Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas portugueses do séc. XX e também dos mais populares. Essa popularidade devê-la-á muito à inclusão de poemas seus nos livros escolares, mesmo que, no final da vida, tivesse renegado alguns deles.
Os temas da poesia de Eugénio são poucos – o êxtase e a exaltação do corpo amado – feitos em versos eróticos, luminosos, dos mais belos da poesia portuguesa -, mas também o envelhecimento gradual e a velhice.
Desde o princípio (As mãos e os frutos, 1948), a sua poesia exala um lirismo contido e uma tristeza serena feita melancolia, que se vai adensando com a idade, quando o corpo começa a ser um despojo de si próprio, sente a sua precariedade (e a intuição da vivência irrepetível), e só lhe resta a resignação (e o recurso à memória) – “Estou de passagem: Amo o efémero”
Foi um poeta de exigência formal obsessiva, que o levou a modificar os versos até ao fim da vida. Versos que nunca seriam definitivos, decantados à cata de uma vírgula indevida, uma redundância, uma dissonância, exaustivamente em processo de purificação, rumo à limpidez verbal. Os poemas curtos, sempre mais curtos, veículam uma musicalidade rara feita de rumores, de sons de paisagens, da água ancestral. “Poesia do corpo a que se chega mediante uma depuração contínua”, eis como a considerou José Saramago.
Com um léxico de palavras claras, solares, essenciais, erigiu cada poema, como se de um edifício se tratasse, temperado por talvez volúpia talvez desencanto. Edifícios sobre a dialética da vida: água/fogo, silêncio/voz, êxtase/deceção… Como explicou Eduardo Lourenço, as palavras representariam, para Eugénio, a plenitude do mundo.
A semântica em Eugénio é a decifração de metáforas como as estações do ano, a sede, cavalos, pastores, amoras, aves, rosas, rios, fontes…e sempre o regresso à mãe – figura nuclear, de quem pai quase não teve. É este o seu material poético. O fulgor verbal e a emoção que os poemas suscitam, decorrem principalmente da conjugação inovadora das palavras, traduzindo dimensões distintas do tipo concreto/abstrato, objetivo/subjetivo. Já nos títulos dos livros esta técnica é evidente. Exemplos: Limiar dos Pássaros, Vertentes do Olhar, Os Afluentes do Silêncio, Os Lugares do Lume, O Peso da Sombra, O Sal da Língua, Coração do Dia, Véspera da Água, Escrita da Terra, Ofício de Paciência, Os Sulcos da Sede… Como refere Arnaldo Saraiva, o título nunca é “prosaico” ou simplesmente denotativo: é trabalhado não só “com” os versos mas também “como” os versos.
O corpo, como objecto amado ou ele próprio ao dar-se conta do seu declínio, é, assim, o elemento central da poesia de Eugénio. “Poeta do corpo, da sua glória, de um paganismo adolescente. Poeta de sexualidade explícita e abusiva”, como o definiu Pedro Mexia. O modelo do humano: “um rapaz/ desses do Pasolini esplendidamente /nu, plantado na terra.”
Além de versos, Eugénio escreveu poesia em prosa, na qual aborda as suas memórias da infância rural, a descoberta da poesia e da sexualidade. Mas também faz considerações sobre música, outros poetas (como Pessoa ou Botto), pintura (Júlio Resende ou van Gogh). Traduziu Garcia Lorca, Jorge Luis Borges, entre muitos. Escreveu sobre cinema (“O Inocente/Intruso” de Visconti, p.ex.), sobre fotografia – e, como em relação à pintura, escultura ou arquitetura, serviu-se de imagens visuais para as descrever com palavras, as “suas” palavras (sobre um retrato de Gageiro disse “Ele é na sua transparência vegetal /o rosto limpo da manhã, o terreiro varrido pela luz /verde e ondulada do trigo, /a beleza concreta rente ao chão:/a infindável extensão da cal, /a lenta aproximação de um rio”)
Na prosa procurou resguardar-se de exposição íntima. Nos períodos de mudez poética dedicava-se à prosa. “A mim, a mudança de clave…permitiu-me uma respiração mais ampla, um ritmo mais próximo do falar materno…”.
Sabermos como as artes visuais e a música estão presentes na obra de Eugénio, leva-nos a associá-lo também à arquitetura de Oscar Niemeyer e Siza Vieira. No primeiro, as curvas assumem muitas vezes manifesta sensualidade. Com Álvaro Siza houve proximidade geográfica, criaram-se laços afetivos e reconheceram-se afinidades ideológicas e de personalidade. Dele, escreveu Eugénio: “A musical ordem do espaço, /a manifesta verdade da pedra, /a concreta beleza /do chão subindo os últimos degraus.” Seja-nos, então, permitido usar imagens de maquetes de edifícios, objetos, rascunhos, dos próprios edifícios, como ilustrações para poemas de Eugénio. A arquitetura-do-real feita em palavras de cristal como em cimento com acabamentos, rebocos e pinturas de maravilha.
A maioria dos livros de Eugénio, bem como a extensa obra ensaística existente sobre ele, não estão disponíveis no mercado. Apesar do propósito de reedições ter sido anunciado, é preciso que, de facto, elas se concretizem.
A seleção de poemas que aqui fica é uma amostra (como outra qualquer, subjetiva) duma voz singular, excecionalmente luminosa e despojada. Dum poeta que, como poucos, exprimiu também esse sentimento difuso tão português – a nostalgia.
FM
“O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem…(ilustração de Botelho)
“…Na verdade ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.” (ilustração de Siza)
“…Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho – e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma – é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado…(ilustração de Alberto Péssimo)
“O futuro do homem é o homem”, estamos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, cujas possibilidades estamos longe de conhecer, é o fruto de uma desfiguração – acção de uma cultura mais interressada em ocultar ao homem o seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa “cantar no suplício” é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. (Ilustração de Emerenciano)
“…Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.”
“São como um cristal, /as palavras. /Algumas, um punhal, /um incêndio.Outras, /orvalho apenas. //Secretas vêm, cheias de memória. /Inseguras navegam: /barcos ou beijos, /as águas estremecem. //Desamparadas, /inocentes, /leves. /Tecidas são de luz /e são a noite. /E mesmo pálidas /verdes paraísos lembram ainda. //Quem as escuta? Quem /as recolhe, assim, /cruéis, desfeitas, /nas suas conchas puras?”
“Toda a manhã procurei uma sílaba. /É pouca coisa, é certo: uma vogal, /uma consoante, quase nada. /Mas faz-me falta. Só eu sei /a falta que me faz. /Por isso a procurava com obstinação. /Só ela me podia defender /do frio de janeiro, /da estiagem do verão. Uma sílaba. /Uma única sílaba. /A salvação.”
“No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos /é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima, /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. /Ilumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /toda a música é minha” (Sede da Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil /Siza Vieira)
“É urgente o amor. /É urgente um barco no mar.//É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade /alguns lamentos,/ muitas espadas.//É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, /é urgente descobrir rosas e rios /e manhãs claras. //Cai o silêncio nos ombros e a luz /impura, até doer. /É urgente o amor, /é urgente permanecer.”
“Sempre a água me cantou nas telhas./ Habito onde as suas bicas,/ as suas bocas jorram./ As palavras que no cântaro/ a noite recolhe e bebe/ com agrado/ sabem a terra por serem minhas./ Não sou daqui e não vos devo/ nada, ninguém/ poderá negar a evidência/ de ser chama ou água, /fluir em lugar de ser pedra./ Perdoai-me a transparência.” (Sempre a água)
“Um corpo. Um corpo vertical ou estendido é sempre uma chama: aquece e ilumina. Um corpo respira, abre-se ao sol, floresce na noite. Em silêncio, é pura veemência; quando fala, queixa-se de ser tão frágil e tão só. Mais raramente, diz uma palavra de alegria. Exalta-se: fatiga-se; exaspera-se. A sua voz é a da terra – dali parte, ali regressa. É breve a sua duração, muito breve – quase só o tempo de um suspiro. Mas é belo aquele esplendor. Não há quase nada mais belo. Da sua existência, deixa às vezes uns sinais. De inquietude; de plenitude. O mais efémero dos seres tem sede de eternidade, quero eu dizer: doutro corpo. Então balbucia, beija, ama, dá um subtil nome às coisas, e das dissonâncias da carne ergue-se à exacta medida do canto, ou de qualquer outra música. A luz chama-se fulguração. Toda a eternidade é isso – e não há outra.” (Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer, Aviles/Asturias, maqueta proyecto/Niemeyer)
“Foi no verão que a aprendeste, com dedos afeiçoados aos instrumentos da paciência, a entrar na noite. Medias então os dias com rigor de lábios, declinando o mel e a sua sabedoria. Sempre partilhaste a casa, meu perdulário, na confluência das águas e da sede. E enquanto aguardavas a violência do silêncio, passavam as aves.” (Niemeyer)
“Levar-te à boca,/ beber a água/ mais funda do teu ser -// se a luz é tanta,/ como se pode morrer?”
“Tu já tinhas um nome, e eu não sei /se eras fonte ou brisa ou mar ou flor. /Nos meus versos chamar-te-ei amor.” (reprodução de Klimt)
Niemeyer
“Tudo me prende à terra onde me dei: /o rio subitamente adolescente, /a luz tropeçando nas esquinas, /as areias onde ardi impaciente //Tudo me prende do mesmo triste amor /que há em saber que a vida pouco dura, /e nela ponho a esperança e o calor /de uns dedos com restos de ternura. //Dizem que há outros céus e outras luas /e outros olhos densos de alegria, /mas eu sou destas casas, destas ruas, /deste amor a escorrer melancolia.”(reprodução de Munch)
Complexo Desportivo Ribera Serrallo, em Cornella de Llobregat, Barcelona (Siza Vieira)
“No mais fundo de ti, /eu sei que traí, mãe! //Tudo porque já não sou /o retrato adormecido /no fundo dos teus olhos! //Tudo porque tu ignoras /que há leitos onde o frio não se demora /e noites rumorosas de águas matinais! //Por isso, às vezes, as palavras que te digo /são duras, mãe, /e o nosso amor é infeliz. //Tudo porque perdi as rosas brancas /que apertava junto ao coração /no retrato da moldura! //Se soubesses como ainda amo as rosas, /talvez não enchesses as horas de pesadelos… //Mas tu esqueceste muita coisa! /Esqueceste que as minhas pernas cresceram, /que todo o meu corpo cresceu, /e até o meu coração /ficou enorme, mãe! (reprodução de Julio Resende)
…//Olha – queres ouvir-me? -, /às vezes ainda sou o menino /que adormeceu nos teus olhos; //ainda aperto contra o coração /rosas tão brancas /como as que tens na moldura; //ainda oiço a tua voz: /”Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal…” /Mas – tu sabes! – a noite é enorme /e todo o meu corpo cresceu… //Eu saí da moldura, /dei às aves os meus olhos a beber. //Não me esqueci de nada, mãe. /Guardo a tua voz dentro de mim. /E deixo-te as rosas…”
“Está desse lado do verão / onde manhã cedo/ passam barcos, cercada pela cal./ Das dunas desertas tem a perfeição,/ dos pombos o rumor,/ da luz a difícil transparência/ e o rigor.“(Cacela Velha)
“Não é o mar, não é o vento, é o sol/ que me dói da cintura aos sapatos. / Sol de fins de julho,/ ou de agosto a prumo: finas/ agulhas de aço./ É o sol destes dias, aceso/ na folhagem./ Bebendo a minha água./ Colado à minha pele./ É doutro território, doutro areal./ Tem outros ritmos, outros modos,/ outros vagares para roer/ a cal, morder-me os olhos./ Até quando cega canta ao arder.”
“vê como o verão/ subitamente/ se faz água no teu peito,/ e a noite se faz barco,/ e a minha mão marinheiro.”
“Escalar-te lábio a lábio, /percorrer-te: eis a cintura/o lume breve entre as nádegas/e o ventre, o peito, o dorso/descer aos flancos, enterrar//os olhos na pedra fresca/dos teus olhos, /entregar-me poro a poro/ao furor da tua boca,/esquecer a mão errante/na festa ou na fresta//aberta à doce penetração/das águas duras,/respirar como quem tropeça/no escuro, gritar/às portas da alegria,/da solidão.//porque é terrível/subir assim às hastes da loucura/do fogo descer à neve.//abandonar-me agora/nas ervas ao orvalho/a glande leve.”
“Fogem agora, os olhos; fogem /da luz latindo. /Estão doentes, ou velhos, coitados, /defendem-se do que mais amam. /Tenho tanto que lhes agradecer: /as nuvens, as areias, as gaivotas, /a cor pueril dos pêssegos, /o peito espreitando entre o linho /da camisa, a friorenta /claridade de abril, o silêncio branco sem costura, as pequenas /maçãs verdes de Cézanne, o mar. /Olhos onde a luz tinha morada,/agora inseguros, tropeçando /no próprio ar.” (reprodução de Cézanne)
“O meu país sabe às amoras bravas /no verão /Ninguém ignora que não é grande, /nem inteligente; nem elegante o meu país, /mas tem esta voz doce /de quem acorda cedo para cantar nas silvas. /Raramente falei do meu país, talvez /nem goste dele, mas quando um amigo /me traz amoras bravas /os seus muros parecem-me brancos, /reparo que também no meu país o céu é azul.”
Fotografia de Eduardo Gageiro
“Nem as cigarras nem os flancos /acesos das searas /nem a pensativa cor dos lírios /ou mesmo a bárbara /luz do sul têm agora /morada no seu coração; /como falcão ferido /a orelha não pára de sangrar; /sangra de amor do negro e tresloucado /e transbordante amor do mundo, /e desprevenido e magoado” (reprodução de Van Gogh)
“Amar-te assim desvelado /entre barro fresco e ardor. /Sorver o rumor das luzes /entre os teus lábios fendidos. //Deslizar pela vertente /da garganta, ser música /onde o silêncio aflui /e se concentra. //Irreprimível queimadura /ou vertigem desdobrada /beijo a beijo, /brancura dilacerada //Penetrar na doçura da areia /ou do lume, /na luz queimada /da pupila mais azul, //no oiro anoitecido /entre pétalas cerradas, /no alto e navegável /golfo do desejo, //onde o furor habita /crispado de agulhas, /onde faça sangrar /as tuas águas nuas.” (reprodução de klimt)
“Entre a folha branca e o gume do olhar /a boca envelhece //Sobre a palavraa noite aproxima-se da chama //Assim se morre dizias tu /Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura //Na porosa fronteira do silêncio /a mão ilumina a terra inacabada //Interminavelmente” (reprodução de Klimt)
“Os navios existem, e existe o teu rosto /encostado ao rosto dos navios. /Sem nenhum destino flutuam nas cidades, //partem no vento, regressam nos rios. //Na areia branca, onde o tempo começa, /uma criança passa de costas para o mar. /Anoitece. Não há dúvida, anoitece. /É preciso partir, é preciso ficar. //Os hospitais cobrem-se de cinza. /Ondas de sombra quebram nas esquinas. /Amo-te… E entram pela janela /as primeiras luzes das colinas. //As palavras que te envio são interditas /até, meu amor, pelo halo das searas; /se alguma regressasse, nem já reconhecia /o teu nome nas suas curvas claras. //Dói-me esta água, este ar que se respira, /dói-me esta solidão de pedra escura, /estas mãos nocturnas onde aperto /os meus dias quebrados na cintura. //E a noite cresce apaixonadamente. /Nas suas margens nuas, desoladas, /cada homem tem apenas para dar /um horizonte de cidades bombardeadas.” (reprodução de Klee)
“O outono /por assim dizer /pois era verão /forrado de agulhas /a cal /rumorosa /do sol dos cardos /sem outras mãos que lentas barcas /vai-se aproximando a água //a nudez do vidro/a luz /a prumo dos mastros //os prados matinais /os pés /verdes quase //o brilho /das magnólias /apertado nos dentes //uma espécie de tumulto /as unhas /tão fatigadas dos dedos //o bosque abre-se beijo a beijo /e é branco” (reprodução de Klee)
“Não canto porque sonho. /Canto porque és real. /Canto o teu olhar maduro, /O teu sorriso puro, /A tua graça animal. /Canto porque sou homem. /Se não cantasse seria /somente um bicho sadio /embriagado na alegria /da tua vinha sem vinha. /Canto porque o amor /apetece. /Porque o feno amadurece /nos teus braços deslumbrados. /Porque o meu corpo estremece /Por vê-los nus e suados.” (reprodução de Millares)
“Aprendo uma gramática de exílio, nas vertentes do silêncio. É uma aprendizagem que requer pernas rijas e mão segura, coisas de que já não me posso gabar, mas embora precárias, sempre as minhas mãos foram animais de paciência, e as pernas, essas ainda vão trepando pelos dias sem ajuda de ninguém. Sem o desembaraço de muitos, mas tirando partido dos variados acidentes da pedra, que conheço bem, lá vou pondo sílaba sobre sílaba. Do nascer ao pôr do sol.” (reprodução de Millares)
“No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos /é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima, /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. Iumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /toda a música é minha.”
Picasso
“Entre os teus lábios /é que a loucura acode, /desce à garganta, /invade a água. //No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. //Ilumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /Toda a música é minha.”
Julio Resende
“Não voltarei à fonte dos teus flancos /ao fogo espesso do verão /a escorrer infatigável /dos espelhos, não voltarei. //Não voltarei ao leito breve /onde quebrámos uma a uma /todas as frágeis /hastes do amor. //Eis o outono: cresce a prumo. /Anoitecidas águas /em febre em fúria em fogo /arrastam-me para o fundo.” (Gustav Vigeland)
“Morrer e não morrer sobre os teus rins/uma árvore de pássaros ardia/era o verão escuta os seus cavalos/à roda da cintura//O cálido esperma das palavras/no interior do cabelo derramado um sol de palha fresca a boca/ de que rio regressa?” (reprodução de Klimt)
“”Do que vês não sou o que pareço. /Se atentares nas vagas deste mar /de dunas e alma e mãos desatadas /boca desejo de ausente sentimento /e um rio que só renasce ao desaguar /bastam-te cegos os olhos em silencio /na miragem da sombra deste /avesso. /Do que reconheço sou o que mereço.”
“O teu rosto inclinado pelo vento; /a feroz brancura dos teus dentes; /as mãos, de certo modo, irresponsáveis, /e contudo sombrias, e contudo transparentes; //o triunfo cruel das tuas pernas, /colunas em repouso se anoitece; /o peito raso, claro, feito de água; /a boca sossegada onde apetece //navegar ou cantar, ou simplesmente ser /a cor dum fruto, o peso duma flor; /as palavras mordendo a solidão, /atravessadas de alegria e de terror, //são a grande razão, a única razão.”
“Surdo, subterrâneo rio de palavras /me corre lento pelo corpo todo; /amor sem margens onde a lua rompe /e nimba de luar o próprio lodo. //Correr do tempo ou só rumor do frio /onde o amor se perde e a razão de amar //— surdo, subterrâneo, impiedoso rio, /para onde vais, sem eu poder ficar?”
“As palavras que te envio são interditas//As palavras que te envio são interditas /até, meu amor, pelo halo das searas; /se alguma regressasse, nem já reconhecia //Dói-me esta água, este ar que se respira, /dói-me esta solidão de pedra escura, /estas mãos nocturnas onde aperto /os meus dias quebrados na cintura. //E a noite cresce apaixonadamente. /Nas suas margens nuas, desoladas, /cada homem tem apenas para dar /um horizonte de cidades bombardeadas.”
Niemeyer (Palácio da Alvorada/Brasilia)
“Quando a ternura /parece já do seu ofício fatigada, //e o sono, a mais incerta barca, inda demora, //quando azuis irrompem //os teus olhos //e procuram /nos meus navegação segura, //é que eu te falo das palavras /desamparadas e desertas, //pelo silêncio fascinadas. ” (esboço de Niemeyer)
“Húmido de beijos e de lágrimas, /ardor da terra com sabor a mar, /o teu corpo perdia-se no meu.//(Vontade de ser barco ou de cantar.)” (Esboço de Niemeyer)
Niemeyer
“Devias estar aqui rente aos meus lábios /para dividir contigo esta amargura /dos meus dias partidos um a um //- Eu vi a terra limpa no teu rosto, /Só no teu rosto e nunca em mais nenhum” (esboço de Niemeyer)
Museu de Arte Contemporânea do Porto (Fundação Serralves)/Siza Vieira.
“Como se houvesse uma tempestade /escurecendo os teus cabelos, /ou, se preferes, minha boca nos teus olhos /carregada de flor e dos teus dedos; //como se houvesse uma criança cega /aos tropeções dentro de ti, /eu falei em neve – e tu calavas /a voz onde contigo me perdi. //Como se a noite se viesse e te levasse, /eu era só fome o que sentia; /Digo-te adeus, como se não voltasse ao país onde teu corpo principia. //Como se houvesse nuvens sobre nuvens e sobre as nuvens mar perfeito, /ou, se preferes, a tua boca clara /singrando largamente no meu peito.” (reprodução de Picasso)
Fundação Oscar Niemeyer em Niteroy/ Rio de Janeiro
“Começo a dar-me conta: a mão /que escreve os versos /envelheceu. Deixou de amar as areias /das dunas, as tardes de chuva /miúda, o orvalho matinal /dos cardos. Prefere agora as sílabas /da sua aflição. /Sempre trabalhou mais que sua irmã, /um pouco mimada, um pouco /preguiçosa, mais bonita. /A si coube sempre /a tarefa mais dura: semear, colher, /coser, esfregar. Mas também /acariciar, é certo. A exigência, /o rigor, acabaram por fatigá-la. /O fim não pode tardar: oxalá /tenha em conta a sua nobreza.”
“Enquanto /um calor mole nos tira a roupa /e mesmo nus sobre a cama /os corpos continuam a pedir água /em vez de outro corpo, /penso no tempo em que o suor /e a saliva e o odor e o esperma /faziam dessa agonia /a alegria /a que chamávamos amor.”
“Vêm da infância, essas mulheres. /Caladas, discretas, sem pressa /de existir. Esplêndidas mulheres essas, /penteadas com a risca ao meio, /as orelhas descobertas pelo cabelo /de sombra clara. /No seu coração o mundo /não era tão pequeno e o que faziam /não lhes parecia humilhação. /Sabiam envelhecer com a vagarosa /luz das crianças /e dos animais da casa. /A par da rosa.”
“Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos. Era no tempo em que o teu corpo era um aquário. Era no tempo em que os meus olhos eram os tais peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade: uns olhos como todos os outros. Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor…, já não se passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração. Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus”
“Escuta, escuta: tenho ainda /uma coisa a dizer. /Não é importante, eu sei, não vai /salvar o mundo, não mudará /a vida de ninguém – mas quem /é hoje capaz de salvar o mundo /ou apenas mudar o sentido /da vida de alguém? /Escuta-me, não te demoro. /É coisa pouca, como a chuvinha /que vem vindo devagar. /São três, quatro palavras, pouco /mais. Palavras que te quero confiar, /para que não se extinga o seu lume, /o seu lume breve.”
Casa de Álvaro Siza na Boa Nova “A musical ordem do espaço, /a manifesta verdade da pedra, /a concreta beleza /do chão subindo os últimos degraus, //a luminosa contenção da cal, /o muro compacto /e certo /contra toda a ostentação, /a refreada /e contínua e serena linha /abraçando o ritmo do ar, /a branca arquitectura /nua /até aos ossos. Por onde entrava o mar.”
Oscar Niemeyer (nascido no Rio de Janeiro em 1907) “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.”/”Não há nada mais importante que a mulher, o resto é bobagem. É ou não é?” (Citações de Oscar Niemeyer)
Álvaro Siza Vieira (nascido em Matosinhos em 1933): ““Sou um introvertido, como é que posso ser uma estrela? Uma estrela tem um desejo de extroversão. Eu pessoalmente não sou, humanamente não tenho o perfil psicológico de uma estrela, de maneira nenhuma. Passo despercebido em toda a parte. Agora, como a televisão me fez duas entrevistas, é que já não”. “…A arquitectura é uma coisa que engloba vida, espaço interior, contradições. Contextos diferentes dão edifícios diferentes. Embora eles não sejam tão diferentes como isso.”. Autor do mausoléu do poeta.
Eugénio de Andrade (1923-2005). Nasceu no Fundão, no seio de uma família de camponeses. A sua infância foi passada com a mãe, na aldeia natal. Mais tarde, viveu em Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, para continuar os estudos. Em 1947 entrou para a Inspecção Administrativa dos Serviços Médico-Sociais, em Lisboa. Em 1950 foi transferido para o Porto, onde fixou residência. Ao longo da vida, colaborou em numerosas revistas literárias como Cadernos de Poesia, Vértice, Seara Nova, Colóquio, Revista de Artes e Letras, O Tempo e o Modo e Cadernos de Literatura. Foram-lhe atribuídos numerosos prémios e distinções como o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores; o Prémio Extremadura de criação literária; o Prémio Celso Emilio Ferreiro, para autores ibéricos; Prémio Celso Emilio Ferreiro, na Galiza; homenagem no Carrefour des Littératures, em França; e o Prémio Camões. (fotografia de Gageiro).
Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.