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Amar o Mar

Olhamos o Mar e sabemos de tantas histórias de bravura anónima, aventura e tragédia, como reconhecemos a sua importância como actividade económica e de exaltação poética. A força viril para dominar ou iludir o seu poder. Como o Mar pode proporcionar um combate solitário de muitas horas para capturar um marlin a que se tem de dar linha e possuir astúcia suficiente para o cansar sem que ele a parta ou como os velhos baleeiros dos Açores em pequenos botes arpoavam baleias gigantescas. Estes são verdadeiros jogos onde o Homem luta com adversários mais poderosos ou em condições desfavoráveis. O desafio entre a inteligência e a força. Como nos podemos deslumbrar na contemplação das ondas, dos matizes das águas ou da flora subaquática.

Os mistérios do Mar foram traduzidos na mitologia grega. Poseidon, Afrodite, Nereu são exemplos do fascínio que o Mar sempre exerceu sobre os povos virados para ele. A Odisseia de Homero é a narrativa de uma grande e demorada viagem que trouxe Ulisses de regresso da Guerra de Tróia à sua Ítaca natal. Camões descreveu a epopeia dos Descobrimentos Portugueses nos Lusíadas. É o nosso poema maior. Baseia-se na narrativa da viagem de Vasco da Gama para a Índia, no meio de ciladas e batalhas contra populações hostis, onde é traçada a rota marítima para o Oriente.

O Velho e o Mar é o relato poético da luta entre um velho, ferido no amor-próprio pela chacota dos mais novos, dado o seu declínio físico, com o maior peixe que alguma vez vira. Sabe que tem de o matar. São mais de três dias de combate e, no final, ele vence. Amarra-o junto ao seu bote, mas no regresso o peixe é devorado pelos tubarões e, quando chega, resta apenas o esqueleto… “o Homem pode ser destruído mas nunca derrotado”, era dessa têmpera a coragem de Santiago, – era assim que o velho se chamava, como de muitos que desafiam o mar como a vida, na persistência solitária, obsessiva dum objectivo.

Olhar serenamente o Mar é darmo-nos conta do que não vemos, do que está para além da linha do horizonte. E mesmo que o sobrevoemos e o nosso horizonte se alargue, é o Espaço de que nos damos conta. O Universo é azul. Tão azul como o Mar.

FM

 

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O Mar da minha adolescência é bordado por uma praia imensa onde as casuarinas (não muito frondosas nem extensas) procuravam retardar a erosão causada pelas correntes

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Eram rasteiras, a faixa de areia não muito larga, ia dum mangal, esse sim denso, no meio de um terreno lodoso, onde se dizia haver zonas movediças onde se era engolido, até muitos quilómetros adiante, delimitado por um farol, onde hoje jaz a carcaça de um navio que me traz recordações familiares.

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É no Oceano Índico, na Beira, em Moçambique.

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Nesta praia primordial joguei à bola. Em Janeiro, era a altura mais quente do ano e não havia aulas. Todas as manhãs, aí estávamos a recomeçar os jogos. Era a época das chuvas que apareciam de repente. Mesmo debaixo duma tempestade tropical, continuávamos a jogar.

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Ao crepúsculo levantavam vôo os mosquitos e uma imensidade de borboletas que despertavam do seu sono larvar e descreviam círculos em volta das luzes ou embatiam nas vidraças. Havia na cidade um cheiro a capim queimado e aquele tom vermelho do sol poente que só existe em África.

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Os equinócios trazem as marés vivas e parece que os dias são imensos. Ouvir a rebentação poderosa das ondas contra os paredões, desfazendo-se em espuma, trazia um rumor forte, sincopado, que infundia respeito

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Aqui, eu lembro-me no principio de um mês de Novembro, em vésperas de vir para a Universidade em Lisboa, sozinho na baixa-mar, olhar para a linha do horizonte com a mesma perplexidade que conservo até hoje, como se ela delimitasse a incógnita do futuro, tão incógnito como inatingível, sempre a escapar-se à medida que nos aproximamos. Mergulhei, dei umas braçadas e vi a barbatana de um tubarão. Tão incógnito, tão falível, tão precário…

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Pisar a areia, os pequenos seixos, algumas algas húmidas, os orificios donde emergem pequenos caranguejos, ladear uma anémona, ouvir o espraiar consecutivo das ondas, preencher-me pela maresia já com o sol rasante a prolongar as sombras pelas dunas.

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O rumor dum barco, o voo das gaivotas que piam talvez prenunciando uma tempestade ou dos corvos marinhos que mergulham nas águas trazendo as suas presas. Caminhar na areia molhada no baixa-mar quando a superfície líquida espelha os pés que se enterram até aos tornozelos.

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“…O rio, caligrafia da água. Do alto, parece um sulco de metal transfluente. Limpo e solene. Mais perto se vê que, nas margens, se empoleira, contagiando-se de terra. O rio ora beija, ora morde a margem. Entre carícia e rasgão, se fazem seus incertos rumores de amante. Dentro dele se transportam ondulantes gazelas. Nesse tropel, o leito tornava-se savana azul, África liquefazendo sua carne térrea. O continente se oceanifica…

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…Mas a água só despida está completa. Assim, da terra ela se distingue. A terra exige coberta, requer construção. Enquanto a água em sua própria pele se aconchega. Em tal nudez, nunca nenhum sulco se abriu, nenhuma ruga se desenhou. Os homens magoam o solo, cobrem de golpes o chão. Mas até agora nenhum foi capaz de ferir o rio e deixar cicatriz nele escrita. O rio da minha infância: sotaque da terra, pronúncia da própria vida. Esse rio transcorre não no mundo mas em mim. Como se eu fora natural da água e não de lugar terreno. Às vezes flui manso, diluindo os amargos recantos, consolando as arestas da minha idade. Outras, fundo e espesso, quase imitando o fogo. Então, em sua corrente me ensombro. E me duvido: afogar é morrer na água ou no fogo?…

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…Afinal, a fúria é breve. O rio simplesmente se lavava da morte, sacudindo destroços de mim que se espreguiçavam na torrente. A coragem do rio é o seu caminhar suicida para o mar. A bondade da água é o seu incansável retorno ao regaço da vida”. (Mia Couto)

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Mas desde essa praia da minha juventude, todas as outras quase sempre foram só celebrações do Verão, uma liturgia do sol, rituais que pouco acrescentaram ao deslumbramento inicial.

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Umas mais exóticas que outras, o destino proporcionou-me descobrir algumas.

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Mudava a temperatura da água, o tom do azul – às vezes quase esverdeado, outras vezes marinho ou como se fosse safira, a areia mais dourada ou escura a testemunhar o vulcão próximo

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podia ter conchas ou búzios ou lingueirões,

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haver rochas, lapas e algas. Água que nos morria aos pés duma frescura incrível

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haver coqueiros ou casuarinas ou pinheiros ou micaias…

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“Nunca o mar foi tão ávido /quanto a minha boca. Era eu /quem o bebia. Quando o mar /no horizonte desaparecia e a areia férvida /não tinha fim sob as passadas, /e o caos se /harmonizava enfim /com a ordem, eu /havia convulsamente /e tão serena bebido o mar.” (Fiama Hasse Pais Brandão)

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Enseadas, baías, escarpas. Rochas por onde se passa apenas na maré-baixa

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Ondas mansas, rebentação, ou como noutras praias elas se tunelizam convidando a cavalgá-las sobre pranchas de madeira. É um bailado feito de destreza, equilíbrio e elegancia, onde o praticante tenta progressivamente melhorar os seus movimentos e o grau de dificuldade, escolhendo pela experiência as tácticas mais adaptadas a cada circunstancia

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Talvez gostasse de ser o Capitão Nemo que, desiludido pela diluição dos ideais, da nobreza de carácter, mais lhe apetecesse refugiar-se, não no fundo do mar como o personagem de Júlio Verne, mas longe dos outros e ficar na margem do oceano e encher os olhos dessa vastidão azul e, assim, apaziguar o azedume do quotidiano

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“Contar-te longamente as perigosas/Coisas do Mar, que os homens não entendem,/Súbitas trovoadas temerosas,/Relâmpados que o ar em fogo acendem,/Negros chuveiros, noites tenebrosas,/Bramidos de trovões, que o mundo fendem,/Não menos trabalho que grande erro,/Ainda que tivesse a voz de ferro.”(Luis de Camões)

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“Sou o único homem a bordo do meu barco./ Os outros são monstros que não falam, /Tigres e ursos que amarrei aos remos,/ E o meu desprezo reina sobre o mar.//Gosto de uivar no vento com os mastros/ E de me abrir na brisa com as velas,/E há momentos que são quase esquecimento/ Numa doçura imensa de regresso.//A minha pátria é onde o vento passa,/A minha amada é onde os roseirais dão flor,/O meu desejo é o rastro que ficou das aves,/ E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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“O Mar? O Mar É Branco”,pensou com tristeza o curador Cadete, pondo-se a acariciar a sua fantástica bola perpétua,em cuja transparência via habitualmente o mar dos Açores. Solto e arisco na sua espuma de navalhas, cobras enraivecidas, monstros talvez invisíveis e bufões de areia e sal, o mar era branco porque andava picado da saliva desesperada das baleias e das serpentes, da sua contínua mordedura, e a morte soltara-se nele como quando o monstro Centauro se cruzava com os carros dos deuses marinhos. Os cavalos pálidos dos deuses não eram decerto visíveis nos turbilhões da água, mas agitavam-na quando galopavam na direcção do vento e, voltando o mar de ventre para cima, tornavam-no branco, aos olhos do curador Cadete.

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…Mas não era sequer necessário olhar muito longe, porque uma boa porção desse mar fora encerrada há séculos na sua fabulosa bola perpétua. O verdadeiro poder de um homem estava em dominar o mar, reten¬do-o no interior de uma bola, ou então possuir a sabe¬doria de Moisés, o profeta da separação das águas do Mar Vermelho — porém Cadete suplantava tudo isso com aquele objecto de grande utilidade, através do qual aprendera a examinar os sinais cósmicos da doença e do destino humano. Na verdade, esses dados projectavam-se sobre a grande íris incolor da sua esfera e revelavam-se-lhe com a clareza inaudita dos espelhos gémeos de Baudelaire.(João de Melo)

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Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,/ A tua beleza aumenta quando estamos sós/ E tão fundo intimamente a tua voz/ Segue o mais secreto bailar do meu sonho,/ Que momentos há em que eu suponho/ Seres um milagre criado só para mim. (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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O envelhecimento traz consigo uma deterioração de todas as funções, nomeadamente a destreza física. O idoso frequentemente está deprimido e pode ser vítima de escárnio de gente mal formada. Hemingway conta a história de Santiago, um velho pescador que, devido justamente ao problema da idade, sobretudo no exercício de uma profissão que requer o constante uso da destreza e da força física, não consegue realizar as suas funções adequadamente

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…”Santiago sofre pela manifestação do declínio vital no seu corpo, problema este que, sendo conhecido pelos demais membros da comunidade dos pescadores, desperta nestes apenas sentimentos de desdém para com o experiente pescador. Alvo de diversas chacotas, Santiago, ao invés de se preocupar em retrucar os impropérios dos patifes, se interioriza, para que possa reunir forças físicas que lhe possibilitem mais uma vez desafiar o seu segundo lar, o mar. Afinal, as manifestações desrespeitosas dos pescadores mais jovens são utilizadas por Santiago como um estímulo para que ele possa superar esse estado de decadência fisiológica, profundamente amargo para um tipo de homem acostumado a sempre manifestar sua potência através de ações vigorosas…”

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..,.Contudo, devemos ressaltar que essa grande manifestação de forças não consiste mais no ato do valoroso pescador demonstrar o seu valor para os seus companheiros, mas sobretudo de demonstrar, para si mesmo, o seu caráter digno, o seu sentimento heróico. Por conseguinte, o velho Santiago, por não renegar as qualidades necessárias para o exercício de sua profissão e da sua própria condição de homem, afirma, diante do imenso poder sensível da natureza, encarnada pelo mar impetuoso, a grandeza moral do indivíduo, pois “o homem pode ser destruído, mas nunca derrotado”.”(Renato Nunes Bittencourt)

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“Uma após uma /Uma após uma as ondas apressadas /Enrolam o seu verde movimento /E chiam a alva ‘spuma /No moreno das praias. //Uma após uma as nuvens vagarosas /Rasgam o seu redondo movimento /E o sol aquece o ‘spaço /Do ar entre as nuvens ‘scassas. //Indiferente a mim e eu a ela, /A natureza deste dia calmo /Furta pouco ao meu senso /De se esvair o tempo. //Só uma vaga pena inconsequente //Pára um momento à porta da minha alma /E após fitar-me um pouco /Passa, a sorrir de nada., se hão-de ser…” (Ricardo Reis)

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“O meu beliche é tal qual o bercinho,/ Onde dormi horas que não vêm mais. /Dos seus embalos já estou cheiinho: /Minha velha ama são os vendavais! //Uivam os ventos! Fumo, bebo vinho. /O vapor treme! Abraço a Bíblia, aos ais… /Covarde! Que dirá teu Avozinho, Que foi mareante? Que dirão teus Pais? //Coragem! Considera o que hás sofrido, /O que sofres e o que ainda sofrerás, /E vê, depois, se acaso é permitido //Tal medo á Morte, tanto apego ao mundo: /Ah! fora bem melhor, vás onde vás, /Antonio, que o paquete fosse ao fundo!” (Antonio Nobre)

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“Curva dos espaços, curva das baías,/Vida que não é vida com os gestos inúteis,/ Quem me consolará do meu corpo sepultado?…

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…Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais/ Do fundo do mar./ Eu nasci há um instante…

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…A mulher branca que a noite traz no ventre/ veio à tona das águas e morreu…

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…Chego à praia e vejo que sou eu/ O dia branco (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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“Procura a maravilha./Onde um beijo sabe/a barcos e bruma.//No brilho redondo / e jovem dos joelhos.//Na noite inclinada /de melancolia.//Procura. //Procura a maravilha.”(Eugénio de Andrade)

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“Dai-me o sol das águas azuis e das esferas/Quando o mundo está cheio de novas esculturas//E as ondas inclinando o colo marram /Como unicórnios brancos” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

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“Ouve o mar que soluça na solidão/Ouve, amor, o mar que soluça/Na mais triste solidão/E ouve, amor, os ventos/Que voltam dos espaços/Que ninguém sabe/Sobre as ondas se debruçam/E soluçam de paixão//E ouve, amor, no fundo da noite/Como as árvores ao vento/Num lamento se debruçam/Para o chão//Deixa, amor, que um corpo sedento/Como as árvores e o vento/No teu corpo se debruce/E soluce de paixão” (Vinicius de Moraes)

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“Bebido o luar, ébrios de horizontes, /Julgamos que viver era abraçar /O rumor dos pinhais, o azul dos montes /E todos os jardins verdes do mar. //Mas solitários somos e passamos, /Não são nossos os frutos nem as flores, /O céu e o mar apagam-se exteriores E tornam-se os fantasmas que sonhamos. //Por que jardins que nós não colheremos, /Límpidos nas auroras a nascer, /Por que o céu e o mar se não seremos /Nunca os deuses capazes de os viver.”(Sophia de Mello Breyner Andresen)

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O meu ideal de praia é essa linha de horizonte a perder de vista, o som do mar e a carícia do sol que nos convida a estar e depois mergulhar e voltar, esticar na areia. Ler e sentir o doce prazer da preguiça

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“Vê como de súbito o céu se fecha sobre dunas e barcos,/e cada um de nós se volta e fixa/ os olhos um no outro,/e como deles devagar escorre a última luz sobre as areias.//Que diremos ainda? Serão palavras, isto que aflora aos lábios? Palavras?, este/rumor tão leve que ouvimos o dia desprender-se? Palavras, ou luz ainda//Palavras, não. Quem as sabia?/Foi apenas lembrança de outra luz. Nem luz seria, apenas outro olhar.” (Eugénio de Andrade)

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Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas/ Deixarei que o teu nome se perca repetido//Mas espera-me:/Pois por mais longos que sejam os caminhos/ Eu regresso.”(Sophia de Mello Breyner Andresen)

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Lembrar o mar num crepúsculo açoreano que me fez voltar às origens. Se eu fosse ilhéu, cumpriria este atavismo marítimo para quem é o mar que transporta os sonhos, que será talvez o seu destino, o seu ponto de chegada.

Ouça os poemas

Voz(es) deste Tempo

2

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

(Luis de Camões)

3

É apenas o começo. Só depois dói, e se lhe dá nome.

Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode acontecer da maneira mais simples: umas gotas de chuva no cabelo,
Aproximas a mão, os dedos desatam a arder inesperadamente, recuas de medo.
Aqueles cabelos, as suas gotas de água são o começo, apenas o começo.
Antes do fim terás de pegar no fogo e fazeres do inverno

a mais ardente das estações.

(Eugénio de Andrade)

4

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo o corpo que não espera; este pousar/que não conhece, nada vê, nem nada/ousa temer no seu temor agudo…

Tem tanta pressa o corpo! E já passou
quando um de nós ou quando o amor chegou.

(Jorge de Sena)

5

Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada fechada como boca onde não encontro nada:/não encontro respostas para tudo o que pergunto nem /na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum

(Ruy Belo)

9

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

(Sophia de Melo Breyner Andresen)

7

Quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. Quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda/neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

(Vasco Graça Moura)

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Poemas ditos por Fernando Vaz Garcia

Hipocrisias

Quando alguém, no cimo dum telhado olha para baixo, pode sentir uma vertigem. Esta é uma reacção normal. No entanto, há pessoas que, nas mesmas condições, apresentam manifestações de pânico. Para este facto contribuem vários factores, um deles a personalidade neurótica do indivíduo.

Não parece que a hipocrisia seja comparável à fobia das alturas. Julgo que ninguém “compra” todas as guerras. A alguns morde-lhes a consciência por qualquer pequena cobardia ou traição. É uma espécie de vertigem das alturas. Mas aquilo que aqui tratamos é da grande Hipocrisia, para a qual provavelmente contribuem factores de educação, personalidade, potenciados pela ambição desmedida de poder.

As ilustrações utilizadas na maioria dos casos estão disponíveis na net. Merece particular destaque o traço inconfundível de João Abel Manta.

FM

 

1

Ora Eça de Queiroz foi à inauguração do Canal do Suez e a digressão pela Palestina serviu-lhe para uma saborosa descrição das aventuras e desventuras de Teodorico Raposo, reunidas no romance A Relíquia. Curiosamente, quando o seu plano fracassa, parecia que a hipocrisia não compensa… Mas vamos recapitular a história.

2

Teodorico, orfão de mãe e pai, é criado por sua tia D. Patrocínio das Neves, conhecida por todos por Titi. Teodorico é um jovem boémio, sem escrúpulos, que finge ser um católico fervoroso só para agradar à tia, pois acha-se seu único herdeiro. A tia financia-lhe a educação e ele frequenta a Faculdade de Direito em Coimbra, donde sai Bacharel. No entanto, a feroz vigilância da tia traz-lhe alguns dissabores, obriga-o a uma vida de penúria e traz-lhe a chacota dos colegas. Como conseguir deitar mão à fortuna da Titi? De Coimbra vem com a alcunha de “Raposão”. A grande dificuldade de Teodorido é a educação extremamente religiosa, que ela lhe impõe. No entanto, tudo corre bem até que Teodorico, descobre que a Titi, vai deixar toda sua fortuna à Igreja…

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Podemos imaginar a senhora de porte severo, hábitos religiosos extremos, um leve cheiro a incenso, talvez um pequeno buço, uma capela, um oratório, recebendo o padre comensal semanal ou mesmo mais do que um, como veio a acontecer quando o finório do Padre Negrão se insinuou junto da Titi e passou a comer diariamente, perante a censura de Teodorico que pressentia a ameaça. Então engendrou um plano: fazer uma viagem para representar sua tia perante os religiosos da Terra Santa e trazer-lhe a absolvição dos pecados antes da sua morte. E ela pede-lhe uma relíquia…

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Teodorico parte e vive como um fidalgo em Jerusalém. Sonha conseguir as boas graças da tia trazendo vários presentes e uma relíquia (a coroa de espinhos de Cristo) e mais umas tantas bugigangas (rosários, bentinhos, medalhas, espulários, frascos de água do Jordão, palhinhas, etc) que com o seu amigo Topsius, arqueólogo alemão e reputado egiptólogo, vai coleccionando. Este sentencia: as relíquias não valem pela autenticidade que possuem, mas pela fé que inspiram!

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Lá, envolve-se com uma rameira, Mary, a Maricoquinhas. Ao retornar a Portugal, Teodorico acredita ter conseguido as boas graças da tia trazendo inúmeros presentes e a esperada relíquia do Santo Sepulcro. Mas um terrível engano deita tudo a perder: ao abrir o embrulho, em vez da relíquia surge a alvura da camisa de dormir da sua Maricoquinhas! Escândalo!. Dona Patrocínio expulsa o desafortunado sobrinho a pontapés de sua casa, e ao morrer deixa tudo o que possuía à sua amada Igreja.

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Para a Igreja não foi bem assim, pois além de serviçais, também amigos e padres visitas de casa foram contemplados no seu testamento. Entre eles, o Padre Negrão foi o mais beneficiado…Ah, mas manda a verdade dizer que D. Patrocínio não se esqueceu do sobrinho! Deixou-lhe um óculo que estava pendurado na parede, certamente para ele ver a fortuna por um canudo…

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Chegados aqui, poderíamos pensar num final moralista do tipo “O crime não compensa”, na versão da inutilidade da hipocrisia, pensamento que ocorreu ao desditoso Raposão. Para sobreviver, arranjou um negócio de venda das relíquias que trouxera da Palestina. Quando elas se esgotaram, o acaso fê-lo encontrar um velho amigo que lhe ofereceu emprego e mais tarde apresentou a irmã. Zarolha, cabelo ruivo, peito “sólido”. Casou, foi pai, enriqueceu e acabou por comprar a propriedade que o padre Negrão herdara da Titi…Então, a hipocrisia é inútil?!

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Claro que, antes de Raposo e depois dele, sempre houve impostores, mais ou menos refinados, à espreita dos melhores ardis para atingir os seus fins: lisonja, falta de carácter, falsidade, abusos de toda a ordem…Mais duas ficções mas que poderiam ser histórias verdadeiras…

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Esta é uma história exemplar: como progredir, obter sucesso? Podem perguntar-me se os métodos são correctos…Avaliem por vós.

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Quando Abel nasceu, o seu destino estava traçado. O pai era um homem de negócios, proveniente duma modesta família da Beira-Baixa, que soubera prosperar.

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A casa no Estoril era o testemunho dessa ascensão.

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Porém, o pai guardava uma mágoa: dono de uma importante firma de Import-Export, com escritório no Cais do Sodré, não era licenciado. Mesmo, quando agora lhe chamavam “Sr. Dr”., ele sabia não ser verdade e preferia que o tratassem por Sr. Comendador. Porque a Comenda recebera-a, de facto, num 10 de Junho, embora, sempre tivesse acabado por ter de mexer uns cordelinhos…

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Portanto, quando Abel nasceu, o pai sentenciou: há-de ser médico! Abel teve uma infância feliz e uma adolescência despreocupada. Era simpático, cativante. Cedo se apercebeu como a gentileza, e um toque de sedução por vezes ajudavam a resolver o que parecia impossível.

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Fez a Faculdade, um doutoramento nos USA e conseguiu a Direcção do Serviço. Porém, a pouco e pouco o Sr. Professor ou o Abel, como gostava que o tratassem, passou a rarear no Serviço. Por vezes, ia muito cedo e marcava falta aos retardatários, mas depois ele próprio não punha lá os pés semanas a fio. A sua semelhança com o dr. House era notória, apenas a melena desgrenhada sobre a testa era uma imagem de marca.

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No entanto, nos primeiros tempos a actividade era grande, o entusiasmo maior, só que depois foram esfriando…

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Aos seniores, acontecia mandá-los chamar e fazê-los esperar durante uma hora ou não os poder receber…;

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Quando pretendia cativar algum colaborador prometia um equipamento que fosse necessário para o desenvolvimento dum projecto que aquele ambicionava há muito, dizendo que tinha chegada a hora…Passavam-se meses e…

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e acabava por mandar um homem de confiança dizer que “a Gulbenkian cortara as verbas”… ou que se vira obrigado a substituir o pedido…enfim, contrariedades que ele lamentava profundamente, claro…

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Abel está nas suas sete quintas. Tudo quanto é personalidade importante –gestor, político, jornalista, é ele que observa, opera, segue minuciosamente. A imprensa, a comunicação social estão nas suas mãos. Tem um conselheiro de imagem. Joga ténis, pratica hipismo.Faz capa de revistas quando se sente pressionado.

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Abel não tem amigos ou melhor tem muitos (interesses). Recentemente, porém, as coisas começaram a tornar-se mais complicadas e o seu lugar deixou de ser inquestionável…Talvez que a adversidade o tenha iluminado e uma inusitada fé religiosa o avassalasse, o que não deixa de ser surpreendente para quem nunca manifestara qualquer crença.

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Há tempos tentou formar uma Lista para se candidatar à Presidência duma Sociedade Científica. Dando-se conta que os apoios de que dispunha não lhe permitiriam ganhar, retirou a sua candidatura e no dia da eleição, quando o vencedor comemorava, voltou-se para ele e disse: “Parabéns! Vais ter um mandato abençoado por Nossa Senhora”. Era o 13 de Maio. Estranhos são os desígnios do Senhor!

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(não há coisa mais importante na vida do que a amizade!)

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Esta é uma outra história, um pouco mais antiga. O seu herói é o Eng. Ferro. Trabalhava ele num Departamento do Estado que dependia directamente da Presidência do Conselho, onde ingressara em 1972.

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Um seu tio, General, tinha sido Ministro de Salazar.

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O pai fora legionário e participara no Batalhão dos Viriatos na Guerra civil de Espanha. Naquela altura, já meio demenciado, residia no Chiado, num casarão na Rua Ivens.

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Ao Eng Ferro abria-se um futuro auspicioso. Fazia investigação científica. Algumas experiências valeram-lhe a alcunha de “cientista louco”. Mas a possibilidade de um doutoramento e de uma carreira académica eram objectivos naturais. Durante a Faculdade nunca se lhe conheceram quaisquer actividades contestarias. Ouviu-se mesmo dizer até fora fura-greves, mas se calhar eram boatos dos comunas…

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O Eng. Gaudêncio e a Dra. Odete eram pessoas próximas de Ferro. A segunda era uma mulher de voz fanhosa que devia acordar maldisposta, de temperamento bilioso, sempre pronta a desfazer nos colegas; Gaudêncio, um hipocondríaco com tendência para os dramas. Tinham sempre presentes os comunicados do Governo, que aceitavam sem a mínima dúvida. A oposição, um bando de subversivos. Portugal era uno e indivisível e, por isso mesmo, defendíamos o Ultramar da cobiça estrangeira. Eram Portugueses como devia ser!

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O Prof. Julião era o chefe do Departamento: católico fervoroso, tinha uma certa vaidade na “sua” quinta do Algarve que por sinal era da mulher. O funcionamento intestinal de precisão suíça, faziam-no atravessar o Laboratório às 16,45h. 10 minutos antes todos os funcionários, mesmo que nada tivessem feito durante o resto do dia, exibiam tubos de ensaio, lâminas, postavam-se diante do microscópio, enfim uma actividade fervilhante. Quando Julião se aliviava tinha sempre uma palavra cordial para com eles.

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Um certo dia o Eng. Ferro, que fazia um estudo que obrigava a controlos diários, esteve uma semana com atestado, não avisou ninguém e o trabalho perdeu-se. Como se tratava duma investigação cujos resultados deveriam ser apresentados em breve, o Prof. Julião ficou furioso. Chamou-o ao gabinete e deu-lhe uma reprimenda, dizendo que ele era irresponsável. À saída o nosso Ferro rosnou: “Pode ser que um dia te arrependas…”

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Mas eis que surge a Revolução de Abril. Aquele Departamento de gente pacífica, a grande maioria com padrinhos sonoros do Antigo Regime…regenera-se! Fazem-se assembleias de trabalhadores, nomeiam-se comités, organizam-se comissões de saneamento. Abaixo os chefes! Cada um deles é escrutinado. Vários são saneados, entre eles o Professor Julião, acusado de prepotência e perseguição aos trabalhadores, que o levava a fazer visitas diárias ao local de trabalho com o intuito malévolo de fiscalização e controlo (provavelmente às 17 horas). A proposta, aprovada por maioria, fora apresentada pela Dra Odete e instigada pelo Eng. Ferro. Este cumprira a ameaça!

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Foram meses de intensa actividade. Finalmente em todo o Departamento havia vida. Em vez de provetas escreviam-se comunicados, os balões foram substituídos por reuniões em que definiam todos os objectivos inclusivé os científicos, onde democraticamente todos participavam com direito a voto, do servente (que passara a auxiliar de limpeza) ao licenciado.

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Os retroprojectores serviam para dinamização política. As salas de reuniões estavam permanentemente ocupadas.

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Até o pacato Cepeda, fazendo juz ao apelido, emitia sonoros borborismos: Abaixo a Reacção!

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O Eng. Ferro encabeçou um movimento de extrema esquerda. Mas veio a pacificação de Novembro. O nosso heroi muda de Departamento e de atitude. Filia-se num partido, dos que podem ser Governo. Quando o Prof. Julião é readmitido, vai felicitá-lo e desculpa-se pelos seus ardores de jovem revolucionário. Trocam um abraço. Ferro candidata-se a deputado. Tem futuro.

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Como se vê, Teodorico, Abel e Ferro são apenas exemplos em épocas diferentes de impostores de afectos para daí tirarem proveito. Conhecemo-los em toda a parte. Ás vezes torna-se mais fácil revelarem-se: a ocasião faz o ladrão.

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Teodorico, orfão de mãe e pai, é criado por sua tia D. Patrocínio das Neves, conhecida por todos por Titi. Teodorico é um jovem boémio, sem escrúpulos, que finge ser um católico fervoroso só para agradar à tia, pois acha-se seu único herdeiro. A tia financia-lhe a educação e ele frequenta a Faculdade de Direito em Coimbra, donde sai Bacharel. No entanto, a feroz vigilância da tia traz-lhe alguns dissabores, obriga-o a uma vida de penúria e traz-lhe a chacota dos colegas. Como conseguir deitar mão à fortuna da Titi? De Coimbra vem com a alcunha de “Raposão”. A grande dificuldade de Teodorido é a educação extremamente religiosa, que ela lhe impõe. No entanto, tudo corre bem até que Teodorico, descobre que a Titi, vai deixar toda sua fortuna à Igreja…

O Deserto Interior

Vemos jovens febrilmente comunicarem por telemóvel. As mensagens são crípticas, os símbolos da escrita estão abreviados. A oralidade ressente-se. A língua empobrece.

Mas esta comunicação é apenas um sinal. Para os mais velhos, as imagens (seja qual o suporte) substituem o imaginário. Importante passou a ser a notícia, por boa ou má razão. De preferência boa, mas se for má, mas bem embrulhada – serve. A reflexão vai desaparecendo. Os livros, os jornais, os artigos de opinião, são para consumo das minorias. Os outros lêem os títulos, as revistas de futilidades, os jornais gratuitos e os noticiários da TV, quanto mais sensacionalistas, melhor. A conversa, a tertúlia foram substituídas pelos diálogos nas redes sociais (Facebook e similares). Generaliza-se a ostentação pela internet de fotografias íntimas. A sociabilização do vazio, a alienação.

Em casa, da TV passa-se para os jogos de computador, para a realidade virtual. A solidão de cada um convive com a dos outros, só perturbada pela disputa do poder. Raramente há comunhão, mas afrontamentos. As vidas passam ao lado umas das outras, desapercebidas.

As dificuldades presentes vieram agudizar tudo isto. Diminuíram as saídas profissionais para os mais novos, mas o espírito consumista foi anteriormente inculcado, tantas vezes para substituir os afectos. Muitos jovens acham-se com direito a um padrão de vida que não irão conseguir. Outros, mais velhos, estão de repente desempregados. E, no limiar da miséria.

A esperança de vida aumenta na justa medida em que a sua qualidade é reduzida. Talvez no futuro, recebamos uma carta, quando deixarmos de ser contribuintes, para nos submetermos, a bem da Sociedade, a um processo, voluntário ou não, de eutanásia.

Os afectos parecem ser, também eles, outra realidade virtual. Mistificam-se, simulam-se, tira-se partido deles. Talvez que o caminho que reste seja ficar só. Já há muito que se fala disto como resultado da modernidade. E da pós-modernidade?

FM

1Esta é a viagem a que a minha teimosia me obriga. Não desisto. Nada está escrito, tudo está na nossa cabeça. A realidade é a desolação inóspita da areia escaldante do sol a pino ou gélida pela noite.

      Ouça o poema

 

2

Dos sonhos que ainda moram em mim, deles faço a minha força. Vou desfiando, uma vez e outra, a cada passo, a memória das coisas boas, mas evito enternecer-me. Perder pessoas que amámos torna-nos mais frágeis, e eu perdi algumas, mais ou menos recentemente.

3

Há quem valorize os sucessos, eu sempre achei que eles eram naturais… Poucas vezes me entusiasmei com uma conquista. Em contrapartida, cada derrota, cada ofensa ao amor-próprio, causou sempre grandes estragos (mesmo que eu também os tenha causado). O meu deserto é a soma das todas as decepções, rejeições, desastres, sempre ampliados. A mais recente é a revisitação de todo o passado. São cinzas que queimam. Mas esforço-me por não deixar de acreditar que tenho razão, que a vida tem de ter magia. Que esta maneira de olhar os outros de um modo sensorial, pode levar-me ao fascínio, ao arrebatamento, embora tenha de pagar em desilusões e sofrimento, está certa. É a que sempre quiz e pagarei o que tiver que pagar por ela.

4

Não há oásis nesta devastação. E se oásis aparecesse, certamente seria uma miragem. É um esforço inútil, este esgotamento sequioso. Por vezes quase adormeço no automatismo da caminhada. O meu rosto está coberto de areia branca, como antes de terra vermelha nas picadas em África.

5

Mas este meu deserto é interior, ninguém dá por ele. Talvez possa ser pressentido pela obstinação em afastar-me da convivência com a maioria. Eu, Lawrence de nenhuma Arábia, mas apenas de mim próprio, anseio por conquistar Akaba. Serei capaz de fazer o que os outros consideram impossível?

6

Derrotarei uns quaisquer turcos, tentarei que se cumpram os acordos estabelecidos, que a palavra e os compromissos sejam respeitados. As negociações e as artimanhas para retirar os maiores lucros possíveis, não foram feitas para os Lawrence da Arábia ou este, como eu.

7

Já não é inadaptação à realidade industrial, à marginalização de um dos membros de um par, neste filme belíssimo de Antonioni (O deserto vermelho) que mais parece uma aguarela sobre a paisagem fabril, mas que projecta a solidão da protagonista (Mónica Vitti). Mas é, como aí, a incomunicabilidade entre os dois, cada um virado para os seus pequenos mundos.

8

Não é preciso ter-se um cenário de fábricas. A incomunicabilidade estabelece-se a todos os níveis. Desatentos, demasiado pressionados pelas exigências profissionais ou por puro desleixo. Substitui-se o alvoroço pela rotina.

9

Às vezes tivemos oportunidade de mudar as coisas, mas desperdiçámo-la. Envelhecemos separados, vamos ficando cada vez mais sozinhos. Estamos condenados a estar sós. A velhice não é nada promissora.

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Somos ou estamos inadaptados aos códigos de hoje? Mesmo que camaleònicamente nos disfarcemos, alguns não suportam os desajustamentos: Por solidão podemos encontrar um parceiro de ocasião, mas até a isso alguns se recusam.

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Ao que conduz o desespero, a luta pela sobrevivência? A todas as degradações. Nessa maratona de dança que era o concurso em que ganhava quem chegasse ao fim, onde todas as solidariedades desapareciam, onde cada par se arrasatava até à exaustão e em alguns casos à morte, era a a ganância e a ausência de escrúpulos do empresário que ditava as regras. Sempre que há possibilidade, a natureza humana tende a explorar os deserdados da vida – é o que acontece com os imigrantes ilegais, os velhos e doentes abandonados. “Os cavalos também se abatem” é um filme que é uma metáfora sobre o desespero. Tão clássico que é preciso rever. Como o romance do H. Mccoy. E o que se faz quando se chega ao fim da linha, quando o sofrimento é irreversível e intolerável, às vezes sem fim à vista?

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O sol do meu deserto enrijou a pele e a têmpera. Houve alturas em que senti a necessidade de um pouco de compaixão. Agora, creio que já não. Não faço piruetas, não sigo modas. Não tenho a pretensão de ser duro, só que tive de sobreviver. Procurarei manter a atenção ao que me rodeia, mas irei por onde eu quiser, não por onde me quiserem levar.

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Vivo, atento aos rumores da noite, dissimulando-me nela sempre que puder. Mas quando for preciso, darei a cara. Não sou Quixote, os meus moinhos de vento são outros. Mas chegou a altura de deixar de fazer concessões. Sou como sou. Aceitem-me ou não. O problema não é meu (estou-me nas tintas). Apenas não me ofendam nos meus gostos, nas minhas escolhas. E não tentem enganar-me. Será cruel para todos.

14

A noite, outro fime de Antonioni. A degradação da relação do casal. A perda do desejo de um pelo outro, a procura de ambos nos acasos externos, até que que a ruptura se concretiza. Filme a preto e branco, admirável, como o Grito e a Aventura.

15

A noite camufla-nos. Engole-nos na semiobscuridade. Os passos podem ser mais hesitantes se o álcool desequilibrar o rumo, mas passamos mais despercebidos. Não será a capa dos pobres mas o refúgio dos solitários.

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Por vezes quando a solidão nos leva a juntarmo-nos sucedem coisas (boas ou más), mas vivas, muitas vezes dolorosas para quem está fragilizado.Vejam o que acontece nesse clássico e mítico filme “The Misfits” de John Huston, que reuniu Clark Gable, Marilyn Monroe e Montgomery Clift (todos eles mortos quase a seguir).

17

Gable representa o papel de cowboy de meia-idade e Marilyn de recém divorciada, os quais se envolvem. Surge a notícia de ter sido visto um grupo de cavalos selvagens. Logo, o grupo decide ir capturá-los. A sua carne será utilizada para alimento de cães.

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A surpresa e desprezo de Marilyn perante tal actividade e finalmente o seu gesto de libertação, são a demonstração dos equívocos que podem estar latentes numa relação amorosa. Chegaremos alguma vez a conhecer o parceiro?

19

O que fez Arthur Miller, autor de A morte de um Caixeiro Viajante e de As Bruxas de Salém, vencedor do Prémio Pulitzer, casar com Marilyn? Ou, se quiserem, o contrário? Consta que ela o deixava de “pernas bambas”… Entretanto, teria continuado com o seu caso com J. Kennedy (pelo menos). Que futuro entre um intelectual e uma sex-symbol? Ou não se deve pensar nesses termos? Enquanto durou o casamento, Miller apenas escreveu o argumento de Os inadaptados…

20

Grandes são os desertos, e tudo é deserto. /Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto/ Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo./Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes/ Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,/ Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.//Grandes são os desertos, minha alma!/ Grandes são os desertos.//Não tirei bilhete para a vida,/ Errei a porta do sentimento,/Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse./Hoje não me resta, em vésperas de viagem,/Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,/Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,/Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)/Senão saber isto:/Grandes são os desertos, e tudo é deserto./Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,// Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar/Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)/Acendo o cigarro para adiar a viagem,/ Para adiar todas as viagens./ Para adiar o universo inteiro.

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Volta amanhã, realidade! / Basta por hoje, gentes! /Adia-te, presente absoluto! Mais vale não ser que ser assim. //Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. //Mas tenho que arrumar mala, Tenho por força que arrumar a mala, //A mala. //Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. //Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. /Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, /A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. //Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas. /A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. /Olho para o lado, verifico que estou a dormir. /Sei só que tenho que arrumar a mala, /E que os desertos são grandes e tudo é deserto, E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. //

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Ergo-me de repente todos os Césares. //Vou definitivamente arrumar a mala. Arre, hei de arrumá-la e fechá-la; /Hei de vê-la levar de aqui, /Hei de existir/independentemente dela. //Grandes são os desertos e tudo é deserto, /Salvo erro, naturalmente. /Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! /Mais vale arrumar a mala. /Fim. (Álvaro de Campos)

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De noite os defeitos se ocultam (Ovídio / A arte de amar)

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Akaba foi o objectivo impossível que Lawrence desafiou. Talvez eu aí encontre tâmaras, beringelas e chá de menta que me mitiguem a fome e a sede e, finalmente possa passear pela praia, atirar grinaldas de flores para o mar e sentir o crepúsculo impregnar-me. Talvez possa fazer um derradeiro mergulho nuns olhos de amêndoa, para neles me afastar, enquanto o fôlego o permtir, saboreando finalmente o gosto de uma vitória e da paz.

      Ouça o poema

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Mas como atravessar o deserto, na obstinação de uma ilusão? Esse é o meu moinho de vento, a minha loucura: gosto do impossível, do paradoxal. Invento personagens: sou Hamlet, Cyrano e, afinal, talvez mais uma singular personagem de Kafka…Mas o que vale nesta travessia sem fim será a beleza dos afectos, dos objectos, das palavras, dos rostos, das cores, dos sons. Mesmo que mos tirem eu tenho-os na cabeça. O meu deserto preserva-os. Só por isso, continuo.

Sentir Lisboa

As cidades fazem parte da vida pessoas.

Herdámo-las, modificamo-las, adaptamo-las às nossas necessidades. Desempenham funções críticas, consoante as suas dimensões. Porém, esses objectivos são frequentemente ignorados ou a sua concretização fica longe do possível. As cidades não são só amontoados de edifícios onde mora gente, com ruas e praças com nomes que evocam pessoas e factos relevantes, automóveis e outros meios de transporte, se oferecem serviços, manifestações culturais ou se praticam actividades de natureza comercial, desportiva, industrial, etc. Elas têm de ter em conta o lazer e o bem-estar dos cidadãos, revelar-lhes a sua beleza natural, facilitar-lhes as deslocações, acautelar-lhes a segurança, impedir a especulação imobiliária que afaste as novas gerações para dormitórios periféricos e acabe por as desertificar.

À medida que o tempo passa, as cidades mudam, mas têm de preservar o essencial – as pedras, os edifícios que contam História, património cultural dos povos. Deixar degradar um monumento, um edifício classificado é alienar a memória colectiva, a nossa identidade.

Lisboa é um exemplo gritante. Tem-se autorizado a construção de edifícios que nada têm a ver com a traça arquitectónica do local onde estão inseridos. A recuperação de imóveis antigos é insuficiente. Sabe-se o estado de ruína em que se encontram edifícios históricos, como a Sé. E as licenças de construção que violam os planos pré-estabelecidos?

Mas não é de política que quero falar e lembrar. É de Lisboa, do amor por Lisboa. Da sua luminosidade, do Tejo, do seu centro histórico, dos seus contrastes, do que ela revela, do seu espírito e da sua vida, daquilo que é flagrantemente português. E que temos obrigação de não deixar descaracterizar mais.

FM

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O amor possível

Este caderno utiliza quase exclusivamente quadros de nus de pintores famosos (p. ex. Modigliani, Dali, Picasso) e poemas em língua portuguesa (David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Vinicius de Morais…), cuja escolha e ordenamento contam uma história, como se de uma montagem cinematográfica se tratasse. O esplendor do corpo da mulher, a sua fruição e a sua perda são os temas tratados. O caderno recorre ainda a Adágios de Samuel Barber  e Mahler (5ª Sinfonia). No fundo, é a conjugação do significado das imagens, das palavras e dos sons, como Roland Barthes teorizou.
FM

 

Falei em vicio: é. Uma privação, como a falta de heroina em dependente, e sem metadona. Ressaca de um tempo, (para mim) alucinante de vida, entre a sensualidade, o sonho, a ternura e o delírio. Como todas as ressacas dói, e esta muito, muito. A perda do corpo amado é este olhar liquido, peso insuportável dos dias sem horizontes nítidos como uma bruma que subitamente tudo envolve, melancolia nos espaços, nas ruas, casas, onde passámos e que deixaram de ser ponto de encontro, apenas testemunhas mudas dessa ausência.

1

Memória obsessiva da tua perda. Hoje, as carícias, mesmo que as mãos num simulacro de desejo busquem noutro corpo a ilusão de um teu regresso, logo a saciedade traz um remorso insuportável, constrangimento pelo equívoco ou pela traição, mesmo que de traição se não trate. Escrevo, mas não espero nada. De qualquer modo, faço-o ao sabor desta melancolia que não tem a ver contigo, é ancestral. Falo no acaso das palavras, na maré das lágrimas. Como seria bom que fosses, como eu precisava que fosses! Acredita que irei tentar não deixar de ser como sou. Inconformista e incorformado, com todos os vícios e virtudes que conheces, à procura do tutano da vida, até ao fim.

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Mas no princípio eu disse: e aí chegou o Verão, tão cheio de promessas – as laranjas nas árvores, a vinha a anunciar o gosto líquido do sol e da terra que nos vai inebriar, o entardecer dos dias longos que logo que ele chega, não sei se por timidez ou outra razão, começam docemente a trazer o crepúsculo cada vez mais cedo, embora sempre o mar e esse gosto de sal e sol, maresia, ondular de ondas e barcos. O Verão, única época feliz do ano, minha alegria, minha esperança. E, no entanto, é o Outono o que o Verão pressagia. miguel-angelo E também falei do meu ardor e profetizei: amanhã a memória de todos os ontens trarão os teus olhos, a tua boca, as carícias que ficaram por cumprir, o meu espanto, o teu sorriso. Não esperava promessas mas, sim, a minha crença em ti. Quantas vezes menti na vida, como sei dos jogos de sedução! Como me fazer acreditar e fazer-te olhares-me como se eu fosse único, verdadeiro, sem vislumbre de maldade?! E tu vires para mim, como quem se desfez dum hábito de desamor? Puros na ingenuidade perdida e reconquistada para um amor novo, redentor: o nosso. 4 E lembrei que, para uma união ter futuro, é preciso que, além da plena satisfação do corpo, os dois parceiros se esforcem por partilhar os silêncios, os gostos e o saber das coisas. Não era só a mim que me competiam tarefas, as quais fui desempenhando, não com a urgência devida, (mas a que a minha prudência achou adequada). A ti cabia-te alargar os horizontes para que a tua riqueza interior fosse igual à beleza exterior. 5 E também sei que, neste tempo em que os sonhos se desfizeram, em que nada mais resta do que arrumar as redes da faina que tanto prometia, devo admitir não ter sido só o temporal a causa de tamanho desastre, mas o meu desleixo. Deveria ter olhado os outros, desafiá-los e exigir:  “aceitem-na como é, porque se o não fizerdes também a mim não aceitareis, porque como um espelho reflecte a imagem que dele se abeira, também a luz traz a sombra, porque ambos são indissociáveis.”  Tudo isto talvez eu devesse ter dito. Mas preferi ver os dias passar, sem outros sobressaltos que aqueles com que os acasos da vida na época me castigaram. Uma dúvida me persegue: sensatez ou cobardia? Se sensatez é triste, não valeu a pena. 6 A grandeza não está na ostentação, na riqueza, nas honras que se recebem e nas esmolas que se dão (para aliviar as más-consciências). A grandeza está na coragem de dizer não ao suserano, quando todos o lisonjeiam, sempre que se julga ter razão; na entrega total a tudo o que se faz mesmo que as tarefas sejam modestas; no voluntariado discreto aos deserdados da vida; na humildade natural; no mérito, no conhecimento, na competência. A César o que é de César. Mais a imaginação, a vida interior, a busca da beleza das coisas, da fraternidade sem contrapartidas, na generosidade sem mesquinhez, na sinceridade, lealdade, constância. Isso é a grandeza de alguém. 7 O acicate da indecisão tem-me, pois, atormentado: terá sido Hamlet, de facto, hesitante em vingar a morte de seu pai assassinado pelo irmão Claudius, que lhe roubou o trono e lhe seduziu a mulher, sua mãe? Ou, pelo contrário, aguardara pacientemente o momento mais propício para o desmascarar, mesmo que com isso tivesse perdido a vida? Hesitante ou inteligente? De qualquer modo, o risco da espera é ser mal interpretado. Os passos não dados, as pequenas desilusões diárias corroem o encanto. A desatenção propicia a deslealdade e a traição. 8 Nada/nem o branco fogo do trigo/nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros/te dirão a palavra//Não interrogues não perguntes/entre a razão e a turbulência da neve/não há diferenças//Não colecciones dejectos o teu destino és tu//Despe-te/não há outro caminho (Eugénio de Andrade) 9 Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma./A alma é que estraga o amor./Só em Deus ela pode encontrar satisfação./Não noutra alma./Só em Deus — ou fora do mundo./As almas são incomunicáveis.//Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.//Porque os corpos se entendem, mas as almas não. (Manuel Bandeira) 10 Morrer e não morrer sobre os teus rins/uma árvore de pássaros ardia/era o verão escuta os seus cavalos/à roda da cintura//O cálido esperma das palavras/no interior do cabelo derramado/um sol de palha fresca a boca/de que rio regressa? (Eugénio de Andrade) 11 Um beijo em lábios é que se demora/e tremem no de abrir-se a dentes línguas/tão penetrantes quanto línguas podem./Mas beijo é mais. É boca aberta hiante/para de encher-se ao que se mova nela./E dentes se apertando delicados./É língua que na boca se agitando/irá de um corpo inteiro descobrir o gosto/e sobretudo o que se oculta em sombras/e nos recantos em cabelos vive./É beijo tudo o que de lábios seja/quanto de lábios se deseja. (Jorge de Sena)

      Ouça o poema

12 Respiro o teu corpo:/sabe a lua-de-água/ao amanhecer,/sabe a cal molhada,/sabe a luz mordida,/sabe a brisa nua,/ao sangue dos rios,/sabe a rosa louca,/ao cair da noite/sabe a pedra amarga,/sabe à minha boca. (Eugénio de Andrade) 13 Escalar-te lábio a lábio, /percorrer-te: eis a cintura/o lume breve entre as nádegas /e o ventre, o peito, o dorso / descer aos flancos, enterrar// os olhos na pedra fresca / dos teus olhos,/entregar-me poro a poro / ao furor da tua boca,/esquecer a mão errante / na festa ou na fresta // aberta à doce penetração / das águas duras, / respirar como quem tropeça /no escuro, gritar / às portas da alegria, / da solidão.// porque é terrível /subir assim às hastes da /loucura, / do fogo descer à neve.//abandonar-me agora / nas ervas ao orvalho /a glande leve. (Eugénio de Andrade) 14 O corpo é praia a boca é a nascente / e é na vulva que a areia é mais sedenta /poro a poro vou sendo o curso da água / da tua língua demasiada e lenta / dentes e unhas rebentam como pinhas / de carnívoras plantas te é meu ventre /abro-te as coxas e deixo-te crescer / duro e cheiroso como o aloendro. (Natália Correia) 15 Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo//Mal de te amar neste lugar de imperfeição/Onde tudo nos quebra e emudece/Onde tudo nos mente e nos separa (Sophia de Mello Breyner Andresen) 16 Assim como o Oceano, só é belo com o luar/Assim como a Canção, só tem razão se se cantar/Assim como uma nuvem, só acontece se chover/Assim como o poeta, só é bem grande se sofrer/Assim como viver sem ter amor, não é viver/Não há você sem mim/E eu não existo sem você! (Vinicius de Morais) 17 Trazes contigo oculto o Sol/emergindo com ternura dos teus olhos/iluminando tudo quanto vês//…Deus ao céu roubou /duas estrelas/e com elas fez teus olhos (Fernando Couto) 18 No teu peito / é que o pólen do fogo / se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos / é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, / rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos / é que a areia queima, / o sol é secreto,/ cego o silêncio. // Deita-te comigo. //Ilumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /toda a música é minha (Eugénio de Andrade) 19 Foi para ti que criei as rosas./Foi para ti que lhes dei perfume./Para ti rasguei ribeiros/e dei ás romãs a cor do lume. (Eugénio de Andrade) 20 Teu corpo é cobra quando enrolas no meu, / teus lábios mel tocando os meus, /tua pele brasa, teus seios carne, pecado, desejo. / Teu sexo fonte, /teu corpo é desejo, volúpia, / memória/que nunca vou esquecer. (Pedro Miranda) 21 Pela flor pelo vento pelo fogo/Pela estrela da noite tão límpida e serena/Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo/Pelo amor sem ironia – por tudo/Que atentamente esperamos/Reconheci tua presença incerta/Tua presença fantástica e liberta (Sophia de Mello Breyner Andresen) 22 Do fascínio ao desencanto/o pequeno passo, inevitável,/dado sem cólera nem desalento/em serenidade e lucidez. (Fernando Couto) 23 Deixa ficar comigo a madrugada,/para que a luz do Sol me não constranja./Numa taça de sombra estilhaçada,/deita sumo de lua e de laranja.//Arranja uma pianola, um disco, um posto,/onde eu ouça o estertor de uma gaivota…/Crepite, em derredor, o mar de Agosto…/E o outro cheiro, o teu, à minha volta!//Depois, podes partir. Só te aconselho/que acendas, para tudo ser perfeito,/à cabeceira a luz do teu joelho,/entre os lençóis o lume do teu peito…//Podes partir. De nada mais preciso/para a minha ilusão do Paraíso. (David Mourão-Ferreira)

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24 E de novo o regresso ao fascínio/em limpidez sem mácula,/sereno, sem mágoa, apesar do ciclo… //Nenhuma âncora deve fixar-te/ e nada impedir-te de partir./Consente apenas a saudade, /até mesmo antes da largada, em jeito de / ave migradora. (Fernando Couto) 25 Meu amor/ palavra gesto seio vigilância,/que me queres?/ Como me queres?/ Se tudo quero que te não quero a ti, senão de quanto vi, quanto passei,quanto perdi (Jorge de Sena) 26 Anda no ar a excitação / de seios subito exibidos / à torva luz de um alçapão,/por onde os corpos rolarão,/ mordidos! / Ou é um deus, ou foi a Morte /que nos vestiu este/ torpor;/ e a Primavera é um chicote,/ abrindo as veias e o decote/ ao meu amor!//Esqueço que os dedos têm ossos:/ é só de sangue esta caricia; /apenas nervos os pescoços…/Mas nos teus olhos, nos meus olhos,/a luz da morte brilha. (David Mourão-Ferreira) 27 Seu corpo nu / meus olhos vestidos / seu corpo nu / meus olhos enlouquecidos /seu corpo vestido / meus olhos nus. (Paulo Netho) 28 Mas hoje, oh sim hoje, falemos da memória das coisas, não de um dia inaugural, mas de coisas que foram a nossa vida: a rua estreita, aquele bulício de gaivotas, o rumor dos barcos, as manhãs a ver as ondas, aquela neblina que entrava em nós e nos tornava crianças. Mas eram os teus olhos que me atiçavam o desejo, e o meu espanto era sempre descobrir os segredos do teu corpo, o túnel secreto donde emerge o transe e aprender os caminhos que te levavam áquele rugido feito de convulsão e magma, talvez sismo talvez orgasmo. Os nossos movimentos vai-vem, húmido de ondas e algas. Ancorar no teu sexo e nascer o dia. (Fernando Moreno)

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29 Frémito do meu corpo a procurar-te,/ Febre das minhas mãos na tua pele/ Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,// Olhos buscando os teus por toda a parte,/ Sede de beijos, amargor de fel,/Estonteante fome, áspera e cruel,/ Que nada existe que a mitigue e a farte!//E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma /Junto da minha, uma lagoa calma, /A dizer-me, a cantar que me não amas…//E o meu coração que tu não sentes, /Vai boiando ao acaso das correntes, /Esquife negro sobre um mar de chamas…(Florbela Espanca) 30 Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,/e o que nos ficou não chega/para afastar o frio de quatro paredes./Gastámos tudo menos o silêncio./Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, /gastámos as mão à força de as apertarmos, /gastámos o relógio e as pedras das esquinas /em esperas inúteis. //Meto as mãos nas algibeiras /e não encontro nada. /Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro! /Era como se todas as coisas fossem minhas: /quanto mais te dava mais tinha para te dar. //Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! /e eu acreditava. /Acreditava, /porque ao teu lado /todas as coisas eram possíveis. /Mas isso era no tempo dos segredos, /no tempo em que o teu corpo era um aquário, /no tempo em que os meus olhos/eram peixes verdes./Hoje são apenas os meus olhos. /É pouco, mas é verdade,/uns olhos como todos os outros.//… 31 Já gastámos as palavras./Quando agora digo: meu amor…,/já se não passa absolutamente nada./E no entanto, antes das palavras gastas,/tenho a certeza/de que todas as coisas estremeciam /só de murmurar o teu nome/no silêncio do meu coração./Não temos já nada para dar./Dentro de ti/não há nada que me peça água./O passado é inútil como um trapo./E já te disse: as palavras estão gastas.//Adeus. (Eugénio de Andrade)

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Falsidades

Como é mentir, enganar, meses a fio, o parceiro, seja ele ou ela, sem um deslize, um indício? Ou eles existiam, mas passaram despercebidos? Resultado da usura do tempo? Como ir mantendo uma relação hipocritamente, como se nada se passasse? E preparar tudo meticulosamente para no momento adequado romper da forma economicamente mais vantajosa?

Temos o nosso imaginário cheio de personagens – heróis e vilões: sabemos da tradição dos marialvas trauliteiros que noutros tempos punham senhoras “por conta”, ou de libertinos, esses mais finos, argutos, que, agindo com inteligência iam seleccionando as suas presas. Como também de mulheres, como a Madame Bovary, que o vazio e as banalidades conduziam ao adultério. E, se o livro de Flaubert, causou escândalo é porque o adultério só era tolerado aos homens. Hoje, vemos os filmes de Woody Allen e o seu universo de gente pessimista e neurótica, com “affaires” complexos, pequenas traições, numa cidade como Nova York, balizada por psicanalistas e que mais não é, e sempre, que uma abordagem de si próprio. Os filmes são uma catarse de Woody Allen. Mas temos também os heróis que nos enobrecem: O Ricky de Casablanca, capaz do supremo gesto de generosidade de prescindir da mulher que ama e o ama, em nome de uma causa mais importante – a Liberdade. Como o extraordinário Cyrano de Bergerac, capaz de emprestar a sua eloquência e voz à figura de um jovem que, em relação a ele, apenas tinha a vantagem da beleza física. E, só às portas da morte, a mulher que sempre amou, Roxane, se dá conta do terrível equívoco. Romantismo folhetinesco? Certamente.

Há quem não suporte traições e raros os que as não cometem. Mas, e a hipocrisia?!

FM

 

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Proponho, agora, contar-vos uma história, com um misto de fábula e metáfora. Como persistem confusões em alguns termos, voltamos a insistir na sua distinção. “Marialva”:…o direito de usar e abusar, pura e simplesmente. O machismo, fundado na fidelidade da esposa e na soberania do pater-familia, tem um dicionário muito próprio (J. Cardoso Pires)

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Por sua vez, os “libertinos” sempre se realizaram como amantes e batalhadores de golpe matemático de palavra medida, poetas de régua e esquadro. (J. Cardoso Pires)

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O esplendor do corpo de uma mulher que se pode entregar por paixão, por interesse ou…por hábito, e que pode representar o papel do orgasmo para acabar a comédia de modo gratificante para o parceiro

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As lágrimas sempre foram, sobretudo nas mulheres, um meio fácil de ultrapassar momentos difíceis. Mesmo que a razão diga o contrário, é difícil ignorar um rosto lindo inundado de pranto…

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Anny Hall: uma das obras-primas de Woody Allen. O seu ar desengonçado, meio chaplinesco, o seu discurso cheio de referencias psicanalíticas, as referencias à origem judia, a Groucho Marx, o seu amor a Nova York (e o ódio à Califórnia/Hollywood) fazem-no um dos autores de cinema que retrata com mais verdade as contradições emocionais urbanas, os affaires, os enganos, os adultérios, os sentimentos de culpa.

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Pois, das deslealdades chegamos às traições…Também tu, Brutus?! tartamudeou Julio César, antes de cair assassinado à porta do Senado. Podemos confiar em alguém? Creio que sim, mas cada vez menos. A hipocrisia e a traição espreitam.

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Lembram-se das “Cenas da Vida Conjugal ” do Bergman? Os seus personagens pouco tinham a ver com este enredo. Os actuais não eram um casal perfeito, nem tão-pouco ele teria arranjado uma “amante” (que se soubesse): ele mais velho, outra cultura; ela linda, assediada, como de prever. Ele hesita em viverem juntos. No entanto, não a quer perder, por vezes sente-se perdido em como conciliar as coisas. Viver com outra pessoa não é fácil, disso tinha ele bastante experiência

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Muitas vezes pareceu que o infinito estava perto. À distancia duma palavra, dum gesto, duma intenção concretizada.  Abrir o espírito para outra dimensão, para outros horizontes…ler, aprender…e achou sinceramente que o sonho era possível.

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Mas a indecisão hamletiana: “ser ou não ser” (resulta ou não resulta, é possível ou não?)…, foi adiando o que precisava ser feito.

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E se as tartarugas andam devagar demais, quando menos esperam têm uma surpresa (e não a teriam, mesmo que tivessem feito tudo como deviam?, afinal, aquilo até já tivera antecedentes)…Esta situação duraria há quanto tempo?

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Porém, o Senhor de Salinas, que dança admiravelmente com a mulher mais atraente do baile e noiva de seu sobrinho, perante a admiração de todos…

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…ao ver-se ao espelho, depois daquela cena de sedução conclui que afinal, não estava velho demais! (L. Visconti)

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O que esconderá o sorriso de Gioconda? Tantas teorias e provavelmente esse mistério é o seu maior encanto. Atrás dele não haverá perversidade? Quantos punhais atrás daqueles olhos doces? Se ela saísse da tela de Leonardo e se transformasse num ser humano não estaria a pensar em outro quando fazia amor contigo? O que sabemos do não-dito, mesmo que muito seja dito? Que imaginamos mais dela? Inteligente? Talvez, não. Mas esperta, muito esperta, com a habilidade de conduzir a sua vida sempre por onde lhe for mais conveniente. É uma pessoa em quem não se pode confiar. Falsa e impiedosa. Mesmo que fale de Deus, a piedade não existe. É uma sobrevivente.

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Segundo a mitologia grega, Pigmaleão era um escultor e rei de Chipre que se apaixonou por uma estátua que esculpira ao tentar reproduzir a mulher ideal. A deusa Afrodite, apiedando-se dele e atendendo a um seu pedido, não encontrando na ilha uma mulher que chegasse aos pés da que Pigmaleão esculpira, em beleza e pudor, transformou a estátua numa mulher de carne e osso chamada Galatéia, com quem Pigmaleão se casou.

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Mas estátuas são estátuas e pessoas são pessoas com suas grandezas e misérias.

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Moral da história: não queiras modificar o que não pode ser modificado, nem desperdices o teu tempo com quem não o merece.

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“Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz…” (Álvaro de Campos/Fernando Pessoa)

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E uma metáfora para terminar: Aliás, poderia chamar-se “O enigma do jardineiro”

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É bem sabido haver árvores que mantêm as folhas todo o ano, seja Verão ou Inverno, haja tempestade ou não. São árvores perenes. Como algumas pessoas – constantes, solidárias, nos bons e maus momentos.

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Como há outras árvores que, quando se aproxima o Outono, começam a amarelecer e a perder as folhas. Também, como pessoas que, quando as situações se tornam difíceis, mesmo por razões alheias, tratam de se afastar ou fazer coisas feias. São caducas.

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Mesmo nas flores mais bonitas há umas que precisam de mais cuidados: umas têm espinhos

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Outras precisam de ser criadas em estufas

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Ao jardineiro exige-se-lhe competência, devoção, interesse. E se ele tiver deixado de os ter? Pouco provável. Ter-lhe-á acontecido alguma coisa que o impeça? Uma doença, uma preocupação profunda, um outro jardim mais viçoso e ter perfidamente preparado a sua saída? Como saber?

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Mas dele até se sabiam histórias de grande desapego e coragem, como a de se arriscar sózinho pela noite dentro num bosque cerrado para procurar uma criança que desaparecera, onde mais ninguém quisera arriscar-se a saír naquelas condições e ele, perante a aflição da mãe, que não conhecia de lado algum fora e conseguira resgatar a criança com vida.

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Deixando o jardineiro. Ele é um romântico à moda do Casablanca ou ela é uma mulher no mínimo egoísta e interesseira ou nem uma coisa nem outra? Ou ele será capaz de ser mesmo um Tartufo?

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Será ela alguém a quem a vida tornara hábil em manipular os sentimentos e as fraquezas dos outros, homens ou mulheres, adaptando-se às circunstâncias, camaleoa no que melhor servisse os seus interesses, capaz de usar uma cara como quem usa uma máscara, deitando-a fora e substituindo-a sempre que preciso?

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E ele um hipócrita, um dissimulador? Ter engendrado um plano meio maquiavélico e depois armar-se em vítima…

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Poderia ser uma espécie de Padre Amaro, que de ingénuo sacerdote da paróquia de Leiria, passa à postura de cínico, torna-se amante de Amélia, faz-lhe um filho e adopta a atitude hipócrita do clero. Para sua tranquilidade, Amélia morre de parto e o mesmo acaba por suceder à criança. Nada melhor que defender as aparências. Vícios privados, públicas virtudes

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De qualquer modo, seja ele quem for ou quem acharem que é – cínico, hipócrita, safado ou generoso, hesitante, sincero: “Never play it again, Sam!”

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Porquê este filme? Passando para outra dimensão, o papel desempenhado por Joaquim d’Almeida, representa a lealdade a um grupo, levada a um absurdo de violência que abafa todas as pulsões afectivas. No final, a lealdade é traída e origina uma tragédia que ele não consegue evitar. Durante a guerra em Moçambique, ao ver-se confrontado com a traição dum dos 5 membros do seu “grupo de combate”, que se passara para o outro lado, abate-o a sangue frio e provoca a chacina de todos os habitantes da aldeia onde aquele se abrigara. Uma chacina tipo Wiriamu.

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Depois da guerra acabada, esse grupo de ex-comandos reunia-se regularmente e ele sempre evitou que a traição do camarada fosse conhecida, para que a coesão entre eles se não desfizesse. Agora, perante uma nova deslealdade de mais um do grupo, entendeu que só lhe restava uma saída. Numa praia deserta segura num pauzinho, atira-o para longe para afugentar um cão e apertando uma granada contra o peito, retira-lhe a cavilha. Há pessoas que não suportam as falsidades ou traições, por mais duras ou violentas ou cruéis que sejam. THE END.