Douro: o mosto e o gosto (ou a vinha e a vida)

O Douro atravessa o noroeste da Península Ibérica, desde Duruelo de la Sierra, a mais de 2100 metros de altitude, até desaguar junto ao Porto. Com os seus 897 Km, depois do Tejo e do Ebro, o Douro é o terceiro maior rio ibérico. Cerca de 2/3 da sua extensão situa-se nas províncias espanholas de Soria, Burgos, Valladolid, Zamora e Salamanca.
Ainda do lado espanhol passa por numerosas cidades que atestam a sua importância histórica e cultural – Soria, “cidade dos poetas” que acolheu Antonio Machado, Tordesilhas onde foi assinado o Tratado que delimitava a pertença dos Descobrimentos Marítimos, Zamora capital do estilo românico e muitos locais ligados à gastronomia e à produção vinícola.
No seu trajecto o rio conformou espaços lindíssimos que deram origem a reservas de flora e fauna, como os Picos de Urbión, em plena Cordilheira Ibérica, os Arribes del Duero, o parque natural onde o rio abandona Castela. Em Portugal, passa-se outro tanto. Duero ou Douro, tanto faz.
Foi sobretudo a partir do século XVIII, quando os ingleses “descobriram” o vinho do Porto, que se iniciou a grande produção de vinha, no Douro português. Os barcos rabelos conduziam as pipas até aos armazéns de Gaia, mas há provas da existência de vinhedos desde os Romanos.
Moldar e conter as encostas do rio para a produção da vinha foi uma actividade hercúlea. Tiveram de arrancar-se arbustos, rasgar o xisto, e construir quilómetros de socalcos, com muros feitos de rocha moída, lodos e estrume.
A história do homem e das vinhas do Douro é feita de abastança e penúria, de largos proventos e de falências e pobreza. As relações entre produtores e exportadores em Gaia foram muitas vezes conflituosas. Os preços e o volume das pipas exportados sofreram grandes oscilações ao longo dos anos; as pragas de oídio, filoxera e míldio levaram à destruição das vinhas de numerosas quintas; por vezes a cupidez levou á mistura de mosto de outras proveniências que não o Douro ou à adição de produtos estranhos para dar cor ao vinho (baga de sabugueiro, por exemplo). Entre o regime proteccionista implantado pelo Marquês de Pombal (que delimitava a região produtora e regulava a produção e comércio dos vinhos, assegurando a sua proveniência) e o estabelecimento de mercado livre, acabou sempre por serem os próprios lavradores a exigirem um órgão que controlasse a produção e lhes garantisse o escoamento do vinho.
Mas a história dos homens do Douro não é só a dos proprietários, é a dos assalariados e pequenos lavradores. Os homens, desde há séculos, muitas vezes mal alimentados, debaixo dum clima extremo de noites muito frias de Inverno e de calor abrasador no Verão, ali abriram covas até um metro e meio para oxigenar o solo, construíram terraços e muros para impedir a erosão e conservar a água das chuvas. Os homens que adubavam, tratavam as vinhas, faziam as vindimas, transportavam os cachos e pisavam as uvas.

Independentemente das inovações tecnológicas, a produção do Vinho do Porto segue os mesmos passos. É no lagar ou em modernas cubas, que tudo começa. É breve a curtimenta (contacto do mosto com as películas das uvas de onde sairá boa parte do corpo, da cor e dos aromas). Segue-se a beneficiação (adição de aguardente vínica), que implica a separação final do mosto das películas, grainhas e engaços. Transporte para as caves de Vila Nova de Gaia. Aí, os lotes são separados consoante as suas características e potencial. Os lotes especiais são conservados em cascos de carvalho. Sofrem várias trasfegas, destinadas a “refrescá-lo” e a libertá-lo  das borras originais. É o longo processo de envelhecimento durante o qual são criados a partir das várias amostras, lotes com a mesma identidade. O resultado serão os Tawny e Colheita, os Ruby e LBV e os Vintage.
Hoje, não é só o Vinho do Porto, mas os de mesa da Região Demarcada, que têm fama em todo o mundo. Os enólogos têm conseguido vinhos, sobretudo tintos, que rivalizam com quaisquer outros vinhos europeus. O vinho traz o sol e o xisto – e a cor, aroma de frutos e flores, conforme as castas.
Percorrer as margens do Douro, contemplar as paisagens deslumbrantes (como Galafura, Casal de Loivos, S. Salvador do Mundo), mas que de modo quase ininterrupto se sucedem desde Miranda até à foz, impregnarmo-nos delas, sentir as suas diferenças – o terreno de granito com os seus pinheiros, giestas e urze e, na zona vinhateira, o xisto, a esteva e o alecrim. As cores, consoante a região – verde, castanho, terra queimada. As amendoeiras, os sobreiros, as oliveiras, quando nos afastamos. As paisagens são a epiderme da geografia, escreveu Manuel Carvalho. E observar os cumes do Marão, subir as encostas íngremes, visitar aldeias retiradas, ouvir os pequenos lavradores que restam, apreensivos quanto ao futuro, e maravilharmo-nos. A região vinhateira é uma paisagem cultural, classificada pela UNESCO como Património Mundial.

A linha-férrea nas margens do rio vive um declínio melancólico: presentemente, apenas o troço Porto/Pocinho está aberto à circulação. Mas as estradas melhoraram e o comboio histórico, quando disponível, com as suas carruagens centenárias, permite um regresso ao passado. Não é o Expresso do Oriente, mas uma espécie de Correio do Douro. A navegação fluvial, por seu lado, tem vindo a ser intensificada. Os cruzeiros são inesquecíveis. Os turistas acorrem.

Porém, o rio é mais: ao olhar para os edifícios das quintas ou para ruínas no Porto, ocorrem-nos romances ou filmes que tiveram como cenários estas paisagens ou como protagonistas gente do Douro. É o imaginário de cada um. A perspectiva hiper-romântica de Camilo, que em “Amor de Perdição” utilizou as margens do Douro como cenário das várias tragédias da novela, que, aliás, quase toda ela decorre na região; a escrita de Agustina, com um lado “torrencial, genial, por vezes assustador”, como escreveu Pedro Mexia; o olhar aristocrático de Manoel de Oliveira, o seu apego ao norte, donde é natural, desde o primordial “Douro Faina fluvial”; a elegância de Eça de Queiroz na sua incursão pela vida rural, como sucedeu em “A Cidade e as Serras” e “A ilustre Casa de Ramires”; Torga que regularmente revisitou as serras de Trás-os-Montes com as suas penedias, as suas antas, e que deve ter escrito as páginas mais eloquentes sobre a dureza da paisagem do Douro e sobre a tenacidade e perseverança do trabalhador rural; e, sempre, as reflexões de António Barreto acerca da necessidade de disciplina e rigor, indispensáveis à saúde da economia da região.

São perspectivas diferentes, claro, mas que permitem uma visão multi-dimensional do Douro – das famílias do século XIX com suas rivalidades e conflitos e dos fidalgos, magistrados, boémios e poetas. E do esforço solitário e corajoso dos homens que trabalham a terra, a sua vida. Pelo meio sempre a vinha, o gosto pelo mosto, seja qual for o seu destino.

FM

 

 

 

O rio Douro não teve cantores. Teve-os o Mondego e o Tejo também. Mas para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cacheiro da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira da neve que cobria os barrancos de Sabroso.

 

Douro/Espanha “…O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorgeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e à beira de água lavam os pés e os pecados. E, no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro…

 

“…Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à má-cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada…

 

“…Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante tê-lo-ia amado, e preferido; como preferiu os estaleiros incandescentes de Veneza e os túmulos abertos das arenas de Arles, para descrever o inferno. Por cá, são brandas as liras; com o aguilhão da fome, às vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias são raras, as musas são mimosas não ardentes” (Agustina Bessa-Luis in Fanny Owen)

 

Agustina Bessa-Luís nasceu em Amarante em 1922. Publicou mais de 50 obras. Entre vários prémios e testemunhos de reconhecimento internacional, o Prémio Camões em 2004. Vários dos seus romances foram já adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira, de quem é amiga: Fanny Owen (“Francisca”), Vale Abraão e As Terras do Risco (“O Convento”), para além de “Party”, cujos diálogos foram igualmente escritos pela escritora.

 

“…El Duero cruza el corazón de roble /de Iberia y de Castilla. /¡Oh, tierra triste y noble, /la de los altos llanos y yermos y roquedas, /de campos sin arados, regatos ni arboledas;/decrépitas ciudades, caminos sin mesones, /y atónitos palurdos sin danzas ni canciones /que aún van, abandonando el mortecino hogar, /como tus largos ríos, Castilla, hacia la mar!...” (Antonio Machado)

 

..”Porém havia nas margens do Douro uns nativos especiais que se alimentavam de bacalhau cozido com ovos à ceia, refeição com tradições da mesmice gastronómica. Às nove e meia, e à luz metálica dos gasómetros ou das velas em castiçais de dois braços, sentava-se à mesa o lavrador do Douro, homem no geral de génio ponderado e de trato soberbo. Tinha quatro filhas e dois rapazes um deles morgado, entroncado e bebedor; antes dos vinte anos ficava órfão e deixava a herança nos botequins da Régua, onde se jogava o monte com obstinação que, de não ser viciosa, seria espartana…”(AB-L)

 

 

Foi o Marquês de Pombal quem, em 1756, lançou as bases da constituição da Região Demarcada do Douro e de um sistema de regulação da produção e comércio dos seus vinhos, através do alvará régio de instituição da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Foi a primeira zona demarcada para a produção de vinho do mundo, tendo em conta os regulamentos, controlos e disciplina, como hoje estão estabelecidos.

 

Peso da Régua – “Acto visionário”, assim lhe chamou Antonio Barreto, que permitiu que só os vinhos ali produzidos pudessem ostentar designações de Douro e Porto. “A defesa de um produto implica o seu carácter e este só se garante se estiver definida a sua origem e as suas características”

 

Miranda – Na Região Demarcada do Douro, produzem-se os vinhos correspondentes às denominações de origem “Porto” e “Douro”, a qual abrange 250 mil hectares, dos quais 48 mil são ocupados por vinha. Um décimo dessa área, que engloba treze concelhos, foi classificado pela UNESCO como Património Mundial.

 

Contudo, a zona classificada é representativa da diversidade do Douro, uma vez que inclui espaço do Baixo Corgo, do Cima Corgo e do Douro Superior. Outros dois locais do Douro foram também considerados Património da Humanidade – o Vale do Côa e o velho burgo da cidade do Porto.

 

Os treze concelhos que fazem parte da zona do Alto Douro, distinguida pela UNESCO, são Alijó, Armamar, Carrazeda de Ansiães, Lamego, Mesão Frio, Peso da Régua, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, São João da Pesqueira, Tabuaço, Torre de Moncorvo, Vila Nova de Foz Côa e Vila Real, estendendo-se ao longo das encostas do rio Douro e dos seus afluentes, Varosa, Corgo, Távora, Torto e Pinhão.

 

A Região Demarcada estende-se de perto de Barqueiros, junto à Régua, a Barca de Alva, próximo de Espanha.

 

 

 

Alto Douro – É da conjugação das qualidades do solo, características do clima e trabalho do homem que resulta o vinho do Porto. Em Setembro, no momento da vindima, as uvas são transportadas pelos homens até modernos centros de vinificação ou até a antigos lagares, que aqui e ali ainda existem.

 

Actualmente, o processo produtivo concilia as técnicas mais sofisticadas com séculos de rigorosa tradição, em que a pisa e a maceração são totalmente mecanizados. Porém, ainda se podem encontrar locais onde a vinificação é realizada segundo a técnica ancestral.

 

O resultado final não é um Porto, mas vários Portos, com cores que vão do branco ao retinto e sabores variados. Antonio Barreto: Um produto “feito pelo homens. E refeito. E rei ventado”, Um produto que nasceu à custa da labuta “dos lavradores, dos Galegos, dos assalariados rurais, dos comerciantes, dos holandeses e dos ingleses”, de uma panóplia de gente tão vasta e diversa quanto o seu valor e reconhecimento: desde clientes que o beberam, técnicos e enólogos que o fizeram, políticos e autarcas, entre muitos e muitos outros que gastaram vidas a favor da conquista de dimensão do “néctar dos deuses”

 

A desertificação das freguesias ribeirinhas do Douro e o envelhecimento da população são problemas graves. Só nas últimas duas décadas, o Alto Douro Vinhateiro perdeu quinze por cento dos seus habitantes Para combater a falta de mão-de-obra, muitos proprietários rurais recorreram ao trabalho de imigrantes.

 

Alto Douro – Os Durienses moldaram, como se de artesãos se tratasse, a “paisagem natural (…) humana e feita pelos homens”. “Do rio domesticado às encostas em socalcos, das quintas aos armazéns, dos caminhos aos lagares, das oliveiras à amendoeiras, dos muros aos patamares e à vinha ao alto, tudo é feito pelo homem. Tudo, no Douro, é humano”. Embalados pela mudança, mas com consciência e respeito pelo valor legado, os homens, no Douro, souberam “aproveitar o melhor” que a Natureza lhes deu, ao ponto de serem “capazes de corrigir e transformar, sem destruir”. (Antonio Barreto)

 

Rio Douro em Miranda

 

Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar….

 

…”Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas; e, de entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebere que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sobre as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas...”(AB-L/Fanny Owen)

 

Vila Real

 

Amarante

 

A Régua em 1840 era um pouco Saint Louis do Missouri, só que com menos europeus. Havia ingleses, é certo; mas para cá da Mancha um inglês sofre uma rebaixa de cinquenta por cento. Para chegar onde quero chegar direi que em 1845, nos altos de Baião e num lugar chamado Santa Cruz do Douro, vivia um desses morgados bizarros, que cumprem o seu destino seduzindo uma costureira, casando com uma prima e endividando-se quase sem sair de casa – a comer e a administrar mal as terras. Mas José Augusto Pinto de Magalhães, o jovem proprietário da Quinta do Lodeiro, tinha uma particularidade mais ruinosa: fazia versos”

 

Em Novembro de 1849, Camilo estava na casa do Lodeiro e era hóspede de José Augusto. É uma época desmantelada, no Douro. As vinhas apresentavam-se de cabeleiras dispersas, a redra não se fez ainda. As folhas apodrecem e perdem o seu ruivo esplendor. Chove; e dos armazéns ouve-se o gemido da prensa que espreme os últimos bagaços. Nas réstias de sol aberto seca a grainha em cima de sacos tingidos de mosto. A terra barrenta pega-se às grossas botas de atanado, salpica as calças justas do morgado do Lodeiro que se apeia do seu cavalo à porta do salão” (Agustina Bessa-Luis in Fanny Owen)

 

Torre de Moncorvo

 

Francisca não é uma adaptação de Fanny Owen de Agustina Bessa-Luis. O filme foi construído sobre diálogos escritos por encomenda, mas como conta a escritora “Para escrever os diálogos tive que conhecer as circunstâncias que os inspirassem, e a história que os comporta. Assim nasceu o livro e o escrevi». Este facto exemplifica a cumplicidade entre Agustina e Oliveira.

 

O filme baseia-se em factos verídicos ocorridos depois da derrota dos miguelistas na Guerra Civil, que deixa os jovens fidalgos tradicionalistas entregues a “paixões Funestas”. Figuras centrais são Camilo Castelo Branco, escritor ainda pouco conhecido e pobre, José Augusto (poeta sem talento, decadente e triste, mas abastado), e Fanny Owen (filha dum antigo conselheiro militar de D. Pedro)

 

A acção decorre no Porto e no Douro. “-Quem é ele? /Não estremeceu quando Camilo disse, com precipitação: /-É um homem de temperamento funesto -Funesto porquê? /-Não tem alma /-O que é a alma? Uma borboleta também não tem alma, e ela sabe como ninguém tocar nas flores./…-A alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é…/-É um vício. A alma é um vício/-O quê? /Não me trate como uma ignorante. Pode se ser inocente sem se ser ignorante”

 

Camilo escreve a Francisca várias cartas, que mais tarde servirão para destruir a relação dela com o futuro marido, José Augusto. Estes morrerão de “amor”, pela tragédia do triângulo de que Camilo faz parte.”O que faz com que amemos alguém?”, pergunta José Augusto, no momento em que já não há nada mais a fazer. O que fazer, então? “Gerar um anjo na plenitude do martírio”, o que significa construir um amor eterno no meio de toda a adversidade do mundo…

 

S. João da Pesqueira -“Daí para diante é só esse vício (figurado por memória, elipses, sonhos) que Francisca persegue em José Augusto e ele nela. Mais uma vez, a união deles só pode dar-se no sono total, na morte inexplicável de Fanny. “Morreriam por não serem uma só pessoa” diz Agustina. Só nos sonhos se morre assim. / A propósito deles (sonhos) escreve Agustina – e filma Oliveira – citando Holderlin, que “o homem que sonha é um deus, o que pensa é um mendigo”. E ao morrer (com José Augusto, oniricamente, fora e dentro do plano) Fanny diz que a memória se lhe foi com a alma, ou seja, em termos dela, com o vício.” (J. Bénard da Costa / Muito lá de casa)

 

 

Que sabemos da aristocracia nortenha do final do séc. XIX, no rescaldo da derrota dos miguelistas e da guerrilha do Zé do Telhado? Como decorriam as relações entre filhos de oficiais ingleses (que tinham apoiado o General Saldanha e que por cá ficaram) e os jovens endinheirados, descendentes dos fidalgos que tinham participado nas forças sitiantes do Porto?

 

Como era o ambiente cultural, social e boémio no Porto da época: o teatro S. João ou o Príncipe Real, o café Águia d’Ouro e o Guichard (onde se recitava Lamartine ou Soares de Passos), as festas em casas de fidalgos abastados onde comparecia a melhor sociedade da época ou os jantares nos solares e nas quintas do Douro?

 

Pouco, sabemos pouco. Mas a câmara de Manoel de Oliveira transporta-nos a essa época. As figuras de fraque e chapéu alto nos admiráveis diálogos de Agustina vão discorrendo sobre a alma, a vida, a paixão, os sonhos, as contradições, as dúvidas, as obsessões. As referencias históricas estão lá. Os planos em Francisca são imóveis, mas, apesar disso, a acção decorre viva. Como em teatro, Oliveira filma quadros, submetidos ao texto, excessivo, definitivo. A cor acentua a melancolia e as palavras. Oliveira filma as palavras através dos rostos.

 

Alijó

 

Santa Cruz do Douro

 

Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro.”…(Vista da eira da Casa de Tormes)

 

.. “Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco carregado de pipas. Para além, outros socalcos, dum verde pálido de resedá, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul.” (Eça de Queiroz in A cidade e as serras)

 

Quinta da Romaneira

 

Camilo Castelo Branco (1825-1890)

 

Amor de perdição. É a história do amor proibido entre Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, a quem o ódio entre as famílias, irremediavelmente separa. A acção começa em Viseu. Simão estuda em Coimbra, é corajoso, defende ideais liberais. Nos breves encontros clandestinos, Simão e Teresa fazem planos de casamento. Mas o namoro é descoberto. Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, manda chamar de Castro Daire um sobrinho, Baltasar, a quem incentiva a cortejar a filha planeando um futuro enlace.

 

Castro Daire (Ponte do Cerveira) Porém, a recusa de Teresa enfurece o pai que decide mandá-la para um convento. Baltasar com dois criados monta uma emboscada a Simão, que está acompanhado por um ferrador João da Cruz e um arreeiro. João da Cruz tem uma dívida de gratidão para com o pai de Simão, magistrado de profissão, que o livrara da forca. No embate, Simão é ferido e passa uma temporada de recuperação na casa do ferreiro. É tratado por Mariana, sua filha, que silenciosamente se apaixona por Simão.

 

Simão tenta raptar Teresa. Agredido verbalmente por Baltasar, reage e, quando o rival avança, responde com um tiro de pistola. Neste momento, surge o ferrador que incita Simão a fugir. Este, recusa-se. Confessa tudo, sem alegar legítima defesa. O crime chega ao conhecimento da família Botelho. O pai é duro: espera que a lei se cumpra com rigor. Nega qualquer auxílio na cadeia e decide mudar com a família de Viseu, para que ninguém facilite a situação de Simão.

 

Na Cadeia da Relação no Porto, Simão recebe a visita de João da Cruz. Mariana vai servir a Simão. Uma decisão judicial permite-lhe que cumpra a sua pena na prisão de Vila Real, mas o preso recusa-se a aceitar tal mudança. Prefere a liberdade de poder ver o céu e sentir o vento no degredo.

 

Em princípio de Março de 1805, soube minha mãe, com grande prazer, que Simão fora removido para as cadeias da Relação do Porto, vencendo os grandes obstáculos que opuseram a essa mudança os queixosos, que eram Tadeu de Albuquerque e as irmãs do morto.”

 

Mas Teresa tenta convencê-lo a ficar e a esperança persiste: “Dez anos! dizia-lhe a enclausurada de Monchique – Em dez anos terá morrido meu pai e serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vais ao degredo, para sempre, te perdi, Simão, porque morrerás ou não acharás memória de mim, quando voltares”

 

Passam-se ainda alguns meses até que Simão embarca para a Índia. Mariana consegue um lugar a bordo. Seu pai fora, entretanto, assassinado. Simultaneamente, no convento, Teresa relê as cartas de Simão e pede que lhe sejam entregues. Às nove da manhã sobe para o mirante, de onde é possível assistir à partida dos navios.

 

Simão pede a Mariana que lhe mostre o convento. “- Onde é Monchique? – É acolá, senhor Simão – respondeu. indicando-lhe o mosteiro, que se debruça sobre a margem do Douro, em Miragaia. /Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto. Era Teresa.”

 

Quando viu, a dois a dois, entrarem, amarrados, no tombadilho, os condenados, Teresa teve um breve acidente, em que a já frouxa claridade dos olhos se lhe apagou, e as mãos conclusas pareciam querer aferrar a luz fugitiva. //Foi então que Simão Botelho a viu. E ao mesmo tempo atracou à nau um bote em que vinha a pobre de Viseu, chamando Simão. Foi ele ao portaló, e, estendendo o braço à mendiga, recebeu o pacotinho das suas cartas. Reconheceu ele que a primeira não era sua, pela lisura do papel, mas não a abriu. //Ouviu-se a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se à amurada da nau, com os olhos fitos no mirante. //Viu agitar-se um lenço, e ele respondeu com o seu àquele aceno. //Desceu a nau ao mar, e passou fronteira ao convento. ..”

 

…”Distintamente Simão viu um rosto e uns braços suspensos das reixas de ferro; mas não era de Teresa aquele rosto: seria antes um cadáver que subiu da claustra ao mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da sepultura. /- É Teresa? – perguntou Simão a Mariana. /É, senhor, é ela – disse num afogado gemido a generosa criatura, ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condenado iria breve no seguimento daquela por quem se perdera.”

 

Lá mesmo no mirante, Teresa morre. O capitão do navio promete a Simão que, caso algo lhe aconteça, reconduzirá Mariana a Portugal. “O capitão prosseguiu: – Quando em Miragaia me contaram a morte daquela senhora, pedi a uma pessoa relacionada no convento que me levasse a ouvir de alguma freira a triste história. Uma religiosa ma contou; mas eram mais os gemidos que as palavras. Soube que ela, quando descíamos na altura do Oiro, proferia em alta voz: – “Simão, adeus até à eternidade!” – E caiu nos braços duma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante, e a trouxeram meia-morta para baixo, ou morta, melhor direi, que nenhuma palavra mais lhe ouviram. Depois, contaram-me o que ela penara em dois anos e nove meses naquele mosteiro; o amor que ela lhe tinha, e as mil mortes que ali padeceu, de cada vez que a esperança lhe morria. Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é! – Por pouco tempo… – disse Simão, como se o dissesse a si próprio, ou própria imaginação estivesse dialogando consigo.”

 

Diálogo entre Simão e Mariana, quando a procura dissuadir a não o acompanhar para o degredo e onde explicita o afecto entre ambos “- Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte àquela desgraçada senhora? /- E dai? Quem lhe diz menos disso? / – Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade. /- Eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?! /- Nada me pediu, Mariana; mas obriga-me tanto, que me faz mais infeliz / o peso da obrigação. / Mariana não respondeu; chorou./ – E por que chora? – tornou Simão carinhosamente. /- Isso é ingratidão… e eu não mereço que me diga que o faço infeliz. /- Não me compreendeu… Sou infeliz por não poder fazê-la minha mulher.”

 

Jardim da Cordoaria – Nesta noite, Simão lê a derradeira carta de Teresa. Nove dias depois de febres e delírio, pela manhã, morre Simão Botelho no alto-mar. No mesmo instante que os marujos arremessam o corpo de Simão ao mar, Mariana mergulha e morre também.

 

 

Do romance de pouco mais de 200 páginas, fez Manoel de Oliveira um filme com mais de 4 horas de duração, o qual foi dividido em episódios para apresentação na RTP (que subsidiara a produção). O acolhimento foi desastroso, com comentários a roçar o ordinário. E, no entanto, João Bénard da Costa considera-o o filme mais importante de Oliveira…(embora se não saiba quantos mais filmes fará o realizador e JbC já cá não estar para os apreciar)

 

A história hiper-romântica de Camilo dos amores proibidos de Teresa e Simão e depois da paixão silenciosa de Mariana que tudo abandona para poder servir Simão e minorar-lhe o sofrimento, a dedicação de João da Cruz, a intriga que acaba com a morte de todos os protagonistas. A acção, depois do assassínio de Baltazar, passa-se no Porto, nas margens do Douro, entre a Cadeia da Relação e o Mosteiro de Monchique. Para contar a história ficou Camilo. Os diálogos entre os protagonistas são poucos e muitas vezes mais importantes pelo que não dizem. As lágrimas tão eloquentes como os silêncios.

 

Mas há abundância de cartas que narram os acontecimentos passados ou anunciam os que se seguem. Manoel de Oliveira fugiu à voz off usual nestas situações e introduziu duas personagens o Delator e a Providência que relatam a acção, substituindo a escrita. Os planos são fixos. O filme atravessa o universo camiliano, traz-lhe as vozes e as sombras. Nenhum outro filme pode ser tão camiliano como este. Excessivo, trágico. Fimar teatro? Mas não é só isso. É filmar como quem escreveu

 

Amor de Perdição é, simultaneamente e ao mesmo nível, pintura (quadros que nos dão a imagem visual que o livro não pode dar) teatro (acção dramática, conduzida pelos diálogos) e narração romanesca (pela sucessão temporal desses quadros e dessa acção e pelo encadeamento entre eles). Mas como o olhar da câmara é o olhar que tudo comanda (comanda, até, na sequência fulcral — a do assassinato de Baltazar — a repetição da acção, para reforçar a instância fatal que a partir dela se instaura), como é aos movimentos ou fixidez da câmara ou dos personagens que é confiado o movimento radical, pintura, teatro e romance subsomem-se na totalidade do cinema, única arte capaz de assim as transfigurar e de assim as elevar à síntese total…”

 

Lamego“Nunca mais, depois deste filme, o cinema pôde ser o mesmo, quer nas suas relações com as outras artes, quer na significação que a si próprio se atribuiu e por si próprio alcançou.” (JB da Costa/Os filmes lá de casa)

 

Catedral de Lamego

 

Régua Corre, caudal sagrado,/Na dura gratidão dos homens e dos montes!/Vem de longe e vai longe a tua inquietação…/Corre, magoado,/De cachão em/cachão,/A refractar olímpicos socalcos/De doçura/Quente./E deixa na paisagem calcinada/A imagem desenhada/Dum verso de Frescura/Penitente” (Miguel Torga).

 

 

RéguaQuando fui abordado para falar do homem duriense no encerramento desta feira, fiquei indeciso. Tudo o que em mim há de esquivo, de informal e de desencantado mandava-me recusar. Outras razões ainda mais profundas, porém, teimavam que sim, que aceitasse o convite. O tema corria-me nas veias…

 

Foz CôaE não é impunentemente que se faz orelhas moucas aos argumentos do sangue. Filho, neto, bisneto e tetraneto de obscuros cavadores, carreiros e almocreves, que séculos a fio saibraram, sulcaram e palmilharam as encostas do Doiro, criado a ouvir a crónica deles e a de quantos os acompanhavam na via-sacra – e Deus sabe até que ponto ela era dolorosa -, atento, por conta própria, a um destino que sempre me pareceu exemplar, no seu dramatismo, como poderia eu escusar-me a depor no tribunal severo do presente, pondo no meu testemunho letrado, o único a que me obriguei na vida, todo o calor e sinceridade de que sou capaz?”…

 

…”Não tinha na mão nenhum lenitivo para suavizar o sofrimento que as palavras só podem denunciar, nenhum epítote para acrescentar à nobreza de um nome que se basta na sua grafia”…

 

…”Herói modesto, despretencioso e proteico que, mal comido, mal bebido e mal agasalhado, aos rigores de um inverno de gelo e de um verão de fornalha, surriba, planta, enxerta, tesoura, poda, ergue, enxofra, sulfata, vindima, pisa e trasfega num afã sem descanso“…

 

…”Protagonista de um drama milenário, que já nos tempos de Roma representava, o seu palco é largo e majestoso. Basta olhá-lo do miradoiro de S. Brás, de S. Domingos da Queimada, de S. Leonardo de Galafura, do alto da quinta das Carvalhas, de Vilarinho de Cotas ou de S. Salvador do Mundo…

 

S. Leonardo da Galafura – …Só quem não tiver sensibilidade e humanidade dentro de si é que ficará indiferente à beleza de panoramas sem comparação possível e à grandeza de um esforço incansável e criativo que os cultiva e arquitecta jardins suspensos na mais agreste paisagem de Portugal” (Miguel Torga in Diário XIII)

 

Armamar

 

Vila Real (Mateus)

 

Alto Douro…”Pôr toda a parte a água sussurrante, a água fecundante… espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, de entre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava pôr uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados… Todo um cabeço pôr vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes.,,,”

 

…”Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando: – ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, pôr cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espelhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas…” (Eça de Queiroz in A cidade e as serras)

 

Tamega/Douro

 

Carrazeda de Ansiães

 

MarãoVenham como vierem, cobertos dos favores do mundo ou simples mortais, procedo sempre da mesma maneira. Mostro-lhes o que nunca viram: panoramas que são autênticas obras-primas da ecúmena, onde a geografia física e a geografia humana se complementam.”…

 

Marão/Alto do Velão…”A ossatura telúrica e a epiderme elaborada. O natural e o cultural em conjugação perfeita. E fico desobrigado. O resto é da conta deles. Se prestam, vão mais ricos. Dilataram o espírito à proporção dos horizontes. Se não prestam, vão mais pobres. Mediram-se com a grandeza e perderam” (Miguel Torga in Diário XIII)

 

Espigueriro e Castelo do Lindoso

 

Vinhas depois das vindimas.

 

Tabuaço

 

À proa dum navio de penedos,/A navegar num doce mar de mosto,/Capitão no seu posto/De comando,/S. Leonardo vai sulcando/As ondas/Da eternidade,/Sem pressa de chegar ao seu destino./Ancorado e feliz no cais humano,/É num antecipado desengano/Que ruma em direcção ao cais divino.//Lá não terá socalcos/Nem vinhedos/Na menina dos olhos/deslumbrados;/Doiros desaguados/Serão charcos de luz/Envelhecida;/Rasos, todos os montes/Deixarão prolongar os horizontes/Até onde se/extinga a cor da vida.//Por isso, é devagar que se aproxima/Da bem-aventurança./É lentamente que o rabelo avança/Debaixo dos seus pés de marinheiro./E cada hora a mais que gasta no caminho/É um sorvo a mais/de cheiro/A terra e a rosmaninho” (Miguel Torga, in Diário IX).

 

S. Martinho da Anta

 

Cai o sol nas ramadas./O sol, esse Van Gogh desumano…/E telas amarelas,calcinadas,/Fremem nos olhos como um desengano.//A cor da vida foi além de mais!/Lume e poeira, sem que o verde possa/Refrescar os craveiros e os tendais/De uma paisagem mais secreta e nossa.//Apenas uma fímbria namorada,/Vermelha e roxa, se desenha ao fundo/O mosto de uma eterna madrugada/Que vem do incêndio refrescar o mundo. “

 

 

 

 

 

 

 

Olhares (e ver)