Este caderno utiliza quase exclusivamente quadros de nus de pintores famosos (p. ex. Modigliani, Dali, Picasso) e poemas em língua portuguesa (David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Vinicius de Morais…), cuja escolha e ordenamento contam uma história, como se de uma montagem cinematográfica se tratasse. O esplendor do corpo da mulher, a sua fruição e a sua perda são os temas tratados. O caderno recorre ainda a Adágios de Samuel Barber e Mahler (5ª Sinfonia). No fundo, é a conjugação do significado das imagens, das palavras e dos sons, como Roland Barthes teorizou.
FM
Falei em vicio: é. Uma privação, como a falta de heroina em dependente, e sem metadona. Ressaca de um tempo, (para mim) alucinante de vida, entre a sensualidade, o sonho, a ternura e o delírio. Como todas as ressacas dói, e esta muito, muito. A perda do corpo amado é este olhar liquido, peso insuportável dos dias sem horizontes nítidos como uma bruma que subitamente tudo envolve, melancolia nos espaços, nas ruas, casas, onde passámos e que deixaram de ser ponto de encontro, apenas testemunhas mudas dessa ausência.
Memória obsessiva da tua perda. Hoje, as carícias, mesmo que as mãos num simulacro de desejo busquem noutro corpo a ilusão de um teu regresso, logo a saciedade traz um remorso insuportável, constrangimento pelo equívoco ou pela traição, mesmo que de traição se não trate. Escrevo, mas não espero nada. De qualquer modo, faço-o ao sabor desta melancolia que não tem a ver contigo, é ancestral. Falo no acaso das palavras, na maré das lágrimas. Como seria bom que fosses, como eu precisava que fosses! Acredita que irei tentar não deixar de ser como sou. Inconformista e incorformado, com todos os vícios e virtudes que conheces, à procura do tutano da vida, até ao fim.
Mas no princípio eu disse: e aí chegou o Verão, tão cheio de promessas – as laranjas nas árvores, a vinha a anunciar o gosto líquido do sol e da terra que nos vai inebriar, o entardecer dos dias longos que logo que ele chega, não sei se por timidez ou outra razão, começam docemente a trazer o crepúsculo cada vez mais cedo, embora sempre o mar e esse gosto de sal e sol, maresia, ondular de ondas e barcos. O Verão, única época feliz do ano, minha alegria, minha esperança. E, no entanto, é o Outono o que o Verão pressagia. E também falei do meu ardor e profetizei: amanhã a memória de todos os ontens trarão os teus olhos, a tua boca, as carícias que ficaram por cumprir, o meu espanto, o teu sorriso. Não esperava promessas mas, sim, a minha crença em ti. Quantas vezes menti na vida, como sei dos jogos de sedução! Como me fazer acreditar e fazer-te olhares-me como se eu fosse único, verdadeiro, sem vislumbre de maldade?! E tu vires para mim, como quem se desfez dum hábito de desamor? Puros na ingenuidade perdida e reconquistada para um amor novo, redentor: o nosso. E lembrei que, para uma união ter futuro, é preciso que, além da plena satisfação do corpo, os dois parceiros se esforcem por partilhar os silêncios, os gostos e o saber das coisas. Não era só a mim que me competiam tarefas, as quais fui desempenhando, não com a urgência devida, (mas a que a minha prudência achou adequada). A ti cabia-te alargar os horizontes para que a tua riqueza interior fosse igual à beleza exterior. E também sei que, neste tempo em que os sonhos se desfizeram, em que nada mais resta do que arrumar as redes da faina que tanto prometia, devo admitir não ter sido só o temporal a causa de tamanho desastre, mas o meu desleixo. Deveria ter olhado os outros, desafiá-los e exigir: “aceitem-na como é, porque se o não fizerdes também a mim não aceitareis, porque como um espelho reflecte a imagem que dele se abeira, também a luz traz a sombra, porque ambos são indissociáveis.” Tudo isto talvez eu devesse ter dito. Mas preferi ver os dias passar, sem outros sobressaltos que aqueles com que os acasos da vida na época me castigaram. Uma dúvida me persegue: sensatez ou cobardia? Se sensatez é triste, não valeu a pena. A grandeza não está na ostentação, na riqueza, nas honras que se recebem e nas esmolas que se dão (para aliviar as más-consciências). A grandeza está na coragem de dizer não ao suserano, quando todos o lisonjeiam, sempre que se julga ter razão; na entrega total a tudo o que se faz mesmo que as tarefas sejam modestas; no voluntariado discreto aos deserdados da vida; na humildade natural; no mérito, no conhecimento, na competência. A César o que é de César. Mais a imaginação, a vida interior, a busca da beleza das coisas, da fraternidade sem contrapartidas, na generosidade sem mesquinhez, na sinceridade, lealdade, constância. Isso é a grandeza de alguém. O acicate da indecisão tem-me, pois, atormentado: terá sido Hamlet, de facto, hesitante em vingar a morte de seu pai assassinado pelo irmão Claudius, que lhe roubou o trono e lhe seduziu a mulher, sua mãe? Ou, pelo contrário, aguardara pacientemente o momento mais propício para o desmascarar, mesmo que com isso tivesse perdido a vida? Hesitante ou inteligente? De qualquer modo, o risco da espera é ser mal interpretado. Os passos não dados, as pequenas desilusões diárias corroem o encanto. A desatenção propicia a deslealdade e a traição. Nada/nem o branco fogo do trigo/nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros/te dirão a palavra//Não interrogues não perguntes/entre a razão e a turbulência da neve/não há diferenças//Não colecciones dejectos o teu destino és tu//Despe-te/não há outro caminho (Eugénio de Andrade) Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma./A alma é que estraga o amor./Só em Deus ela pode encontrar satisfação./Não noutra alma./Só em Deus — ou fora do mundo./As almas são incomunicáveis.//Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.//Porque os corpos se entendem, mas as almas não. (Manuel Bandeira) Morrer e não morrer sobre os teus rins/uma árvore de pássaros ardia/era o verão escuta os seus cavalos/à roda da cintura//O cálido esperma das palavras/no interior do cabelo derramado/um sol de palha fresca a boca/de que rio regressa? (Eugénio de Andrade) Um beijo em lábios é que se demora/e tremem no de abrir-se a dentes línguas/tão penetrantes quanto línguas podem./Mas beijo é mais. É boca aberta hiante/para de encher-se ao que se mova nela./E dentes se apertando delicados./É língua que na boca se agitando/irá de um corpo inteiro descobrir o gosto/e sobretudo o que se oculta em sombras/e nos recantos em cabelos vive./É beijo tudo o que de lábios seja/quanto de lábios se deseja. (Jorge de Sena)
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Respiro o teu corpo:/sabe a lua-de-água/ao amanhecer,/sabe a cal molhada,/sabe a luz mordida,/sabe a brisa nua,/ao sangue dos rios,/sabe a rosa louca,/ao cair da noite/sabe a pedra amarga,/sabe à minha boca. (Eugénio de Andrade) Escalar-te lábio a lábio, /percorrer-te: eis a cintura/o lume breve entre as nádegas /e o ventre, o peito, o dorso / descer aos flancos, enterrar// os olhos na pedra fresca / dos teus olhos,/entregar-me poro a poro / ao furor da tua boca,/esquecer a mão errante / na festa ou na fresta // aberta à doce penetração / das águas duras, / respirar como quem tropeça /no escuro, gritar / às portas da alegria, / da solidão.// porque é terrível /subir assim às hastes da /loucura, / do fogo descer à neve.//abandonar-me agora / nas ervas ao orvalho /a glande leve. (Eugénio de Andrade) O corpo é praia a boca é a nascente / e é na vulva que a areia é mais sedenta /poro a poro vou sendo o curso da água / da tua língua demasiada e lenta / dentes e unhas rebentam como pinhas / de carnívoras plantas te é meu ventre /abro-te as coxas e deixo-te crescer / duro e cheiroso como o aloendro. (Natália Correia) Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo//Mal de te amar neste lugar de imperfeição/Onde tudo nos quebra e emudece/Onde tudo nos mente e nos separa (Sophia de Mello Breyner Andresen) Assim como o Oceano, só é belo com o luar/Assim como a Canção, só tem razão se se cantar/Assim como uma nuvem, só acontece se chover/Assim como o poeta, só é bem grande se sofrer/Assim como viver sem ter amor, não é viver/Não há você sem mim/E eu não existo sem você! (Vinicius de Morais) Trazes contigo oculto o Sol/emergindo com ternura dos teus olhos/iluminando tudo quanto vês//…Deus ao céu roubou /duas estrelas/e com elas fez teus olhos (Fernando Couto) No teu peito / é que o pólen do fogo / se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos / é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, / rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos / é que a areia queima, / o sol é secreto,/ cego o silêncio. // Deita-te comigo. //Ilumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /toda a música é minha (Eugénio de Andrade) Foi para ti que criei as rosas./Foi para ti que lhes dei perfume./Para ti rasguei ribeiros/e dei ás romãs a cor do lume. (Eugénio de Andrade) Teu corpo é cobra quando enrolas no meu, / teus lábios mel tocando os meus, /tua pele brasa, teus seios carne, pecado, desejo. / Teu sexo fonte, /teu corpo é desejo, volúpia, / memória/que nunca vou esquecer. (Pedro Miranda) Pela flor pelo vento pelo fogo/Pela estrela da noite tão límpida e serena/Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo/Pelo amor sem ironia – por tudo/Que atentamente esperamos/Reconheci tua presença incerta/Tua presença fantástica e liberta (Sophia de Mello Breyner Andresen) Do fascínio ao desencanto/o pequeno passo, inevitável,/dado sem cólera nem desalento/em serenidade e lucidez. (Fernando Couto) Deixa ficar comigo a madrugada,/para que a luz do Sol me não constranja./Numa taça de sombra estilhaçada,/deita sumo de lua e de laranja.//Arranja uma pianola, um disco, um posto,/onde eu ouça o estertor de uma gaivota…/Crepite, em derredor, o mar de Agosto…/E o outro cheiro, o teu, à minha volta!//Depois, podes partir. Só te aconselho/que acendas, para tudo ser perfeito,/à cabeceira a luz do teu joelho,/entre os lençóis o lume do teu peito…//Podes partir. De nada mais preciso/para a minha ilusão do Paraíso. (David Mourão-Ferreira)
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E de novo o regresso ao fascínio/em limpidez sem mácula,/sereno, sem mágoa, apesar do ciclo… //Nenhuma âncora deve fixar-te/ e nada impedir-te de partir./Consente apenas a saudade, /até mesmo antes da largada, em jeito de / ave migradora. (Fernando Couto) Meu amor/ palavra gesto seio vigilância,/que me queres?/ Como me queres?/ Se tudo quero que te não quero a ti, senão de quanto vi, quanto passei,quanto perdi (Jorge de Sena) Anda no ar a excitação / de seios subito exibidos / à torva luz de um alçapão,/por onde os corpos rolarão,/ mordidos! / Ou é um deus, ou foi a Morte /que nos vestiu este/ torpor;/ e a Primavera é um chicote,/ abrindo as veias e o decote/ ao meu amor!//Esqueço que os dedos têm ossos:/ é só de sangue esta caricia; /apenas nervos os pescoços…/Mas nos teus olhos, nos meus olhos,/a luz da morte brilha. (David Mourão-Ferreira) Seu corpo nu / meus olhos vestidos / seu corpo nu / meus olhos enlouquecidos /seu corpo vestido / meus olhos nus. (Paulo Netho) Mas hoje, oh sim hoje, falemos da memória das coisas, não de um dia inaugural, mas de coisas que foram a nossa vida: a rua estreita, aquele bulício de gaivotas, o rumor dos barcos, as manhãs a ver as ondas, aquela neblina que entrava em nós e nos tornava crianças. Mas eram os teus olhos que me atiçavam o desejo, e o meu espanto era sempre descobrir os segredos do teu corpo, o túnel secreto donde emerge o transe e aprender os caminhos que te levavam áquele rugido feito de convulsão e magma, talvez sismo talvez orgasmo. Os nossos movimentos vai-vem, húmido de ondas e algas. Ancorar no teu sexo e nascer o dia. (Fernando Moreno)
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Frémito do meu corpo a procurar-te,/ Febre das minhas mãos na tua pele/ Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,// Olhos buscando os teus por toda a parte,/ Sede de beijos, amargor de fel,/Estonteante fome, áspera e cruel,/ Que nada existe que a mitigue e a farte!//E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma /Junto da minha, uma lagoa calma, /A dizer-me, a cantar que me não amas…//E o meu coração que tu não sentes, /Vai boiando ao acaso das correntes, /Esquife negro sobre um mar de chamas…(Florbela Espanca) Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,/e o que nos ficou não chega/para afastar o frio de quatro paredes./Gastámos tudo menos o silêncio./Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, /gastámos as mão à força de as apertarmos, /gastámos o relógio e as pedras das esquinas /em esperas inúteis. //Meto as mãos nas algibeiras /e não encontro nada. /Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro! /Era como se todas as coisas fossem minhas: /quanto mais te dava mais tinha para te dar. //Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! /e eu acreditava. /Acreditava, /porque ao teu lado /todas as coisas eram possíveis. /Mas isso era no tempo dos segredos, /no tempo em que o teu corpo era um aquário, /no tempo em que os meus olhos/eram peixes verdes./Hoje são apenas os meus olhos. /É pouco, mas é verdade,/uns olhos como todos os outros.//… Já gastámos as palavras./Quando agora digo: meu amor…,/já se não passa absolutamente nada./E no entanto, antes das palavras gastas,/tenho a certeza/de que todas as coisas estremeciam /só de murmurar o teu nome/no silêncio do meu coração./Não temos já nada para dar./Dentro de ti/não há nada que me peça água./O passado é inútil como um trapo./E já te disse: as palavras estão gastas.//Adeus. (Eugénio de Andrade)
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