vai-se à Net e lêem-se depoimentos de quem não gostava da sua escrita e da sua pose. Sabe-se que criou invejas (ah, Portugal!): quando se soube ter ganho o prémio Pessoa, um realizador indignado perguntou se ele o tinha aceite?! Quando lhe prorrogaram a Direcção da Cinemateca, as deserções que aconteceram!…A prosa de Bénard era cheia de adornos déco, funda, poética e a sua pose, de facto, não era deste tempo. Trazia consigo a sabedoria dos clássicos, as esculturas de Florença, a pintura do Renascimento, os olhos cheios da Arrábida, a ópera de Verdi ou a voz de Callas e o Cinema, todo o cinema do Mundo. Tinha “de la classe”. É muito. Sobretudo para quem o não mereceu.
João Bénard da Costa (JbC) foi uma espécie de Professor Keating do Clube dos Poetas Mortos. Em vez de aulas de poesia, escreveu textos maravilhosos onde o cinema era o pretexto, mas onde a poesia, a música, a arte “total” sempre estiveram presentes. Ensinou-nos a olhar, a repudiar a vulgaridade. Possuía a aristocracia dos estetas.
Recordemos esse filme admirável, de 1989, dirigido por Peter Weir, com o Prof. Keating (que poderia ser JbC) a ensinar numa escola preparatória altamente tradicionalista e conservadora. Com o seu talento e sabedoria, Keating motivava os alunos a preencherem as suas vidas, sem deixarem que ninguém condicionasse o seu modo de pensar. O filme deixava uma mensagem de vida “aproveita o dia”, cujo sentido é – aproveita, goza a vida, ela dura pouco, é muito breve.
Não sabemos se JBC apreciou o filme. Mas, escolhemo-lo por nos parecer adequado para homenagear a importância que ele teve na formação do gosto e do cinema, mesmo que a sua postura lhe tivesse trazido dissabores…Transcreveremos também comentários seus a propósito dos filmes e seus artífices. Há vários modos de contar a História – aquela que é mais atrativa, tem sempre personagens. Aqui surgem realizadores, os actores que ele amou ou por quem se apaixonou e que se transformaram em pessoas vivas. São filmes que sempre nos emocionam e ocupam um espaço importante na nossa memória afectiva. É, deste modo, que despretenciosamente o evocamos.
JbC escreveu neste livro que pôde ser mais útil, falando de filmes que que não estavam em cartaz, nem passavam na televisão, pois fora de modas e fora de tempos, prolongava essa transmissão de imagens e histórias, recriando a magia própria do cinema. Permito-me acrescentar mais: ele ajudou-nos a ver o cinema para além dos filmes, a gozá-los enquanto obras de arte com a sua linguagem própria e utilizando e fundindo teatro, música, fotografia… Ajudou-nos a entender a escolha de determinado plano ou movimento de câmara, dum silêncio, duma sombra, duma partitura. Mas não estamos condenados, como na ópera (onde quase só se repetem os espectáculos clássicos), a ver apenas o cinema das décadas de 50, 60 e 70. Grandes filmes continuam a ser feitos e o avanço tecnológico não castrou a criação artística.
Em todas as ruas te encontro /em todas as ruas te perco /conheço tão bem o teu corpo sonhei tanto a tua figura/ que é de olhos fechados que eu ando /a limitar a tua altura e bebo a água e sorvo o ar /que te atravessou a cintura /tanto tão perto tão real /que o meu corpo se transfigura /e toca o seu próprio elemento /num corpo que já não é seu num rio que desapareceu/onde um braço teu me procura/Em todas as ruas te encontro/ em todas as ruas te perco (Mario Cesariny)
Rafael. Muitos dos textos mais recentes foram peregrinações pelo seu cânone de pintores (Ticiano, Rubens, Piero della Francesca, Fragonard, Van der Weyden, Matisse, Rafael). Pelos lugares eleitos (“em Florença devia ter nascido, em Nova Iorque devia ter vivido, na Arrábida nasci e vivi“). [Alexandra Lucas Coelho]
Ticiano – Noli me tangere. [Sobre a Páscoa]:… “É em S. João que se encontra a narração do episódio mais perturbador. Maria de Magdala, depois da morte do Senhor, não saiu de ao pé do túmulo e soluçava. “E não sei para onde O levaram.” Dizendo isto, voltou-se e viu Jesus que estava de pé, mas ela não sabia que era Ele. Jesus disse-lhe: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” Julgando que Ele era o jardineiro, ela respondeu: “Senhor, se foste tu que O levaste, diz-me onde O puseste e eu irei buscá-Lo.” Jesus disse: “Maria.” Ela reconheceu-O e disse-lhe em hebreu: “Rabuni!”, o que quer dizer Mestre. Jesus disse-lhe: “Noli me tangere” [não me toques], porque ainda não subi para junto do Pai.”
Fragonard “Porque a criação humana era “uma forma de nos defendermos contra a morte e uma forma de compensação diante do terror que a vida inspira” (DN, 2005).“
A propósito do Rei dos Reis, de Cecil B. de Mille: “Depois, havia milagres, cada um mais aparatoso do que o outro e com mais efeitos especiais. Lembro-me da cara de poucos amigos dos Apóstolos. Depois, só me lembro da Agonia no Horto, do beijo de Judas e do julgamento. A coroa de espinhos, a flagelação, o sangue, os ladrões. O ecrã ficava escuríssimo e milhares de figurantes acompanhavam a subida ao Calvário, e a morte na Cruz…Pouco depois, deram-me um livro (o livro da minha vida) sobre os museus alemães, Berlim, Dresde, Munique. Lá vi o Cristo na Cruz de Rubens, que está na Pinacoteca de Munique e em que o Corpo do Crucificado pende da Cruz tanto quanto nela se ergue, recortado contra um imenso escuro. Associei sempre essa reprodução à imagem final de H.B. arrier no filme de DeMille…se há cineasta rubenisiano ele é Cecil B. DeMille…é o mesmo sangue, ou melhor a mesma carne. Os temas de DeMille são os mesmos de Rubens; o mito, a história, a narureza, a alegoria, a fé”.
Se tivesse de viver uma vida além da sua, “escolheria a de Federico de Montefeltro, senhor de Urbino e príncipe das humanidades, retratado de perfil e em carmim por Piero della Francesca”.
Van der Weyden: “Se invocamos a memória, é para nos sentirmos mais acompanhados, quando sabemos que ela não é compartilhada por mais ninguém. Não há nada de mais solitário do que a memória.”
E são de Florença que JBC tanto amou, as imagens seguintes. Não deixa de ser notável e raro que uma grande cidade mundial mantenha o seu centro quase inalterado desde o século XV. “Todas as viagens têm que acabar e nunca há o tempo que ao tempo pedimos e que do tempo esperamos“
É fundamental assistir a uma missa no grandioso Duomo que conta com alguns vitrais da autoria de Donatello, passear na única Ponte Vecchia e visitar o museu Uffizi
O centro de Florença não é de uma cidade, é um museu: Hércules vencendo o minotauro. O mito do Minotauro foi um dos mais contados na época da Grécia Antiga. Passou de geração em geração, principalmente de forma oral. Pais contavam para os filhos, filhos para os netos e assim por diante. Era uma maneira dos gregos ensinarem o que poderia acontecer àqueles que desrespeitassem ou tentassem enganar os deuses.
Em Florença habitaram algumas das figuras mais ilustres da história como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Dante, Maquiavel ou Galileu.
Michelangelo: Apolo
Piazza Signori
Um dos mais curiosos paradoxos a que a história da relação cinema-ópera deu lugar, a descendência de Senso não é cinematográfica, mas operática. Se se quiser pensar numa posteridade para este filme, ela está…nas encenações de 1955 ou de 1956, com que o mesmo Visconti revolucionou todos os caminhos da encenação operática neste século…É estranho …Foi ele afinal de contas quem “autorizou” a Callas a recitá-lo (è strano) tão estranhamente estranha, nas Traviatas de tempo de Senso.
Maria Callas cantou no Teatro São Carlos em 27 de Março de 1958 La Traviata com Alfred Kraus. A ópera, da autoria de Giuseppe Verdi é composta por quatro actos e apresenta doze personagens. A história gira em torno de um romance intenso mas controverso entre Violetta e Alfredo.
Visconti foi buscar [Alida Valli]…para a transformar na única imagem possível à voz de Callas, a Condessa Livia Serpieri do Senso…, na mais maldita e operática de todas as amantes adúlteras do cinema. Jamais, neste, voltou a haver excessos como os dela, quer na fulgurante carnalidade das frisas do La Venice, quer no amortalhado e descomposto final em Verona, quando Farley Granger lhe arranca os véus para chamar “Una signora, una grande signora”. Nunca vi um animal mais ferido, uma mulher mais faminta. [Talvez nenhum outro realizador tenha conseguido a fusão do cinema e da ópera, não a “filmagem”, mas a respiração, a expressão corporal, as emoções rosto/voz de acordo com o libretto, como se o próprio filme fosse a ópera]
Mal nos conhecemos /Inauguramos a palavra amigo! /Amigo é um sorriso De boca em boca,/Um olhar bem limpo /Uma casa, mesmo modesta, que se oferece./Um coração pronto a pulsar/Na nossa mão! /Amigo (recordam-se, vocês aí,/Escrupulosos detritos?) /Amigo é o contrário de inimigo! /Amigo é o erro corrigido, /Não o erro perseguido, explorado. /É a verdade partilhada, praticada. Amigo é a solidão derrotada! /Amigo é uma grande tarefa, /Um trabalho sem fim,/Um espaço útil, um tempo fértil,/Amigo vai ser, é já uma grande festa! (Alexandre O’Neill)
Ouça o poema
Johnny Guitar (1954) é um western, de Nicholas Ray.O filme centra-se na figura de Vienna (Joan Crawford), dona dum saloon, ameaçada pelos rancheiros que pretendem expropiá-la, em virtude da putativa valorização dos terrenos que a próxima passagem do caminho-de-ferro originará. Emma, proprietária da maior parte dos terrenos, apaixona-se por Dancin’ Kid, um fora-da-lei com poucos escrúpulos, sentimento que ela mantém em segredo. Ameaçada por Vienna, com quem Kid já teve um relacionamento, Emma procura incriminá-los, como forma de vingança, quando quatro homens assaltam uma diligência e matam o seu irmão. Vienna chama, então, o seu antigo companheiro e pistoleiro Johnny Guitar, para a ajudar a manter os rancheiros afastados. Emma quer enforcá-la, acusando-a de participar do crime. As duas confrontam-se numa última luta mortal, habitualmente desempenhada por homens. As cenas finais são de antologia.
“Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as rouletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem ¨Keep the wheel spinning, Ed. I like to ear it spin¨No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projeccionistas: ¨Keep the film spinning. I like to see it spin¨. Tanto, tanto.”
Num inquérito de jornal, em que lhe pediam para dizer qual o seu filme preferido, JbC respondeu: Johnny Guitar, de Nicholas Ray; porque era ele; porque era eu”.
Cruel vitória (Bitter Victory/1957), também de Nick Ray. A história de um triângulo amoroso: Major Brand (Curt Jurgens), Capitão Leith (Richard Burton) e a mulher do primeiro (Ruth Roman). Na véspera de uma operação perigosa no norte de África, a mulher do major chega ao aquartelamento. Ela e Leigh tiveram uma relação forte antes do casamento dela. Jurgens descobre. Durante a acção, o Major mostra-se incapaz de eliminar uma sentinela e é Leigh quem tem de o fazer. A fraqueza (ou cobardia) do Major de carreira, odiado pelos seus homens, contrasta com a coragem serena do capitão, arqueólogo, que era adorado. Este é mordido por um escorpião e Leigh “viu, calou-se e não disse nada…só gritou quando o bicho já tinha mordido”.
“O filme tem o mais portentoso diálogo da história do cinema e as palavras não dizem nada. Tem a mais bela música de filme que alguma vez vi…e aquela música é um enigma. Tem a voz de Burton, a beleza de Burton e talvez em coisas tão belas não seja o essencial. A morte de Burton é um dos momentos mais belos da história do cinema. No chão, agonizante, acusa-o: “you’re not the sort of man, Brand, who’d kill for his woman. But you’d… murder to stop her from finding out that you’re a coward.” E, depois, a levantar-se para proteger o seu assassino da tempestade de areia “I always contradict myself”….”Burton com o vento nos cabelos e o olhar no infinito é a imagem de uma modernidade cinematográfica que nunca mais voltou a ser achada”
A propósito, não sei se JBC alguma vez se referiu a Becket (Peter Glenville/1964), que relata o conflito entre o Rei Henrique (Peter O’Toole) e o seu companheiro de estroina Thomas Becket (Richard Burton), a quem o Rei decide nomear Arcebispo de Cantuária, para poder controlar a Igreja. Porém, Becket entende assumir a dignidade do lugar. Os conflitos vão-se sucedendo. Uma cena admirável – a da excomunhão dum nobre próximo do Rei por ter mandado matar um padre por suspeita de abuso de uma jovem, sem julgamento. Outra cena admirável a tentativa de aproximação do rei quando Becket regressa do refúgio que procurara em França. É uma praia que podia ser na Normandia. “Becket porque me abandonaste?” O cinismo do rei que favorece a morte do Arcebispo mas depois de se fazer flagelar o proclama Santo…Enormes actores, com registos de voz diferentes, O´Toole cortante, Burton “that buge, instrumental voice, capable of thrilling switchies from whisper to roar, with every syllabe an honest transaction between you and him”.
Sobre Orson Welles escreveu JbC que o admirava mas não amava (como também, a Eisenstein, Fellini, Tarkowsky, etc). De Citizen Kane (1941): …”Há mais de 50 anos encabeça, invariável e imerecidamente, a lista dos “all the times best”…Orson Welles acabou os dias quase igual à caracterização do velho Kane…”Realmente, JbC não amava Welles!
Conheço o sal da tua pele seca/depois que o estio se volveu inverno/da carne repousando em suor nocturno.//Conheço o sal do leite que bebemos /quando das bocas se estreitavam lábios /e o coração no sexo palpitava.//Conheço o sal dos teus cabelos negros /ou louros ou cinzentos que se enrolam neste dormir de brilhos azulados.//Conheço o sal que resta em minha mãos/ como nas praias o perfume fica/quando a maré desceu e se retrai.//Conheço o sal da tua boca, o sal /da tua língua, o sal de teus mamilos, /e o da cintura se encurvando de ancas.//A todo o sal conheço que é só teu, /ou é de mim em ti, ou é de ti em mim, um cristalino pó de amantes enlaçados. (Jorge de Sena)
Ouça o poema
John Ford (1894–1973) tornou-se célebre pelos seus westerns, embora filmes de outros géneros sejam também importantes, como a Estrada do Tabaco ou as Vinhas da Ira. Mas, foi o western que o tornou famoso. Filmes como Stagecoach ou o Homem que matou Liberty Valence ou The Searchers são referências maiores da História do Cinema. Sobre este último, diz JBC: este é um filme da busca. Este é um filme dos que buscam. Bem-aventurados, pois encontrarão Deus. Em The Searchers John Ford dá a Monument Valley o papel que Homero deu ao mar na Odisseia (transcrição de JA Place)
Foi em 1939, que, depois do “King”(Kong), nasceu o “Duke”, John Wayne em Ringo Kid no western homérico chamado Stagecoach, com que John Ford cobriu o luto de ter visto num necrotério de Phoenix (Arizona), de smoking branco e cinto de diamantes, o corpo espatifado do único cow-boy a Wayne comparável, Tom Mix, “that rough-riding son of a bitch” .
Roberto Rossellini (1906-1977) foi um dos mais importantes cineastas do neo-realismo italiano. Deste período os filmes principais: Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (1947). Depois desta fase, realizou o que agora se chamam “filmes de transição”: L’Amore (1948) com Ana Magnani e La macchina ammazzacattivi (1952). Mas é depois do seu encontro com Ingrid Bergman que atinge o momento mais alto da sua carreira. Os filmes que fizeram juntos: Stromboli terra di Dio (1950) Europa ’51 (1952) and Journey to Italy (1953), La paura (1954) e Giovanna d’Arco al rogo (1954) não tiveram na época grande aceitação, embora fossem grandes os louvores dos Cahiers du Cinema. Teve um romance com a atriz Anna Magnani, com quem fez Roma, Cidade Aberta, e de quem se separou para casar com Ingrid Bergman. Em 1963, Rossellini fez o roteiro de Tempo de Guerra, de Jean-Luc Godard.
O inicio do neorrealismo ocorreu em 1944-1945 com o aparecimento de Roma Cidade Aberta. Com Anna Magnani, intervieram atores amadores. O filme é considerado um dos maiores da História do Cinema. Decorre em Roma, ocupada pelos nazis, quando é declarada “cidade aberta”, para evitar bombardeamentos aéreos. Naquele momento, comunistas e católicos unem-se para combater os alemães e as tropas fascistas. “Porque entre o olhar que não aguenta a câmara e entre a câmara que não aguenta o olhar (…Anna Magnani) nasceu o cinema moderno… Sobre a exibição do filme na Gulbenkian, conta JbC: quando apareceu a palavra “Fim” a sala levantou-se em peso para a maior ovação de que me lembro em sessões de cinema. Rossellini esperou 10 minutos para agradecer. Os bravos deram lugar a distintíssimos…”Abaixo o Fascismo!”, “Liberdade!” 1970, Lisboa. Eu estava lá.
Outro filme de Rossellini: Viagem à Itália que gira à volta de um casal – Alexander (George Sanders) e Katherine (Ingrid Bergman) em viagem à Itália, cuja relação está à beira da ruptura. Depois de oito anos de casamento, tomam consciência de que são dois estranhos e nada sabem um do outro. Gradualmente, a descoberta do fracasso conjugal repercute-se em cada um deles. Porém, se por um lado, se sentem estranhos, por outro comportam-se como esposos ciumentos e possessivos, onde as recriminações se multiplicam. Estas contradições acabam por levá-los à reconciliação, isto no meio de uma procissão que momentaneamente a arrasta, enquanto a multidão grita Milagre! Os sinais que o filme deixa são eloquentes. A visita de Katherine à Grotta della Sibilla, Templo de Apollo e ao Vesúvio, onde um guia lhe mostra uma pequena cratera que se formou em sua última erupção, bem como, o efeito da ionização, Pompéia, numo sítio arqueológico que indica a descoberta de um casal enterrado sob as lavas do Vesúvio.
“Aparentemente, nada se passou de particularmente interessante…Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal. E é a acumulação de todos esses momentos, de todos esses sinais que, a cada momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem fatalmente seguir numa direcção (a ruptura) e, não menos fatalmente, estão a seguir noutra (a redescoberta)…Ninguém vos pode jurar que…não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem e a mulher estejam sós. …Segundo Rohmer, Viagem em Itália é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E quem não O vir não vê nada. É apenas um filme? Precisamente.”
La Règle du Jeu (J. Renoir/1939)-André, prestigiado aviador, está obcecado por Christine, mulher dum aristocrata. André consegue um convite para uma festa realizada pelo casal. Os sorrisos dos convidados escondem, porém segredos e sentimentos,e o resultado disso é um assassinato..,”Nunca houve filme mais odiado e amado. Reacções que surpreenderam sobretudo, o autor. Não há retrato nenhum: La Règle é uma opera buffa (exactamente como Mozart chamou a Le Noze di Fígaro…). Renoir nunca foi impiedoso…O filme não trata de uma classe…É a suprema ilustração da velha história favorita dos cépticos gregos quando um juiz, na presença do filho, ainda criança, dava razão às duas partes absolutamente contrárias que para ele apelavam. Observava o miúdo que as duas partes não podiam ter razão ao mesmo tempo. “Também tens razão meu filho”, era a resposta do pai…O que talvez se tenha perdido é outra acepção da palavra classe… Todas as culpas serão desculpadas a quem tiver “de la classe”. Et ça devient rare à notre époque..”
Os Cahiers du cinéma exerceram influência determinante na crítica francesa e mundial. Fundados em 1951 por André Bazin, veio a reunir nomes importantes, como Éric Rohmer e François Truffaut. Sob a influência deste último, surge a Nouvelle Vague, criada por jovens cineastas. Defendiam que a responsabilidade dum filme dependia quase que exclusivamente do realizador e pretendiam produções intimistas e a baixo custo. Truffaut deixou uma filmografia importante. Entre os filmes laureados “La nuit américaine” (1973), “Les 400 coups” (1959), “Le dernier métro” (1980), “Vivement Dimanche!” “L’Argent de Poche” (1976). São incontáveis as referências a este autor por JbC.
Cet obscur objet du désir (L. Buñuel/1977) “Nas trevas e na ilusão de desejo se situa o filme. Vezes sem conta…, Conchita (as Conchitas) [são duas actrizes para o mesmo papel] repete(m) ao velho e rico Fernando Rey que o ama(m) muito mais a ele do que ele a(s) ama a ela(s). Mentira? Tudo no filme parece confirmar que, de facto, mentem para convencer tão ingénuo sedutor. Mas quem pode garantir que assim seja? Reduzir o filme à fábula habitual do velho gaiteiro ou do anjo mais ou menos azul, é não perceber nada de nada. Porque se há mito convocado nesta obra, não é o das fábulas moralistas. É o das Mil e uma Noites, a mulher sabendo que o seu poder reside na sua não doação. Reter o desejo. Suspendê-lo para a noite seguinte.”
Vertigo (Hitchcock/1958): o mais belo dos filmes…a paixão sempre cria a ilusão do duplo e só nessa ilusão se perfaz. Contra o mundo dos fantasmas, dos mortos-vivos, das aparições, da água que escorre, das ondas do mar, nada pode o mundo das sequóias semprevivas, das raízes, da duração e do tempo…Também se pode resumir o filme dizendo que ele começa com um polícia a matar um polícia e acaba com um polícia a matar uma assassina. E, olhem, não se está longe da verdade.
A propósito de Um Verão de Amor (Somarlek/1951/Ingmar Bergman): quem me tem vindo a seguir, já sabe…porque Somarlek é o mais belo dos filmes…Apesar do happy end ou por causa do happy end – é um filme de dor e nostalgia, um filme de luto…O grande prodígio – um dos grandes prodígios – é a dissolução de tudo em tudo, do tempo para amar no tempo para morrer e do tempo para morrer no tempo para amar. Pelo tempo começa o filme – badaladas de um relógio. E a imagem do relógio funde-se com a de girassóis e pássaros, barcos e mar. E do tempo passamos ao templo – a Ópera, o Ballet, …e os sinais continuam a acumular-se…Uma história de frutos e flores, de sol e águas transparentes. Uma história de sítios secretos, de pássaros de verão, de nuvens e rochas…
Some came running (V. Minnelli/1959): Centro deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema alguma vez inventou, Ginny (Shirley MacLaine) é menina e moça perdida na vida e perdida na morte, no sentido em que também se diz “mulher perdida “, “mulher da vida”, tão belas expressões. E no fim, no enterro dela, percebemos que, se Dean Martin nunca tirou o chapéu, foi para o tirar naquele momento, para a única mulher a que esse gesto obrigava…Há cineastas como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.Some Came Running é o último filme dos fifties e o primeiro dos sixties. E é um dos maiores filmes modernos de Hollywood.
James Mason.…a incomparável voz dele, a mais bela voz masculina jamais ouvida no cinema…a viagem à pátria das sombras e dos turbilhões, a danação do arco-iris, a doce e mortal dentada da felicidade… No Humbert da Lolita de Kubrick (1962), …se o filme é melhor do que o livro, não o deve a Sue Lyon…mas à absoluta sofreguidão de Mason, absolutamente consumido pelo fogo dela…[Na Embaixada de França] foi na voz dele – pela voz dele que ouvi histórias de Nick Ray, de Ophuls, de Mankiewicz. Deixou-se ficar a um canto e cedeu o centro da sala a Gregory Peck cheio de lifting e de cabelo pintado de preto.
Em vez de dizer Marilyn dizer mulher, como escreveu Ruy Belo e parafraseou JbC…Foi a voz e o corpo acesos por…Wilder, Cukor, Hawks, Hataway, Logan…Bastava que surgisse para tudo ser luz: uns perceberam-no e quedaram-se maravilhados; outros, não sei se o perceberam, mas a maravilha acontecia igualmente…Nunca houve luminosidade assim. E esse é o nome da beleza. Depois há o medo. Quantas vezes Marilyn no-lo mostrou, quantas vezes aludiu a ele?. Há gente assim, os seres que não são deste mundo, de que falava Régio…[Mas] cada plano de Marilyn nos fala da morte
Na morte de Marilyn, poema de Ruy Belo
Humphrey Bogart: após uma série de filmes da série B, o seu desempenho em Casablanca levou-o ao pico da carreira e, simultaneamente, contribuiu para a sua imagem-de-marca de cíinico escondendo uma alma nobre. Outros filmes: High Sierra, The Maltese Falcon, To Have and Have Not, The Big Sleep, Dark Passage, and Key Largo, The Treasure of the Sierra Madre; The African Queen, e The Caine Mutiny. Sobre ele escreveu Nick Ray: ele era muito mais que um actor – era a verdadeira imagem da nossa condição. O seu rosto era uma repreensão viva. Morreu em 1957 de cancro no esófago. Últimas palavras:”I should never have switched from Scotch to Martinis.”. Em 1999, o American Film Institute classificou-o como the Greatest Male Star of All Time.
Sobre Casablanca:…tão fremente, tão generosa e tão confiante como Ingrid Bergman o era. Aparentemente nessa sequência (o reencontro no Rick’s Bar em que ela pede a Sam para tocar As times goes by)…triunfa a expansão do grande amor sobre a contenção dele, a dádiva de Ingrid Bergman sobre o ressentimento de Humphrey Bogart…
“Sempre teremos Paris¨diz no fim Rick a Ilsa. A imensidão desse adeus vem de sabermos que não. Terão Paris (sempre, como terão Casablanca, porque nunca mais se tocarão e se beijarão como em Paris e Casablanca). Ficaram com todo o tempo, quando ja sabiam “as times go by”
“Se viu Casablanca, amará ate ao fim Bogart e Bergman. E procurará toda a vida o Rick’s Bar em Casablanca, sabendo perfeitamente que não há nenhum Rick’s Bar em Casablanca e que nao há outra Casablanca senão aquela onde um dia se encontraram e se perderam Ingrid Bergman e Humphrey Bogart. Se isto não for o cinema é porque o cinema nao existe”
Os alunos que a assimilaram [mensagem de vida “aproveita o dia”, cujo sentido é – aproveita, goza a vida, ela dura pouco, é muito breve], quando ele foi despedido – porque aos inovadores só tardiamente lhes fazem justiça, contra a cólera do professor-arauto das “boas normas”, subiram às carteiras e saudaram-no como o faziam nas suas reuniões clandestinas “My Captain”. Assim, me apeteceu despedir-me de si, João! E é tão a propósito recordá-lo porque li vários artigos seus sobre Veneza, Verdi, os olhos espantosos da Alida Valli, a voz de Callas (a sua Traviata em S. Carlos) , o cinema de Visconti, Godard. V. foi um homem fora do seu tempo, de todos os tempos, que ensinou caminhos para descobrir e amar a Arte. Dreyer, Visconti, Bergman, Buñuel, Truffaut e Antonioni, entre muitos e muitos outros.
Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.