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O Tejo, as fragatas e o meu avô

Desde Vila Velha de Ródão, o Tejo corre em terreno português. À medida que se aproxima da foz, o seu trajecto faz-se em terreno cada vez mais plano. A Lezíria é uma planície mítica. Em Santarém, nas Portas do Sol, ainda se desenham margens altas. Depois, aqui e ali, aparecem pequenas ilhas de areia e no estuário recortam-se canais, afunda-se o Mar da Palha. E vem a Ponte Vasco da Gama, na sua beleza suave, a passar sobre a Reserva Natural; e, finalmente, a imponência da estrutura metálica da outra ponte, com o Cristo-Rei adiante.

Quando eu era menino, ainda não havia estas pontes. Atravessava-se o Tejo de cacilheiro e era uma aventura. Para a Costa da Caparica apanhava-se uma camioneta em Cacilhas, onde as bagagens dos passageiros eram amarradas no tombadilho. Era uma excursão laboriosa. Mas ainda se viam barcos à vela que faziam fretes de carga. Hoje, desses navios existe uma ou outra carcaça e os raros que perduram, foram recuperados para fins turísticos.

Do elenco do estuário do Tejo fazem parte os barcos, os estaleiros, as secas de bacalhau, como pescadores, marinheiros, camponeses, carpinteiros e campinos. Pela mão do meu avô tive o primeiro contacto com eles. Diz-se que até aos 5 anos tudo se decide. Pela parte que me toca, a primeira abordagem foi a descoberta de um mundo que não deixou de me fascinar.

É curioso como existem tantos escritores que falaram do Douro e, comparativamente, sobre o Tejo, os textos são escassos. E, como nos mostram os romances de Alves Redol, as dificuldades, os conflitos e, o heroísmo como a cobardia, são os mesmos, só a geografia é diferente. No Ribatejo, as cheias transformavam o rio num enorme lago que arrastava barracas, gado morto, os pobres pertences daquela gente, escorada no seu desespero e firmeza. Hoje, as cheias estão domesticadas pelas barragens, mas o peixe escasseia.

Falo-vos, pois, do Tejo da minha infância e de outras experiências que a vida me foi trazendo. As leituras apenas encorparam as memórias e ajudaram a esclarecer as dúvidas.

Por altura de Salvaterra de Magos pesquei tainhas e lembro-me de como ao comê-las fritas me ocorria o pequeno combate que travavam e da sua astúcia em debicar o isco e ignorar o anzol. Cada peixe tinha uma história. E como passeávamos pelo rio e parávamos em qualquer ilhota de areia que a vazante descobrira, para um banho de sol.

E de como ao deambular pela zona ribeirinha da margem Sul à procura de vestígios dos barcos tradicionais, lembrar-me que Vasco e Paulo da Gama eram naturais do Seixal, como todos aquelas terras tinham antes pertencido a D. Nuno Álvares Pereira, e como estas figuras estão secundarizadas pela toponímia político-ideológica. Se nos descobrimentos as naus partiram de Belém, foi no estuário que elas foram construídas e abastecidas. O Tejo foi a rampa de lançamento das caravelas.

Da grandeza antiga talvez o sinal mais evidente seja a fragata D. Fernando II e Glória, o último navio à vela a fazer a carreira da Índia, e agora, depois de muitas vicissitudes e serventias, içado para visitas no cais de Cacilhas.

Há anos o Expresso publicou crónicas assinadas pelo Luis de Sttau Monteiro. Uma delas referia-se a um café na Calçada da Estrela, chamado “Brilhante” e que hoje ostenta o pouco recomendável nome de Bibi. Era um local que serviu de tertúlia a muita gente, que presumo interessante. Lembro-me de se descerem 3 ou 4 degraus e de ser um espaço um tanto exíguo. Aos 5 anos talvez eu comesse um Bolo de Arroz. Mais abaixo, na Calçada, ficava o “Parlamento” e nas traseiras, a casa de Salazar. O meu avô era um dos clientes habituais e morava a uns 100m, numa perpendicular à Calçada. Não faço a menor ideia do que conversariam, mas sei que ele me contava histórias, das mais fantásticas que ouvi na infância. Talvez de barcos de grandes velas enfunadas pelo voo das gaivotas, talvez do peixe que apanhava ao corico não o sável mas um verdadeiro espadarte imigrante desiludido do oceano; mas falava seguramente do rio,  das margens do sonho ao sabor das marés do acaso.

FM

 

Foi a 30 de Dezembro de 1951, a inauguração da ponte sobre o Tejo, em Vila Franca de Xira (VFX). Com pompa e circunstância, o Presidente Craveiro Lopes e Salazar (1º Ministro) foram os oficiantes. A ponte baptizada “Marechal Carmona”.

Este último havia morrido meses antes e a distinção representava o reconhecimento do regime, que sempre haveria de escolher, para a Presidência, militares considerados cordatos e decorativos.

Craveiro Lopes deposita uma coroa de flores na cerimónia fúnebre de Óscar Carmona

A nova ponte respondia à necessidade de transporte de pessoas e mercadorias entre as duas margens do Tejo, que, à época, apenas se fazia por barco. Sal, cortiça, cereais, vinho, produtos hortícolas eram assim transportados em todo o estuário do rio. Para a construção da ponte foi necessário abrir estradas, naquilo que hoje constitui a EN 10, e preparar novas docas para embarque e desembarque dos materiais.

A construção da ponte de VFX acelerou o declínio do transporte fluvial no Tejo e liquidou a navegação à vela.

Em fins de Dezembro de 1951, fazia um tempo quase primaveril, a ponte foi inaugurada sob um sol luminoso num céu sem nuvens”…

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…”O novo Presidente da República, o Primeiro Ministro, o Cardeal Patriarca e a maioria do Governo foram recebidos por campinos a cavalo, desbarretados, os ferros das casas agrícolas bem areados brilhando nos coletes encarnados,”…

…”precedidos pelos lavradores montando ginetes ajaezados à andaluza ou à portuguesa, e pelas forças vivas do Concelho tendo à frente o presidente Arnaldo Moreira, os Lencastre, ainda enlutados pelo falecimento da rainha D. Amélia, os dirigentes da União Nacional e os das colectividades da região, o padre Carlos, os legionários, os meninos da Mocidade, os bombeiros, a banda da Filarmónica União e Progresso, todos de estandartes ao vento, e, diga-se em abono da verdade, muito povo” in Café Central/Álvaro Guerra.

O meu avô Fernando morrera de repente meses antes da inauguração da ponte. E, foi assim poupado à ruína anunciada do seu negócio de transporte fluvial. Do que me lembro, gostava de barcos. Assisti às reparações, nos estaleiros da Amora, da “Moreno”, a sua última fragata. Brinquei com bocados de madeira entre os carris por onde os barcos eram içados para as reparações no areal. E lembro-me vagamente dos estaleiros e de calafates, carpinteiros, arrais, mestres… Sempre barcos, o Tejo, até ao Rossio ao Sul do Tejo, onde o meu avô fora criado.

Como me lembro, muito criança, das Festas do Barrete Verde e da largada de toiros…

As fragatas, o estuário do Tejo e a sua gente estiveram, assim, sempre presentes no meu imaginário. Durante anos conservei uma miniatura de fragata com cerca de meio metro de comprimento, oferecida pelo meu avô, que ele próprio construira com um canivete. Linda, na sua profusão de cores, a boiar na banheira…

Até meados do séc. passado, era por via marítima que se fazia o transporte de pessoas e mercadorias no estuário do Tejo. Na época dos descobrimentos, as próprias caravelas eram abastecidas por barco.

Vista do Barreiro na primeira metade do século passado. Os cronistas referem a profusão de velas que se observava no rio.

A importância dos estaleiros, nomeadamente no Seixal, foi decisiva. A armada que fez a viagem à Índia foi construída nesses estaleiros, sob a supervisão de Paulo da Gama, irmão de Vasco.

Estaleiros da Amora

 

As embarcações do Tejo tinham formas, dimensões e cores muito variadas, de acordo com as funções a que se destinavam, a navegabilidade dos percursos que utilizavam e o gosto dos construtores.

Fragatas, varinos, faluas, muletas, barcos dos moinhos, botes, saveiros, canoas, caíques, são alguns dos barcos tradicionais, uns utilizados em transporte, outros na pesca.

A fragata é uma embarcação de porte bojudo e pesado, uma vela içada junto ao mastro com acentuada inclinação para a popa. Em períodos de calmaria, a fragata era puxada a remos por um pequeno bote que habitualmente levava a reboque. Deslocava de 10 a 100 toneladas, logo as suas dimensões eram variáveis. As poucas que ainda existem foram recuperadas para fins turísticos, graças à iniciativa das autarquias.

Carcaça de uma fragata encalhada no Seixal

Mouchão “Na rota contraditória das suas águas, o Tejo foi depondo e levando, levando e repondo areias junto do valado real da Lezíria Grande. Areias e terras doutras margens por onde passa. Quando o Tejo passa, algo acontece sempre, porque um rio tem as suas glórias e os seus dramas. Como os homens. Um rio vive, respira, trabalha, constrói e destrói. Também os homens. Mas os homens amam e apaixonam-se. Por belas coisas, às vezes; por coisas mesquinhas, outras tantas. A paixão é o tudo e o nada dos homens. Odienta ou amorosa, a paixão empolga-o, porque nem só o amor sublima o homem. Também na luta feroz ele se ultrapassa. A sobrevivência, por exemplo, é sempre uma luta feroz, mesmo em silêncio. Ou será ainda maior quando vive no silêncio…”

…”Um rio tem as suas glórias e os seus dramas, mas não se apaixona. 0 Tejo não pensa — age. Age ao sabor das circunstâncias. Age e constrói; age e destrói. Como o homem. Mas o homem pensa e conhece a dúvida.” in Avieiros/Alves Redol

O estuário do Tejo pode ser dividido em quatro zonas distintas: a zona mais a montante estende-se desde VFX até à linha de Alcochete/Sacavém, caracterizada por um sistema de mouchões, esteiros e grandes espraiados de maré;

Vista do Mar da Palha em Alcochete

Alcochete

Segue-se-lhe o Mar da Palha, que se estende até ao Cais do Sodré, mais profunda que a anterior, e constitui uma espécie de mar interior onde desaguam alguns rios e ribeiras. É nele que se fazem a maioria das travessias por barco entre as duas margens.

Cacilhas. A terceira zona do estuário tem a forma de um canal com uma profundidade que, em alguns pontos, chega a atingir perto de 40 metros. Nas suas margens situam-se Lisboa e Almada;

por fim, o estuário gradualmente dá lugar às águas marinhas. É a zona terminal que pode ser delimitada até à linha Bugio/S.Julião.

Lisboa vista de Cacilhas

A lezíria corresponde a antigas áreas de sapal que foram isoladas das marés e das cheias, através de um sistema de taludes e comportas. Os seus terrenos agrícolas são recortados por uma vasta rede de canais – as valas. Estas recolhem as águas, em excesso no Inverno, escoando-as pelas comportas para o estuário. No período de escassez, distribuem a água para rega, captada a montante no troço do rio onde as águas já são doces.

Os solos da Lezíria são pesados e pobres, de lavoura difícil. No Verão, gretam e ficam tão duros que as máquinas não os conseguem trabalhar. Após as primeiras chuvas, começam a encharcar devido à pouca permeabilidade da argila. As suas limitações agrícolas conduziram a uma utilização orientada para a produção de gado (touros e cavalos).

Os ambientes ecológicos encontrados no Estuário e, nomeadamente, na sua Reserva, são variados. Incluem uma zona permanentemente submersa, que, na maré vazia, funciona como local de refúgio e alimentação de pequenos peixes em crescimento e também de alimentação aves aquáticas, como as garças. A zona de maior profundidade é utilizada por peixes que entram no estuário para se alimentar.

O sapal é o grande produtor de matéria orgânica vegetal do estuário. Entre as espécies de animais de pequeno porte aqui existentes, relevo para as espécies protegidas, observdas com regularidade. Mais a montante, onde as águas são quase doces, o caniço domina a vegetação.

Sapal

Salinas do Samouco: as salinas resultam da transformação de antigas áreas de sapal, em tanques com diferentes alturas de água, concebidos para a obtenção de sal. A variedade de dimensões proporciona grande disponibilidade de alimento (peixes, camarões, pequenos crustáceos, larvas de insectos, etc.) para várias espécies de aves. Em todo o ano se podem observar espécies protegidas, funcionando no período estival como local privilegiado de nidificação.

Cais palafítico do Samouco com a ponte Vasco da Gama em fundo. Estes cais são construídos em estacas de madeira sobre águas pouco profundas.

Alcochete

A seca natural, após a salga, é um dos mais primitivos processos de preservação dos alimentos. Na região do Tejo, as secas do bacalhau estavam situadas próximo do Barreiro e Seixal, ou em Alcochete. A secagem natural envolve procedimentos simples e rotineiros, mas muito dependentes das condições climáticas. O peixe era exposto ao ar, depositado sobre o solo pedregoso ou sobre estendais de fio ou arame ou estacaria de madeira. Era levantado quando a temperatura era mais elevada.

Seca do bacalhau, Amora – Entre o levantar e o estender, os peixes eram empilhados, repetindo-se o procedimento tantas vezes quanto precisas até se obter o grau de cura pretendido. Nos tempos da frota pesqueira nacional, a fazer safras de bacalhau que duravam de cinco a seis meses, os navios chegavam aos respetivos portos e os peixes eram descarregados para as instalações de secagem. E, aí, se iniciava o processo descrito. Hoje, embora perdurem ruínas dessa época, é na região de Aveiro que, principalmente, se processa a comercialização do bacalhau.

Alhos Vedros – Foram construídos moinhos em quase todos os estuários dos rios portugueses, mas a região do Seixal, constituída por terrenos baixos e alagados, facilitava a sua edificação. Junto dos moinhos existiam docas, onde atracavam barcos que traziam farinhas e escoavam os produtos da região. Nos moinhos era preparada farinha de peixe e adubos e descascava-se o arroz.

O Moinho de Maré de Corroios, foi construído em 1403, por ordem de D. Nuno Álvares Pereira, proprietário de quase todos os terrenos banhados pelo braço do rio Tejo que entra no Seixal. O objetivo era aproveitar o fluxo e refluxo das marés para a geração de energia motriz. Muito danificado pelo terramoto de 1755, foi adquirido pela Câmara Municipal do Seixal (1980), que o restaurou.

VFX

No início do século XX, a diminuição dos cardumes de sardinha fez sair os pescadores da Praia da Vieira, no concelho da Marinha Grande. A abundância de pesca no Tejo terá atraído muitos deles. Com o decorrer do tempo, esses pescadores, depois denominados avieiros, foram-se fixando em diferentes locais das margens do Tejo. Consoante a época, dedicavam-se à pesca ou vendiam melões e melancias.

À noite, a pesca era feita com as artes mais pequenas, mas nas companhas do sável, era à rede. Gente pobre, verdadeiros ciganos do rio, trabalhando até à exaustão, homens e mulheres, à procura do peixe que ia escasseando…Foi Alves Redol quem melhor no-los revelou.

Salvaterra de Magos “A meio da noite, o Tejo parecia aceso com o lume dos archotes. De pé, no bico da proa, os homens empunhavam os lumaréus para descobrirem as redes, enquanto as companheiras continuavam aos remos, atentas às ordens que eles lhes davam. Tinham antes passado pelo sono, logo a seguir à ceia; depois não havia tempo para as mulheres descansarem, se a sorte não os amadrastasse, porque a venda não esperava. Uma légua ou duas nas pernas era conta certa para todas elas.” in Os avieiros/Alves Redol.

Gaibéus é a designação atribuída aos trabalhadores rurais do Ribatejo ou da Beira Baixa que vão trabalhar na Lezíria durante as mondas. Deslocados, portanto. E “alugados”. Com aquele título, Alves Redol publicou em 1939 um romance, que retrata “um povo resignado que luta afincadamente durante o tempo quente, antes da chegada do Inverno, em condições extremas para fazer render os poucos cobres que lhes pagam por tamanha dureza…” /”…O sol fora de trovoada, sufocando os ceifeiros, como se trabalhassem na câmara de um alto forno, mas os trovões não acordaram o silêncio da Lezíria…”/ “…Eles não sabem se vem chuva, mas sabem que a malária, pelo menos, não falta. É tributo sagrado a pagar todos os anos à Lezíria. Quando pegam nas foices, têm de contar com as tremuras daquele frio nascido dentro deles e que os sacode, como nordeste a ramos de salgueiro….”

“…Agora o sol já abalou e a chuva ainda não veio. A ceia é menos amarga que o almoço e o jantar – a malta ganhara um dia inteiro sem descontos. Aquela certeza empresta-lhes coragem. /Não há ordem do patrão para armar «brincadeira» e os ceifeiros invadem o barracão, desenrolando as esteiras, onde estendem os corpos amolentados pela fadiga. Se o consentimento viesse, ainda lhe dariam um jeito, que a dança sempre esperta energias e adormece pensamentos. /Alguns a preferem ao vinho – mas o vinho também não entra naquela empossa. Mesmo se tirassem à tripa, ia de mal aquele que usasse da pinga. O patrão quer os alugados leves de mão e direitos de cabeça.” in Gaibéus/Alves Redol

Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, é outro romance neorrealista, com o Tejo em fundo. Denuncia as desumanas condições de vida de crianças nas margens dos esteiros, em Alhandra, obrigadas a trabalhar nos telhais para sobreviver. Retrata os “filhos dos homens que nunca foram meninos”, na sua luta contra a opressão e a miséria.

A caldeirada à fragateiro, à ribatejano ou à pescador é um prato típico da região ribeirinha do Tejo com pequenas variantes na sua preparação. Fataça, tainha e enguias são peixes obrigatórios, embora por vezes lhes acrescentem saboga, barbo, safio ou tamboril. Os fragateiros cozinhavam-nas nos próprios barcos.

Ensopado de enguias, açorda de sável e fataça frita são outros pratos típicos da região.

O campino é um ícone do Ribatejo, ligado à condução de gado, em especial, touros. Altivo sobre o seu cavalo, vestido de colete encarnado, faixa vermelha na cintura, calça azul, meias brancas até ao joelho, sapato preto com esporas, jaqueta de barrete verde com orla e barra em vermelho, camisa branca e empunhando um bastão.

“O Ribatejo deve ser visto das Portas do Sol de Santarém, num dia de cheia, ou das bancadas duma praça de toiros, numa tarde de verão. Num dia de cheia, porque o Tejo hipertrofiado marca-lhe exactamente a extensão e os contornos que a geografia nunca encontrou; numa tarde de toiros, porque é no redondel que se precisa a sua íntima significação. “in Portugal/Miguel Torga

“As grandes searas da campina, embora desafiem as alentejanas, não lhes levam a palma. Mas o toiro que irrompe do curro, negro e luzidio, e o cavalo que o espera, nédio e nervoso entre as esporas do cavaleiro, esses não temem confronto e são o produto específico da terra ribatejana. Só nela o puro-sangue pode encontrar o seu húmus, a virgindade dum solo que um deus ainda visita e fecunda. Ele e o homem que o domina, não em luta desigual e traiçoeira, mas saltando-lhe para o lombo indomado ou recebendo-lhe a marrada impetuosa e cega no peito. Na articulação dos três lados do triângulo – campino, cavalo e toiro -, conjugam-se as últimas forças viris que restam a Portugal dos tempos livres da Criação, das eras selvagens e testiculares que a civilização castrou.” in Portugal/Miguel Torga

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Vila Velha de Ródão

Portas do sol (Santarém)

Vista do Tejo das Portas do Sol

Vista do Tejo (Abrantes)

Vista do Tejo (Abrantes)

Vista do Tejo (Santarém)

Vista do Tejo (Portas do Sol/Santarém)

Rossio ao Sul do Tejo

Valada

“Um voo desferido é uma gaivota, /não é o voo da imaginação;/ gritos não são agoiros, são a lota…/ Vá, não faças batota,/ Deixa ficar as coisas onde estão…”Alexandre O’Neill

“Não, Tejo, não és tu que em mim te vês, – sou eu que em ti me vejo! ” Alexandre O’Neill

Consultados: Fernando Chagas Duarte – A indústria do bacalhau no início do século XXI. http://www.aldraba.org.pt/PDF/A%20ind%C3%BAstria%20do%20bacalhau%20secXXI.pdf; Antonio Nabais – Barcos do Tejo, http://www.altotejo.org/acafa/docsN2/Barcos_do_Tejo.pdf; Instituto da Conservação da Natureza – Reserva Natural do estuário do Tejo http://www.icn.pt/TurismoNatureza_anexos/RNET.pdf; Ricardo Neves . Os salgados portugueses no séx. XX. Que perspectivas para as salinas portuguesas no séc.XXI?. http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7975.pdf

Agradecimentos a Carlos Ribeiro Gomes e Francisco Vaz Garcia

Veja os vídeos:

Eugénio e a arquitetura das palavras

Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas portugueses do séc. XX e também dos mais populares. Essa popularidade devê-la-á muito à inclusão de poemas seus nos livros escolares, mesmo que, no final da vida, tivesse renegado alguns deles.

Os temas da poesia de Eugénio são poucos – o êxtase e a exaltação do corpo amado – feitos em versos eróticos, luminosos, dos mais belos da poesia portuguesa -, mas também o envelhecimento gradual e a velhice.
Desde o princípio (As mãos e os frutos, 1948), a sua poesia exala um lirismo contido e uma tristeza serena feita melancolia, que se vai adensando com a idade, quando o corpo começa a ser um despojo de si próprio, sente a sua precariedade (e a intuição da vivência irrepetível), e só lhe resta a resignação (e o recurso à memória) – “Estou de passagem: Amo o efémero”
Foi um poeta de exigência formal obsessiva, que o levou a modificar os versos até ao fim da vida. Versos que nunca seriam definitivos, decantados à cata de uma vírgula indevida, uma redundância, uma dissonância, exaustivamente em processo de purificação, rumo à limpidez verbal. Os poemas curtos, sempre mais curtos, veículam uma musicalidade rara feita de rumores, de sons de paisagens, da água ancestral. “Poesia do corpo a que se chega mediante uma depuração contínua”, eis como a considerou José Saramago.
Com um léxico de palavras claras, solares, essenciais, erigiu cada poema, como se de um edifício se tratasse, temperado por talvez volúpia talvez desencanto. Edifícios sobre a dialética da vida: água/fogo, silêncio/voz, êxtase/deceção… Como explicou Eduardo Lourenço, as palavras representariam, para Eugénio, a plenitude do mundo.
A semântica em Eugénio é a decifração de metáforas como as estações do ano, a sede, cavalos, pastores, amoras, aves, rosas, rios, fontes…e sempre o regresso à mãe – figura nuclear, de quem pai quase não teve. É este o seu material poético. O fulgor verbal e a emoção que os poemas suscitam, decorrem principalmente da conjugação inovadora das palavras, traduzindo dimensões distintas do tipo concreto/abstrato, objetivo/subjetivo. Já nos títulos dos livros esta técnica é evidente. Exemplos: Limiar dos Pássaros, Vertentes do Olhar, Os Afluentes do Silêncio, Os Lugares do Lume, O Peso da Sombra, O Sal da Língua, Coração do Dia, Véspera da Água, Escrita da Terra, Ofício de Paciência, Os Sulcos da Sede… Como refere Arnaldo Saraiva, o título nunca é “prosaico” ou simplesmente denotativo: é trabalhado não só “com” os versos mas também “como” os versos.
O corpo, como objecto amado ou ele próprio ao dar-se conta do seu declínio, é, assim, o elemento central da poesia de Eugénio. “Poeta do corpo, da sua glória, de um paganismo adolescente. Poeta de sexualidade explícita e abusiva”, como o definiu Pedro Mexia. O modelo do humano: “um rapaz/ desses do Pasolini esplendidamente /nu, plantado na terra.”

Além de versos, Eugénio escreveu poesia em prosa, na qual aborda as suas memórias da infância rural, a descoberta da poesia e da sexualidade. Mas também faz considerações sobre música, outros poetas (como Pessoa ou Botto), pintura (Júlio Resende ou van Gogh). Traduziu Garcia Lorca, Jorge Luis Borges, entre muitos. Escreveu sobre cinema (“O Inocente/Intruso” de Visconti, p.ex.), sobre fotografia – e, como em relação à pintura, escultura ou arquitetura, serviu-se de imagens visuais para as descrever com palavras, as “suas” palavras (sobre um retrato de Gageiro disse “Ele é na sua transparência vegetal /o rosto limpo da manhã, o terreiro varrido pela luz /verde e ondulada do trigo, /a beleza concreta rente ao chão:/a infindável extensão da cal, /a lenta aproximação de um rio”)
Na prosa procurou resguardar-se de exposição íntima. Nos períodos de mudez poética dedicava-se à prosa. “A mim, a mudança de clave…permitiu-me uma respiração mais ampla, um ritmo mais próximo do falar materno…”.
Sabermos como as artes visuais e a música estão presentes na obra de Eugénio, leva-nos a associá-lo também à arquitetura de Oscar Niemeyer e Siza Vieira. No primeiro, as curvas assumem muitas vezes manifesta sensualidade. Com Álvaro Siza houve proximidade geográfica, criaram-se laços afetivos e reconheceram-se afinidades ideológicas e de personalidade. Dele, escreveu Eugénio: “A musical ordem do espaço, /a manifesta verdade da pedra, /a concreta beleza /do chão subindo os últimos degraus.” Seja-nos, então, permitido usar imagens de maquetes de edifícios, objetos, rascunhos, dos próprios edifícios, como ilustrações para poemas de Eugénio. A arquitetura-do-real feita em palavras de cristal como em cimento com acabamentos, rebocos e pinturas de maravilha.
A maioria dos livros de Eugénio, bem como a extensa obra ensaística existente sobre ele, não estão disponíveis no mercado. Apesar do propósito de reedições ter sido anunciado, é preciso que, de facto, elas se concretizem.
A seleção de poemas que aqui fica é uma amostra (como outra qualquer, subjetiva) duma voz singular, excecionalmente luminosa e despojada. Dum poeta que, como poucos, exprimiu também esse sentimento difuso tão português – a nostalgia.

FM

“O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem…(ilustração de Botelho)

“…Na verdade ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.” (ilustração de Siza)

“…Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho – e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma – é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado…(ilustração de Alberto Péssimo)

“O futuro do homem é o homem”, estamos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, cujas possibilidades estamos longe de conhecer, é o fruto de uma desfiguração – acção de uma cultura mais interressada em ocultar ao homem o seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa “cantar no suplício” é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. (Ilustração de Emerenciano)

“…Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.”

“São como um cristal, /as palavras. /Algumas, um punhal, /um incêndio.Outras, /orvalho apenas. //Secretas vêm, cheias de memória. /Inseguras navegam: /barcos ou beijos, /as águas estremecem. //Desamparadas, /inocentes, /leves. /Tecidas são de luz /e são a noite. /E mesmo pálidas /verdes paraísos lembram ainda. //Quem as escuta? Quem /as recolhe, assim, /cruéis, desfeitas, /nas suas conchas puras?”

“Toda a manhã procurei uma sílaba. /É pouca coisa, é certo: uma vogal, /uma consoante, quase nada. /Mas faz-me falta. Só eu sei /a falta que me faz. /Por isso a procurava com obstinação. /Só ela me podia defender /do frio de janeiro, /da estiagem do verão. Uma sílaba. /Uma única sílaba. /A salvação.”

“No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos /é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima, /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. /Ilumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /toda a música é minha” (Sede da Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil /Siza Vieira)

“É urgente o amor. /É urgente um barco no mar.//É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade /alguns lamentos,/ muitas espadas.//É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, /é urgente descobrir rosas e rios /e manhãs claras. //Cai o silêncio nos ombros e a luz /impura, até doer. /É urgente o amor, /é urgente permanecer.”

 “Sempre a água me cantou nas telhas./ Habito onde as suas bicas,/ as suas bocas jorram./ As palavras que no cântaro/ a noite recolhe e bebe/ com agrado/ sabem a terra por serem minhas./ Não sou daqui e não vos devo/ nada, ninguém/ poderá negar a evidência/ de ser chama ou água, /fluir em lugar de ser pedra./ Perdoai-me a transparência.” (Sempre a água)

“Um corpo. Um corpo vertical ou estendido é sempre uma chama: aquece e ilumina. Um corpo respira, abre-se ao sol, floresce na noite. Em silêncio, é pura veemência; quando fala, queixa-se de ser tão frágil e tão só. Mais raramente, diz uma palavra de alegria. Exalta-se: fatiga-se; exaspera-se. A sua voz é a da terra – dali parte, ali regressa. É breve a sua duração, muito breve – quase só o tempo de um suspiro. Mas é belo aquele esplendor. Não há quase nada mais belo. Da sua existência, deixa às vezes uns sinais. De inquietude; de plenitude. O mais efémero dos seres tem sede de eternidade, quero eu dizer: doutro corpo. Então balbucia, beija, ama, dá um subtil nome às coisas, e das dissonâncias da carne ergue-se à exacta medida do canto, ou de qualquer outra música. A luz chama-se fulguração. Toda a eternidade é isso – e não há outra.” (Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer, Aviles/Asturias, maqueta proyecto/Niemeyer)

“Foi no verão que a aprendeste, com dedos afeiçoados aos instrumentos da paciência, a entrar na noite. Medias então os dias com rigor de lábios, declinando o mel e a sua sabedoria. Sempre partilhaste a casa, meu perdulário, na confluência das águas e da sede. E enquanto aguardavas a violência do silêncio, passavam as aves.” (Niemeyer)

 “Levar-te à boca,/ beber a água/ mais funda do teu ser -// se a luz é tanta,/ como se pode morrer?”

“Tu já tinhas um nome, e eu não sei /se eras fonte ou brisa ou mar ou flor. /Nos meus versos chamar-te-ei amor.” (reprodução de Klimt)

Niemeyer

“Tudo me prende à terra onde me dei: /o rio subitamente adolescente, /a luz tropeçando nas esquinas, /as areias onde ardi impaciente //Tudo me prende do mesmo triste amor /que há em saber que a vida pouco dura, /e nela ponho a esperança e o calor /de uns dedos com restos de ternura. //Dizem que há outros céus e outras luas /e outros olhos densos de alegria, /mas eu sou destas casas, destas ruas, /deste amor a escorrer melancolia.”(reprodução de Munch)

Complexo Desportivo Ribera Serrallo, em Cornella de Llobregat, Barcelona (Siza Vieira)

“No mais fundo de ti, /eu sei que traí, mãe! //Tudo porque já não sou /o retrato adormecido /no fundo dos teus olhos! //Tudo porque tu ignoras /que há leitos onde o frio não se demora /e noites rumorosas de águas matinais! //Por isso, às vezes, as palavras que te digo /são duras, mãe, /e o nosso amor é infeliz. //Tudo porque perdi as rosas brancas /que apertava junto ao coração /no retrato da moldura! //Se soubesses como ainda amo as rosas, /talvez não enchesses as horas de pesadelos… //Mas tu esqueceste muita coisa! /Esqueceste que as minhas pernas cresceram, /que todo o meu corpo cresceu, /e até o meu coração /ficou enorme, mãe! (reprodução de Julio Resende)

…//Olha – queres ouvir-me? -, /às vezes ainda sou o menino /que adormeceu nos teus olhos; //ainda aperto contra o coração /rosas tão brancas /como as que tens na moldura; //ainda oiço a tua voz: /”Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal…” /Mas – tu sabes! – a noite é enorme /e todo o meu corpo cresceu… //Eu saí da moldura, /dei às aves os meus olhos a beber. //Não me esqueci de nada, mãe. /Guardo a tua voz dentro de mim. /E deixo-te as rosas…”

“Está desse lado do verão / onde manhã cedo/ passam barcos, cercada pela cal./  Das dunas desertas tem a perfeição,/ dos pombos o rumor,/ da luz a difícil transparência/ e o rigor.“(Cacela Velha)

“Não é o mar, não é o vento, é o sol/ que me dói da cintura aos sapatos. / Sol de fins de julho,/ ou de agosto a prumo: finas/ agulhas de aço./ É o sol destes dias, aceso/ na folhagem./ Bebendo a minha água./ Colado à minha pele./ É doutro território, doutro areal./ Tem outros ritmos, outros modos,/ outros vagares para roer/ a cal, morder-me os olhos./ Até quando cega canta ao arder.”

“vê como o verão/ subitamente/ se faz água no teu peito,/ e a noite se faz barco,/ e a minha mão marinheiro.”

“Escalar-te lábio a lábio, /percorrer-te: eis a cintura/o lume breve entre as nádegas/e o ventre, o peito, o dorso/descer aos flancos, enterrar//os olhos na pedra fresca/dos teus olhos, /entregar-me poro a poro/ao furor da tua boca,/esquecer a mão errante/na festa ou na fresta//aberta à doce penetração/das águas duras,/respirar como quem tropeça/no escuro, gritar/às portas da alegria,/da solidão.//porque é terrível/subir assim às hastes da loucura/do fogo descer à neve.//abandonar-me agora/nas ervas ao orvalho/a glande leve.”

“Fogem agora, os olhos; fogem /da luz latindo. /Estão doentes, ou velhos, coitados, /defendem-se do que mais amam. /Tenho tanto que lhes agradecer: /as nuvens, as areias, as gaivotas, /a cor pueril dos pêssegos, /o peito espreitando entre o linho /da camisa, a friorenta /claridade de abril, o silêncio branco sem costura, as pequenas /maçãs verdes de Cézanne, o mar. /Olhos onde a luz tinha morada,/agora inseguros, tropeçando /no próprio ar.” (reprodução de Cézanne)

“O meu país sabe às amoras bravas /no verão /Ninguém ignora que não é grande, /nem inteligente; nem elegante o meu país, /mas tem esta voz doce /de quem acorda cedo para cantar nas silvas. /Raramente falei do meu país, talvez /nem goste dele, mas quando um amigo /me traz amoras bravas /os seus muros parecem-me brancos, /reparo que também no meu país o céu é azul.”

Fotografia de Eduardo Gageiro

“Nem as cigarras nem os flancos /acesos das searas /nem a pensativa cor dos lírios /ou mesmo a bárbara /luz do sul têm agora /morada no seu coração; /como falcão ferido /a orelha não pára de sangrar; /sangra de amor do negro e tresloucado /e transbordante amor do mundo, /e desprevenido e magoado” (reprodução de Van Gogh)

“Amar-te assim desvelado /entre barro fresco e ardor. /Sorver o rumor das luzes /entre os teus lábios fendidos. //Deslizar pela vertente /da garganta, ser música /onde o silêncio aflui /e se concentra. //Irreprimível queimadura /ou vertigem desdobrada /beijo a beijo, /brancura dilacerada //Penetrar na doçura da areia /ou do lume, /na luz queimada /da pupila mais azul, //no oiro anoitecido /entre pétalas cerradas, /no alto e navegável /golfo do desejo, //onde o furor habita /crispado de agulhas, /onde faça sangrar /as tuas águas nuas.” (reprodução de klimt)

“Entre a folha branca e o gume do olhar /a boca envelhece //Sobre a palavraa noite aproxima-se da chama //Assim se morre dizias tu /Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura //Na porosa fronteira do silêncio /a mão ilumina a terra inacabada //Interminavelmente” (reprodução de Klimt)

“Os navios existem, e existe o teu rosto /encostado ao rosto dos navios. /Sem nenhum destino flutuam nas cidades, //partem no vento, regressam nos rios. //Na areia branca, onde o tempo começa, /uma criança passa de costas para o mar. /Anoitece. Não há dúvida, anoitece. /É preciso partir, é preciso ficar. //Os hospitais cobrem-se de cinza. /Ondas de sombra quebram nas esquinas. /Amo-te… E entram pela janela /as primeiras luzes das colinas. //As palavras que te envio são interditas /até, meu amor, pelo halo das searas; /se alguma regressasse, nem já reconhecia /o teu nome nas suas curvas claras. //Dói-me esta água, este ar que se respira, /dói-me esta solidão de pedra escura, /estas mãos nocturnas onde aperto /os meus dias quebrados na cintura. //E a noite cresce apaixonadamente. /Nas suas margens nuas, desoladas, /cada homem tem apenas para dar /um horizonte de cidades bombardeadas.” (reprodução de Klee)

“O outono /por assim dizer /pois era verão /forrado de agulhas /a cal /rumorosa /do sol dos cardos /sem outras mãos que lentas barcas /vai-se aproximando a água //a nudez do vidro/a luz /a prumo dos mastros //os prados matinais /os pés /verdes quase //o brilho /das magnólias /apertado nos dentes //uma espécie de tumulto /as unhas /tão fatigadas dos dedos //o bosque abre-se beijo a beijo /e é branco” (reprodução de Klee)

“Não canto porque sonho. /Canto porque és real. /Canto o teu olhar maduro, /O teu sorriso puro, /A tua graça animal. /Canto porque sou homem. /Se não cantasse seria /somente um bicho sadio /embriagado na alegria /da tua vinha sem vinha. /Canto porque o amor /apetece. /Porque o feno amadurece /nos teus braços deslumbrados. /Porque o meu corpo estremece /Por vê-los nus e suados.” (reprodução de Millares)

“Aprendo uma gramática de exílio, nas vertentes do silêncio. É uma aprendizagem que requer pernas rijas e mão segura, coisas de que já não me posso gabar, mas embora precárias, sempre as minhas mãos foram animais de paciência, e as pernas, essas ainda vão trepando pelos dias sem ajuda de ninguém. Sem o desembaraço de muitos, mas tirando partido dos variados acidentes da pedra, que conheço bem, lá vou pondo sílaba sobre sílaba. Do nascer ao pôr do sol.” (reprodução de Millares)

“No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos /é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima, /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. Iumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /toda a música é minha.”

Picasso

“Entre os teus lábios /é que a loucura acode, /desce à garganta, /invade a água. //No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. //Ilumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /Toda a música é minha.”

Julio Resende

“Não voltarei à fonte dos teus flancos /ao fogo espesso do verão /a escorrer infatigável /dos espelhos, não voltarei. //Não voltarei ao leito breve /onde quebrámos uma a uma /todas as frágeis /hastes do amor. //Eis o outono: cresce a prumo. /Anoitecidas águas /em febre em fúria em fogo /arrastam-me para o fundo.” (Gustav Vigeland)

“Morrer e não morrer sobre os teus rins/uma árvore de pássaros ardia/era o verão escuta os seus cavalos/à roda da cintura//O cálido esperma das palavras/no interior do cabelo derramado um sol de palha fresca a boca/ de que rio regressa?” (reprodução de Klimt)

“”Do que vês não sou o que pareço. /Se atentares nas vagas deste mar /de dunas e alma e mãos desatadas /boca desejo de ausente sentimento /e um rio que só renasce ao desaguar /bastam-te cegos os olhos em silencio /na miragem da sombra deste /avesso. /Do que reconheço sou o que mereço.”

“O teu rosto inclinado pelo vento; /a feroz brancura dos teus dentes; /as mãos, de certo modo, irresponsáveis, /e contudo sombrias, e contudo transparentes; //o triunfo cruel das tuas pernas, /colunas em repouso se anoitece; /o peito raso, claro, feito de água; /a boca sossegada onde apetece //navegar ou cantar, ou simplesmente ser /a cor dum fruto, o peso duma flor; /as palavras mordendo a solidão, /atravessadas de alegria e de terror, //são a grande razão, a única razão.”

“Surdo, subterrâneo rio de palavras /me corre lento pelo corpo todo; /amor sem margens onde a lua rompe /e nimba de luar o próprio lodo. //Correr do tempo ou só rumor do frio /onde o amor se perde e a razão de amar //— surdo, subterrâneo, impiedoso rio, /para onde vais, sem eu poder ficar?”

“As palavras que te envio são interditas//As palavras que te envio são interditas /até, meu amor, pelo halo das searas; /se alguma regressasse, nem já reconhecia //Dói-me esta água, este ar que se respira, /dói-me esta solidão de pedra escura, /estas mãos nocturnas onde aperto /os meus dias quebrados na cintura. //E a noite cresce apaixonadamente. /Nas suas margens nuas, desoladas, /cada homem tem apenas para dar /um horizonte de cidades bombardeadas.”

Niemeyer (Palácio da Alvorada/Brasilia)

“Quando a ternura /parece já do seu ofício fatigada, //e o sono, a mais incerta barca, inda demora, //quando azuis irrompem //os teus olhos //e procuram /nos meus navegação segura, //é que eu te falo das palavras /desamparadas e desertas, //pelo silêncio fascinadas. ” (esboço de Niemeyer)

“Húmido de beijos e de lágrimas, /ardor da terra com sabor a mar, /o teu corpo perdia-se no meu.//(Vontade de ser barco ou de cantar.)” (Esboço de Niemeyer)

Niemeyer

“Devias estar aqui rente aos meus lábios /para dividir contigo esta amargura /dos meus dias partidos um a um //- Eu vi a terra limpa no teu rosto, /Só no teu rosto e nunca em mais nenhum” (esboço de Niemeyer)

Museu de Arte Contemporânea do Porto (Fundação Serralves)/Siza Vieira.

“Como se houvesse uma tempestade /escurecendo os teus cabelos, /ou, se preferes, minha boca nos teus olhos /carregada de flor e dos teus dedos; //como se houvesse uma criança cega /aos tropeções dentro de ti, /eu falei em neve – e tu calavas /a voz onde contigo me perdi. //Como se a noite se viesse e te levasse, /eu era só fome o que sentia; /Digo-te adeus, como se não voltasse ao país onde teu corpo principia. //Como se houvesse nuvens sobre nuvens e sobre as nuvens mar perfeito, /ou, se preferes, a tua boca clara /singrando largamente no meu peito.” (reprodução de Picasso)

Fundação Oscar Niemeyer em Niteroy/ Rio de Janeiro

“Começo a dar-me conta: a mão /que escreve os versos /envelheceu. Deixou de amar as areias /das dunas, as tardes de chuva /miúda, o orvalho matinal /dos cardos. Prefere agora as sílabas /da sua aflição. /Sempre trabalhou mais que sua irmã, /um pouco mimada, um pouco /preguiçosa, mais bonita. /A si coube sempre /a tarefa mais dura: semear, colher, /coser, esfregar. Mas também /acariciar, é certo. A exigência, /o rigor, acabaram por fatigá-la. /O fim não pode tardar: oxalá /tenha em conta a sua nobreza.”

“Enquanto /um calor mole nos tira a roupa /e mesmo nus sobre a cama /os corpos continuam a pedir água /em vez de outro corpo, /penso no tempo em que o suor /e a saliva e o odor e o esperma /faziam dessa agonia /a alegria /a que chamávamos amor.”

“Vêm da infância, essas mulheres. /Caladas, discretas, sem pressa /de existir. Esplêndidas mulheres essas, /penteadas com a risca ao meio, /as orelhas descobertas pelo cabelo /de sombra clara. /No seu coração o mundo /não era tão pequeno e o que faziam /não lhes parecia humilhação. /Sabiam envelhecer com a vagarosa /luz das crianças /e dos animais da casa. /A par da rosa.”

“Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos. Era no tempo em que o teu corpo era um aquário. Era no tempo em que os meus olhos eram os tais peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade: uns olhos como todos os outros. Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor…, já não se passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração. Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus”

“Escuta, escuta: tenho ainda /uma coisa a dizer. /Não é importante, eu sei, não vai /salvar o mundo, não mudará /a vida de ninguém – mas quem /é hoje capaz de salvar o mundo /ou apenas mudar o sentido /da vida de alguém? /Escuta-me, não te demoro. /É coisa pouca, como a chuvinha /que vem vindo devagar. /São três, quatro palavras, pouco /mais. Palavras que te quero confiar, /para que não se extinga o seu lume, /o seu lume breve.”

Casa de Álvaro Siza na Boa Nova “A musical ordem do espaço, /a manifesta verdade da pedra, /a concreta beleza /do chão subindo os últimos degraus, //a luminosa contenção da cal, /o muro compacto /e certo /contra toda a ostentação, /a refreada /e contínua e serena linha /abraçando o ritmo do ar, /a branca arquitectura /nua /até aos ossos. Por onde entrava o mar.”

Oscar Niemeyer (nascido no Rio de Janeiro em 1907) “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.”/”Não há nada mais importante que a mulher, o resto é bobagem. É ou não é?” (Citações de Oscar Niemeyer)

Álvaro Siza Vieira (nascido em Matosinhos em 1933): ““Sou um introvertido, como é que posso ser uma estrela? Uma estrela tem um desejo de extroversão. Eu pessoalmente não sou, humanamente não tenho o perfil psicológico de uma estrela, de maneira nenhuma. Passo despercebido em toda a parte. Agora, como a televisão me fez duas entrevistas, é que já não”. “…A arquitectura é uma coisa que engloba vida, espaço interior, contradições. Contextos diferentes dão edifícios diferentes. Embora eles não sejam tão diferentes como isso.”. Autor do mausoléu do poeta.

Eugénio de Andrade (1923-2005). Nasceu no Fundão, no seio de uma família de camponeses. A sua infância foi passada com a mãe, na aldeia natal. Mais tarde, viveu em Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, para continuar os estudos. Em 1947 entrou para a Inspecção Administrativa dos Serviços Médico-Sociais, em Lisboa. Em 1950 foi transferido para o Porto, onde fixou residência. Ao longo da vida, colaborou em numerosas revistas literárias como Cadernos de Poesia, Vértice, Seara Nova, Colóquio, Revista de Artes e Letras, O Tempo e o Modo e Cadernos de Literatura. Foram-lhe atribuídos numerosos prémios e distinções como o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores; o Prémio Extremadura de criação literária; o Prémio Celso Emilio Ferreiro, para autores ibéricos; Prémio Celso Emilio Ferreiro, na Galiza; homenagem no Carrefour des Littératures, em França; e o Prémio Camões. (fotografia de Gageiro).

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

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Douro: o mosto e o gosto (ou a vinha e a vida)

O Douro atravessa o noroeste da Península Ibérica, desde Duruelo de la Sierra, a mais de 2100 metros de altitude, até desaguar junto ao Porto. Com os seus 897 Km, depois do Tejo e do Ebro, o Douro é o terceiro maior rio ibérico. Cerca de 2/3 da sua extensão situa-se nas províncias espanholas de Soria, Burgos, Valladolid, Zamora e Salamanca.
Ainda do lado espanhol passa por numerosas cidades que atestam a sua importância histórica e cultural – Soria, “cidade dos poetas” que acolheu Antonio Machado, Tordesilhas onde foi assinado o Tratado que delimitava a pertença dos Descobrimentos Marítimos, Zamora capital do estilo românico e muitos locais ligados à gastronomia e à produção vinícola.
No seu trajecto o rio conformou espaços lindíssimos que deram origem a reservas de flora e fauna, como os Picos de Urbión, em plena Cordilheira Ibérica, os Arribes del Duero, o parque natural onde o rio abandona Castela. Em Portugal, passa-se outro tanto. Duero ou Douro, tanto faz.
Foi sobretudo a partir do século XVIII, quando os ingleses “descobriram” o vinho do Porto, que se iniciou a grande produção de vinha, no Douro português. Os barcos rabelos conduziam as pipas até aos armazéns de Gaia, mas há provas da existência de vinhedos desde os Romanos.
Moldar e conter as encostas do rio para a produção da vinha foi uma actividade hercúlea. Tiveram de arrancar-se arbustos, rasgar o xisto, e construir quilómetros de socalcos, com muros feitos de rocha moída, lodos e estrume.
A história do homem e das vinhas do Douro é feita de abastança e penúria, de largos proventos e de falências e pobreza. As relações entre produtores e exportadores em Gaia foram muitas vezes conflituosas. Os preços e o volume das pipas exportados sofreram grandes oscilações ao longo dos anos; as pragas de oídio, filoxera e míldio levaram à destruição das vinhas de numerosas quintas; por vezes a cupidez levou á mistura de mosto de outras proveniências que não o Douro ou à adição de produtos estranhos para dar cor ao vinho (baga de sabugueiro, por exemplo). Entre o regime proteccionista implantado pelo Marquês de Pombal (que delimitava a região produtora e regulava a produção e comércio dos vinhos, assegurando a sua proveniência) e o estabelecimento de mercado livre, acabou sempre por serem os próprios lavradores a exigirem um órgão que controlasse a produção e lhes garantisse o escoamento do vinho.
Mas a história dos homens do Douro não é só a dos proprietários, é a dos assalariados e pequenos lavradores. Os homens, desde há séculos, muitas vezes mal alimentados, debaixo dum clima extremo de noites muito frias de Inverno e de calor abrasador no Verão, ali abriram covas até um metro e meio para oxigenar o solo, construíram terraços e muros para impedir a erosão e conservar a água das chuvas. Os homens que adubavam, tratavam as vinhas, faziam as vindimas, transportavam os cachos e pisavam as uvas.

Independentemente das inovações tecnológicas, a produção do Vinho do Porto segue os mesmos passos. É no lagar ou em modernas cubas, que tudo começa. É breve a curtimenta (contacto do mosto com as películas das uvas de onde sairá boa parte do corpo, da cor e dos aromas). Segue-se a beneficiação (adição de aguardente vínica), que implica a separação final do mosto das películas, grainhas e engaços. Transporte para as caves de Vila Nova de Gaia. Aí, os lotes são separados consoante as suas características e potencial. Os lotes especiais são conservados em cascos de carvalho. Sofrem várias trasfegas, destinadas a “refrescá-lo” e a libertá-lo  das borras originais. É o longo processo de envelhecimento durante o qual são criados a partir das várias amostras, lotes com a mesma identidade. O resultado serão os Tawny e Colheita, os Ruby e LBV e os Vintage.
Hoje, não é só o Vinho do Porto, mas os de mesa da Região Demarcada, que têm fama em todo o mundo. Os enólogos têm conseguido vinhos, sobretudo tintos, que rivalizam com quaisquer outros vinhos europeus. O vinho traz o sol e o xisto – e a cor, aroma de frutos e flores, conforme as castas.
Percorrer as margens do Douro, contemplar as paisagens deslumbrantes (como Galafura, Casal de Loivos, S. Salvador do Mundo), mas que de modo quase ininterrupto se sucedem desde Miranda até à foz, impregnarmo-nos delas, sentir as suas diferenças – o terreno de granito com os seus pinheiros, giestas e urze e, na zona vinhateira, o xisto, a esteva e o alecrim. As cores, consoante a região – verde, castanho, terra queimada. As amendoeiras, os sobreiros, as oliveiras, quando nos afastamos. As paisagens são a epiderme da geografia, escreveu Manuel Carvalho. E observar os cumes do Marão, subir as encostas íngremes, visitar aldeias retiradas, ouvir os pequenos lavradores que restam, apreensivos quanto ao futuro, e maravilharmo-nos. A região vinhateira é uma paisagem cultural, classificada pela UNESCO como Património Mundial.

A linha-férrea nas margens do rio vive um declínio melancólico: presentemente, apenas o troço Porto/Pocinho está aberto à circulação. Mas as estradas melhoraram e o comboio histórico, quando disponível, com as suas carruagens centenárias, permite um regresso ao passado. Não é o Expresso do Oriente, mas uma espécie de Correio do Douro. A navegação fluvial, por seu lado, tem vindo a ser intensificada. Os cruzeiros são inesquecíveis. Os turistas acorrem.

Porém, o rio é mais: ao olhar para os edifícios das quintas ou para ruínas no Porto, ocorrem-nos romances ou filmes que tiveram como cenários estas paisagens ou como protagonistas gente do Douro. É o imaginário de cada um. A perspectiva hiper-romântica de Camilo, que em “Amor de Perdição” utilizou as margens do Douro como cenário das várias tragédias da novela, que, aliás, quase toda ela decorre na região; a escrita de Agustina, com um lado “torrencial, genial, por vezes assustador”, como escreveu Pedro Mexia; o olhar aristocrático de Manoel de Oliveira, o seu apego ao norte, donde é natural, desde o primordial “Douro Faina fluvial”; a elegância de Eça de Queiroz na sua incursão pela vida rural, como sucedeu em “A Cidade e as Serras” e “A ilustre Casa de Ramires”; Torga que regularmente revisitou as serras de Trás-os-Montes com as suas penedias, as suas antas, e que deve ter escrito as páginas mais eloquentes sobre a dureza da paisagem do Douro e sobre a tenacidade e perseverança do trabalhador rural; e, sempre, as reflexões de António Barreto acerca da necessidade de disciplina e rigor, indispensáveis à saúde da economia da região.

São perspectivas diferentes, claro, mas que permitem uma visão multi-dimensional do Douro – das famílias do século XIX com suas rivalidades e conflitos e dos fidalgos, magistrados, boémios e poetas. E do esforço solitário e corajoso dos homens que trabalham a terra, a sua vida. Pelo meio sempre a vinha, o gosto pelo mosto, seja qual for o seu destino.

FM

 

O rio Douro não teve cantores. Teve-os o Mondego e o Tejo também. Mas para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cacheiro da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira da neve que cobria os barrancos de Sabroso.

Douro/Espanha “…O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorgeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e à beira de água lavam os pés e os pecados. E, no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro…

“…Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à má-cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada…

“…Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante tê-lo-ia amado, e preferido; como preferiu os estaleiros incandescentes de Veneza e os túmulos abertos das arenas de Arles, para descrever o inferno. Por cá, são brandas as liras; com o aguilhão da fome, às vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias são raras, as musas são mimosas não ardentes” (Agustina Bessa-Luis in Fanny Owen)

Agustina Bessa-Luís nasceu em Amarante em 1922. Publicou mais de 50 obras. Entre vários prémios e testemunhos de reconhecimento internacional, o Prémio Camões em 2004. Vários dos seus romances foram já adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira, de quem é amiga: Fanny Owen (“Francisca”), Vale Abraão e As Terras do Risco (“O Convento”), para além de “Party”, cujos diálogos foram igualmente escritos pela escritora.

“…El Duero cruza el corazón de roble /de Iberia y de Castilla. /¡Oh, tierra triste y noble, /la de los altos llanos y yermos y roquedas, /de campos sin arados, regatos ni arboledas;/decrépitas ciudades, caminos sin mesones, /y atónitos palurdos sin danzas ni canciones /que aún van, abandonando el mortecino hogar, /como tus largos ríos, Castilla, hacia la mar!...” (Antonio Machado)

..”Porém havia nas margens do Douro uns nativos especiais que se alimentavam de bacalhau cozido com ovos à ceia, refeição com tradições da mesmice gastronómica. Às nove e meia, e à luz metálica dos gasómetros ou das velas em castiçais de dois braços, sentava-se à mesa o lavrador do Douro, homem no geral de génio ponderado e de trato soberbo. Tinha quatro filhas e dois rapazes um deles morgado, entroncado e bebedor; antes dos vinte anos ficava órfão e deixava a herança nos botequins da Régua, onde se jogava o monte com obstinação que, de não ser viciosa, seria espartana…”(AB-L)

Foi o Marquês de Pombal quem, em 1756, lançou as bases da constituição da Região Demarcada do Douro e de um sistema de regulação da produção e comércio dos seus vinhos, através do alvará régio de instituição da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Foi a primeira zona demarcada para a produção de vinho do mundo, tendo em conta os regulamentos, controlos e disciplina, como hoje estão estabelecidos.

Peso da Régua – “Acto visionário”, assim lhe chamou Antonio Barreto, que permitiu que só os vinhos ali produzidos pudessem ostentar designações de Douro e Porto. “A defesa de um produto implica o seu carácter e este só se garante se estiver definida a sua origem e as suas características”

Miranda – Na Região Demarcada do Douro, produzem-se os vinhos correspondentes às denominações de origem “Porto” e “Douro”, a qual abrange 250 mil hectares, dos quais 48 mil são ocupados por vinha. Um décimo dessa área, que engloba treze concelhos, foi classificado pela UNESCO como Património Mundial.

Contudo, a zona classificada é representativa da diversidade do Douro, uma vez que inclui espaço do Baixo Corgo, do Cima Corgo e do Douro Superior. Outros dois locais do Douro foram também considerados Património da Humanidade – o Vale do Côa e o velho burgo da cidade do Porto.

Os treze concelhos que fazem parte da zona do Alto Douro, distinguida pela UNESCO, são Alijó, Armamar, Carrazeda de Ansiães, Lamego, Mesão Frio, Peso da Régua, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, São João da Pesqueira, Tabuaço, Torre de Moncorvo, Vila Nova de Foz Côa e Vila Real, estendendo-se ao longo das encostas do rio Douro e dos seus afluentes, Varosa, Corgo, Távora, Torto e Pinhão.

A Região Demarcada estende-se de perto de Barqueiros, junto à Régua, a Barca de Alva, próximo de Espanha.

Alto Douro – É da conjugação das qualidades do solo, características do clima e trabalho do homem que resulta o vinho do Porto. Em Setembro, no momento da vindima, as uvas são transportadas pelos homens até modernos centros de vinificação ou até a antigos lagares, que aqui e ali ainda existem.

Actualmente, o processo produtivo concilia as técnicas mais sofisticadas com séculos de rigorosa tradição, em que a pisa e a maceração são totalmente mecanizados. Porém, ainda se podem encontrar locais onde a vinificação é realizada segundo a técnica ancestral.

O resultado final não é um Porto, mas vários Portos, com cores que vão do branco ao retinto e sabores variados. Antonio Barreto: Um produto “feito pelo homens. E refeito. E rei ventado”, Um produto que nasceu à custa da labuta “dos lavradores, dos Galegos, dos assalariados rurais, dos comerciantes, dos holandeses e dos ingleses”, de uma panóplia de gente tão vasta e diversa quanto o seu valor e reconhecimento: desde clientes que o beberam, técnicos e enólogos que o fizeram, políticos e autarcas, entre muitos e muitos outros que gastaram vidas a favor da conquista de dimensão do “néctar dos deuses”

A desertificação das freguesias ribeirinhas do Douro e o envelhecimento da população são problemas graves. Só nas últimas duas décadas, o Alto Douro Vinhateiro perdeu quinze por cento dos seus habitantes Para combater a falta de mão-de-obra, muitos proprietários rurais recorreram ao trabalho de imigrantes.

Alto Douro – Os Durienses moldaram, como se de artesãos se tratasse, a “paisagem natural (…) humana e feita pelos homens”. “Do rio domesticado às encostas em socalcos, das quintas aos armazéns, dos caminhos aos lagares, das oliveiras à amendoeiras, dos muros aos patamares e à vinha ao alto, tudo é feito pelo homem. Tudo, no Douro, é humano”. Embalados pela mudança, mas com consciência e respeito pelo valor legado, os homens, no Douro, souberam “aproveitar o melhor” que a Natureza lhes deu, ao ponto de serem “capazes de corrigir e transformar, sem destruir”. (Antonio Barreto)

Rio Douro em Miranda

Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar….

…”Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas; e, de entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebere que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sobre as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas...”(AB-L/Fanny Owen)

Vila Real

Amarante

A Régua em 1840 era um pouco Saint Louis do Missouri, só que com menos europeus. Havia ingleses, é certo; mas para cá da Mancha um inglês sofre uma rebaixa de cinquenta por cento. Para chegar onde quero chegar direi que em 1845, nos altos de Baião e num lugar chamado Santa Cruz do Douro, vivia um desses morgados bizarros, que cumprem o seu destino seduzindo uma costureira, casando com uma prima e endividando-se quase sem sair de casa – a comer e a administrar mal as terras. Mas José Augusto Pinto de Magalhães, o jovem proprietário da Quinta do Lodeiro, tinha uma particularidade mais ruinosa: fazia versos”

Em Novembro de 1849, Camilo estava na casa do Lodeiro e era hóspede de José Augusto. É uma época desmantelada, no Douro. As vinhas apresentavam-se de cabeleiras dispersas, a redra não se fez ainda. As folhas apodrecem e perdem o seu ruivo esplendor. Chove; e dos armazéns ouve-se o gemido da prensa que espreme os últimos bagaços. Nas réstias de sol aberto seca a grainha em cima de sacos tingidos de mosto. A terra barrenta pega-se às grossas botas de atanado, salpica as calças justas do morgado do Lodeiro que se apeia do seu cavalo à porta do salão” (Agustina Bessa-Luis in Fanny Owen)

Torre de Moncorvo

Francisca não é uma adaptação de Fanny Owen de Agustina Bessa-Luis. O filme foi construído sobre diálogos escritos por encomenda, mas como conta a escritora “Para escrever os diálogos tive que conhecer as circunstâncias que os inspirassem, e a história que os comporta. Assim nasceu o livro e o escrevi». Este facto exemplifica a cumplicidade entre Agustina e Oliveira.

O filme baseia-se em factos verídicos ocorridos depois da derrota dos miguelistas na Guerra Civil, que deixa os jovens fidalgos tradicionalistas entregues a “paixões Funestas”. Figuras centrais são Camilo Castelo Branco, escritor ainda pouco conhecido e pobre, José Augusto (poeta sem talento, decadente e triste, mas abastado), e Fanny Owen (filha dum antigo conselheiro militar de D. Pedro)

A acção decorre no Porto e no Douro. “-Quem é ele? /Não estremeceu quando Camilo disse, com precipitação: /-É um homem de temperamento funesto -Funesto porquê? /-Não tem alma /-O que é a alma? Uma borboleta também não tem alma, e ela sabe como ninguém tocar nas flores./…-A alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é…/-É um vício. A alma é um vício/-O quê? /Não me trate como uma ignorante. Pode se ser inocente sem se ser ignorante”

Camilo escreve a Francisca várias cartas, que mais tarde servirão para destruir a relação dela com o futuro marido, José Augusto. Estes morrerão de “amor”, pela tragédia do triângulo de que Camilo faz parte.”O que faz com que amemos alguém?”, pergunta José Augusto, no momento em que já não há nada mais a fazer. O que fazer, então? “Gerar um anjo na plenitude do martírio”, o que significa construir um amor eterno no meio de toda a adversidade do mundo…

S. João da Pesqueira -“Daí para diante é só esse vício (figurado por memória, elipses, sonhos) que Francisca persegue em José Augusto e ele nela. Mais uma vez, a união deles só pode dar-se no sono total, na morte inexplicável de Fanny. “Morreriam por não serem uma só pessoa” diz Agustina. Só nos sonhos se morre assim. / A propósito deles (sonhos) escreve Agustina – e filma Oliveira – citando Holderlin, que “o homem que sonha é um deus, o que pensa é um mendigo”. E ao morrer (com José Augusto, oniricamente, fora e dentro do plano) Fanny diz que a memória se lhe foi com a alma, ou seja, em termos dela, com o vício.” (J. Bénard da Costa / Muito lá de casa)

Que sabemos da aristocracia nortenha do final do séc. XIX, no rescaldo da derrota dos miguelistas e da guerrilha do Zé do Telhado? Como decorriam as relações entre filhos de oficiais ingleses (que tinham apoiado o General Saldanha e que por cá ficaram) e os jovens endinheirados, descendentes dos fidalgos que tinham participado nas forças sitiantes do Porto?

Como era o ambiente cultural, social e boémio no Porto da época: o teatro S. João ou o Príncipe Real, o café Águia d’Ouro e o Guichard (onde se recitava Lamartine ou Soares de Passos), as festas em casas de fidalgos abastados onde comparecia a melhor sociedade da época ou os jantares nos solares e nas quintas do Douro?

Pouco, sabemos pouco. Mas a câmara de Manoel de Oliveira transporta-nos a essa época. As figuras de fraque e chapéu alto nos admiráveis diálogos de Agustina vão discorrendo sobre a alma, a vida, a paixão, os sonhos, as contradições, as dúvidas, as obsessões. As referencias históricas estão lá. Os planos em Francisca são imóveis, mas, apesar disso, a acção decorre viva. Como em teatro, Oliveira filma quadros, submetidos ao texto, excessivo, definitivo. A cor acentua a melancolia e as palavras. Oliveira filma as palavras através dos rostos.

Alijó

Santa Cruz do Douro

Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro.”…(Vista da eira da Casa de Tormes)

.. “Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco carregado de pipas. Para além, outros socalcos, dum verde pálido de resedá, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul.” (Eça de Queiroz in A cidade e as serras)

Quinta da Romaneira

Camilo Castelo Branco (1825-1890)

Amor de perdição. É a história do amor proibido entre Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, a quem o ódio entre as famílias, irremediavelmente separa. A acção começa em Viseu. Simão estuda em Coimbra, é corajoso, defende ideais liberais. Nos breves encontros clandestinos, Simão e Teresa fazem planos de casamento. Mas o namoro é descoberto. Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, manda chamar de Castro Daire um sobrinho, Baltasar, a quem incentiva a cortejar a filha planeando um futuro enlace.

Castro Daire (Ponte do Cerveira) Porém, a recusa de Teresa enfurece o pai que decide mandá-la para um convento. Baltasar com dois criados monta uma emboscada a Simão, que está acompanhado por um ferrador João da Cruz e um arreeiro. João da Cruz tem uma dívida de gratidão para com o pai de Simão, magistrado de profissão, que o livrara da forca. No embate, Simão é ferido e passa uma temporada de recuperação na casa do ferreiro. É tratado por Mariana, sua filha, que silenciosamente se apaixona por Simão.

Simão tenta raptar Teresa. Agredido verbalmente por Baltasar, reage e, quando o rival avança, responde com um tiro de pistola. Neste momento, surge o ferrador que incita Simão a fugir. Este, recusa-se. Confessa tudo, sem alegar legítima defesa. O crime chega ao conhecimento da família Botelho. O pai é duro: espera que a lei se cumpra com rigor. Nega qualquer auxílio na cadeia e decide mudar com a família de Viseu, para que ninguém facilite a situação de Simão.

Na Cadeia da Relação no Porto, Simão recebe a visita de João da Cruz. Mariana vai servir a Simão. Uma decisão judicial permite-lhe que cumpra a sua pena na prisão de Vila Real, mas o preso recusa-se a aceitar tal mudança. Prefere a liberdade de poder ver o céu e sentir o vento no degredo.

Em princípio de Março de 1805, soube minha mãe, com grande prazer, que Simão fora removido para as cadeias da Relação do Porto, vencendo os grandes obstáculos que opuseram a essa mudança os queixosos, que eram Tadeu de Albuquerque e as irmãs do morto.”

Mas Teresa tenta convencê-lo a ficar e a esperança persiste: “Dez anos! dizia-lhe a enclausurada de Monchique – Em dez anos terá morrido meu pai e serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vais ao degredo, para sempre, te perdi, Simão, porque morrerás ou não acharás memória de mim, quando voltares”

Passam-se ainda alguns meses até que Simão embarca para a Índia. Mariana consegue um lugar a bordo. Seu pai fora, entretanto, assassinado. Simultaneamente, no convento, Teresa relê as cartas de Simão e pede que lhe sejam entregues. Às nove da manhã sobe para o mirante, de onde é possível assistir à partida dos navios.

Simão pede a Mariana que lhe mostre o convento. “- Onde é Monchique? – É acolá, senhor Simão – respondeu. indicando-lhe o mosteiro, que se debruça sobre a margem do Douro, em Miragaia. /Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto. Era Teresa.”

Quando viu, a dois a dois, entrarem, amarrados, no tombadilho, os condenados, Teresa teve um breve acidente, em que a já frouxa claridade dos olhos se lhe apagou, e as mãos conclusas pareciam querer aferrar a luz fugitiva. //Foi então que Simão Botelho a viu. E ao mesmo tempo atracou à nau um bote em que vinha a pobre de Viseu, chamando Simão. Foi ele ao portaló, e, estendendo o braço à mendiga, recebeu o pacotinho das suas cartas. Reconheceu ele que a primeira não era sua, pela lisura do papel, mas não a abriu. //Ouviu-se a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se à amurada da nau, com os olhos fitos no mirante. //Viu agitar-se um lenço, e ele respondeu com o seu àquele aceno. //Desceu a nau ao mar, e passou fronteira ao convento. ..”

…”Distintamente Simão viu um rosto e uns braços suspensos das reixas de ferro; mas não era de Teresa aquele rosto: seria antes um cadáver que subiu da claustra ao mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da sepultura. /- É Teresa? – perguntou Simão a Mariana. /É, senhor, é ela – disse num afogado gemido a generosa criatura, ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condenado iria breve no seguimento daquela por quem se perdera.”

Lá mesmo no mirante, Teresa morre. O capitão do navio promete a Simão que, caso algo lhe aconteça, reconduzirá Mariana a Portugal. “O capitão prosseguiu: – Quando em Miragaia me contaram a morte daquela senhora, pedi a uma pessoa relacionada no convento que me levasse a ouvir de alguma freira a triste história. Uma religiosa ma contou; mas eram mais os gemidos que as palavras. Soube que ela, quando descíamos na altura do Oiro, proferia em alta voz: – “Simão, adeus até à eternidade!” – E caiu nos braços duma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante, e a trouxeram meia-morta para baixo, ou morta, melhor direi, que nenhuma palavra mais lhe ouviram. Depois, contaram-me o que ela penara em dois anos e nove meses naquele mosteiro; o amor que ela lhe tinha, e as mil mortes que ali padeceu, de cada vez que a esperança lhe morria. Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é! – Por pouco tempo… – disse Simão, como se o dissesse a si próprio, ou própria imaginação estivesse dialogando consigo.”

Diálogo entre Simão e Mariana, quando a procura dissuadir a não o acompanhar para o degredo e onde explicita o afecto entre ambos “- Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte àquela desgraçada senhora? /- E dai? Quem lhe diz menos disso? / – Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade. /- Eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?! /- Nada me pediu, Mariana; mas obriga-me tanto, que me faz mais infeliz / o peso da obrigação. / Mariana não respondeu; chorou./ – E por que chora? – tornou Simão carinhosamente. /- Isso é ingratidão… e eu não mereço que me diga que o faço infeliz. /- Não me compreendeu… Sou infeliz por não poder fazê-la minha mulher.”

Jardim da Cordoaria – Nesta noite, Simão lê a derradeira carta de Teresa. Nove dias depois de febres e delírio, pela manhã, morre Simão Botelho no alto-mar. No mesmo instante que os marujos arremessam o corpo de Simão ao mar, Mariana mergulha e morre também.

Do romance de pouco mais de 200 páginas, fez Manoel de Oliveira um filme com mais de 4 horas de duração, o qual foi dividido em episódios para apresentação na RTP (que subsidiara a produção). O acolhimento foi desastroso, com comentários a roçar o ordinário. E, no entanto, João Bénard da Costa considera-o o filme mais importante de Oliveira…(embora se não saiba quantos mais filmes fará o realizador e JbC já cá não estar para os apreciar)

A história hiper-romântica de Camilo dos amores proibidos de Teresa e Simão e depois da paixão silenciosa de Mariana que tudo abandona para poder servir Simão e minorar-lhe o sofrimento, a dedicação de João da Cruz, a intriga que acaba com a morte de todos os protagonistas. A acção, depois do assassínio de Baltazar, passa-se no Porto, nas margens do Douro, entre a Cadeia da Relação e o Mosteiro de Monchique. Para contar a história ficou Camilo. Os diálogos entre os protagonistas são poucos e muitas vezes mais importantes pelo que não dizem. As lágrimas tão eloquentes como os silêncios.

Mas há abundância de cartas que narram os acontecimentos passados ou anunciam os que se seguem. Manoel de Oliveira fugiu à voz off usual nestas situações e introduziu duas personagens o Delator e a Providência que relatam a acção, substituindo a escrita. Os planos são fixos. O filme atravessa o universo camiliano, traz-lhe as vozes e as sombras. Nenhum outro filme pode ser tão camiliano como este. Excessivo, trágico. Fimar teatro? Mas não é só isso. É filmar como quem escreveu

Amor de Perdição é, simultaneamente e ao mesmo nível, pintura (quadros que nos dão a imagem visual que o livro não pode dar) teatro (acção dramática, conduzida pelos diálogos) e narração romanesca (pela sucessão temporal desses quadros e dessa acção e pelo encadeamento entre eles). Mas como o olhar da câmara é o olhar que tudo comanda (comanda, até, na sequência fulcral — a do assassinato de Baltazar — a repetição da acção, para reforçar a instância fatal que a partir dela se instaura), como é aos movimentos ou fixidez da câmara ou dos personagens que é confiado o movimento radical, pintura, teatro e romance subsomem-se na totalidade do cinema, única arte capaz de assim as transfigurar e de assim as elevar à síntese total…”

Lamego“Nunca mais, depois deste filme, o cinema pôde ser o mesmo, quer nas suas relações com as outras artes, quer na significação que a si próprio se atribuiu e por si próprio alcançou.” (JB da Costa/Os filmes lá de casa)

Catedral de Lamego

Régua Corre, caudal sagrado,/Na dura gratidão dos homens e dos montes!/Vem de longe e vai longe a tua inquietação…/Corre, magoado,/De cachão em/cachão,/A refractar olímpicos socalcos/De doçura/Quente./E deixa na paisagem calcinada/A imagem desenhada/Dum verso de Frescura/Penitente” (Miguel Torga).

RéguaQuando fui abordado para falar do homem duriense no encerramento desta feira, fiquei indeciso. Tudo o que em mim há de esquivo, de informal e de desencantado mandava-me recusar. Outras razões ainda mais profundas, porém, teimavam que sim, que aceitasse o convite. O tema corria-me nas veias…

Foz CôaE não é impunentemente que se faz orelhas moucas aos argumentos do sangue. Filho, neto, bisneto e tetraneto de obscuros cavadores, carreiros e almocreves, que séculos a fio saibraram, sulcaram e palmilharam as encostas do Doiro, criado a ouvir a crónica deles e a de quantos os acompanhavam na via-sacra – e Deus sabe até que ponto ela era dolorosa -, atento, por conta própria, a um destino que sempre me pareceu exemplar, no seu dramatismo, como poderia eu escusar-me a depor no tribunal severo do presente, pondo no meu testemunho letrado, o único a que me obriguei na vida, todo o calor e sinceridade de que sou capaz?”…

…”Não tinha na mão nenhum lenitivo para suavizar o sofrimento que as palavras só podem denunciar, nenhum epítote para acrescentar à nobreza de um nome que se basta na sua grafia”…

…”Herói modesto, despretencioso e proteico que, mal comido, mal bebido e mal agasalhado, aos rigores de um inverno de gelo e de um verão de fornalha, surriba, planta, enxerta, tesoura, poda, ergue, enxofra, sulfata, vindima, pisa e trasfega num afã sem descanso“…

…”Protagonista de um drama milenário, que já nos tempos de Roma representava, o seu palco é largo e majestoso. Basta olhá-lo do miradoiro de S. Brás, de S. Domingos da Queimada, de S. Leonardo de Galafura, do alto da quinta das Carvalhas, de Vilarinho de Cotas ou de S. Salvador do Mundo…

S. Leonardo da Galafura – …Só quem não tiver sensibilidade e humanidade dentro de si é que ficará indiferente à beleza de panoramas sem comparação possível e à grandeza de um esforço incansável e criativo que os cultiva e arquitecta jardins suspensos na mais agreste paisagem de Portugal” (Miguel Torga in Diário XIII)

Armamar

Vila Real (Mateus)

Alto Douro…”Pôr toda a parte a água sussurrante, a água fecundante… espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, de entre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava pôr uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados… Todo um cabeço pôr vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes.,,,”

…”Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando: – ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, pôr cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espelhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas…” (Eça de Queiroz in A cidade e as serras)

Tamega/Douro

Carrazeda de Ansiães

MarãoVenham como vierem, cobertos dos favores do mundo ou simples mortais, procedo sempre da mesma maneira. Mostro-lhes o que nunca viram: panoramas que são autênticas obras-primas da ecúmena, onde a geografia física e a geografia humana se complementam.”…

Marão/Alto do Velão…”A ossatura telúrica e a epiderme elaborada. O natural e o cultural em conjugação perfeita. E fico desobrigado. O resto é da conta deles. Se prestam, vão mais ricos. Dilataram o espírito à proporção dos horizontes. Se não prestam, vão mais pobres. Mediram-se com a grandeza e perderam” (Miguel Torga in Diário XIII)

Espigueriro e Castelo do Lindoso

Vinhas depois das vindimas.

Tabuaço

À proa dum navio de penedos,/A navegar num doce mar de mosto,/Capitão no seu posto/De comando,/S. Leonardo vai sulcando/As ondas/Da eternidade,/Sem pressa de chegar ao seu destino./Ancorado e feliz no cais humano,/É num antecipado desengano/Que ruma em direcção ao cais divino.//Lá não terá socalcos/Nem vinhedos/Na menina dos olhos/deslumbrados;/Doiros desaguados/Serão charcos de luz/Envelhecida;/Rasos, todos os montes/Deixarão prolongar os horizontes/Até onde se/extinga a cor da vida.//Por isso, é devagar que se aproxima/Da bem-aventurança./É lentamente que o rabelo avança/Debaixo dos seus pés de marinheiro./E cada hora a mais que gasta no caminho/É um sorvo a mais/de cheiro/A terra e a rosmaninho” (Miguel Torga, in Diário IX).

S. Martinho da Anta

Cai o sol nas ramadas./O sol, esse Van Gogh desumano…/E telas amarelas,calcinadas,/Fremem nos olhos como um desengano.//A cor da vida foi além de mais!/Lume e poeira, sem que o verde possa/Refrescar os craveiros e os tendais/De uma paisagem mais secreta e nossa.//Apenas uma fímbria namorada,/Vermelha e roxa, se desenha ao fundo/O mosto de uma eterna madrugada/Que vem do incêndio refrescar o mundo. “

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Sintra, o musgo e as sombras

Sintra conserva ruínas e outros vestígios com origem desde a Pré-história. A época de maior riqueza situa-se no final do séc. XVIII e durante todo o século seguinte. Aristocratas cultos, escritores e músicos, portugueses e estrangeiros, aqui se instalaram, seduzidos pelo ambiente mágico das paisagens, e construíram palácios, jardins, chalets, quintas, naquilo que hoje é considerado Património Cultural da Humanidade. Chamam-lhe Vila Romântica. Realmente, a zona histórica não só pelos seus edifícios como pelas paisagens em que estão inseridos são gatilhos para emoções e sonhos – o imaginário romântico.

Os monumentos foram edificados em estilos diferentes e apresentam em comum a recriação de estilos históricos. Elementos neo-góticos, neo-manuelinos, mas também hindus, maometanos, árabes, deram origem a conjuntos exóticos e diversificados. No Palácio da Regaleira o estilo neo-manuelino evoca a grandeza da Pátria, nomeadamente os Descobrimentos marítimos, mas em numerosos recantos, torreões, escadarias descendo às profundezas e em numerosas criptas estão presentes símbolos do Além, do oculto, do transcendente, mesmo de inspiração cristã. Em Monserrate existem elementos de raiz gótica nas fachadas, portas e janelas, coexistindo com cúpulas, cornijas, minaretes, arcos e azulejos de matrizes orientais.

Talvez o Outono seja a estação rainha em Sintra, não porque dure mais, mas apenas porque representa a despedida do Verão caduco que deixa o chão pejado de folhas e ao mesmo tempo antecipa a desolação do frio. O Outono faz o balanço estival e o anúncio do Inverno. Áparte isso, acrescenta melancolia aos muros e às pessoas. Ao deambular pelos caminhos estreitos, a luz côa-se entre as folhas das árvores e desenha sombras sobre o musgo que certifica a humidade.

As árvores ligam as pessoas aos lugares. Algumas pela sua imponência são consideradas de interesse público, como é o caso dum sobreiro defronte do Palácio da Regaleira ou de um castanheiro com mais de quinhentos anos, próximo do centro da Vila. Mas toda a paisagem de Sintra é feita de vegetação luxuriante. Plátanos, tílias, faias, acácias, carvalhos, cedros, eucaliptos estão espalhados pela região.

Têm sido expeditamente amputados ou mesmo abatidos plátanos no Largo de S. Pedro ou em Colares, supostamente por razões fitossanitárias. O resultado das podas são espantalhos envergonhados, donde até os pássaros desertam, não por pavor, mas apenas porque as árvores, simples cotos grotescos, deixam de ser albergue. É preciso que todas as intervenções tenham a supervisão de especialistas em arboricultura. As árvores como os edifícios são património cultural e artístico.

Nos miradouros a luz e a imperceptível aragem traçam pinceladas de verdes e castanhos, que se modificam a cada momento, telas de Degas ou Monet, impressionismo dos nossos olhos, nas emoções duma tarde em que o sol, de repente, se desvenda.
Seguimos na estrada que vai de Sintra, direitos a Colares. Os plátanos de ambos os lados esboçam um túnel dourado. Os carris dos eléctricos, meio cobertos pelas folhas outonais, seguem paralelos ao asfalto.

Mesmo no Verão, o sol nem sempre dissipa o nevoeiro. As águas são frias. Na Praia das Maçãs há famílias estacionadas sob toldos coloridos, que o banheiro aluga à época. Nos restaurantes os lavagantes de pinças em riste capitaneiam esquadrões de sapateiras, ostras, navalheiras; no interior, as lagostas aguardam a transferência do aquário para o tacho.

No café da Várzea de Colares lê-se o jornal, cavaqueia-se, há travesseiros e queijadas. Ao lado passa um riacho, nascido no Lourel, a caminho da foz próxima e baptizado Rio das Maçãs. Da margem atiram comida a um bando de patos, talvez na expectativa duma improvável metamorfose em cisnes. Mas, eis que Lohengrin voga no Rio das Maçãs! Os castelos da Baviera estão próximos.

FM

Sintra e o seu Palácio da Vila, numa aguarela de Roque Gameiro. O Palácio com as suas duas chaminés é o ex-libris da Vila.

“Já a vista, pouco e pouco, se desterra /Daqueles pátrios montes, que ficavam; /Ficava o caro Tejo e a fresca serra de Sintra, /e nela os olhos se alongavam /Ficava-nos também na amada terra /O coração, que as mágoas lá deixavam; /E, já despois que toda se escondeu, /Não vimos mais, enfim, que mar e céu.” Camões/Lusíadas (Canto V)

Vista da Peninha. Num dia de boa visibilidade observa-se desde o Cabo Espichel até às Berlengas. É uma vista obtida de um palacete construído no início do séc. passado, próximo de uma ermida, por sua vez eregida sobre as ruínas de S. Saturnino.

Sintra é uma vila que apesar da sua extensão e demografia, se tem recusado à categoria de cidade. É sede de um município que ocupa uma área de 317 km² com 445 872 habitantes (2008), subdividido em 20 freguesias.

Entre elas incui-se o Centro Histórico daquilo que é considerado a vila romântica. Palácios, castelos, quintas, jardins, chalets, fazem parte do Centro Histórico, classificado em 1995 pela UNESCO como Património da Humanidade na categoria de Paisagem Cultural

Deste Centro Histórico fazem parte a designada Vila Velha, a Quinta da Regaleira, o Palácio Nacional de Sintra, o Palácio Nacional da Pena e o Palácio de Seteais

A Vila Velha foi construída numa zona de grande declive, no sopé da Serra, entre o Palácio Nacional e a própria Serra, cujo coração é a praça adjacente ao Palácio, donde irradiam as vias para o restante Centro Histórico. Esplanadas, pastelarias, antiquários envolvem a Praça. Pequenos autocarros conduzem os visitantes aos locais turísticos.

Os edifícios obedecem à mesma volumetria, o que dá à zona um aspecto harmonioso. Apesar dos cartazes de publicidade e toldos que nada têm a ver com o estilo arquitectónico dos imóveis, o conjunto é equilibrado.

À medida que nos afastamos da praça e caminhamos em direção à periferia, vão surgindo habitações mais espaçosas, resguardadas por muros cobertos de musgo e fetos e algum arvoredo.

“Sintra é um aquário, Joana, o fundo do mar povoado de casas antigas imersas na ondulação do nevoeiro, em que peixes côr-de-rosa e azuis flutuam por entre as cómodas, os retratos, o perfil geométrico dos armários, balindo suavemente como um rebanho de ovelhas, fusiformas, de longas pestanas trémulas e atentas…

…A luz não vem do sol mas das árvores, oblíqua e imóvel, uma claridade que se diria nascer dos nossos próprios ossos, dos nossos próprios dentes, dos nossos cabelos, dos nossos gestos, das palavras que dizemos, e se espelha em círculos concêntricos no ar, rodopiando e vibrando, à maneira de uma folha enorme” Antonio Lobo Antunes/ Conhecimento do inferno

Casa do Cipreste, da autoria de Raul Lino (1879-1974). Referência incontornável da arquitectura portuguesa, projectou vários edifícios notáveis em Sintra. A influência que a paisagem exerceu na sua obra, bem como a importância do seu estilo, nem uma nem outra podem ser omitidas. Defendia que a arte e a arquitectura são um produto do homem e para os homens, com história, genealogia, características e funcionalidades próprias do espaço e do tempo em que se inserem e da comunidade para que são produzidas. Deixou importante produção teórica

“A paisagem de Sintra, quer pela sua estrutura, quer pelo seu significado, representa claramente o arquétipo da paisagem romântica. É um lugar onde se sentem intensamente as forças naturais, aparecendo como um terreno descontínuo, de relevo muito variado, onde o céu nunca se vê num hemisfério total, com grandes variações de luz e sombra e uma vegetação que funciona como diferentes filtros do olhar.”…

…”Ao mesmo tempo Sintra, está recheada de monumentos históricos, dados arqueológicos e ruínas. Tudo isto lhe confere uma aura de maravilhoso encantamento e de mistério que vai expressivamente ao encontro do que de mais íntimo e e constante caracterizava o espírito do arquitecto (Raúl Lino)” Irene Ribeiro

As ruas são estreitas e quase sem bermas. A atmosfera é húmida, adensada pelas sombras das árvores, pelas neblinas frequentes. Os contrastes verdes e castanhos constituem cenários mágicos

Porém, quando nos afastamos da Vila Velha, deparamos com edifícios degradados a requererem urgente reabilitação. Não se fala de ruínas, mas de edifícios deixados ao abandono, seja por incúria dos proprietários ou entraves judiciais.

Palácio da Vila: vista da entrada principal.

O Palácio da Vila começou a ser construído no século XV, com traça de autor desconhecido. Apresenta características de arquitectura medieval, gótica, manuelina, renascentista e romântica. É composto por um conjunto de corpos aparentemente separados, mas que fazem parte de um todo articulado entre si, através de corredores, escadas, pátios e galerias.

Até ao final da monarquia foi utilizado pela Família Real

Janela manuelina. A D. Manuel I se devem obras importantes no Palácio da Vila

Sala dos Brasões no Palácio Nacional de Sintra

Torre da Câmara Municipal. Este é outro edifício emblemático.

Na Estefânia de Sintra

O Palácio da Pena foi construído no Séc. XIX, cerca de 30 anos antes do célebre Castelo de Neuschwanstein, este edificado por Ludwig da Baviera e inspirado na obra de Wagner. O Palácio português é considerado o 1º Palácio Romântico da Europa e uma das sete maravilhas de Portugal

O Palácio não foi construído de raiz. No Terramoto de 1755, um velho mosteiro erigido no tempo de D. Manuel que aí existia, caiu em ruínas, à excepção da Capela. D. Fernando de Saxe Coburgo-Gota, casado com a Rainha Maria II., era um homem culto e erudito, apaixonado pela paisagem da serra de Sintra, e em 1838 mandou realizar obras de reconstrução do mosteiro.

Dois anos depois, D. Fernando decidiu ampliar o Convento, de modo a transformá-lo em castelo, que pudesse albergar a família real. O projeto foi encomendado a Guilherme von Eschwege, mineralogista prussiano e amador de arquitetura. Homem viajado fizera viagens de estudo em Inglaterra e França, Argélia e Espanha (Córdova, Sevilha e Granada). Não é, pois de estranhar, a profusão de elementos decorativos de inspiração árabe.

Mas, o próprio Rei interveio diretamente no projeto, introduzindo arcos ogivais e torres de inspiração medieval. Na fachada norte foi incluída uma imitação do Capítulo do Convento de Cristo em Tomar, desenhada por ele-próprio.

Janela do Tritão, que encabeça o pórtico do mesmo nome. Tritão: meio-peixe, meio-homem, saindo de uma concha com a cabeça coberta por cabelos que se transformam num tronco de videira. Foi desenhado por D. Fernando como um «Pórtico allegórico da creação do mundo»

D. Fernando II sempre se interessou mais pelas manifestações artísticas do que pela política, o que lhe valeu o cognome de Rei-Artista. Por diversas ocasiões foi regente do reino, nos impedimentos da Rainha. Casou, após a morte de D.Maria II, com uma cantora de ópera e mãe solteira, a quem deixou como herança o Palácio da Pena.

Depois da morte de D. Fernando verificou-se uma disputa pela posse do palácio – que se fora propriedade do monarca,tinha sido considerado monumento nacional. Passado a património do Estado tornou-se local de veraneio da família real, até ao fim da Monarquia.

Foi também D. Fernando quem mandou plantar o parque que circunda o castelo. Carvalhos, pinheiros mansos, ciprestes, acácias e muitas outras espécies avivam-lhe o caráter romântico. Palácio e parque constituem um todo magnífico no cume da serra. Terá sido dos seus aposentos que a rainha D. Amélia, viúva de D. Carlos, assistiu aos desenvolvimentos militares em Lisboa, que conduziram à proclamação da República

O Palácio patenteia grande profusão de estilos que recriam gótico, manuelino, islâmico e outras influencias orientais. Esta diversidade estilística tem a ver com a mentalidade da época de fascínio pelo exotismo.

“Eu creio que Sintra pertence áquela classe de valores míticos de primeira grandeza do nosso firmamento espiritual, cujo culto é fervorosamente exercido por uma pequeníssima confraria de apaixonados…” (Raúl Lino)

Este hotel de “fachada banal” como o definiu Eça, é um local que acolheu outros nomes grandes da literatura, como Alexandre Herculano, Camilo Castelo-Branco, Ramalho Ortigão, além de estrangeiros como Lord Byron. Procurariam aqui, na proximidade das sombras, do silêncio, dos cenários deslumbrantes, as condições para que a escrita melhor fluísse.

“Sempre gostara muito de Sintra! Logo ao entrar, os arvoredos escuros e murmurosos do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz!” Eça de Queiroz / Primo Basílio

“Chegaram às primeiras casas de Sintra, havia lá verduras na estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da Serra./ E a passo o break foi penetrando sob as árvores do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e embaladora sussurração de ramagens, e como o difuso e vago murmúrio de águas correntes…

…Os muros estavam cobertos de heras e musgos: através da folhagem faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e aveludado circulava rescendendo às verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, pássaros chilreavam de leve; e naquele simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já sem ver, a religiosa solenidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cai das penedias e o repouso fidalgo das quintas de verão” Eça de Queiroz /Os Maias

Palácio de Seteais. Começou a ser construído como casa de habitação no final do Séc. XVIII, por iniciativa de Daniel Gildemeester, cônsul da Holanda em Portugal, nuns terrenos de «ginjais e serrados» que possuiam uma vista paradisíaca. Na época apenas foi edificada a ala esquerda e algumas dependências anexas, do que é hoje o Palácio de Seteais.

Em 1800, a Quinta de Seteais foi adquirida pelo Marquês de Marialva, o qual acrescentou uma nova ala de aposentos e uniu os dois corpos por um magnífico arco triunfal. Este evoca a visita de D. João VI, então Príncipe Regente, e de D Carlota Joaquina. É um edifício imponente em estilo neo-clássico

Pormenor do Jardim de buxo do Palácio

Das lendas associadas a Seteais duas delas remontam ao tempo de Afonso Henriques, à conquista de Lisboa aos mouros e à rendição de Sintra. A palavra Seteais resultaria dos sete gemidos de uma bela princesa moura, sobre a qual pendia a maldição de morrer no dia em que deixasse escapar os fatídicos sete ais. As outras personagens são um cavaleiro cristão D. Mendo e a velha ama da princesa. As circunstancias são diferentes, mas em ambas, na ausência do cavaleiro, os mouros que voltavam (ou o antigo noivo da princesa, a qual se apaixonara pelo cavaleiro cristão) já quando a princesa suspirara várias vezes, perante a adaga que lhe assomava ao pescoço, expirou, ao soltar o sétimo ai.

Outra lenda, relatada por Camilo Castelo-Branco, tem a ver com o armistício assinado por Junot, depois da 1ª invasão e das batalhas de Roliça e Vimeiro, perdidas pelos franceses. Segundo uns, a chamada Convenção de Sintra teria sido firmada em Queluz, mas outros indicam o Palácio do Marquês de Marialva, no edifício que nos ocupa.

Dadas as características do terreno, as vozes ecoavam repetidamente e, depois da assinatura, o vozear dos oficiais em Hurras ou ais, originara os sete…ais. (Mas, a quem pertenceriam os ais? Possivelmente aos portugueses, impedidos de participar na negociação entre os plenipotenciários ingleses e franceses, que permitiu a estes últimos, depois de militarmente derrotados pelas forças anglo-lusas, regressar a França com um enorme espólio de bens e obras valiosas roubadas, sob a protecção e transporte das forças inglesas!… A Convenção legalizou o saque praticado pelos invasores.) 

O Castelo dos Mouros foi erguido sobre um maciço rochoso num dos cumes da serra. Do alto das suas muralhas desfruta-se uma vista privilegiada com o Oceano Atlântico em fundo. A sua fundação deverá ter ocorrido no Séc IX, durante a ocupação muçulmana da Península Ibérica. Julga-se não ter sido palco de qualquer batalha, pois tanto cristãos como muçulmanos se rendiam, logo que Lisboa era conquistada

O destino de Sintra esteve, pois, sempre associado ao de Lisboa. Após várias vicissitudes, o castelo foi tomado pelas forças de D. Afonso Henriques em 1147. O rei mandou proceder a reparações nas suas defesas e dotou-a de um templo, a Igreja de São Pedro de Penaferrim. Idênticas preocupações militares tiveram os seus sucessores, muito embora o Palácio Nacional de Sintra, passasse a desempenhar papel preponderante, relegando o castelo para lugar subalterno.

Este entrou, assim, em decadência, principalmente após a expulsão dos judeus do país, então seus únicos habitantes, ficando o castelo desabitado. A queda de um raio causou-lhe danos à Torre de Menagem (1636), os quais se agravaram como consequência do terramoto de 1755.

As ruínas do Convento dos Capuchos, originalmente chamado Convento da Santa Cruz, são outro ponto de interesse histórico na serra de Sintra. O convento foi fundado por D. Álvaro de Castro, filho do vice-rei da Índia D. João de Castro, no ano de 1560, que tê-lo-á mandado construir para satisfazer um voto de seu pai, que não viveu o suficiente para o cumprir.

Foi habitado por frades franciscanos. Ocupa uma área reduzida e os seus habitantes viviam em ambiente de grande desapego e pobreza. Conta-se que D.Filipe I de Portugal ao visitar o convento, em 1581, terá comentado : “De todos os meus reinos, há dois lugares que muito estimo, o Escorial por tão rico e o Convento de Santa Cruz por tão pobre”. A abolição das Ordens Monásticas, determinada pela vitória dos liberais, obrigou os franciscanos a abandonar o convento. Este encontra-se hoje em avançado estado de degradação

“Praia das Maçãs 21.Setembro.1981. – A Regina e eu fomos depois do almoço à Praia das Maçãs tomar o café e olhar o mar. Praia quase deserta A armação de algumas barracas agrupadas a um lado. Os panos listrados de azul já arrumados. Um ou outro banhista ainda despido por exemplarismo ou falta de resignação. O mar com uma cor já fria de inverno e muito batido de espuma da ondulação. Sentamo-nos na esplanada do café, ao sol!” Vergílio Ferreira

“A Praia das Maçãs , a seguir, ao Banzão, é um aglomerado de vivendas leprosas empoleiradas sobre o mar furibundo, raivoso de dor de dentes e de azia, a bater em vão contra a muralha como uma porta para sempre fechada…

…Conhecem-se os lojistas pelas alcunhas e os veraneantes pelos roupões que ano após ano se desbotam do mesmo modo que os olhos envelhecem, e adejam de café em café, no nevooeiro perpétuo, numa leveza transida de aparições.” Antonio Lobo Antunes/ Conhecimento do Inferno…

O eléctrico de Colares à Praia das Maças. As folhas testemunham o Outono

Os vinhos de Colares correm risco de desaparecer. A grande pressão imobiliária reduz as zonas de cultivo. Os solos são de areia e a casta plantada –Ramisco precisa de terreno argiloso, que se encontra a alguns metros de profundidade. É preciso escavar e, por outro lado, proteger as vinhas do vento atlântico. É um vinho que dá muito trabalho, é caro e de baixa produtividade

“Depois de Colares os adeuses tornavam-se impossíveis por culpa do nevoeiro: percebiam-se a custo telhados de chalés e cumes vagos de pinheiros uma bruma desfocada, o mar invisível chiava um mecanismo ferrugento de berço, alcançávamos ao anoitecer uma vivenda desconhecida e húmida, cercada de arbustos horrivelmente tristes que as ondas se esqueceram de levar, adormecíamos em cobertores molhados”…

“…a ronca do farol a baralhar-nos os sonhos, e no dia seguinte, às nove da madrugada, a nossa mãe, em roupão, vinha ao convés do jardim observar o nevoeiro com um sobrolho de almirante garantia: -levanta à uma.” António Lobo Antunes /Crónicas

Cabo da Roca “aqui onde a terra se acaba e o mar começa” (Camões) 1.Julho.1979 – Hoje acordámos sob um grande nevoeiro. É raro um nevoeiro cá em cima. Os pinheiros da mata apagam-se dentro da neblina, ouve-se ao longe, no Cabo da Roca, a “ronca” de aviso à navegação. Não há vento, os pinheiros imobilizam-se na névoa como espectros. Silêncio. Nem uma ave se ouve. E irresistivelmente lembro- me de um mundo nos começos da génese, antes de um ser vivo surgir à sua face. E então, mais evidente, assola-me o absurdo de um universo sem razão, sem sequer um ser pensante que o fizesse existir.” Vergílio Ferreira

Oh! Sintra! Oh saudosíssimo retiro/ Onde se esquecem mágoas, onde folga/ De se olvidar no seio à natureza/ Pensamentos que embala adormecido /O sussurro das folhas c´o murmúrio/ Das despenhadas linfas misturado (Almeida Garrett)

O Palácio de Monserrate na sua traça actual foi projectado pelo Arquitecto James Knowles e construído em 1858, por encomenda de um rico comerciante e colecionador de arte britânico (Sir Francis Cook), para residência de Verão. Erguido sobre as ruínas duma mansão neo-gótica edificada por outro comerciante inglês, Gerard de Visme. Também aqui viveu William Beckford que realizou obras no palácio.

Interior do Palácio de Monserrate, presentemente em obras de restauro

Ruínas da Capela do Parque de Monserrate. Mais de duas mil e quinhentas espécies de plantas, provenientes dos cinco continentes encontram-se distribuídas pela área do parque, por entre lagos, pequenas cascatas, ruínas, caminhos sinuosos, recantos que proporcionam cenários deslumbrantes.

Plantas vulgares em Portugal, como medronheiros ou sobreiros, contrastam com yucas e palmeiras evocando o México (existe mesmo um jardim com esse nome) ou redodendros e bambus, próprios do Japão.

O resultado é um espaço exótico, fascinante, próprio da concepção romântica dos jardins.

Alfredo Roque Gameiro, talvez o mais importante aguarelista português, viveu entre 1883 a 1886. Aluno de Bordalo Pinheiro, estudou em Leipzig, ganhou a medalha de ouro da Exposição Universal de 1900, em Paris. No que se refere a Sintra, destaque para paisagens da Praia das Maçãs, Praia Grande, Colares, Quinta de Monserrate, Almoçageme (na figura) e o Palácio da Vila.

As Azenhas do Mar, aguarela de Helena Roque Gameiro (1895-1984), filha de Alfredo

Cinco Artistas em Sintra, é um óleo sobre tela da autoria de João Cristino da Silva, realizado propositadamente para a Exposição Universal de 1855. Foi comprada pelo Rei D. Fernando II e actualmente faz parte do espólio do Museu do Chiado. No quadro o pintor representava-se a si próprio e a amigos, os pintores José Rodrigues, Francisco Metrass e Tomás da Anunciação e o escultor Victor Bastos, que com ele se batiam pela introdução de novas práticas no ensino da Academia de Belas-Artes

Azenhas do Mar 3.Setembro.1982 – Mas de toda a nossa tarde na casa das Azenhas sobre o mar, foi o mar que uma vez mais me deslumbrou de fascinação. Havia sol, as águas alargavam-se até a um horizonte de neblina, as ondas quebravam num rolar manso e dormente sobre a breve areia da praia. Cerro os olhos ainda agora, ao cintilar da planura, ao largo rumor marinho, todo aberto ao seu aceno de infinitude” Vergílio Ferreira

A Quinta da Regaleira é um lugar mágico. Nela coexistem edifícios de diversos estilos, nomeadamente gótico, manuelino e renascença. Entre eles, particular destaque para o Palácio. O conjunto aparece plantado no meio de vegetação luxuriante.

O Palácio foi mandado construir no início do Séc. XX por António Augusto Carvalho Monteiro, homem rico e culto que procurou naquele espaço glorificar a história de Portugal e, simultaneamente, criar um ambiente esotérico. Os edifícios são de autoria do arquitecto-cenógrafo italiano Luigi Manini.

O resultado foi este cenário deslumbrante de mistério, exotismo e serenidade, propícios a uma certa espiritualidade. A diversidade da quinta da Regaleira é enriquecida com vastíssima iconografia referente aos reis portugueses nos frisos, como também com o imaginário maçónico, no teto pintado da Sala das Virtudes, onde se encontram as personificações da Força, da Beleza e da Sabedoria.

Muitos símbolos evocam o divino, o transcendente e o invisível. A passagem da dimensão terrena à divina por meio de rituais de carácter mágico, nos quais o neófito é iniciado e aceita a filiação no grupo de companheiros.

O poço. Acredita-se que a Regaleira tivesse sido sede de rituais de iniciação maçónica. O Palácio está ligado por várias galerias ou túneis a outros pontos da quinta. O acesso ao fundo do poço é feito por uma escadaria em espiral, sustentada por colunas esculpidas. A escadaria é constituída por nove patamares separados por lanços de 15 degraus cada um.

Mas não são só os símbolos maçónicos que estão patentes na Regaleira. A cruz templária no fundo do poço iniciático, a cruz da Ordem de Cristo bem como todas as outras cruzes dispostas na Capela, testemunham a influência do espírito do templarismo.

Há ainda, na Regaleira referências à Ordem Rosa-Cruz (movimento que propunha reformas sociais e religiosas e exaltava a humildade, a justiça, a verdade e a castidade, utilizando os símbolos conjuntos da rosa e da cruz)

Também a mitologia grega está representada, como é o caso de A gruta de Leda, (a Rainha de Esparta, esposa de Tíndaro foi seduzida por Zeus que se transformara em cisne…)

“Sintra é em tudo excepcional – no clima, na paisagem, na História, nos monumentos. Portanto, a ambiência daquelas serras, daqueles vales é muito particular; a luz é doce, cor de cidra, cintilante de suaves gorgeios de claridade, desde que o Sol se levanta até ao desmaiar das ave-marias; a finura da sua atmosfera, nascida – como Afrodite . das ondas do mar, côa-se pelos bosques de ericácias e sai perfumada com aromas de mato que floresce nas encostas, sabe a murtinhos e ao medroso capitoso…”

“…E os frequentes nevoeiros, tão caluniados e detestados, são como dobras de renda branca a roçar pelo colo dos montes, a enredar-se nas fidalgas cameleiras de jardins decadentes” (Raúl Lino)

“Sintra é o mais belo adeus da Europa quando enfim encontra o mar. Camões o soube quando os seus navegadores a fixaram como a última memória da terra, antes de não verem mais que “mar e céu”. E no entanto, ou por isso, o espaço que ela nos abre não é o da infinitude mas o do que a limita a um envolvimento de repouso. Alguém a trouxe de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma serenidade de amar. Ela é assim o refúgio de nós próprios e de todo o excesso que nos agride ou ameaça” Vergílio Ferreira

Recomendados:

http://www.cm-sintra.pt

http://pt.wikipedia.org/wiki/Sintra

http://www.apha.pt/boletim/boletim3/pdf/IreneRibeiro.pdf

http://riodasmacas.blogspot.com/2010/01/arvores-de-sintra_18.html

Veja os vídeos:

 

 

 

 

 

Eça os fez, nós os juntámos

Eça fez uma crítica impiedosa à sociedade portuguesa do final do séc. XIX. Em Uma Campanha Alegre estão reunidos textos que, na sua maioria, mantêm toda a actualidade. Aí, passa à lupa (ou ao monóculo…) deputados, membros do Governo, padres, jornalistas…A decadência da vida portuguesa – pessoas e instituições, sem excepção, são magistralmente satirizados. Admirável o facto de a poder ter publicado – em forma de folhetim, com plena liberdade.
Porém, foi na ficção que Eça melhor denunciou vícios de carácter, não só na sociedade de Lisboa, como da província – mesquinhez, vaidade, hipocrisia, cobardia e tantos outros. Um catálogo de misérias humanas. Ele não foi só analista, tinha também uma faceta moralista: ao denunciar e ridicularizar os defeitos aguardava que tal permitisse corrigir os portadores.
São muitas as figuras que simbolizam esses defeitos, os quais não são só dessa época. Com diferentes roupagens e exuberância, existiram desde sempre, fazem parte da natureza humana. A genialidade da escrita de Eça fez que algumas das suas personagens fossem mesmo adoptadas como adjectivos que qualificam características precisas – um discurso “acaciano” é uma charla gongórica, redundante, vazia…
Cada figura é minuciosamente recortada. À medida que a narrativa avança os traços da sua personalidade e o seu aspecto físico tornam-se nítidos. São verdadeiros retratos, muitas vezes de gente grotesca e desprezível. Entre as mais hilariantes, talvez a figura de Teodorico Raposo de A relíquia, velho estudante coimbrão, amigo de estúrdia e mulheres, que no regresso a Lisboa se vê obrigado a fazer o papel de devoto papa-missas para tentar conquistar a confiança da tia…Engendra um esquema para lhe herdar a fortuna, ela que é uma beata fanática e desconfiada. Parte para a Terra Santa em peregrinação na mira de uma relíquia do Santo Sepulcro, mas o azar fá-lo trocar a coroa de espinhos pela camisa de noite de uma meretriz com quem se divertira em Alexandria…
A própria titi, D. Patrocínio das Neves. Alta, “muito seca”, sempre vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito, e um lenço roxo sobre a cabeça a apertar no queixo. Solteira e rica. Implacável, com ódio visceral ao sexo, vive no Campo de Santana, rodeada por padres (seus consultores espirituais),.. Morre, pouco depois de ter expulsado o sobrinho de casa, após a troca da “relíquia”. A sua fortuna é repartida por padres e beatas, ficando para Teodorico apenas um óculo. Para ver a fortuna da titi – por um canudo!
Em Os Maias, outra figura exemplar – Palma Cavalão, personagem secundária, que desempenhará um papel fulcral na evolução da trama. Jornalista corrupto, cujo principal atributo seria saber lidar com prostitutas espanholas. É caricatura duma certa imprensa e de certos jornalistas que hoje titulam em letras garrafais escândalos  e vida privada do “jet-set”, “apimentando-os” quanto baste ou promovendo os seus protagonistas, à medida do marketing…“Vil bolinha de matéria pútrida”, assim é descrito Palma Cavalão. Como também “sujeito baixo, gordo, sem pescoço, com a cabeça sobre o prato, babujando uma metade de laranja”. A  pedido de outro crápula (Dâmaso Salcede), escreve uma notícia caluniosa com instruções para fazer divulgar o jornal junto de personalidades importantes. Porém, a troco de cem mil réis denuncia o mandante… Publica folhetins de baixo nível.
Há muitas outras figuras vis na galeria queiroziana, umas mais cínicas, outras mais fingidas, ou gananciosas, gabarolas, cobardes ou simplesmente patéticas. O padre Amaro e o Cónego Dias (de O Crime do Padre Amaro), Basílio e a criada Juliana (em O Primo Basílio), Artur Curvelo (em A Capital), etc. …
Vamos aqui apenas referir Dâmaso Salcede (Os Maias) e o Conselheiro Acácio (O Primo Basílio), retirando excertos da prosa de Eça de Queiroz. Esses textos são ilustrados com caricaturas de artistas de várias gerações, imagens de adaptações teatrais ou para cinema e fotografias actuais de Lisboa (quase todas), relacionadas com as narrativas.
Para concluir inventámos um pequeno folhetim em que estas duas personagens, como que saídas dos respectivos romances, passaram a ter vida própria. Em Lisboa de fim de século e à beira de mudança de regime (não de vícios), frequentando os mesmos locais, acabavam por conhecer-se. E conheciam-se, passavam nas mesmas ruas e falavam-se…


FM e PP

 

Os Maias retratam a vida lisboeta no final do Séc. XIX, num meio entre aristocrata e boémio. O enredo centra-se no envolvimento de Carlos da Maia e Maria Eduarda. Ele, jovem médico, “belo cavaleiro da Renascença”, regressado de Coimbra, onde fizera o Curso, e que vai viver com o avô, que o criara, após o suicídio do pai. Provem de uma família aristocrata. Culto, requintado, corajoso e frontal. Maria Eduarda vem de Paris com uma filha pequena e um brasileiro (Castro Gomes), seu suposto marido e que, afinal, não o era. “Divina”, doce, com grande sentido de dignidade. Apaixonam-se, ele aluga-lhe uma casa nos Olivais (A Toca). As peripécias são muitas até se descobrir que Maria Eduarda era, afinal, a irmã que a mãe de ambos levara quando abandonara o marido…

Na roda de amigos do Ramalhete (casa do avô, Afonso da Maia) pontificam João da Ega, anarquista excêntrico, cínico e provocador; Alencar, poeta romântico e temperamental; e Crujes, maestro e pianista, “com uma pontinha de génio”.Todos são idealistas e diletantes. A eles junta-se Dâmaso Salcede que vem a sentir-se despeitado pela aproximação entre Carlos e Maria Eduarda, ele que inicialmente fora visto com o casal Castro Gomes e insinuara a proximidade de romance com a mulher… Fanfarrão, presumido, intriguista, invejoso e cobarde. Autor de cartas anónimas para prejudicar Carlos da Maia e mandante de um artigo calunioso publicado em jornal. Instado a retratar-se ou a um duelo, prefere escrever uma carta, desculpando-se com o alcoolismo (de que não sofre)

O Primo Basílio é outra sátira, esta incidindo sobre a média burguesia de Lisboa, na mesma época dos Maias. Relata a história de um casal banal (Jorge e Luísa), em que o marido, engenheiro, tem de viajar para o Alentejo em trabalho. Um primo de Luísa, Basílio Brito, com quem namorara em jovem, regressa de Paris. É um conquistador e acaba por seduzi-la. Porém, o adultério é descoberto pela criada da casa que passa a exercer chantagem. Exigências de dinheiro, inversão de papeis (com a Senhora a servir a criada), a partida do primo para França – o qual se sentia já entediado, vão desesperando Luísa. A morte súbita da criada não resolve as dificuldades pois o marido descobre a traição. Luísa doente, acaba também por morrer.

No círculo de amizades da família destaca-se o Conselheiro Acácio, exemplo de hipocrisia, convencido, enfatuado, formalista, cultivando uma pose grandiloquente. O seu discurso é feito de banalidades, que profere em tom professoral. Ex- Director-Geral, fora nomeado conselheiro por carta régia, agraciado com a Comenda de Cavaleiro da Ordem de Santiago. Na sociedade era um moralista, com declarações a favor da sã moral e dos bons costumes. Vivia secretamente “amigado” com uma criada, que o atraiçoava.

(Ilust. de Bernardo Marques) “- Bom rapaz, este Dâmaso, dizia Alencar, travando de braço de Carlos….É lá muito dos Cohens, muito querido na sociedade. Rapaz de fortuna, filho do velho Silva, o agiota, que esfolou muito teu pai; e a mim também. Mas ele assina Salcede; talvez nome da mãe; ou talvez inventado. Bom rapaz… O pai era um velhaco! Parece que estou a ouvir o Pedro dizer-lhe com o seu ar de fidalgo, que o tinha e do grande: «Silva judeu, dinheiro, e a rodo!»… Outros tempos, meu Carlos, grandes tempos. Tempos de gente!”

“…E no silêncio que se fez, Dâmaso, que desde as informações sobre a rapariga do Ermidinha emudecera, ocupado a observar Carlos com religião, ergueu a voz pausadamente, disse, com um ar de bom senso e de finura: – Se as coisas chegassem a esse ponto, se pusessem assim feias, eu cá, á cautela, ia-me raspando para Paris… Ega pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no lábio sintético de Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português! Raspar-se, pirar-se!… Era assim que d’alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde El-rei nosso Senhor até aos cretinos de secretaria!…”

– Vimos agora lá em baixo – disse Craft indo sentar-se no divã, uma esplêndida mulher, com uma esplêndida cadelinha griffon, e servida por um esplêndido preto! O Sr. Dâmaso Salcede, que não despregava os olhos de Carlos, acudiu logo: Bem sei! Os Castro Gomes…Conheço-os muito…Vim com eles de Bordéus…Uma gente muito chique que vive em Paris. Carlos voltou-se, reparou mais nele, perguntou-lhe, afável e interessando-se – O Sr. Salcede chegou agora de Bordéus?”

~”Então essa senhora brasileira vive aqui?.. – [Dâmaso]Vive lá do outro lado. Estão aqui há quinze dias…Gente chique…E ela é de apetecer, Vossa Excelência reparou? Eu a bordo atirei-me…E ela dava cavaco! Mas tenho andado muito preso desde que cheguei, jantar aqui, soirée acolá, umas aventurazitas…Não tenho podido cá vir, deixei-lhe só bilhetes; mas trago-a debaixo de olho, que ela demora-se…Talvez cá venha amanhã, estou cá agora a sentir umas cócegas…E se me pilho só com ela, zás, ferro-lhe logo um beijo! Que eu cá, não sei se Vossa Excelência é a mesma coisa, mas eu cá, com mulheres, a minha teoria é esta: atracão!”

Vermute? Perguntou-lhe o criado, oferecendo a salva. -Sim, uma gotinha para o apetite. V. Exa. não toma Sr. Maia? Pois eu, assim que posso, é direitinho para Paris! Aquilo é que é! Isto aqui é um chiqueiro…Eu, em não indo lá todos os anos, acredite Vossa Excelência, até começo a andar doente. Aquele Boulevarzinho, hem!…Ai, eu gozo aquilo!…E sei gozar, sei gozar, que eu conheço aquilo a palmo…Tenho até um tio em Paris…

-E que tio! – exclamou Ega, aproximando-se. –Íntimo do Gambetta, tratam-se por tu, até vivem quase juntos…E não é só com o Gambetta; é com o Mac-Mahon, com o Rochefort, com o outro de que me esquece agora o nome, com todos os republicanos, enfim!…É tudo quanto ele queira. Vossa Excelência não o conhece? É um homem de barbas brancas…Era irmão de minha mãe, chamava-se Guimarães. Mas em Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran…”

(Ilust. de Marly Mota) “Logo na manhã seguinte ao jantar do Central, o Sr. Salcede fora ao Ramalhete deixar os seus bilhetes, objectos complicados e vistosos, tendo ao ângulo, numa dobra simulada, o seu retratozinho em fotografia, um capacete com plumas por cima — DÂMASO CÂNDIDO DE SALCEDE, por baixo as suas honras — COMENDADOR DE CRISTO, ao fundo a sua adresse – Rua de S. Domingos, à Lapa; mas esta indicação estava riscada, e ao lado, a tinta azul, esta outra mais aparatosa – GRAND HÔTEL, BOULEVARD DES CAPUCINES, CHAMBRE N.°103.

Em seguida, procurou Carlos no consultório, confiou ao criado outro cartão. Enfim, uma tarde, no Aterro, vendo passar Carlos a pé, correu para ele, pendurou-se dele, conseguiu acompanhá-lo ao Ramalhete. Aí, logo desde o pátio, rompeu em admirações extáticas, como dentro de um museu, lançando, diante dos tapetes, das faianças e dos quadros, a sua grande frase: «Chique a valer!» Carlos levou-o para o fumoir, ele aceitou um charuto; e começou a explicar, de perna traçada, algumas das suas opiniões e alguns dos seus gostos…

…Considerava Lisboa chinfrim, e só estava bem em Paris — sobretudo por causa do género «fêmea» de que em Lisboa se passavam fomes: ainda que nesse ponto a Providência não o tratava mal. Gostava também do bricabraque; mas apanhava-se muita espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo, não lhe pareciam cómodas para a gente se sentar. A leitura entretinha-o, e ninguém o pilhava sem livros à cabeceira da cama; ultimamente andava às voltas com Daudet, que lhe diziam ser muito chique, mas ele achava-o confusote. Em rapaz perdia sempre as noites, até às quatro ou cinco da madrugada, no delírio! Agora não, estava mudado e pacato; enfim, não dizia que de vez em quando não se abandonasse a um excessozinho; mas só em dias duples… E as suas perguntas foram terríveis…

…O Sr. Maia achava chique ter um cab inglês? Qual era mais elegante, assim para um rapaz da sociedade que quisesse ir passar o Verão lá fora, Nice ou Trouville?… Depois ao sair, muito sério, quase comovido, perguntou ao Sr. Maia (se o Sr. Maia não fazia segredo) quem era o seu alfaiate”

“E desde esse dia, não o deixou mais. Se Carlos aparecia no teatro, Dâmaso imediatamente arrancava-se da sua cadeira, às vezes na solenidade de uma bela ária, e pisando os botins dos cavalheiros, amarrotando a compostura das damas, abalava, abria de estalo a claque, vinha-se instalar na frisa, ao lado de Carlos, com a bochecha corada, camélia na casaca, exibindo os botões de punho que eram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entrara casualmente no Grémio, Dâmaso abandonou logo a partida, indiferente à indignação dos parceiros, para se vir colar à ilharga do Maia, oferecer-lhe marrasquino ou charutos, segui-lo de sala em sala como um rafeiro…

…Numa dessas ocasiões, tendo Carlos soltado um trivial gracejo, eis o Dâmaso rompendo em risadas soluçantes, rebolando-se pelos sofás, com as mãos nas ilhargas a gritar que rebentava! Juntaram-se sócios; ele, sufocado, repetia a pilhéria; Carlos fugiu vexado. Chegou a odiá-lo; respondia-lhe só com monossílabos; dava voltas perigosas com o dog-cart, se lhe avistava de longe a bochecha, a coxa roliça. Debalde: Dâmaso Cândido de Salcede filara-o, e para sempre.”

“Depois, um dia, Taveira apareceu no Ramalhete com uma extraordinária história. Na véspera, no Grémio (tinham-lhe contado, ele não presenciara) um sujeito, um Gomes, num grupo onde se comentavam os Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos era um asno! Dâmaso, que estava ao lado, mergulhado na “Ilustração”, levantou-se, muito pálido, declarou que, tendo a honra de ser amigo do Sr. Carlos da Maia, quebrava a cara com a bengala ao Sr. Gomes se ele ousasse balbuciar outra vez esse cavalheiro; e o Sr. Gomes tragou, com os olhos no chão, a afronta, por ser raquítico —e porque era inquilino de Dâmaso e andava muito atrasado na renda. Afonso da Maia achou este feito brilhante; e foi por que desejo seu que Carlos trouxe o Sr. Salcede uma tarde a jantar ao Ramalhete.”

“Este dia pareceu belo a Dâmaso, como se fosse feito de azul e ouro. Mas melhor ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco incomodado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes… Daí datava a sua intimidade: começou a tratar Carlos por você. Depois, nessa semana, revelou aptidões úteis. Foi despachar à Alfândega (Vilaça achava-se no Alentejo) um caixote de roupa para Carlos. Tendo aparecido num momento em que Carlos copiava um artigo para a “Gazeta Médica”, ofereceu a sua boa letra, letra prodigiosa, de uma beleza litográfica; e daí por diante passava horas à banca Carlos, aplicado e vermelho, com a ponta da língua de fora, redondo, copiando apontamentos, transcrições de revistas, materiais para o livro… Tanta dedicação merecia um tu de familiaridade. Carlos deu-lho.”

(Ilust. de Julio de Sousa) – “Dâmaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade inquieta, desde a barba, que começava agora a deixar crescer até à forma dos sapatos. Lançara-se no bricabraque. Trazia sempre o coupé cheio de lixos arqueológicos, ferragens velhas, um bocado de tijolo, a asa rachada de um bule… E se um conhecido, fazia parar, entreabria a portinhola como um ádito de sacrário, exibia a preciosidade:— Que te parece? Chique a valer!… Vou mostrá-la ao Maia. Olha-me isto, hem! Pura Meia Idade, do reinado de XIV. O Carlos vai-se roer de inveja!…

…Nesta intimidade de rosas havia todavia para Dâmaso horas pesadas. Não era divertido assistir em silêncio, do fundo de uma poltrona, às infindáveis discussões de Carlos e de Craft sobre arte e sobre ciência. E, como ele confessou depois, chegara a encavacar um pouco quando o levaram ao laboratório para fazer no seu corpo experiências de electricidade… «Pareciam dois demónios engalfinhados em mim>>, disse ele à senhora condessa de Gouvarinho; «e eu então que embirro com o espiritismo!…»

“— Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, bricabraque, discutimos… Um dia chique! Amanhã tenho uma manhã de trabalho com o Maia… Vamos às colchas.”

(Ilust. de Antonio) “Dâmaso era interminável, torrencial, inundante a falar das “suas conquistas», naquela sólida satisfação em que vivia de todas as mulheres, desgraçadas delas, sofriam a fascinação da sua pessoa e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado na sociedade, com coupé e parelha, todas as meninas tinham para ele um olhar doce. E no demi monde, como ele dizia, «tinha prestígio a valer». Desde moço fora célebre, na capital, por pôr casas a espanholas; a uma dera carruagem ao mês; e este fausto excepcional tornara-o bem depressa o D. João V dos prostíbulos…

(Ilust. brasileira)…Conhecia-se a sua ligação com a viscondessa da Gafanha, uma carcaça esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos os homens válidos do país: ia nos cinquenta anos, quando chegou a vez do Dâmaso — e não era decerto uma delícia ter nos braços aquele esqueleto rangente e lúbrico; mas dizia-se que em nova dormira num leito real, e que augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou Dâmaso, e colou-se-lhe às saias, com uma fidelidade tão sabuja, que a decrépita criatura, farta, enojada já, teve de o enxotar à força e com desfeitas. Depois gozou uma tragédia: uma actriz do Príncipe Real, uma montanha de carne, apaixonada por ele, numa noite de ciúme e de genebra, engoliu uma caixa de fósforos; naturalmente daí a horas estava boa, tendo vomitado abominavelmente sobre o colete de Dâmaso, que chorava ao lado — mas desde então este homem de amor julgou-se fatal! Como ele dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida, quase tremia, tremia verdadeiramente de fitar uma mulher…”

“Esta é boa! — exclamou Dâmaso ao mesmo tempo, com uma palmada na coxa. — Olha quem aqui me aparece! A Susana! A minha Susana! Carlos não despegara os olhos da página.— Ó Carlos — acrescentou ele — fazes favor? Ouve. 0uve esta que é boa. Esta Susana é uma pequena que eu tive em Paris… Um romance! Apaixonou-se por mim, quis-se envenenar o diabo!… Pois diz aqui o Figaro, que debutou nas Folies-Bergères. Fala nela… É boa, hem? E era rapariguita chique… E o Figaro diz que ela teve aventuras, naturalmente sabia o que se passou comigo… Todo o mundo sabia em Paris…, a Susana! Tinha bonitas pernas. E custou-me a ver livre dela— Mulheres! — murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundo da revista. “

…— Passaram-se cenas com esta Susana! — murmurou ele, de um silêncio em que estivera catando películas nos beiços”

(Ilust. de Alberto de Sousa) “A sala de esgrima era uma casa térrea, debaixo dos quartos de Carlos, com janela gradeadas para o jardim, por onde resvalava, através das árvores, uma luz esverdinhada. Em dias enevoados era necessário acender os quatro bicos de gás. Dâmaso seguiu, atrás dos dois, com uma lentidão de rês desconfiada. Aquelas lições, que ele solicitara por amor do chique, iam-se-lhe tornando odiosas. E nessa tarde como sempre, apenas se enchumaçou com o plastrão de anta, se cobriu com a caraça de arame, começou a transpirar, a fazer-se branco. Diante dele Craft de florete na mão, parecia-lhe cruel e bestial, com aqueles seus ombros de Hércules sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferros rasparam. Dâmaso estremeceu todo.”

“Dâmaso largara o Figaro para meter um charuto na boquilha; depois desapertou os últimos botões do colete, deu um puxão à camisa para mostrar melhor a marca que era um S enorme sob uma coroa de conde, e de pálpebra cerrada, com o beiço trombudo, ficou mamando gravemente a boquilha. -Tu estás hoje em beleza, Dâmaso — disse-lhe Carlos, que deixara também a revista e o contemplava com melancolia. Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, à meia cor de carne, e revirando para Carlos o bugalho azulado da órbita: -Eu agora ando bem… Mas, muito blasé. E foi realmente com um ar blasé que se ergueu a ir buscar a uma mesa de jardim, ao lado, onde estavam jornais e charutos, a «Gazeta Ilustrada», «para ver o que ia pela pátria. Apenas lhe deitou os olhos soltou uma exclamação…

“Ora essa! Queria ver, se fosse contigo… É uma besta. É um selvagem. E repetiu mais uma vez a Carlos a história que o magoava. Desde a sua chegada de Bordéus, logo que o Castro Gomes se instalara no Hotel Central, ele fora deixar-lhe bilhetes duas vezes— a última na manhã seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, Sua Excelência não se dignara agradecer a visita! Depois eles tinham partido para o Porto; fora aí que, passeando só na Praça Nova, vendo a parelha de uma caleche desbocada, duas senhoras em gritos, Castro Gomes se lançara ao freio dos cavalos — e, cuspido contra as grades, tinha deslocado um braço. Teve de ficar no Porto, no hotel, cinco semanas. E ele imediatamente (sempre com o olho na mulher) mandara-lhe dois telegramas: um de sentimento, lamentando; outro de interesse, pedindo notícias. Nem a um, nem a outro, o animal respondeu! Não, isso — exclamava Salcede, passeando pelo terraço, e recordando estas injúrias – hei-de-lhe fazer uma desfeita!…Não pensei ainda o quê, mas há-de amargar-lhe…

…Não pensei ainda o quê, mas há-de amargar-lhe…Lá isso, desconsiderações não admito a ninguém. A ninguém! Arredondava o olho, ameaçador. Desde o seu feito no Grémio, quando o raquítico apavorado emudecera diante dele, Dâmaso ia-se tornando feroz. Pela menor coisa falava em “quebrar caras”. -A ninguém! Repetia ele, com puxões ao colete. –Desconsiderações, a ninguém!”

“Apenas o coupé partiu, Carlos, cerrando a vidraça, fez a pergunta que desde a aparição do Dâmaso lhe faiscava nos lábios.— Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse Gomes?…O Dâmaso contou logo tudo, triunfante. Fora tudo equívoco! Ah, as explicações do Castro Gomes tinham sido de um gentleman. Se não, quebrava-lhe a cara. Isso não, desconsiderações, a ninguém! A ninguém! Mas fora assim: os bilhetes que ele lhe deixara conservavam a sua adresse do Grande-Hôtel de Paris. E o Castro Gomes, supondo que ele vivia lá, obedecendo à indicação, mandara para lá os seus cartões, hem? É de estúpido… E a falta de resposta aos telegramas fora culpa de madame, descuido, naquele momento de aflição vendo o marido com o braço escavacado… Ah, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora eram íntimos, estava lá quase sempre… -Enfim, menino, um romance…Mas isto é para mais tarde!”

“Uma tarde [Carlos da Maia e Maria Eduarda] falaram do Dâmaso. Ela achava-o insuportável com a sua petulância, os olhos bugalhudos, as perguntas néscias. Vossa Excelência acha Nice elegante? Vossa Excelência prefere a capela de S. João Baptista a Notre-Dame? — E então a insistência de falar de pessoas que eu não conheço! A senhora condessa de Gouvarinho, e os chás da senhora condessa de Gouvarinho, e a frisa da senhora condessa de Gouvarinho, e a preferência que a senhora condessa Gouvarinho tem por ele… E isto horas! Eu às vezes tinha medo de adormecer…

…Para sacudir logo de entre eles esse nome, [Carlos] começou a falar de. Guimarães, o famoso tio de Dâmaso, o amigo de Gambetta, o influente da República… —0 Dâmaso tem-me dito que Vossa Excelência o conhece muito…Ela ergueu os olhos, com um fugitivo rubor no rosto. — Mr. Guimarães… Sim, conheço muito… Ultimamente menos, mas ele era muito amigo da mamã. E depois de um silêncio, de um curto sorriso, recomeçando a puxar o seu longo fio de lã:— Pobre Guimarães, coitado! A sua influência na República é traduzir notícias dos jornais espanhóis e italianos para o “Rappell”, que disso é que vive… Se é amigo de Gambetta, não sei. Gambetta tem amigos tão extraordinários… Mas o Guimarães, aliás bom homem e homem honrado, é um grotesco, uma espécie de Calino republicano. E tão pobre, coitado! O Dâmaso, que é rico, se tivesse decência, ou o menor sentimento, não o deixava viver assim tão miseravelmente… Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que fala o Dâmaso? Ela escolheu mudamente os ombros.

“Ega tomou então um ar grave. Escolheu lentamente na caixa uma cigarette, abotoou devagar o jaquetão. Tu não tens visto o Dâmaso? -Nunca mais me apareceu — disse Carlos. — Creio está amuado… Eu sempre que o encontro, aceno-lhe de amigavelmente com dois dedos…Devia ser antes com a bengala. O Dâmaso anda aí por toda a parte, falando de ti e dessa senhora, tua amiga… A ti chama-te «pulha», a ela pior ainda. É a velha história; diz que te apresentou, que te meteste de dentro, e como para senhora é uma questão de dinheiro, e tu és o mais rico, ela lhe passou o pé… Vês daí a infamiazinha. E isto tagarelado pelo Grémio, pela Casa Havanesa, com detalhes torpes, envolvendo sempre a questão de dinheiro. Tudo isto é atroz. Trata de lhe pôr cobro. Carlos, muito pálido, disse simplesmente: -Há-de-se fazer justiça.”

Anteontem estava eu a cear no Silva, ele veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e começou logo com umas coisas a teu respeito, umas ameaças… -Ameaças! Que disse ele? -Diz que te dás ares de espadachim, e de valentão, mas hás-de encontrar dentro em pouco quem te ensine… Que se está aí preparando um escândalo monumental… Que se não admirará de te ver brevemente com uma boa bala na cabeça… -Uma bala? -Assim o disse. Tu ris, mas eu é que sei… Eu, se fosse a ti, ia-me ao Dâmaso e dizia-lhe: «Damasozinho, flor, fique avisado que, de ora em diante, cada vez que me suceder uma coisa desagradável, venho aqui e parto-lhe uma costela; tome as suas medidas.”

“Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo falou-lhe logo no Dâmaso . Não tornara a ver essa flor? Pois essa flor andava por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo explicações humildes, cobardes…Terrível, aquele Dâmaso! Tinha figura, interior e natureza de péla! Com quanto mais força se atirava ao chão, mais ele ressaltava para o ar, triunfante… — Em todo o caso é uma rês traiçoeira, e deves ter cautela com ele…Carlos encolheu os ombros, rindo.— Não, não — dizia o Taveira muito sério. — Eu conheço o meu Dâmaso. Quando foi da nossa pega, em casa da Lola Gorda, ele portou-se como um poltrão, mas depois ia-me atrapalhando a vida… É capaz de tudo…”

“Imediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um punhado de libras, que começou a deixar cair em silêncio uma a uma dentro de um prato. E Palma «Cavalão>>, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetão, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monograma de prata sobre uma enorme coroa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeu três papéis sobre a mesa. Ega, que com o monóculo sôfrego, teve um brado de triunfo. Reconhecera a letra do Dâmaso! Carlos examinou os papéis lentamente. Era uma carta do Dâmaso ao Palma, curta e em calão, remetendo o artigo, recomendando-lhe «que o apimentasse». Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo Dâmaso, com entrelinhas. Era a lista, escrita pelo Dâmaso, das pessoas que deviam receber a “Corneta”: vinha lá o Gouvarinho, o ministro do Brasil, D. Maria da Cunha, el-rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, várias autoridades, e a Fancelli prima-dona…

…Palma, no entanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear os olhos aos documentos por cima do ombro de Carlos. — Recolha o bago, amigo Palma! Negócios são negócios e o baguinho está aí a arrefecer!”

“Em resumo, Dâmaso, desdiz-se ou bate-se? Desdizer-me? — tartamudeou o outro, empertigando se, num penoso esforço de dignidade, a tremer todo. — E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou lá homem que me desdiga! -Perfeitamente, então bate-se… Dâmaso cambaleou para trás, desvairado: -Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu cá é a soco. Que venha para cá, não tenho medo dele, arrombo-o… Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados em riste. E queria Carlos ali, para o escavacar! Não lhe faltava mais senão bater-se… E então duelos em Portugal que acabavam sempre por troça!…

…Ega, no entanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoara a sobrecasaca e recolhia os papéis espalhados sobre a Bíblia. Depois, serenamente, fez a última declaração de que fora incumbido. Como o Sr. Dâmaso Salcede recusava retractar-se e rejeitava também uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse, daí por diante, fosse uma rua, fosse um teatro lhe escarraria na face…

… -Escarrar-me! — berrou o outro, lívido, recuando, como se o escarro já viesse no ar. E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor. precipitou-se sobre o Ega, agarrando-lhe as mãos, numa agonia:- Ó João, ó João, tu, que és meu amigo, por quem és livra-me desta entaladela!”

“Exmo. Sr.” Está claro, você dá-lhe ”Excelência” porque é um documento de honra…”Exmo. Senhor – tendo-me Vossa Excelência, por intermédio dos seus amigos João da Ega e Vitorino Cruges, manifestado a indignação que lhe causara um certo artigo da Corneta do Diabo, de que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho declarar francamente a Vossa Excelência que esse artigo, como agora reconheço, não continha senão falsidades e incoerências e a minha desculpa única está em que o compus e enviei à redacção da Corneta no momento de me achar no mais completo estado de embriaguez”…

…”Agora que voltei a mim, reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que é Vossa Excelência um carácter absolutamente nobre; e as outras pessoas que nesse momento de embriaguez ousei salpicar de lama são-me só merecedoras de veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a suceder soltar eu alguma palavra ofensiva para Vossa Excelência, não lhe devia Vossa Excelência ou aqueles que a escutassem mais importância do que se dá a uma involuntária baforada de álcool – pois que, por um hábito hereditário que reaparece frequentemente na minha família, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez…De Vossa Excelência, com toda a estima, etc.”

(Ilust. de Santana) “Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca — e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio. Fora, outrora, director-geral do ministério do reino, e sempre que dizia — El-Rei! — erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre “o nosso Garrett, o nosso Herculano”. Citava muito. Era autor. E sem família, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política…

…:tinha composto os ELEMENTOS GENÉRICOS DA CIÊNCIA DA RIQUEZA E SUA DISTRIBUIÇÃO, segundo os melhores autores, e como subtítulo: Leituras do serão! Havia apenas meses publicara a RELAÇÃO DE TODOS OS MINISTROS DE ESTADO DESDE O GRANDE MARQUÊS DE POMBAL ATÉ NOSSOS DIAS, COM DATAS CUIDADOSAMENTE AVERIGUADAS DE SEUS NASCIMENTOS E ÓBITOS.”

(Ilust de Júlio de Sousa) “Foi por esse tempo que, num sábado, o Diário do Governo publicou a nomeação do Conselheiro Acácio ao grau de cavaleiro da Ordem de S. Tiago, atendendo aos seus grandes merecimentos literários, às obras publicadas de reconhecida utilidade, e mais partes…

“Na noite seguinte, ao entrar em casa de Jorge, todos o cercaram, felicitando-o com alarido; o conselheiro, depois de os abraçar um por um numa pressão nervosa e comovida, caiu no sofá, exausto, e murmurou: — Não o esperava tão cedo da real munificência! Não o esperava tão cedo! — e acrescentou, pondo à mão espalmada sobre o peito: — Direi como o filósofo: Esta condecoração é o melhor dia da minha vida!”

“E às onze e meia descia o Moinho de Vento, quando viu a figura digna do Conselheiro Acácio que subia da Rua da Rosa, devagar, com o guarda-sol fechado, a cabeça alta. Apenas a avistou apressou-se, curvou-se profundamente: — Que encontro verdadeiramente feliz!… — Como está, Conselheiro? Ditosos olhos que o vêem! — E V. Exª, minha senhora? Vejo-a com excelente aspecto! Passou-lhe à esquerda com um movimento solene; pôs-se a caminhar ao lado dela. — Permite-me decerto que a acompanhe na sua excursão -Decerto, com o maior prazer. Mas que tem feito? Tenho muito que lhe ralhar… — Estive em Sintra, minha querida senhora. — e parando: — Não sabia? O Diário de Notícias especificou-o!…

…Tinham entrado em S. Pedro de Alcântara; um ar doce circulava entre as árvores mais verdes; o chão compacto, sem pó, tinha ainda uma ligeira humidade; e, apesar do sol vivo, o céu azul parecia leve e muito remoto. O Conselheiro então falou do estio; tinha sido tórrido! na sua sala de jantar tinha havido 48 graus à sombra! 48 graus! — E com bonomia, querendo logo desculpar a sala daquela exageração canicular: — Mas é que está exposta ao sul! Façamos essa justiça! Está muito exposta ao sul! Hoje porém está verdadeiramente restaurador. Convidou-a mesmo a dar uma volta embaixo no jardim…

— Mas depois de vir de Sintra? Ele acudiu: — Ah! Tenho estado ocupadíssimo! Ocupadíssimo! Inteiramente absorvido na complicação de certos documentos que me eram indispensáveis para o meu livro… — E depois de uma pausa: — Cujo nome não ignora, creio. Luísa não se recordava inteiramente. O Conselheiro então expôs o título, os fins, alguns nomes de capítulos, a utilidade da obra: era a DESCRIÇÃO PITORESCA DAS PRINCIPAIS CIDADES DE PORTUGAL E SEUS MAIS FAMOSOS ESTABELECIMENTOS. – É um guia, mas um guia científico. Ilustrarei com um exemplo: V. Exª quer ir a Bragança; sem o meu livro é muito natural (direi, é certo) que volta sem ter gozado das curiosidades locais; com o meu livro percorre os edifícios mais notáveis, recolhe um fundo muito sólido de instrução, e tem ao mesmo tempo o prazer. Luísa mal o escutava, sorrindo vagamente sob o seu véu branco. — Está hoje muito agradável! — disse ela. — Agradabilíssimo! Um dia criador! — Que bom fresco aqui! …

— Grande panorama! — disse o Conselheiro com ênfase. — E encetou logo o elogio da cidade. Era uma das mais belas da Europa, decerto, e como entrada, só Constantinopla! Os estrangeiros invejavam-na imenso. Fora outrora um grande empório, e era uma pena que a canalização fosse tão má, e a edilidade tão negligente! — Isto devia estar na mão dos ingleses, minha rica senhora! — exclamou. Mas arrependeu-se logo daquela frase impatriótica. Jurou que “era uma maneira de dizer”. Queria a independência do seu país, morreria por ela, se fosse necessário; nem ingleses nem castelhanos!… Só nós, minha senhora! — E acrescentou com uma voz respeitosa: — E Deus! — Que bonito está o rio! — disse Luísa.

…Acácio afirmou-se, e murmurou em tom cavo: — O Tejo! Quis então dar uma volta pelo jardim. Sobre os canteiros borboletas brancas, amarelas, esvoaçavam; um gotejar de água fazia no tanque um ritmozinho de jardim burguês; um aroma de baunilha predominava; sobre a cabeça dos bustos de mármore, que se elevam dentre os maciços e as moitas de dálias, pássaros pousavam. Luísa gostava daquele jardinzinho, mas embirrava com as grades tão altas… — Por causa dos suicídios! — acudiu logo o Conselheiro. — E todavia, segundo a sua opinião, os suicídios em Lisboa diminuíam consideravelmente; atribuía isso à maneira severa e muito louvável como a imprensa os condenava… — Porque em Portugal, creia isto, minha senhora, a imprensa é uma força! — Se fôssemos andando?… — lembrou Luísa…

…O Conselheiro curvou-se, mas vendo-a a ir colher uma flor, reteve-lhe vivamente o braço: — Ah, minha rica senhora, por quem é! Os regulamentos são muitos explícitos! Não os infrinjamos, não os infrinjamos! — E acrescentou: — O exemplo deve vir de cima…

…Apressou o passo, ao Loreto parou. O Conselheiro olhou-a, sorrindo, esperando. — Ah! pensei que ia para casa, Conselheiro! — Já agora quero acompanhá-la, se V. Exª me permite. Decerto não sou indiscreto! — Ora essa! De modo nenhum. Uma carruagem da Companhia passava, seguida de um correio a trote. O Conselheiro, com um movimento ansioso, tirou profundamente o chapéu. — É o presidente do conselho. Não viu? Fez-me um sinal de dentro. — Começou logo o seu elogio: Era o nosso primeiro parlamentar; vastíssimo talento, uma linguagem muito castigada! — E ia decerto falar das coisas públicas, mas Luísa atravessou para os Mártires, erguendo um pouco o vestido por causa de uns restos de lama. Parou à porta da igreja, e sorrindo: — Vou aqui fazer uma devoçãozinha. Não o quero fazer esperar. Adeus, Conselheiro, apareça. — Fechou a sombrinha, estendeu-lhe a mão.”

(Ilust de Rocha Vieira) Sebastião lembrava-se de um primo seu, deputado pelo Alentejo, um gordo, da maioria, um pouco fanhoso. Se Julião queria, falava-lhe… Mas sempre ouvira dizer que a Escola não era gente de empenhos e de intriga… De resto tinham o Conselheiro Acácio…— Uma besta! — fez Julião. — Um parlapatão! Quem faz lá caso daquilo? O teu primo, hein! O teu primo parece-me bom!

(Ilust de Bernando Marques) “Não havia que estranhar aquelas opiniões católicas do conselheiro, ia observando Julião, porque tinha duas imagens de santos pendentes à cabeceira da cama… A calva de Acácio fez-se rubra: O Savedra do Século exclamou com a boca cheia: — Não o sabia carola, conselheiro! Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e acudiu: — Eu peço ao meu Savedra que não tire desse fato ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Creio em Deus. Mas reconheço que a religião é um freio…

O conselheiro continuava, explicando: — Como dizia, sou liberal, mas entendo que algumas litografias ou gravuras, alusivas ao mistério da Paixão, têm o seu lugar num quarto de cama, e inspiram de certo modo sentimentos cristãos. Não é verdade, meu Jorge? Mas o Savedra interrompeu ruidosamente, com a face acesa numa jovialidade libertina:— Eu, num quarto de dormir, as únicas pinturas que admito são uma bela ninfa nua, ou urna bacante desenfreada! — Isso, isso! — bradou o Alves Coutinho. A boca dilatava-se-lhe numa admiração sensual. — Este Savedra! Este Savedra! — E baixo para Sebastião: — Tem um talento! tem um talento! O conselheiro voltou-se para Julião, e puxando o guardanapo para o estômago: — Espero que não sejam esses os painéis imorais que se vêem no seu gabinete de estudo…

Rua Vitor Cordon -… Julião emendou: No meu cubículo. Ah! não, conselheiro! Tenho apenas duas litografias — um é um homem sem pele para representar o sistema arterial, o outro é o mesmo indivíduo igualmente sem pele para se ver o sistema nervoso… O conselheiro teve com a sua mão branca um vago gesto enojado, e exprimiu a opinião — que na medicina, aliás uma grande ciência! Havia coisas bastante asquerosas. Assim, ouvira dizer que nos teatros anatômicos, os estudantes de idéias mais avançadas levavam o seu desprezo pela moral, até atirarem uns aos outros, brincando, pedaços de membros humanos, pés, coxas, narizes… — Mas é como quem mexe em terra, conselheiro! — disse Julião, enchendo o copo — é matéria inerte! — E a alma, Sr. Zuzarte? — exclamou o conselheiro. Fez um gesto de vaga reticência; e julgando tê-lo aniquilado com aquela palavra suprema, abriu para Sebastião um sorriso cortês e protetor:

…— E que diz o nosso bondoso Sebastião? — Estou a ouvir, senhor conselheiro. — Não dê ouvidos a estas doutrinas! — com o garfo mostrava a figura biliosa de Julião. — Mantenha a sua alma pura. São perniciosas. Que o nosso Jorge (o que é de lamentar num homem estabelecido e empregado do Estado) também vai um pouco para estas exagerações materialistas! Jorge riu; afirmou que sim, que tinha essa honra… — Então o conselheiro quer que eu, um engenheiro, um estudante de matemática, acredite que há almas que vivem no céu, com asinhas brancas, túnicas azuis, e tocando instrumentos? O conselheiro acudiu: — Não, instrumentos não! — E como apelando para todos: Não creio que tivesse falado em instrumentos. Os instrumentos são uma exageração. São, podemos dizê-lo, táticas do partido reacionário… Ia fulminar a doutrina ultramontana — mas a Sra Filomena colocou-lhe diante a travessa com a perna de vitela assada…”

“Beberam com ruído. Acácio, depois de limpar os beiços, passou a mão trêmula pela calva, levantou-se comovido, e começou: — Meus bons amigos! Eu não me preparei para esta circunstância. Se a soubesse de antemão, teria tomado algumas notas. Não tenho a verbosidade dos Rodrigos ou dos Garretts. E sinto que as lágrimas me vão embargar a voz. Falou então de si, com modéstia: reconhecia, quando via na capital tão ilustres parlamentares, oradores tão sublimes, tão consumados estilistas, reconhecia que era um zero! — E com a mão erguida formava no ar, pela junção do polegar e do indicador, um O: um zero! Proclamou o seu amor à pátria: que amanhã as instituições ou a família real precisassem dele — e o seu como, a sua pena, o seu modesto pecúlio, tudo oferecia de bom grado! Quereria derramar todo o seu sangue pelo trono!…

… E, prolixo, citou o Eurico, as instituições da Bélgica, Bocage e passagens dos seus prólogos. Honrou-se de pertencer à Sociedade Primeiro de Dezembro… — Nesse dia memorável — exclamou — eu mesmo ilumino as minhas janelas, sem o luxo dos grandes estabelecimentos do Chiado, mas com uma alma sincera! E terminou dizendo: — Não esqueçamos, meus amigos, como portugueses, de fazer votos pelo ilustrado monarca, que deu às neves da minha fronte, antes de descerem ao túmulo, a consolação de se poderem revestir com o honroso hábito de São Tiago! Meus amigos, à família real!…

…— e ergueu o copo — à família modelo, que sentada ao leme do Estado, dirige, cercada dos grandes vultos da nossa política, dirige… — Procurou o fecho; havia um silêncio ansioso — dirige… — Através das lunetas negras, os seus olhos cravavam-se, à busca da inspiração, na travessa de aletria — dirige… — Coçou a calva aflito; mas um sorriso clareou-lhe o aspecto, encontrara a frase; e estendendo o braço: — …dirige a barca da governação pública com inveja das nações vizinhas! À família real! — À família real! — disseram com respeito. O café foi servido na sala. As velas de estearina punham uma luz triste naquela habitação fria; o conselheiro foi dar corda à caixa de música; e, ao som do coro nupcial da Lúcia, ofereceu em redor charutos.”

(Ilust de Fernandes da Silva) “E a alta figura de Acácio adiantou-se, com as bandas do casaco de alpaca deitadas para trás, a calça branca muito engomada caindo sobre os sapatos de entrada baixa, de laço. Apenas Luísa lhe apresentou o primo Basílio, disse logo, respeitoso: — Já sabia que V. Ex. a tinha chegado; vi-o nas interessantes notícias do nosso high-life. E do nosso Jorge? Jorge estava em Beja… Diz que se aborrece muito… Basílio, mais amável, deixou cair: — Eu realmente não tenho a menor idéia do que se possa fazer em Beja. Deve ser horroroso! O Conselheiro, passando sobre o bigode a sua mão branca onde destacava o anel de armas, observou: — É todavia a capital do distrito! Mas se já em Lisboa se não podia fazer nada, e era a capital do reino! — E Basílio puxava, todo recostado, o punho da camisa. — Morria-se positivamente de pasmaceira!

Luísa, muito contente da afabilidade de Basílio, pôs-se a rir: — Não digas isso diante do Conselheiro. E um grande admirador de Lisboa. Acácio curvou-se: — Nasci em Lisboa, e aprecio Lisboa, minha rica senhora. E com muita bonomia: — Conheço porém que não é para comparar aos Parises, às Londres, às Madris… — Decerto — fez Luísa. E o Conselheiro continuou com pompa: — Lisboa porém tem belezas sem igual! A entrada, ao que me dizem (eu nunca entrei a barra) é um panorama grandioso, rival das ConstantinopIas e das Nápoles. Digno da pena de um Garrett ou de um Lamartine! Próprio para inspirar um grande engenho!… Luísa, receando citações ou apreciações literárias, interrompeu-o; perguntou-lhe o que tinha feito. Tinham estado domingo no Passeio, ela e D. Felicidade; tinham esperado vê-lo, e nada! Nunca ia ao Passeio, ao domingo — declarou. — Reconhecia que era muito agradável, mas a multidão entontecia-o…

Tinha notado, — e a sua voz tomou o tom espaçado de uma revelação, — tinha notado que muita gente, num local, causa vertigens aos homens de estudo. De resto queixou-se da sua saúde e do peso dos seus trabalhos. Andava compilando um livro e usando as águas de Vichy…

O Passeio ao domingo é simplesmente idiota!… O Conselheiro refletiu e respondeu: — Não serei tão severo, Sr. Brito! — Mas parecia-lhe que com efeito antigamente era uma diversão mais agradável. — Em primeiro lugar — exclamou com muita convicção, endireitando-se — nada mas nada, absolutamente nada pode substituir a charanga da Armada! — Além disso havia a questão dos preços… Ah! Tinha estudado muito o assunto! Os preços diminutos favoreciam a aglomeração das classes subalternas… Que longe do seu pensamento lançar desdouro nessa parte da população… As suas idéias liberais eram bem conhecidas. — Apelo para a Srª D. Luísa! — disse.

— Mas, enfim, sempre era mais agradável encontrar uma roda escolhida! Quanto a si nunca ia ao Passeio. Talvez não acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! Nesses dias, sim, ia ver por fora das grades. Não por economia! Decerto não. Não era rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta. Mas é que receava os acidentes! E que os receava muito! Contou a história de um sujeito, cujo nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furara o crânio. — E além disso nada mais fácil que cair uma fagulha acesa na cara, num paletó novo… — E conveniente ter prudência — resumiu, compenetrado, limpando os beiços com o lenço de seda da Índia muito enrolado.”

(Ilust. de David) Imaginemos, então, que os 2 romances (Os Maias e o Primo Basílio) não são ficção ou que os relatos ficaram incompletos. E que Dâmaso e Acácio, numa cidade provinciana, como era Lisboa no final do Séc. XIX, estavam condenados a conhecer-se. Os meandros dessa aproximação são desconhecidos, mas ocorreram já depois de Dâmaso se ter casado com uma filha do Conde de Águeda – e ao que disseram as más-línguas, ter sido “enfeitado”. Coisas da vida… Estava mais gordo, mais barrigudo, com a eterna flor ao peito…

“No começo da rua João de Deus, Dâmaso Salcede quase tropeça no Conselheiro. Cumprimenta-o com alguma cerimónia:- “Meu nobre amigo! Fui agora à Basílica, por causa do peditório para as vítimas das cheias do Ribatejo. Estava lá muita rapaziada dos jornais! Até estão a publicar os nomes dos beneméritos. E eu, não é pela propaganda, que não ligo a essas coisas, tinha de contribuir!. Eu, quando toca a obras de caridade, estou sempre pronto, sou um mãos-largas! É de família, já o meu pai, que Deus tenha em descanso” – e levou a mão à testa, “- era o mesmo. Muitas famílias, ajudou! Não havia infeliz que estivesse aflito e lhe batesse á porta, que não saísse sem uma ajuda!”…

…Acácio eleva o dedo indicador direito: -Tem Vossa Excelência um semblante radioso. Parece que a maleita que sei vos tem vindo a atormentar, não  retirou a bela aparência. Julgo isso um apanágio dos espíritos superiores, a quem o ruinoso relógio da vida não esmorece a jovialidade ou a pujança intelectual. No pouco tempo que a actividade política me concede, tenho publicado uma série de crónicas na “Gazeta”, que V. Exa, certamente não ignora. Aí espraio-me em divagações filosóficas ácerca do primado da mente sobre as astúcias e os ardis da carne. Que a mim me tem servido, nesta vida de castidade em que sempre vivi.” Dâmaso toma-lhe familiarmente o braço e começam a descer a Calçada da Estrela…

…”- Gota, é essa mortificação. Cada vez que belisco um salmãozinho fumado ou uma perdiz estufada, tudo coisas catitas, as juntas das mãos ficam inchadas e doem-me”. O Conselheiro interrompe-o: “-É, de facto, uma penitência. Mas deve considerá-la como certificação do refinado apetite e das esmeradas iguarias com que V. Exa se tem deleitado. Soube, há dias que o Sr. Palma Cavalão, se queixa também do mesmo. Conhece-o V. Exa?” “-Sim, sim: em tempos tivemos um negociozinho…” aquiesceu Dâmaso. “É um insigne jornalista a quem o Partido muito deve. Teve uma actividade notável, pondo a nu as torpezas dos nossos adversários, sem receio de escândalos. Foi também secretário particular do Carneiro, aquele que foi ministro!…Mas, agora é uma pessoa a quem até o nosso Primeiro-Ministro ouve com atenção!

…Dâmaso esboça um sorriso: -“O Palma, próximo do José Luciano?! Chique!. Vou meter-lhe um empenho!”

Dom Pedro d’Alcântara: uma peça à procura de autor

No alto do pedestal implantado na Praça que tem o seu nome, D. Pedro observa o Tejo. Nas suas costas a fachada do teatro que, sua filha, D. Maria II, mandara erigir.

O teatro foi construído sobre as ruínas do Palácio da Inquisição, que o terramoto abatera. Soterrados estão, pois, destroços da repressão odiosa. Sobre eles ergueu-se um espaço onde se representam os conflitos eternos do Homem. Pressente-se a figura corajosa de Almeida Garrett, que se não vislumbra, mas está tão presente como a memória dos fanatismos e atrocidades, enterrados mas não esquecidos.

D. Pedro foi um Príncipe liberal. Regente do Brasil, após o regresso da Corte a Portugal, percebeu a revolta dos brasileiros às tentativas portuguesas de recolonização e apoiou-os. Apesar da variedade de facções, grupos sociais e interesses económicos, o seu grito “liberdade ou morte!” foi de encontro às pretensões da maioria. Gesto teatral, imagem edipiana dum Príncipe no fio da História, teve na Europa o aplauso dos defensores do liberalismo.

Depois, os seus maiores esforços foram  assegurar a manutenção da independência contra as reacções de parte dos portugueses, militares e  civis, e dotar o novo país de uma Lei Geral que assegurasse as liberdades, semelhantes às que a revolução francesa trouxera à Europa. Mas 2/5 da população brasileira era constituída por escravos e a produção dependia do seu trabalho. A redacção da nova Constituição passou a ser pretexto para confrontos entre interesses regionais não confessados e vinganças pessoais. Era o poder dos coronéis, esclavagistas ou liberais radicais que estava em jogo, não o texto constitucional em si. A luta política foi acesa e pouco escrupulosa. Diversos grupos pretenderam tornar o Imperador figura decorativa, o que D. Pedro rejeitou.
Peripécias dramáticas rodearam a aprovação da Constituição. Outras circunstancias como a derrota do exército brasileiro no conflito para a manutenção do que hoje constitui o Uruguai, foram desgastando o prestígio do Imperador. Foi-lhe atribuída a culpa pela secessão, ele que, até, decidira intervir em pessoa no conflito… Certamente desiludido com os acontecimentos, abdica do trono brasileiro em favor de seu filho, D. Pedro II.
O direito sucessório de D. Pedro ao trono português é posto em causa, por já antes ter sido Rei de outro país. Decide lutar pelos direitos de sua filha D. Maria da Glória, contra o que considera a usurpação de seu irmão Miguel. Mais importante que a disputa familiar, está a luta entre as concepções absolutista e liberal do Poder. A guerra não é fácil. O Portugal profundo é tradicionalista e religioso e desconfia dos estrangeirismos. Se passou pela cabeça de D. Pedro que desembarcava no Mindelo e tinha aos pés um país grato, que ansiava por se libertar, iludiu-se. Teve de se bater valentemente para vencer a Guerra Civil. E, quando o conseguiu, abdicou.
Esta trajectória de coragem, despojamento, verticalidade, de crença em valores de justiça e liberdade, fizeram dele um modelo para as forças liberais em luta em vários países europeus. Borbon pelo lado da mãe, Bragança pelo lado paterno, e familiar da maioria das Casas reinantes europeias, tornou-se um Príncipe “desejado”. O seu fim foi o epílogo simbólico dum Rei romântico: morrer tuberculoso, no Quarto D. Quixote.

xxx

A vida de D. Pedro tem todos os atributos de um drama Shakespeariano. São personagens principais:

A Rainha/Carlota Joaquina que não se sabe se envenenou o Rei/D. João VI ou não, mãe de vários filhos, cuja paternidade oferece dúvidas, com comportamento licencioso, a quem se atribuem amantes variados, desde camareiros a nobres e que conspira a favor de D. Miguel.

O Rei é um pícnico hesitante, que se viu Regente sem o desejar, guarda pedaços de frango nas algibeiras para satisfazer a sua bulimia, é obrigado a tomar decisões graves pressionado pelos antagonismos que se extremam à sua volta – na Corte e no mundo.

Um Príncipe/D. Miguel a quem a lei vigente atribui o direito à Coroa, apoiado pelos fidalgos da província, párocos e populares que aspiram a um rei forte capaz de regenerar o país, devastado pelas invasões francesas. Adopta um comportamento contraditório. Jura a Carta, aceita o esponsal com sua sobrinha para melhor chegar à Coroa, mas depois rasga os compromissos, conspira contra seu pai, encabeça movimentos militares para repor o absolutismo.
O outro Príncipe é D. Pedro d’Alcântara.
A guerra fratricida personifica duas concepções de Poder com relevo para a ambição sem escrúpulos, tibieza, oportunismos e traições. É uma peça à procura de autor.

FM

 

O Infante que havia de ser D. João VI, nasceu em 1767, segundo filho de D. Maria I de Portugal. Ascendeu ao trono, por seu irmão mais velho ter morrido criança ainda, de varíola. É depois Príncipe Regente – dada a doença mental de sua mãe, príncipe Real do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, rei de Portugal e Imperador Titular do Brasil, além de muitos outros títulos. Proclamado Rei em 1818, no Rio de Janeiro, 2 anos após a morte de D. Maria I. Como é descrito por brasileiros: “D. João era muito feio, baixo, gordo, bonacheirão, comilão chegando a devorar 3 frangos seguidos, acompanhados por água, uma vez que raramente bebia vinho, era sossegado e sem vaidades, não gostava de roupas novas” (óleo de Domingos Sequeira)

D. João VI morreu em 1826. Factos políticos de importancia excepcional marcaram o seu governo, quer como Regente quer como Rei. Cronologicamente: a Campanha do Rossilhão (1793 — 1795), campanha militar em que Portugal participou ao lado da Espanha e do Reino Unido contra a França revolucionária; a ascensão ao Poder de Napoleão (1804); o Bloqueio Continental imposto por Napoleão para impedir o acesso aos portos de mar a navios ingleses (1806); a transferência da Corte portuguesa para o Brasil (1807); e as Invasões francesas (1807-1810).

Carlota Joaquina era filha primogénita do rei Carlos IV de Espanha e da esposa Maria Luísa de Parma. O seu casamento foi planeado tinha ela apenas dez anos de idade, com o então Infante D. João. Em 1788, tornou-se princesa-regente consorte de Portugal. É-lhe atribuída grande inteligência e um carácter ambicioso e violento (“A Megera de Queluz”). Chantagem, intriga e pressão conjugal foram métodos para intervir nos negócios do Estado. Em 1805, ainda em Portugal, D. João descobriu uma conspiração tramada pela esposa que planeava tirá-lo do poder. Depois do regresso do Brasil Carlota Joaquina aliou-se ao filho Miguel contra as ideias liberais. Foi a figura mais notável a recusar-se jurar a Constituição de 1822. Teve grande responsabilidade nos pronunciamentos conhecidos como Vilafrancada e Abrilada, que visavam abolir o constitucionalismo, afastar D. João VI do governo e colocar no trono o Infante D. Miguel. Foi, de facto, a cabeça do partido absolutista em Portugal. (óleo de Domingos Sequeira)

D. João VI e Carlota Joaquina tiveram nove filhos. Lêm-se documentos que duvidam que parte dos descendentes fossem filhos de D. João, nomeadamente D.Miguel, futuro Rei. Durante vários períodos os Reis estiveram separados, tendo Carlota Joaquina vivido no Palácio de Queluz e depois no Ramalhão. Há muitas sátiras à vida licenciosa da Rainha e aos seus múltiplos amantes.

A transferência da corte portuguesa (numa estimativa de 15000 pessoas, entre nobres e servos) fez-se por meio de uma esquadra composta por 6 Naus, 3 fragatas, 3 brigues e 2 escunas, que zarparam de Lisboa a 29 de Novembro, escoltada por navios ingleses. 50 dias foi a duração da viagem até à Bahia. O Infante D. Pedro de Alcântara tinha na época 9 anos de idade

Ao evitar-se que a Família Real fosse aprisionada em Lisboa pelas tropas francesas, inviabilizou-se o projecto de Napoleão para a península Ibérica, que consistia em estabelecer nela famílias reais da sua própria família, como ainda se tentou em Espanha com a deposição de Fernando VII e Carlos IV, colocando no trono José Bonaparte, irmão de Napoleão.

As embarcações chegaram à costa da Bahia a 18 de Janeiro de 1808 e, no dia 22, os habitantes de Salvador já puderam avistar os navios da esquadra. A corte por aqui permaneceu um mês

As condições de vida a bordo eram inimaginaveis. Quando Carlota Joaquina desembarcou, levava um lenço à volta da cabeça por causa dos piolhos. O sucesso que causou entre os naturais foi enorme e diz-se ter sido esta a origem dos turbantes que ainda hoje as mulheres baianas envergam.

pelourinho

Vista atual do Pelourinho no Centro Histórico de Salvador da Bahia, reconhecido pela Unesco em 1985 como Património da Humanidade. De antigo antro de criminalidade e prostituição, a área do pelourinho dos antigos escravos tornou-se num centro cultural dos maior importancia do Brasil, indissociável de nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Gilberto, Doryval Caymmi ou Maria Bethânia…para não falar da Casa-Fundação de Jorge Amado.

Mas, eis a chegada da família real ao Brasil

Paço do Vice-Rei – Os membros da Família Real ficaram alojados em três prédios no centro da cidade, entre eles o paço do vice-rei (que não foi considerado ter dignidade para acolher uma família Real europeia). Os demais agregados ficaram espalhados pelas melhores residencias, as quais foram confiscadas à população e assinaladas com as iniciais “P.R.” (“Príncipe-Regente”), o que deu origem ao trocadilho “Ponha-se na Rua”, ou “Prédio Roubado”.

Faculdade BahiaMas houve aspetos positivos: entre eles, logo em 1808, ao chegar a Salvador, o Príncipe Regente criou a Escola Superior de Cirurgia, terminando assim com a proibição de cursos superiores no Brasil. No local funcionava na época o Hospital Real Militar da Bahia, que foi adaptado para abrigar o ensino de medicina. O edifício atual resultou da reconstrução de parte das instalações destruídas por um incêndio em 1905.

Museu Histórico Nacional Rio de Janeiro

Paço Real Imperial Rio de Janeiro

Tres de mayo (óleo de Goya): soldados franceses executando patriotas espanhois. A 2 de Maio de 1808 a população madrilena sublevou-se contra os franceses, seus anteriores aliados, em virtude de Carlos IV e seu fiho Fernando (ambos a disputarem o trono espanhol) estarem cativos de Napoleão, em Bayonne. A rebelião foi esmagada e este quadro recorda os fuzilamentos que assinalaram a repressão. Mas, como em Espanha, Portugal sofreu com as Invasões francesas. A passagem das tropas de Junot, como, mais tarde, as de Soult e de Massena, ficou marcada por massacres, pilhagens e actos de enorme crueldade. Por tais atrocidades ficou particularmente célebre o General Loison, de alcunha o Maneta, que delas se gabava. Ir para o Maneta foi uma expressão que ficou no léxico português…

Libertado Portugal da ocupação francesa, formou-se em Lisboa um movimento, integrado por oficiais do Exército e Maçons, com o objectivo de tirar os britânicos do controlo militar do país. O movimento foi denunciado e a sua repressão levou à prisão e condenação à morte de numerosos patriotas, acusados de conspirarem contra a monarquia de D. João VI, em Portugal continental, representada pela Regência.

A acusação da responsabilidade de Lord Beresford, regente de facto do reino de Portugal, levou a protestos e intensificou a tendência anti-britânica no país. Após a execução dos acusados, o general Beresford deslocou-se ao Brasil para pedir mais recursos e poderes para a repressão do “jacobinismo”. Porém, na sua ausência, eclodiu a Revolução do Porto (1820) de modo que, quando do seu regresso – depois de obter do soberano os poderes pedidos, foi impedido de desembarcar em Lisboa.

Rio de Janeiro na época. Em 1821 a Corte regressou a Portugal à excepção de D. Pedro de Alcântara, que ficou como Regente

Depois do regresso da Família Real, as Cortes portuguesas tentaram transformar de novo o Brasil numa colónia e exigiram o regresso imediato de D. Pedro de Alcântara. Confrontado com as movimentações dos liberais brasileiros a favor da sua permanência, D. Pedro aquiesceu “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico“.

Independência do Brasil (óleo sobre tela de Pedro Américo) – A 7 de Setembro de 1822, nas margens do Rio Ipiranga, em São Paulo, Pedro de Bragança tomou conhecimento de ordens vindas da corte portuguesa para que abandonasse o Brasil e regressasse a Portugal ou seria acusado de traição. Exclamou: “Independência ou Morte!”

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Museu do Ipiranga que faz parte do conjunto arquitetonico do Parque da Independência na Universidade de S. Paulo. Uma das suas obras mais significativas é o quadro representado no post anterior de Pedro Américo.

Imperador Dom Pedro (óleo de François-René Moreau). No mês de Dezembro seguinte, D. Pedro de Alcântara foi declarado imperador do Brasil. Tinha 24 anos.

D. Pedro I, Imperador do Brasil – Segundo a Wikipédia, D. Pedro não terá recebido a educação desejada para um futuro Rei, mas foi melhor do que a recebida pela maior parte dos seus contemporâneos. Pôde, no entanto, compensar certas lacunas com esforço autodidacta. Tinha vocação musical. Compôs diversas obras, entre as quais O Hino da Carta, considerado até 1911 o Hino Nacional português. Tocava vários instrumentos, entre os quais piano, flauta, fagote, cravo. Simultâneamente, interessava-se por atividades que requerem destreza manual, como pintura ou escultura. Era também excelente mecânico, marceneiro e torneiro. Isto, numa época em que os trabalhos manuais eram atribuídos aos servos…

D. Pedro I compondo o Hino Nacional (hoje Hino da Independência), em 1822 (óleo de Augusto Braga).

O Liberalismo em Portugal surgiu como reação ao absolutismo real, à preponderância social da fidalguia, ao reacionarismo da maioria do clero e ao protagonismo da colónia brasileira. A ideologia libertária da Revolução francesa, mesmo com os excessos jacobinos, as devastações causadas pelas invasões napoleónicas e o poderio inglês na nossa sociedade foram factores que estiveram na sua origem.

A Constituição de 1822 foi a Lei fundamental votada pelas Cortes Constituintes reunidas, em Lisboa em 1821 e jurada por D. João VI. Teve dois períodos de vigência: o primeiro de Setembro de 1822 a Junho de 1823, data em que as Cortes fizeram declaração da sua impotência após o golpe de D. Miguel e o segundo entre 1836 e 1838. Para a época era um texto evoluído onde se estabeleciam os direitos e deveres dos cidadãos (liberdade de expressão, proibição de prisão sem culpa formada, abolição de tortura), o princípio da separação dos poderes, o príncipio de larga autonomia política e administrativa para o Brasil, com o qual se estabelecia uma União Real. Porém, esta união era uma ficção pois o Rei deixara um Regente. E o novo texto constitucional feria interesses corporativos e económicos, além da conjuntura europeia ser favorável ao poder absolutista dos Reis. Os tumultos sucederam-se.

Vilafrancada – Pronunciamento militar absolutista contra o regime liberal, ocorrido em Maio/Junho de 1823.

Abrilada (1824) – outro pronunciamento militar desencadeado pelos apaniguados de D. Miguel, de 20 para 30 de Abril de 1824. D. João VI, sob pressão diplomática, desautorizou D. Miguel, retirando-lhe o cargo de comandante do exército. A 13 de Maio, o Infante partiu para o exílio.

Paço da Bemposta, actualmente Academia Militar, foi construído para residência de D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV. Depois do regresso da Família Real, D. João VI, que já aqui vivera enquanto Regente, voltou a habitar na Bemposta e aqui morreu em 1826. No palácio ocorreram momentos políticos importantes como os que advieram dos pronunciamentos da Vila-Francada e os da Abrilada.

D. Pedro I e a coroa imperial do Brasil (óleo de Henrique José da Silva). D. Pedro I não acreditava em diferenças raciais nem na presumível inferioridade do negro, como era comum na época e combatia publicamente a escratura. A maioria da população brasileira, no entanto, era hostil às ideias abolicionistas. Segundo a historiadora Isabel Lustosa, D. Pedro I foi um governante muito à frente da elite brasileira do seu tempo. Afrontou os valores da escravatura, combatendo com vigor o hábito de alguns funcionários públicos mandarem escravos para trabalhar em seu lugar. Para José Murilo de Carvalho, D. Pedro era “comandado por emoções, às vezes contraditórias, a que não aprendera a impor barreira alguma. Era impulsivo, romântico, autoritário, ambicioso, generoso, grosseiro, sedutor. Era capaz de grandes ódios e grandes amores“.

A Carta constitucional foi redigido por D. Pedro no Brasil e representou um compromisso entre os Liberais defensores da Constituição de 1822 e os Absolutistas partidários do retorno a um regime autocrático. Principais características: a soberania residia no Rei e na Nação; garantia a existência de uma nobreza hereditária, com todas as regalias e privilégios; preservava o princípio da separação dos poderes legislativo, executivo, judicial e consignava um poder “moderador” ao Rei; os direitos e deveres individuais dos cidadãos, no tocante à liberdade, à segurança individual e à propriedade, já consagrados na Constituição de 1822, foram mantidos praticamente, embora com menor destaque; conservava, como forma de governo, a Monarquia Constitucional e Hereditária; permanecia inalterado o príncipio da ausência de liberdade religiosa (de novo se definiu a religião Católica como religião de Estado).

Infanta D. Maria. Porém, tanto o liberalismo mais radical (Constituição de 1822) como moderado (Carta de 1826), consagravam o princípio da “soberania nacional” o que limitava o poder unitário e independente do rei e o âmbito da esfera eclesiástica. Por outro lado, a divisão de poderes era incompatível com o princípio do rei absoluto. Evidentemente, qualquer dos textos constitucionais, não serviam os interesses que se perfilavam por detrás de D. Miguel.

A Carta seria vista como “um diploma tímido, frustrado e frustrante, cheio de compromissos entre princípios jurídico-filosóficos antagónicos” (João Medina) ou “representava o direito divino dos reis; era uma concessão do senhor, em vez de um pacto social…” (Alexandre Herculano). Tanto a Carta como a Constituição de 1822 nunca foram aceites por todas as partes. A sua não aceitação, bem como de outras medidas promulgadas pelas Cortes Constituintes, originou inúmeros levantamentos militares.

Porém, Alexandre Herculano, ao criticar os movimentos políticos e sociais do Vintismo, comentava de modo irónico: “entre revoluções e contra-revoluções, passava a caravana e os cães ladravam“.

Para poder voltar a Portugal, D. Miguel aceitou ficar noivo da sobrinha, D. Maria da Glória e, para poder ser nomeado Regente na menoridade desta, jurou a Carta Constitucional, primeiro perante a corte de Viena (estava exilado na Áustria) e depois em Lisboa. Convocou as Cortes que, em 1828, o proclamaram Rei e anularam a vigência da Carta, repondo as Leis constitucionais tradicionais. D. Miguel era um homem de ideais católicos e tradicionalistas. Gozava de popularidade entre o povo, que via num rei forte a figura do salvador. Tinha ainda o apoio maioritário da Igreja. A burguesia, no entanto, estava mais aberta ao ideário liberal. E, também, a conjuntura política europeia se tornava, na época, favorável a D. Pedro.

Sabe-se hoje que D. João VI morreu envenenado com arsénico. A sua morte levantou um problema sucessório. O Infante D. Pedro, seu primogénito e herdeiro, tinha proclamado a independência do Brasil e, de acordo com as Leis Fundamentais do Reino, um príncipe-herdeiro que levantasse armas contra Portugal ou ascendesse ao trono de um estado estrangeiro, perderia o direito ao trono português. D. Miguel, por outro lado, mais de uma vez se erguera contra o Rei, que o desterrou, e era adversário das ideologias liberais que avançavam na Europa. (óleo de Domingos Sequeira).

D. Pedro I do Brasil (Simplício Rodrigues de Sá). Morto D. João VI, a regência de D. Isabel Maria, em Lisboa, considerou o imperador do Brasil, D. Pedro, herdeiro do trono de Portugal. No Brasil, o imperador D. Pedro foi chamado a assumir o trono português, mas abdicou em favor de sua filha mais nova, D. Maria da Glória (depois D. Maria II) e outorgou a Carta Constitucional ao reino de Portugal.

A Família Real Portuguesa: D. Amélia Augusta, D. Pedro IV e D. Maria da Glória.

Diversas circunstâncias foram afastando D. Pedro. Na Assembleia Constituinte havia, várias facções: os deputados que defendiam uma monarquia forte, mas constitucional e centralizada; outros, uma monarquia absoluta e centralizada; e por último, os que advogavam uma monarquia meramente figurativa e descentralizada.

“Noite da agonia”. Foram muitas as intrigas. D. Pedro que não aceitava ser uma figura meramente simbólica, entrou em choque com a Constituinte, e após várias vicissitudes, mandou o Exército invadir o plenário e acabou por dissolver a Constituinte.

De seguida, o Imperador incumbiu o Conselho de Estado de redigir um novo projeto de Constituição. Este utilizou o esboço anterior que foi aceite facilmente pelas Câmaras Municipais. Era a nova Constituição brasileira, na linha dos princípios mais liberais da Europa.

Mas fora um afrontamento entre rei e deputados que deixara marcas.

Ocorreu, entretanto, uma revolta de liberais federalistas pernambucanos contra o governo central, que ficou conhecida por “Confederação do Equador”. A sua repressão originou várias prisões e condenações à morte.

Também o desenvolvimento daquilo que ficou conhecido pela “Guerra da Cisplatina” lhe minou o prestígio. Um número reduzido de nativos revoltou-se e declarou a união da Cisplatina (atual Uruguai e que, na época, fazia parte do Brasil) com as Províncias Unidas do Rio da Prata (futura Argentina). Este facto levou à declaração formal de guerra. Apesar do Brasil possuir Exército e marinha de guerra poderosos, era incapaz de derrotar os rebeldes.

No campo político, a oposição dos liberais federalistas manipulava a opinião pública, através de jornais e discursos na Assembleia. O Imperador decide comandar ele próprio as operações e dirige-se para o Rio Grande do Sul, mas teve de regressar pouco tempo depois ao Rio ao receber a notícia do falecimento da esposa. Na capital ocorrem tumultos com centenas de mortos. O tratado de paz é assinado, com a perda da província Cisplatina e um saldo de 8 mil brasileiros mortos, além de custos materiais pesados. D. Pedro é acusado pelos políticos que estavam contra a guerra pelo desmembramento do território.

Foram estes os factos mais salientes que terão feito abdicar D. Pedro. E, o período de hesitação, ter-lhe-á diminuído, ainda mais, o prestígio. Em 7 de Abril de 1831 abdica, então, do trono do Brasil em favor deu filho, D. Pedro II e parte para a Europa.

As finanças dos emigrados portugueses estavam depauperadas. Valeu a intervenção de Juan Alvarez Mendizábal, um espanhol rico e decidido, que dedicou a vida ao triunfo do liberalismo. D. Pedro consegue, assim, armas e dinheiro, reúne em Inglaterra uma força de cerca sete mil soldados britânicos, e regressa a Portugal para liderar pessoalmente o partido liberal. O arquipélago dos Açores é tomado.

Fernando VII (óleo de Goya). Por duas vezes D. Pedro foi sondado por liberais espanhois para reclamar a coroa espanhola. Na primeira ocasião (1826), recusou. Subira ao trono Fernando VII, que perfilhava um ideário absolutista e foi responsável por um período de prisões em massa dos defensores do liberalismo. Na segunda, após a morte de Fernando VII (1833), que alterara as regras sucessórias e impedira, assim, a ascensão de D. Carlos, seu irmão e herdeiro da coroa. D. Carlos aliou-se aos absolutistas e a aliança entre estes e carlistas esteve na origem de graves convulsões. Desta vez D. Pedro aceitou. Seria uma coroa imperial da Península Ibérica (o que correspondia à fusão Portugal/Espanha). Mas tinha, primeiro, que derrotar D. Miguel e os absolutistas portugueses…

Baía de Angra. Angra foi o centro do movimento liberal em Portugal. Aqui se estabeleceu em 1828 a Junta Provisória, em nome de D. Maria II. Foi nomeada capital do reino em Março de 1830. Foi aqui que D. Pedro organizou a expedição que levaria ao desembarque do Mindelo. Foi em Angra que promulgou alguns dos mais importantes decretos do novo regime.

Forte de São João Baptista, Monte Brasil, Angra do Heroismo. Erguido durante a dinastia dos Filipes para proteger o porto de Angra e aquartelar as tropas espanholas. Durante a Guerra Civil foi aqui hasteado, pela primeira vez, o pavilhão azul e branco da monarquia constitucional.

Forte de Santa Catarina. Localiza-se no concelho da Praia da Vitória, na ilha Terceira. É a primeira fortificação à entrada da baía. Pelo seu porte, era a principal da linha defensiva.

Esquadra de partida de S. Miguel para o Norte do país. O desembarque far-se-ia no Mindelo em 8/7/1832. No dia seguinte as tropas liberais ocuparam o Porto.

Desembarque do Mindelo é a designação dada ao desembarque das tropas liberais perto do Porto em 8 de Julho de 1832. O desembarque, que envolveu cerca de 7.500 homens, entre os quais se contavam Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Joaquim António Aguiar, transportados por 60 navios, permitiu às forças liberais tomar a cidade do Porto no dia 9 de Julho, apanhando de surpresa o exército miguelista que haveria, no entanto, de as submeter a prolongado cerco.

Serra do Pilar, Gaia, Porto. A chegada de D. Pedro foi acolhida com indiferença e por vezes hostilidade. Apenas algumas centenas de “voluntários” e um bando guerrilheiro apareceram. Era manifestamente pouco. Os golpes militares anteriores e a repressão subsequente tinham tornado as populações cautelosas. Milhares de pessoas fugiram, incluindo autoridades. O exército miguelista era mais poderoso e estava intacto. Nenhuma cidade proclamara D. Pedro…Restava apenas a solução de derrotar militarmente as forças inimigas ou tentar provocar deserções que as enfraquecessem.

O que se seguiu foram vários afrontamentos sem resultados nítidos, até que as forças “liberais” ocuparam a serra do Pilar. Ocorreram, então, várias tentativas para expulsar os invasores, que dispunham de efectivos francamente mais reduzidos (7500 homens contra um exército organizado de 80000). Dão-se violentos combates. As forças liberais estão sitiadas no Porto. A Serra do Pilar, é valorosamente defendida, iniciando-se o bombardeamento da cidade, que muitos outros iria suportar durante o cerco.

Palácio da Batalha – serviu de Hospital durante o Cerco do Porto. Para resolver a contenda, o general miguelista Gaspar Teixeira prepara um assalto em força, prometendo aos seus soldados o saque da cidade. As forças sitiantes avançaram pelos lados de Campanhã, travando-se combates violentos noutros pontos. Às forças sitiadas foram reconhecidos actos da maior bravura. 4000 baixas por parte das forças miguelistas contra 650 dos liberais. Gaspar Teixeira reconheceu a impossibilidade de esmagar a cidade e ordenou a retirada.

Serra do Pilar – A pedido do General sitiante, D. Miguel parte para o Norte. Antes da sua chegada ocorrem novos e violentos assaltos à Serra do Pilar, sempre repelidos. D. Miguel estabelece o seu quartel-general em Braga, a cidade fiel, onde é recebido apoteoticamente. O cerco aperta-se. Na cidade, as condições de vida são extremas: fome e frio, a que se juntam a varíola e o tifo. Todas as árvores são abatidas para lenha. Admite-se capitular. Aí o General Saldanha opõe-se tenazmente. As tropas mercenárias inglesas causam desacatos e reclamam soldos atrasados. A esquadra inglesa que transportara o exército libertador levanta ferro e abandona o Porto.

Estátua de D. Pedro IV, Porto. Em Londres, outra figura liberal, o duque de Palmela procura dinheiro, voluntários e novos navios. Organiza-se nova esquadra com novo Comando. Realiza-se um desembarque no Algarve. Os miguelistas tentam uma vez e outra mais destruir as forças sitiadas, sem êxito. São combates ferozes. Entretanto, o Imperador está em Lisboa, onde chegaram as forças liberais. D. Miguel retira do Porto com o seu Estado-Maior, deixando as tropas sob o comando dum general francês, que substituira Gaspar Teixeira. Após nova vitória de Saldanha, que obrigou os miguelistas e levantar o cerco em vários pontos, o comandante sitiante manda retirar, não sem antes ordenar incendiar os armazéns de vinhos do Porto em Gaia. Um prejuízo tremendo. Saldanha levantara o cerco do Porto.

Duque de Saldanha. Foi sob o seu comando que as forças liberais levantaram o cerco.

O pintor Domingos Sequeira retratou muitas das grandes figuras de época.

Almeida Garrett, é uma das maiores figuras do romantismo português, foi ele quem propôs a edificação do Teatro Nacional de D. Maria II e a criação do Conservatório de Arte Dramática. Autor de Frei Luís de Sousa e de outras peças de teatro. Poeta e romancista. Teve uma actividade política intensa, participando nomeadamente com Alexandre Herculano e Joaquim António de Aguiar, no Desembarque do Mindelo e no Cerco do Porto.

A última batalha travou-se em Asseiceira a 16 de Maio. Em Londres, no mês anterior tinha-se firmado um tratado pelo qual a França e a Inglaterra se comprometeram a impor e manter na Península as instituições parlamentares. As forças de D. Miguel, onde se registaram numerosas traições e deserções nos seus oficiais, foram derrotadas. D. Miguel dirigiu-se para o Alentejo com o resto do exército.

Évora Monte. Estabelecem-se conversações. É assinada a convenção com o nome da vila alentejana onde decorreu, e pela qual D. Miguel deveria abandonar o país. A 1 de Junho parte para o exílio, donde não regressará. Porém, se a vitória militar lhe escapara, a sua figura continuou a ser a bandeira das forças mais tradicionalistas. E que continuaram a causar motins e revoluções.

As ideias liberais em Portugal tinham pequena audiência. Havia um contraste demasiado entre o país profundo e o país emergente. As populações rurais e grande parte da nobreza não se reviam nas inovações políticas e institucionais, consideradas estrangeiradas.

D. Pedro IV. Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Rei-Soldado ou Rei Imperador. Em Portugal e Brasil é também conhecido por O Libertador — em Portugal do governo absolutista; do Brasil do domínio português.

Gravura de Nicolas-Eustache Maurin, representando D. Pedro no leito de morte, na altura já só usando o título de duque de Bragança. Morreu de tuberculose, no quarto D. Quixote, onde também nascera. Foi a 24 de Setembro de 1834. Tinha 36 anos.

Estátua do Imperador D. Pedro no Museu Imperial

Após a vitória liberal criou-se um clima de violência e descriminação sobre os vencidos. Fomentaram-se fidelidades generosamente recompensadas (Lei das Indemnizações); exerceu-se vigilância ideológica severa no recrutamento dos quadros; os bens das Ordens religiosas (extintas), passaram para os “amigos” do Ministério. Era o início do “Devorismo”. A morte de D. Pedro coincidiu com o início dum novo ciclo da vida portuguesa.

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David e os amores felizes

Chamo-lhe David, como diria Sophia ou Eugénio. São poetas de cabeceira, os arautos dos nossos sonhos, aqueles que mais nos enternecem, os nossos íntimos. Aqueles que melhor exprimiram os afectos, os que perceberam a imensidade de tantas coisas pequenas: um búzio do tamanho do mar, uma anémona como um entardecer ou a descoberta do corpo amado, tão grande como uma vida, que com ele nasceu e que com ele morre. Outros grandes poetas são-nos mais distantes. Não chamo Fernando ao Pessoa ou Luís ao Camões.
Artesão das palavras, as frases foram construídas como aguarelas, com suas cores, seus contrastes, sua riqueza de matizes. Expõem ideias como definem emoções que se projectam no leitor feito cúmplice. Nas novelas e contos, as frases são depuradas. Há contenção verbal, raros os adjectivos. Os diálogos estão escritos como em teatro (e ele foi também autor de teatro). Mas, a poesia é a sua arte maior. Poeta dos sentidos, a sua escrita é erótica, sensual, como elegante e erudita.
No jogo entre dois corpos, o relato do marinheiro a navegar da boca à nuca e seio e anca, a descoberta das correntes, das enseadas e marés, a assombração e a tempestade, a brisa e a linha do horizonte. É um marinheiro que percorre uma e outra vez aquelas costas, que as conhece pelo tacto e pela voz, com a segurança da cabotagem.
O marinheiro tem os olhos inundados não só de mar como das vidas aportadas. Em muitas fundeou e de muitas trouxe notícia. E a todas elas acrescentou uma marca vitalícia. O marinheiro é mágico. Tudo em que toca se enobrece. É uma alquimia que faz do corpo amado, do seu rugido, do esplendor dos seus seios, sexo, língua, um mapa de volúpia e de desejo, onde a lascívia é um borbulhar de palavras sábias, rítmicas e medidas.
Foi Erhos quem iluminou David, porque o seu olhar enfeitiça quem o perscruta. E foi esse fulgor que se lhe estendeu aos sentidos. Só raros são contemplados. Chamam-lhe excepcional sensibilidade. Mas, David, foi mais além. Trabalhou amorosamente as palavras, feito ourives da língua portuguesa. E leu, estudou, traduziu e ensinou. A erudição metamorfoseou-a em conhecimento ao serviço dos olhos. Ele viu e ensinou algumas gerações a semiologia dos sentidos.
A mulher é o centro do mundo, para David. A mulher, cada mulher amada, é o ponto de partida para a aventura de viver, que se repete a cada ciclo ou que pode coexistir com outras histórias. Os pormenores dos encontros clandestinos (o copo de água, a fruta, a toalha) e os diálogos breves – mostram os vários protagonistas ligados pela cumplicidade, pelos projectos de vida em comum que não virão a concretizar-se. Em “Um amor feliz” os protagonistas têm percursos semelhantes – vivem adultérios com amigos dos cônjuges, cujas referências são as mesmas e que mais não são que as imagens ao espelho uns dos outros. Cujas histórias deixam em aberto a questão de saber se são amores felizes.

FM

 

Está feita a biografia de David Mourão-Ferreira (DM-F), nada temos a acrescentar. Sobre ele foram publicados numerosos ensaios, artigos e monografias académicas.Dum excelente programa, apresentado pela RTP2, após a sua morte em 1996, apresentamos uma versão “fatiada” pelas exigências do YouTube. Assim, apenas destacaremos os dados mais relevantes, convidando-os a visionar o referido programa

Poeta, professor universitário, ficcionista, ensaísta, crítico literário, dramaturgo, jornalista, tradutor e homem de televisão. “Imagens da Poesia Europeia » foi o programa que apresentou na RTP, e que o tornaram mais próximo do público. Aqui, recorria ao seu traquejo de professor-sedutor, lendo poemas na sua voz bem modulada, alguns dos quais ele mesmo traduzira. Foi uma presença à altura de João de Freitas Branco, que anos antes fora responsável pela mais fascinante divulgação da música dita clássica realizada na TV em Portugal. Ou de Vitorino Nemésio, de quem foi aluno.

Ficcionista, deixou alguns livros notáveis, como esse “Um amor feliz”. A sua escrita evoca a de Claude Roy, seu contemporâneo e com quem teve outras afinidades, como a de crítico, não de pintura, mas de poesia. E é a poesia o seu legado mais importante. A matriz erótica é uma característica importante, talvez a que mais perdura, mas não exclusiva.

DM-F deve ter sido o único grande poeta português que escreveu de propósito para ser cantado, mesmo que isso lhe merecesse reparos por parte da aristocracia académica. Ignorou-os. E, com isso, lucrou o fado que deixou de ser exclusivamente canção de marialvas e de tragédias de faca-e-alguidar. Com isso ganhou Amália ao saber saborear os versos frescos de DM-F e, depois, ela mesmo a exigir outros poemas e autores. Ganhámos todos.

“Deixa ficar comigo a madrugada, /para que a luz do Sol me não constranja. /Numa taça de sombra estilhaçada, /deita sumo de lua e de laranja. /Arranja uma pianola, um disco, um posto, /onde eu ouça o estertor de uma gaivota… /Crepite, em derredor, o mar de Agosto… /E o outro cheiro, o teu, à minha volta! /Depois, podes partir. Só te aconselho que acendas, para tudo ser perfeito, /à cabeceira a luz do teu joelho, /entre os lençóis o lume do teu peito… /Podes partir. De nada mais preciso /para a minha ilusão do Paraíso.” (Paraíso)

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“Calidamente nua, /sob o vestido leve, /tua carne flutua /no desejo que teve.//Timidamente nua, /revelas, num /olhar, /em minhas mãos a lua /que te fez oscilar.” (Teoria das marés)

“Deitada és uma ilha E raramente /surgem ilhas no mar tão alongadas com tão prometedoras enseadas /um só bosque no meio florescente //promontórios a pique e de repente /na luz de duas gémeas madrugadas o fulgor das colinas acordadas /o pasmo da planície adolescente //Deitada és uma ilha Que percorro /descobrindo-lhe as zonas mais sombrias /Mas nem sabes se grito por socorro //ou se te mostro só que me inebrias /Amiga amor amante amada eu morro /da vida que me dás todos os dias “(Ilha)

“Desejei-te pinheiro à beira-mar /para fixar o teu perfil exacto. //Desejei-te encerrada num retrato /para poder-te contemplar. /Desejei que tu fosses sombra e folhas /no limite sereno desta praia. //E desejei: “Que nada me distraia /dos horizontes que tu olhas!”/ Mas frágil e humano grão de areia /não me detive à tua sombra esguia. //(Insatisfeito, um corpo rodopia na solidão que te rodeia.)” (Paisagem)

“Tudo que sou, no imaginado /silêncio hostil que me rodeia, /é o epitáfio de um pecado /que foi gravado sobre a areia. //O mar levou toda a lembrança. /Agora sei que me detesto: /da minha vida de criança /guardo o prelúdio dum incesto. /O resto foi o que eu não quis:/perseguição, /procura, enlace, /desse retrato feito a giz /pra que não mais eu me encontrasse. //Tu foste a noiva que não veio, /irmã somente prometida! /— O resto foi a quebra desse enleio. /O resto foi amor, na minha vida.” (Memória)

Professor convidado da Faculdade de Letras chegou a Catedrático sem ter feito doutorameneto, tal o prestígio que obteve. A sua actividade docente foi reconhecida internacionalmente, com a criação de cátedras pela Europa com o seu nome

Licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1951. Foi professor do Ensino Técnico e Liceal. Entre 1957 e 1963 foi assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde após afastamento político foi readmitido, como professor auxiliar, em 1970. O seu papel na regência das cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura Portuguesa marcou várias gerações de estudantes. A actividade docente posterior apenas foi interrompida para o exercício do cargo de Secretário do Estado da Cultura.

“Todo o amor que nos prendera/como se fora de cera se quebrava e desfazia ai funesta primavera /quem me dera, quem nos dera /ter morrido nesse dia//E condenaram-me a tanto /viver comigo meu pranto /viver, viver e sem ti/vivendo sem no entanto/eu me esquecer desse encanto /que nesse dia perdi //Pão duro da solidão /é somente o que nos dão /o que nos dão a comer /que importa que o coração /diga que sim ou que não /se continua a viver //Todo o amor que nos prendera /se quebrara e desfizera /em pavor se convertia /ninguém fale em primavera /quem me dera, quem nos dera /ter morrido nesse dia”

A persistência da memória – Salvador Dali (1931) “E por vezes as noites duram meses /E por vezes os meses oceanos /E por vezes os braços que apertamos /nunca mais são os mesmos E por vezes //encontramos de nós em poucos meses /o que a noite nos fez em muitos anos /E por vezes fingimos que/lembramos /E por vezes lembramos que por vezes //ao tomarmos o gosto aos oceanos /só o sarro das noites não dos meses /lá no fundo dos copos encontramos //E por vezes sorrimos ou choramos /E por vezes por vezes ah por vezes /num segundo se envolam tantos anos. (E por vezes as noites duram meses)”

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A sua obra poética é extensa. De salientar: Tempestade de Verão (1954, Prémio Delfim Guimarães), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), In Memoriam Memoriae (1962), Infinito Pessoal ou A Arte de Amar (1962), Do Tempo ao Coração (1966), A Arte de Amar (1967, reunião de obras anteriores), Lira de Bolso (1969), Cancioneiro de Natal (1971, Prémio Nacional de Poesia), Matura Idade (1973), Sonetos do Cativo (1974), As Lições do Fogo (1976), Obra Poética (1980, inclui as obras À Guitarra e À Viola e Órfico Ofício), Os Ramos e os Remos (1985), Obra Poética, 1948-1988 (1988) e Música de Cama (1994, antologia erótica com um livro inédito).

A bibliografia de ensaísta é também rica, com a atribuição de numerosos prémios. No que se refere à ficção: estreia em 1959 com as novelas de Gaivotas em Terra (Prémio Ricardo Malheiros), os contos de Os Amantes (1968), e ainda As Quatro Estações (1980, Prémio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários), Um Amor Feliz, romance que o consagrou como ficcionista em 1986 e que lhe valeu vários prémios, entre os quais o Grande Prémio de Romance da APE e o Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, e Duas Histórias de Lisboa (1987).

Nu de Gala, mulher de Salvador Dali (1945) “Quantos em ti lagos e rios /Quantos em ti os oceanos //Água vermelha que aos ouvidos /traz o aviso /de nenhuns campos //É bom sondarmos os abismos /que nunca vão cicatrizando //E ao som da água pressentirmos /de onde provimos /aonde vamos” (XXV)

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“É isto vivemos dentro /de grandes blocos de gelo /sem aquecermos ao menos /com os dedos outros dedos /No fundo de nós temendo /que um dia se quebre o gelo ” (Blocos)

“Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo. /Que dizer do pescoço, às vezes mármore, /às vezes linho, lago, tronco de árvore, /nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco … ?//E o ventre, inconsistente como o lodo? … /E o morno gradeamento dos teus braços? /Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne: /é também água, terra, vento, fogo …//É sobretudo sombra à despedida; /onda de pedra em cada reencontro; /no parque da memória o fugidio//vulto da Primavera em pleno Outono … /Nem só de carne é feito este presídio, /pois no teu corpo existe o mundo todo!” (Música)

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“Desvio dos teus ombros o lençol, /que é feito de ternura amarrotada, /da frescura que vem depois do sol, /quando depois do sol não vem mais nada …//Olho a roupa no chão: que tempestade! /Há restos de ternura pelo meio, /como vultos perdidos na cidade /onde uma tempestade sobreveio …//Começas a vestir-te, lentamente, /e é ternura também que vou vestindo,/para enfrentar lá fora aquela gente //que da nossa ternura anda sorrindo … Mas ninguém sonha a pressa com que nós /a despimos assim que estamos sós!”

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A Távola Redonda foi uma revista literária que apareceu nos anos 50, criada por um grupo de jovens poetas, entre os quais António Manuel Couto Viana (recentemente falecido) e David Mourão-Ferreira. Sem ter uma linha programática definida, pretendia-se sem reservas ideológicas ou preconceitos de ordem estética. Insurgia-se contra a literatura empenhada e social que, segundo eles, imperava no panorama poético português. A originalidade da publicação consistiria em procurar dar voz a uma poesia mais próxima da tradição lírica portuguesa.

Talvez que pelo seu afastamento do neo-realismo e da literatura politicamente engajada, DM-F não tivesse sido “banido” pelo Estado Novo, mesmo tendo sido membro do MUD Juvenil. No entanto, foi afastado do ensino entre 1963 e 1970, na sequencia da Crise Académica de 62

Fac-similae de Vértice

“Sem sombra de pecado” (1982), filme de José Fonseca e Costa, a partir de conto de DM-F. Baseado em “Um amor feliz”, Artur Ramos realizou uma série televisiva de quatro episódios, apresentada pela RTP em 1990.

“Os Amantes”, livro de contos

“Deixa ficar a flor, /a morte na gaveta, /o tempo no degrau. /Conheces o degrau: /o sétimo degrau /depois do patamar; /o que range ao passares; /o que foi esconderijo /do maço de cigarros /fumado às escondidas… /Deixa ficar a flor. /E nem murmures. Deixa/o tempo no degrau, /a morte na gaveta. /Conheces a gaveta: /a primeira da esquerda, /que se mantém fechada. /Quem atirou a chave /pela janela fora? /Na batalha do ódio, /destruam-se, fechados, /sem tréguas, os retratos! /Deixa ficar a flor. /A flor? Não a conheces. /Bem sei. Nem eu. Ninguém. /Deixa ficar a flor. /Não digas nada. Ouve. /Não ouves o degrau? /Quem sobe agora a escada? /Como vem devagar! /Tão devagar que sobe… /Não digas nada. Ouve: /é com certeza alguém, /alguém que traz a chave. /Deixa ficar a flor.” (As últimas vontades)

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Colectânea da Obra Poética

“Nem o Tempo tem tempo /para sondar as trevas //deste rio correndo/entre a pele a pele //Nem o Tempo tem tempo /nem as tréguas dão tréguas //Não descubro o segredo /que o teu corpo segrega.” (Segredo)

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“Que importa o gesto não ser bem /o gesto grácil que terias? /— Importa amar, sem ver a quem… /Ser mau ou bom, conforme os dias. //Agora, tu só entrevista, /quantas imagens me trouxeste! /Mas é preciso que eu resista /e não acorde um sonho agreste. //Que passes tu! Por mim, bem sei /que hei-de aceitar o que vier, /pois tarde ou cedo deverei de sonho e pasmo apodrecer. //Que importa o gesto não ser bem /o gesto grácil que terias? /— Importa amar, sem ver a quem… /Ser infeliz, todos os dias!” (Canção amarga)

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A Itália era para David uma paixão. Sobre Roma: “Há cidades que nos voltam as costas, sem chegarem sequer a olhar para nós. Há outras que nos sacodem a mão, cordialmente, num sóbrio shake-hand de boas-vindas, e que depois lá seguem para os seus afazeres, os seus divertimentos, os seus labirintos em que nunca haveremos de penetrar. Há também as que discutem connosco, logo desde o primeiro encontro, mas que por isso mesmo se nos tornam indispensáveis. E as que nos provocam; as que nos irritam; as que se divertem à nossa custa. Há ainda as que sabem de cór os mais secretos dialectos do desejo – para nos deixarem enrodilhados, insatisfeitos e melancólicos, na madrugada de frios arrabaldes. Há todavia, pelo contrário, as que nos vestem de música e de luz; que nos fazem lembrar, a cada passo, as irmãs mais velhas que não tivemos; que nos escutam com atenção – quando ficamos em silêncio – nas esplanadas do crepúsculo. Mas há apenas uma, entre todas, longe ou perto, que maternalmente nos estende os braços.”

Tentei fugir da mancha mais escura /que existe no teu corpo, e desisti. /Era pior que a morte o que antevi: /era a dor de ficar sem sepultura.//Bebi entre os teus flancos a loucura /de não poder viver longe de ti: /és a sombra da casa onde nasci, /és a noite que à noite me procura.//Só por dentro de ti há corredores /e em quartos interiores o cheiro a fruta /que veste de frescura a escuridão…//Só por dentro de ti rebentam flores. /Só por dentro de ti a noite escuta /o que sem voz me sai do coração. (Música)

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Ainda sobre Roma: “Mas como hei-de explicar, perante mim próprio, a inquietante fascinação que me produzem as formas elípticas de algumas destas praças, as cúpulas e as abóbadas da maior parte destes templos, os vermelhos vivos e os ocres quentes de que estão pintados tantos destes prédios? Sento-me na esplanada de um café, em plena Via Nazionale, e basta-me contemplar o alto de um edifício, onde essas duas cores tão depressa se contrapõem como logo se fundem uma na outra, para imediatamente experimentar uma estranha sensação de paz e de segurança, um halo de intimidade, uma espécie de abrigo contra o frenético movimento que vai na rua. Mais tarde, na Piazza Navona, surpreendo-me a girar como que dentro de um aquário, a sentir-me incapaz de me arredar dali…

Após a revolução, DM-F foi director do jornal A Capital e depois director-adjunto de O Dia, sob a direcção de Vitorino Nemésio; entre 1984 e 1986 foi presidente da Associação Portuguesa de Escritores, entre 1984 e 1992 vice-presidente da Association Internationale des Critiques Littéraires e, em 1991, presidente do Pen Club Português; foi responsável pelo Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian a partir de 1981; e dirigiu, desde 1984, a revista Colóquio/Letras, da mesma instituição.

DM-F (1927-1996) pôde assistir à sua própria entronização. O reconhecimento público não necessitou do futuro. Já doente, as homenagens sucederam-se. Conseguira uma quase unanimidade. O seu talento multifacetado tinha-o feito atingir todas as camadas sociais. Agora, passados 14 anos sobre a sua morte, deve sublinhar-se aquilo que de facto é mais importante: a poesia. A poesia da sensualidade, do gosto assumido pela mulher pelo seu corpo pelo seu amor e pela memória dele. Poucos são os que deambulam pelas margens do fogo com a distinção de um cavalheiro.

Chamo-lhe David, como diria Sophia ou Eugénio. São poetas de cabeceira, os arautos dos nossos sonhos, aqueles mais nos enternecem, os nossos íntimos. Aqueles que melhor exprimiram os afectos, os que perceberam a imensidade de tantas coisas pequenas: um búzio do tamanho do mar, uma anémona como um entardecer ou a descoberta do corpo amado, tão grande como uma vida, que com ele nasceu e que com ele morre. Outros grandes poetas são-nos mais distantes. Não chamo Fernando ao Pessoa ou Luís ao Camões.
Artesão das palavras, as frases foram construídas como aguarelas, com suas cores, seus contrastes, sua riqueza de matizes. Expõem ideias como definem emoções que se projectam no leitor feito cúmplice. Nas novelas e contos, as frases são depuradas. Há contenção verbal, raros os adjectivos. Os diálogos estão escritos como em teatro (e ele foi também autor de teatro). Mas, a poesia é a sua arte maior. Poeta dos sentidos, a sua escrita é erótica, sensual, como elegante e erudita.
No jogo entre dois corpos, o relato do marinheiro a navegar da boca à nuca e seio e anca, a descoberta das correntes, das enseadas e marés, a assombração e a tempestade, a brisa e a linha do horizonte. É um marinheiro que percorre uma e outra vez aquelas costas, que as conhece pelo tacto e pela voz, com a segurança da cabotagem.
O marinheiro tem os olhos inundados não só de mar como das vidas aportadas. Em muitas fundeou e de muitas trouxe notícia. E a todas elas acrescentou uma marca vitalícia. O marinheiro é mágico. Tudo em que toca se enobrece. É uma alquimia que faz do corpo amado, do seu rugido, do esplendor dos seus seios, sexo, língua, um mapa de volúpia e de desejo, onde a lascívia é um borbulhar de palavras sábias, rítmicas e medidas.
Foi Erhos quem iluminou David, porque o seu olhar enfeitiça quem o perscruta. E foi esse fulgor que se lhe estendeu aos sentidos. Só raros são contemplados. Chamam-lhe excepcional sensibilidade. Mas, David, foi mais além. Trabalhou amorosamente as palavras, feito ourives da língua portuguesa. E leu, estudou, traduziu e ensinou. A erudição metamorfoseou-a em conhecimento ao serviço dos olhos. Ele viu e ensinou algumas gerações a semiologia dos sentidos.
A mulher é o centro do mundo, para David. A mulher, cada mulher amada, é o ponto de partida para a aventura de viver, que se repete a cada ciclo ou que pode coexistir com outras histórias. Os pormenores dos encontros clandestinos (o copo de água, a fruta, a toalha) e os diálogos breves – mostram os vários protagonistas ligados pela cumplicidade, pelos projectos de vida em comum que não virão a concretizar-se. Em “Um amor feliz” os protagonistas têm percursos semelhantes – vivem adultérios com amigos dos cônjuges, cujas referências são as mesmas e que mais não são que as imagens ao espelho uns dos outros. Cujas histórias deixam em aberto a questão de saber se são amores felizes.

FM

D. João V: um deslumbramento português

Portugal foi uma espécie de Egipto e D. João V, o nosso faraó. Em vez de pirâmides deixou um maciço quadrilátero em pedra – o convento de Mafra. Porém, o rei não se limitou áquele faraónico monumento. Outras obras, de palácios a igrejas, estão espalhadas pelo país, atestando a fortuna do séc. XVIII.

Olhamos o Convento e sentimos a dimensão da riqueza que veio do Brasil. País cronicamente pelintra, quando a torneira do ouro secou, Portugal continuava pobre, beato, ignorante. Uma plêiade de artistas tinha lucrado com o mecenato promovido pelo rei, mas o desenvolvimento económico ficara por realizar.
O que valem as obras de arte do Barroco Joanino? Goste-se ou não, são testemunhos históricos e culturais. Há que preservá-las, o que não impede a reflexão.

D. João V frequentava conventos. Aí, hóspedes especiais passavam a desfrutar de alcova, depois de convívio discreto e íntimo com alguma freira dilecta ou Senhora que se tivesse retirado para a tranquilidade monástica. Eram usos do tempo.
Ao longo da vida, manteve várias amantes que ia substituindo conforme lhe aprouvesse. No Convento de Odivelas, emprenhou a respectiva Abadessa, Madre Paula, que parece ter-lhe dado volta à cabeça. Imagine-se Sua Majestade em pleno Convento, de cabeleira postiça, maquilhado com pó branco, calções ajustados, saltos altos, entre uma bênção e uma genuflexão, deliciando-se com uma perdiz assada, para terminar numa apoteose de toucinho do céu! Por mor dos seus amores freiráticos, terá D. João V, contribuído para a divulgação da doçaria conventual? Saborear Barriga-de-freira deixou de ser uma predilecção exclusivamente régia.
Como grande devoto, ofereceu ao Papa e outros dignitários eclesiásticos vultuosíssimas somas, a pretexto e a despropósito. Entre centenas de milhares de Missas que mandou rezar e de Indulgências recebidas (e pagas), o dinheiro gasto foi enorme. Quase toda a sua vida, o rei teve, pois, a Igreja por perto. No meio de paramentos, crucifixos, confessionário e oratório – ficava a alcova a rescender a incenso.

O ouro do Brasil terá, assim, apaziguado a senha secular pela luxúria real… Na época, o Santo Ofício zelava pelo cumprimento das práticas cristãs, mas o Rei pairava absoluto acima das regras. Azar, mesmo, tiveram António José da Silva, dos nomes maiores do teatro português, a quem os Autos de Fé supliciaram até à morte por judaísmo ou o Padre António Vieira, por denunciar comportamentos imorais.
Quanto ao Convento de Mafra, terá nascido duma promessa do rei, que desesperava por não ter um descendente. Aliás, o soberano diligenciou na responsabilidade de manutenção da dinastia dos Braganças. E, quando o Convento foi inaugurado, já o Infante D. José, futuro rei, tinha nascido. No entanto, D. João V continuou a porfiar, mesmo com suplementos de cantáridas para levantar o aprumo real, a bem da Nação.

Em muitas cidades brasileiras estão patentes sinais da corrida ao ouro e da vida dos escravos. Foram estes que extraíram o ouro e os diamantes, era nos pelourinhos que eram castigados – e de quem pouco se fala; como em Mafra foram dezenas de milhar de operários que realizaram as obras que se estenderam por muitos anos. Deles, falou José Saramago.

O exercício da política é muitas vezes hipócrita. O absolutismo permitia não prestar contas a ninguém. A Igreja abençoava-o e dele retirava (largos) proventos. D. João V mereceu ser Rei fidelíssimo
Em Portugal o fim do absolutismo demoraria ainda muito tempo, mas o parlamentarismo de liberais ou republicanos não modificou substantivamente o modo hipócrita de fazer política. As frequentes relações pantanosas entre Estado e Igreja, ou como esta continua a esconder e a relevar comportamentos indignos dos seus agentes. Hipocrisia política e religiosa.

FM

 

Em 1706, com a idade de 17 anos, ascendeu ao trono de Portugal, D. João V. Nascera 4 anos depois de Bach, Scarlatti e Haendel. Era filho de D. Pedro II e de Sofia de Neuburgo. À data da sua coroação reinava em França Luís XIV, o Rei-Sol, considerado o maior expoente do absolutismo francês.

Estátua de D. João V em Mafra. Pragmatismo nas relações internacionais –a “real politik”, foi herança política recebida por D. João V. Portugal, aliado de Inglaterra, envolvera-se na Guerra da Sucessão de Espanha, juntamente com alemães e holandeses. Carlos II de Espanha não tinha herdeiros da Rainha. Quando morreu, havia 2 pretendentes: por um lado, Filipe, duque de Anjou, neto de Luis XIV, apoiado pela França e Espanha; por outro, o arquiduque Carlos de Áustria. O motivo principal era o receio da união dinástica Espanha/França…

…O conflito arrastou-se durante 10 anos e a paz só foi estabelecida com a coroação de Carlos VI como Imperador de Sacro Império Romano-Germânico (que, assim, perdeu o apoio dos ingleses, receosos dele deter excessivo poder) e de Filipe V, em Espanha. Para Portugal as operações militares foram desastrosas, com a perda de diversas praças e o esgotamento das finanças públicas. Aos ingleses a paz selada em Utrecht garantiu a posse de bases estratégicas e a hegemonia marítima. Os portugueses tinham “comprado” uma guerra que só a outros beneficiaria.

D. João V foi um rei absolutista, à semelhança do que acontecia na época. O seu poder não dependia de qualquer outro órgão. A política era ele quem a definia. D. João V proclamou a intenção de manter as leis e costumes tradicionais. Em Política Externa não evidenciou muito interesse pelas questões europeias, mantendo, porém, Portugal fiel à sua aliança com Inglaterra. As relações com Espanha estabilizaram-se. Era um homem culto, inteligente, educado por padres da Companhia de Jesus. Conhecia autores clássicos, gostava de música, falava várias línguas.

O absolutismo assentava no princípio da origem divina do poder do Rei. Luis XIV proclamara “L’état c’est moi” (nunca teve um 1º Ministro). O fausto, o luxo, as carruagens, os banquetes, a decoração, a arquitectura eram instrumentos que reforçavam o perfil do Rei, a sua distância, o seu poder imanente. D. João V foi o expoente maior do absolutismo em Portugal.

D. João V era extremamente beato. Despendeu quantias fabulosas com a Cúria Romana. Dádivas enormes ao papa Benedito XIV. Construiu capelas, igrejas e outros monumentos religiosos. Para acudir ao Papa num conflito com venezianos e turcos, enviou uma esquadra que se bateu na batalha de Matapan, iniciativa que deixou os cofres públicos na penúria. E, para conseguir que Lisboa tivesse um Patriarcado, pagou elevadíssima soma, o que lhe valeu ainda o reconhecimento como Rei fidelíssimo

Goya: Tribunal da Inquisição. Para defender a pureza da fé cristã, reforçou a severidade dos Tribunais do Santo Ofício que perseguiam suspeitos de bruxaria, os que cometiam actos considerados imorais, os judeus, os hereges e muita gente que, pelas suas ideias demasiado inovadoras, constituía um perigo para a Igreja e para o poder absoluto do rei.

No Brasil, depois da restauração, a necessidade de custear as despesas militares originara as expedições dos bandeirantes, à procura de ouro. Só é descoberto a partir de 1695, nos territórios hoje conhecidos por Minas Gerais e Goiás. Desde essa altura, a emigração dos portugueses e a chegada de escravos de África para trabalharem nas minas, levaria a uma produção que atingiu o seu máximo entre 1735 e 1766.

A obra mais emblemática foi erguida em Mafra, constituída pelo Complexo Convento/Palácio/ Basílica associado à Tapada. O Complexo demorou treze anos a ser construído e, quando inaugurado (1730), ainda não estava concluído. Projecto de Johann Friedrich Ludwig, requereu mais de 50000 trabalhadores. Inclui uma bela biblioteca, decorada com madeiras exóticas, mármores vindos de Itália (Pero Pinheiro, próximo de Mafra tem mármore abundante…) e inúmeras obras de arte. De salientar as salas do Palácio, nomeadamente os aposentos do rei e rainha, separados por mais de 200 m, a fachada, o hospital privado, onde os doentes podiam assistir à missa sem sair de cama. O custo da obra incalculável, foi suportado pelo ouro do Brasil. Foi daqui que saiu em 1910 o último rei para embarcar na Ericeira a caminho do exílio.

No Brasil, os primeiros colonos tinham tentado a escravização dos índios, com fracos resultados. Viraram-se, então, para os negros africanos que começaram a chegar em ondas sucessivas. Inicialmente utilizados nos engenhos de cana-de-açúcar, foram depois empregados nas áreas de mineração.

Entre 6,5 e 10 Toneladas foi a quantidade anual de ouro que chegou a Portugal entre 1715-54. A descoberta de jazidas de ouro e diamantes modificou a vida da colónia, promovendo a colonização do interior. Ouro Preto é uma das cidades que são criadas nos locais das minas. Surgem conflitos entre imigrantes, tomam-se medidas administrativas e a Coroa Portuguesa passa a recolher 1/5 de toda a produção aurífera. Os novos imigrantes necessitam de passaporte na colónia. As moedas que D. João V manda cunhar espalham-se rapidamente pela Europa, O ouro vai ter um papel decisivo no reinado de D. João V.

Catedral de Ouro Preto. Escreveu um Jesuíta italiano em 1710:« A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como os das Minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Cada ano vêm nas frotas quantidades de portugueses e estrangeiros para passarem às Minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e pretos e muitos índios de que os Paulistas se servem.»

Cidade de Ouro Preto, na actualidade. Praça de Tiradentes. A cidade tem este nome devido a uma característica do mineral aqui encontrado: o ouro era escurecido por uma camada de paládio, que lhe dava uma tonalidade diferente da usual.

IMG_1379Era neste edifício em Salvador (Bahía) – que foi a primeira capital do Brasil – que se armazenava o ouro que seria transportado para Portugal.

Aspecto da biblioteca do Complexo de Mafra. Tem 88 m de comprimento, 9.5 de largura e 13 de pé direito, chão de mármore rosa, cinzento e branco, estantes em madeira do Brasil, decoradas em estilo rococó e inúmeras obras de arte. Planta em cruz, é iluminada por luz natural. Alberga mais de 40.000 livros com encadernações em couro gravadas a ouro, alguns autênticas preciosidades. Consta ter sido na Biblioteca que os príncipes aprenderam a patinar. É a jóia do Palácio.

Para a prática musical, o Complexo dispõe de dois carrilhões dispostos em torres de 68 metros de altura, cada uma com 57 sinos. O mais conhecido, por ser o de maior ressonância pode ser ouvido a 15 km de distância. Dispõe também de seis órgãos construidos simultaneamente e pensados como um todo. Estes últimos foram recentemente restaurados, de acordo com o perfil original, após cerca de 200 anos de silêncio.

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Refira-se o apoio dado aos novos compositores durante o Barroco, os quais puderam estudar no estrangeiro e cuja obra é marcante. Casos de Carlos Seixas, Domingos Bomtempo ou Marcos Portugal. Mas também da cantora lírica Luísa Todi, já na segunda metade do século, uma meio soprano cufa fama ia desde Paris a São Petersburgo, mas que na Pátria encontrava indiferença e desconfiança…

Pormenor da entrada da Igreja. Em primeiro plano parte de um cartaz a anunciar um dos primeiros concertos efectuados após a recuperação dos orgãos (2010)

Pormenor do teto do Convento de Mafra

A Tapada de Mafra foi criada em 1747, na sequência da construção do Complexo de Mafra, que lhe é contíguo. É rodeada por um muro de pedra e cal, com uma extensão de 16 Km. Uma parte está hoje sob administração militar. Desde a sua criação foi uma zona de lazer real vocacionada para a caça. Não só D. João V, como os seus sucessores, utilizaram-na nas Caçadas da Corte. Podem encontra-se gamos, javalis ou veados-vermelhos.

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O reinado de D. João V é contemporâneo do Barroco. O espólio a nível da arquitectura e artes decorativas é de grande riqueza. No campo literário, António José da Silva (nascido no Rio de Janeiro) foi uma personalidade que marcou o teatro português. Judeu, viu-se perseguido pela Inquisição que haveria de o condenar à fogueira (1739)…

Jardins do Complexo de Mafra… Também Luís António Verney, com o “Verdadeiro Método de Estudar”, foi outra figura da época. Mais factos relevantes: fundada a Real Academia Portuguesa de História; introduzida a ópera italiana; pintores, escultores, músicos estrangeiros (como Scarlatti) fixaram-se em Portugal e fizeram escola.

Mobiliário de “estilo” D. João V

Terrina em porcelana

Igreja de Camarate. Altar em talha dourada. Esta é uma técnica em que a madeira (principalmente carvalho ou castanho) é esculpida e posteriormente revestida por película de ouro.

Capela de S. Gonçalo. Angra do Heroísmo

Revestimento interior em talha dourada da Igreja de S. Francisco (Porto)

Carruagem de D. João V. Museu dos Coches / Lisboa. Ficaram célebres as cerimónias do casamento do Rei, bem como da comitiva que, em Viena, pediu ao Imperador austríaco a mão da filha. Do mesmo modo os cortejos ao papa, as festas e os banquetes na Corte testemunharam quanto, para D. João V, o luxo era uma forma de propaganda da realeza

Biblioteca da Universidade de Coimbra. O gosto pelos livros é patente nas bibliotecas que criou, pela reedição de livros já com número reduzido de exemplares, pela recolha e organização de escritos científicos de autores portugueses, que se encontravam dispersos e fora do país, como pela importação de obras, gravuras e tratados estrangeiros

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No Barroco Joanino integram-se todas as manifestações artísticas que aconteceram durante o longo reinado de D. João V. Na denominação “barroco” incluem-se diferentes tendências, as mais inovadoras resultaram sobretudo da vinda para Portugal de pintores, escultores, músicos, arquitectos, etc. da Europa evoluída (Itália e França, principalmente). De comum entre elas, estava a noção de grandiloquência, de teatralidade e excesso, de grandeza e ostentação, próprias do absolutismo. Mas não só os estrangeiros imigrantes contribuíram para a abertura em relação ao Barroco tradicional. Também artistas portugueses enviados como Bolseiros para a Europa culta – os “estrangeirados”, estiveram na origem de um certo “arejamento”. Este período foi dos mais fecundos da História da Cultura Portuguesa.

Porém, a ostentação e o luxo não eram consentidos a todas as classes sociais. Fora da Nobreza, D. João V estabeleceu regras que se aplicavam não só em Portugal como nas colónias. Foi a denominada Pragmática contra o Luxo. Nela se regulava a moderação dos adornos e proibia o luxo e excesso dos trajes, carruagens, móveis e lutos, o uso de espadas a pessoas de baixa condição. Nas colónias, definia-se o que, negros e mulatos, deviam usar, impedindo-os de trajar do mesmo modo que os brancos. Tudo era regulamentado, roupas, jóias, cristais e vidros. Quanto ao mobiliário nada de dourados ou prateados, só admitidos em molduras ou espelhos. O luxo era exclusivo da família real e aristocracia. As outras classes tinham de se manter no seu lugar…Luzes e sombras do absolutismo.

Para além da corte faustosa, exemplos das prodigalidades reais. De acordo com informação disponível: em indulgências e canonizações enviou para Roma perto de 1,38 milhões de cruzados; por uma imagem de prata dourada benzida pelo papa, deu 120.000 cruzados; para diferentes igrejas do estrangeiro mandou alfaias e adornos de incalculável valor; para Jerusalém enviou 1.377 cruzados…D. João V delapidou a enorme fortuna que a extração de ouro e diamantes do Brasil proporcionou.

Aqueduto das Águas Livres. Começou a funcionar em 1748 após turbulenta e morosa construção. O Alvará Régio de D. João V, que ditou o início dos trabalhos, ocorreu em 1731. Arquitetos responsáveis, António Canevari, Manuel da Maia e João Frederico Ludovice e, mais tarde, Custódio Vieira e Carlos Mardel. Servia para abastecer Lisboa com distribuição por rede de chafarizes.

Torre dos Clérigos, projecto do arquiteto Nicolau Nasoni.

Casa de Mateus, projeto de Nicolau Nasoni

Jardim da Casa de Mateus

Palácio do Raio, construído em 1754-55, projeto do arquitecto André Soares

Palácio das Necessidades. Mandado construir por D. João V, tornou-se residência real a partir de Maria II, excepção feita ao seu filho Luís I, que preferiu o Palácio da Ajuda.

Palácio das Necessidades

Palácio das Necessidades

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Memorial do Convento faz o enquadramento histórico da construção do Convento. Os protagonistas são gente do povo que têm em comum a capacidade de sonhar ou o dom de ver o que os outros não conseguem. Construir uma pianola e fazê-la erguer-se feita pássaro de maravilhas (Frei Bartolomeu de Gusmão); Belimunda capaz de ver as pessoas por dentro, mesmo por debaixo da pele; Baltazar que perdera um braço na guerra com os espanhóis, aturdido no seu regresso a Mafra encontra Belimunda que passa a sua parceira de amor e muitos fascínios…Tudo isto e mais as ondas de pessoas arrancadas à sua vida para vir construir o Convento na urgência dum capricho real e, sobretudo a Inquisição, a rígida defensora do estabelecido, com os seus Autos de Fé, os desgraçados queimados vivos perante as aclamações da populaça que gosta de emoções fortes…Memorial do Convento, um extraordinário romance de José Saramago.

Em 1750 (Tratado de Madrid) são reconhecidas as fronteiras do Brasil sensivelmente como hoje existem. Deixara, assim, de valer o Tratado de Tordesilhas para vigorar o princípio da ocupação efectiva dos territórios. Portugal cedia à Espanha, Sacramento e eram-lhe reconhecidos os territórios de Rio Grande do Sul. Já nos anos 500, os portugueses tinham-se estabelecido ao longo do litoral, desde a foz do Amazonas até o estuário do Rio da Prata. A fixação de açorianos no sul fizera-se desde o séc. XVII. A descoberta de ouro levou à intensificação da colonização. D. João V favoreceu a emigração de açoreanos oferecendo contrapartidas aos que decidissem emigrar para o litoral sul do Brasil. O Rei percebera a importância da ocupação do território da colónia.

Salvador da Bahia – Centro histórico (Pelourinho). Aí se encontram abundantes vestígios da presença portuguesa, nomeadamente do estilo barroco (ao fundo o edifício azul alberga a Fundação – Casa de Jorge Amado)

Em Salvador encontram-se cerca de 80 igrejas com pinturas, azulejos e talhas douradas, que testemunhando o período.

Interior da Catedral de Salvador da Bahia

Azulejos da Catedral de Salvador

Catedral Metropolitana de Belém. Considerada um dos monumentos mais expressivos da arquitectura eclesiástica setecentista da região Norte do Brasil, foi mandada construir por D. João V

Interior barroco em edifício de Belém

Mangal das Garças em Feliz Lusitania. Este foi o primeiro nome da actual cidade de Belém

Forte do Castelo na baía do Guajará em Belém, Pará

Palácio de Palhavã. D. João V deixou grande descendência. Do casamento nasceram 6 filhos, um dos quais, D. José, lhe sucedeu no trono. De diversas relações extra-conjugais há notícia de mais cinco filhos, um deles com a freira Paula do Convento de Odivelas. Três dos filhos fora do casamento foram educados no Palácio de Palhavã, edifício onde hoje funciona a Embaixada de Espanha. Curiosamente todos os “meninos de Palhavã” tiveram a sua vida ligada à Igreja, 2 deles receberam o Grau de Doutores em Teologia, dos quais um (D. José) foi Inquisidor-Mor em 1758.

A 31 de Julho de 1750 morreu D. João V. Já oito anos antes sofrera um Acidente Vascular Cerebral que o diminuíra. No último período da sua vida deu-se a ascensão de Alexandre Gusmão, outro “brasileiro” de Santos, como chefe de governo, o qual negociou o Tratado de Madrid, talvez o ponto mais alto da diplomacia portuguesa da época. 43 anos durou o reinado de D. João V.

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Aspecto actual do Largo do complexo de Mafra

Veja o vídeo:

Camões, os Portugueses e o Índico

Que influência tiveram Os Lusíadas na aventura de Alcácer-Quibir? Teria Luis Vaz incendiado a imaginação do Rei-adolescente com as suas ideias sobre a grandeza do destino português? Teria sido outra a trajectória portuguesa no final do Séc. XVI? Talvez, mas é pura especulação.
Verdade, é que Camões, depois de inúmeras vicissitudes – pobreza, traições, abandono em Moçambique por gente em quem confiava, quando conseguiu regressar à Pátria, em Lisboa passou a receber uma pensão outorgada pelo Rei “pelos seus bons serviços”, que, correspondia a ¼ do que ganhava um carpiteiro na época… El-Rei mandou publicar o poema, é certo, mas a sua divulgação pequena e, mesmo assim com as emendas que o Santo Ofício determinou. A miséria – e a fome, acompanharam os últimos anos de Camões. E o desfecho da expedição de D. Sebastião e a ascensão ao trono de Filipe II de Castela e I de Portugal, deixaram-no em profundo abatimento, até que a peste o ceifou.
Contudo, não deixa de ser significativo, ser o rei castelhano, homem culto na sua época, quem tenha providenciado à divulgação d’Os Lusíadas e que a ele e a outros homens cultos de Castela, se deveram o reconhecimento e a admiração por Camões, que haveriam depois de o tornar famoso.
A epopeia de Camões não defendia apenas a raça portuguesa. Levantava dúvidas sobre a razoabilidade da expansão marítima e sobre o carácter dos seus protagonistas. Havia heróis corruptos, cobiçosos, vis. De qualquer forma, Os Lusíadas são fundamentalmente a elegia dos portugueses, a sua vocação para grandes feitos, para a sua missão de evangelizar os povos que descobriam, esses apresentados como mais fracos ou submissos.
A epopeia, como documento de viagem, é fiel. Se Camões não tivesse percorrido todas as regiões por onde Vasco da Gama se atrevera, se não tivesse estudado minuciosamente os relatos conhecidos dessa viagem, como também dos episódios históricos que evoca, Os Lusíadas não teriam o rigor que se lhe reconhece ou talvez não lhe tivesse sido possível escrevê-los.
Mas outros foram os textos mais ou menos contemporâneos que falaram dos Descobrimentos. Em primeiro lugar, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que terá convivido com Camões em Macau. O herói português da Peregrinação é um aventureiro, frequentemente pirata, que comerceia e guerreia para lucro próprio. É um relato das misérias humanas vividas por Pedro de Faria. No Oriente os portugueses são bárbaros e os Orientais civilizados. As viagens atribuladas de Fernão Mendes pela Birmânia, Sião (actual Tailândia), China e Japão, forneceram-lhe material para o livro que só seria publicado após a sua morte e cujo conteúdo extraordinário foi posto em causa (chamando ao autor, Fernão Mendes Minto). E também S. Francisco Xavier muitas vezes se manifestou contra a imoralidade da Administração portuguesa.
Portugal, que se expandira tanto para Oriente como para Ocidente, sofria na Europa um evidente declínio que a perda da independência haveria de agravar. Outras vozes, como a de Gil Vicente no Auto da India, apesar de se tratar de uma peça de costumes (envolvendo adultério, hipocrisia e oportunismo), abordava a história de um marinheiro que embarca à procura de fortuna e poder.
Visitar hoje as praias do Índico, as igrejas, os fortes mais ou menos em ruínas, descobrir uma lápide, uma estátua, um jardim, não são actos de saudosismo. São pretextos para recordar a História portuguesa, analisar a sua nobreza e misérias, e, se possível, traçar paralelos e tirar conclusões.
O regresso do Império à expressão mais simples, nem com a tragédia dos retornados, parece ter acordado os portugueses. O seu destino de grandeza é uma miragem. Afinal, o velho do Restelo ao apostrofar os navegantes, era a voz da sensatez. Sempre foi necessário sonhar, como é preciso ter os pés assentes na terra. Não dar um passo sem ter o outro pé apoiado. Alcácer-Quibir foi o resultado do fanatismo religioso, associado à cupidez de nobres e burgueses e à falta de senso do Rei. Os Homens do Infante desenharam os mapas e os navegadores seguintes venceram o medo apoiados na cartografia e no nónio. Mas os seus sucessores passaram a viajar à bolina do destino. Quase 500 anos depois, cercados pelas dívidas do Estado, pelas exigências dos credores, não temos mais qualquer fuga possível, a não ser encarar a realidade.

FM

 

As armas e os barões assinalados,/Que da ocidental praia Lusitana,/Por mares nunca de antes navegados,/Passaram ainda além da Taprobana,/Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana,/E entre gente remota edificaram/Novo Reino, que tanto sublimaram;

      Oiça o poema

E também as memórias gloriosas/Daqueles Reis, que foram dilatando/A Fé, o Império, e as terras viciosas/De África e de Ásia andaram devastando;/E aqueles, que por obras valerosas/Se vão da lei da morte libertando;/Cantando espalharei por toda parte,/Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano/As navegações grandes que fizeram;/Cale-se de Alexandro e de Trajano/A fama das vitórias que tiveram;/Que eu canto o peito ilustre Lusitano,/A quem Neptuno e Marte obedeceram:/Cesse tudo o que a Musa antígua canta,/Que outro valor mais alto se alevanta.

Camões é um dos grandes poetas da Humanidade. Além dos Lusíadas, a sua obra estende-se pela lírica e teatro. A 1ª metade do séc. XVI, época em que viveu, corresponde à expansão portuguesa e a um período de exacerbado orgulho patriótico pelas Descobertas. Os Lusíadas são a celebração da viagem do caminho marítimo para a Índia e de episódios da História de Portugal.

Nele coexistem a visão cristã e a mitologia greco-romana. Os mitos aparecem lado a lado com factos históricos (como a morte de Inês de Castro ou a batalha de Aljubarrota). A perspectiva da grandiosidade da Pátria e da predestinação do seu Futuro não invalida que Camões denuncie a Ambição e a Cobiça e questione a Fama e a Glória da aventura marítima (Velho do Restelo).

Monumento a Camões em Constância (Ribatejo) Camões nasceu em 1524 ou 25, provindo de família nobre. Um dos tios, iminente intelectual, era Reitor da Universidade de Coimbra. Foi ele que o auxiliou nos estudos, obtendo naquela Universidade o título de Bacharel de Artes. De volta a Lisboa, Camões frequentou a Corte. Aqui se inicia a sua fama da Poeta. A paixão por uma dama de honor da Rainha (a quem dedicou versos, com o anagrama de Natércia, mas a quem não podia aspirar por não ter fortuna), valeram-lhe o exílio durante 2 anos em Constância. Parte depois numa expedição para o norte de África, onde em Ceuta perde em combate o olho direito. De regresso, é uma vida boémia, feita de duelos, saraus, também reconhecimento popular, invejas…Num desses duelos fere um moço de arreios do Rei. Preso, é libertado um ano depois com a exigência de embarcar para a Índia. Era o ano de 1553. Para trás ficava a representação da sua 1ª peça teatral.

Camões foi um Homem que antecipou o seu tempo. Verdadeiro humanista, estudou os clássicos – Homero, Virgílio, Ovídio, como também outros – Petrarca (cujo estilo adoptou na lírica), Tasso, Boccaccio…. Sabia latim e castelhano. O Renascimento italiano fizera interessar os homens do seu tempo por áreas tão diferentes como matemáticas, filosofia, medicina… E Camões, mesmo vivendo no Oriente, por vezes em condições de indigência, como sucedia à generalidade dos soldados que para aí iam, reunia os amigos (onde se encontraram Garcia de Orta e Diogo do Couto) e liam os poetas clássicos, como trocavam a informação científica que lhes chegava ou de que eram autores.

Estátua de Vasco da Gama (na Ilha de Moçambique). Quanto a Vasco da Gama, herói e figura central d’Os Lusíadas, partira de Belém, em Lisboa, em 1497, rumo à Índia. A armada era composta por três naus.. Depois de bordejar toda a costa de África e ultrapassado o Cabo da Boa Esperança, entraram no Oceano Índico, ancorando em Calecute, no ano de 1498. Estava traçado o caminho marítimo para a Índia e estabelecida uma nova rota de comércio para o Oceano Índico.

“Mais ia por diante o monstro horrendo /Dizendo nossos fados, quando alçado /Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo Corpo certo me tem maravilhado.— /A boca e os olhos negros retorcendo, /E dando um espantoso e grande brado, /Me respondeu, com voz pesada e amara, /Como quem da pergunta lhe pesara:

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— “Eu sou aquele oculto e grande Cabo, /A quem chamais vós outros Tormentório, /Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo, /Plínio, e quantos passaram, fui notório. /Aqui toda a Africana costa acabo /Neste meu nunca visto Promontório, /Que para o Pólo/Antarctico se estende, /A quem vossa ousadia tanto ofende.

Ilha de Moçambique – Na sua viagem inaugural, Vasco da Gama aí chegou em 1498. Na Ilha havia uma povoação swahili de árabes e negros com o xeque, subordinado ao sultão de Zanzibar. Onde, na Ilha de Moçambique é hoje o Palácio dos Capitães-Generais, os portugueses, no ano de 1507, construíram a Torre de São Gabriel – pequena fortificação com uma guarnição de 15 homens para proteger a feitoria nela instalada.

A Ilha tem cerca de 3 km de comprimento e situa-se à entrada da Baía de Mossuril .A sua costa oriental estabelece com as ilhas irmãs de Goa e de Sena (também conhecida por Ilha das Cobras) a Baía de Moçambique

Ilha de Goa (em Moçambique), que apresenta como atração um farol que funciona desde 1876

O farol

Em 1558 principiou a construção da Fortaleza de S. Sebastião, só concluída em 1620. Esta fortificação, a maior da África Austral, era estrategicamente muito importante. A Ilha tinha-se tornado o entreposto comercial para troca de panos e missangas da Índia por ouro, escravos, marfim e pau preto de África. Era também da Ilha que partiam as viagens comerciais para Quelimane, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques

É pobre e já foi rica. Era mais pobre/quando Camões aqui passou primeiro,/cheia de livros a cabeça e lendas/e muita estúrdia de Lisboa reles./Quando passados nele os/Orientes/e o amargor dos vis sempre tão ricos,/aqui ficou, isto crescera, mas/a fortaleza ainda estava em obras,/as casas eram poucas, e o terreno/passeio descampado ao vento e ao sol/desta alavanca mínima, em coral,/de onde saltavam para Goa as naus, que dela vinham cheias de pecados/e de bagagens ricas e pimentas podres./Como nau nos baixios que aos Sepúlvedas/deram no amor corte primeiro à vida,/aqui ficou sem nada senão versos./Mas antes dele, como depois dele,/aqui passaram todos: almirantes, ladrões e vice-reis, poetas e cobardes,/os santos e os heróis, mais a canalha/sem nome e/sem memória, que serviu/de lastro, marujagem, e de carne/para os canhões e os/peixes, como os outros./Tudo passou aqui ? Almeidas e Gonzagas,/Bocages e Albuquerques, desde o Gama./Naqueles tempos se fazia o espanto/desta pequena aldeia citadina/…

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…de brancos, negros, indianos e cristãos,/e muçulmanos, brâmanes, e ateus./Europa e África, o Brasil e as Índias,/cruzou-se tudo aqui neste calor tão branco como do forte a cal no pátio, e tão cruzado/como a elegância das nervuras simples da capela pequena do baluarte./Jazem aqui em lápides perdidas/os nomes todos dessa gente que,/como hoje os negros, se chegava às rochas,/baixava as calças e largava ao mar/a mal-cheirosa escória de estar vivo./Não é de bronze, louros na cabeça, nem no escrever parnasos, que te vejo aqui/Mas num recanto em cócoras marinhas, soltando às ninfas que lambiam rochas/o quanto a fome e a glória da epopeia/em ti se digeriam. Pendendo para as pedras/teu membro se lembrava e estremecia/de recordar na brisa as cróias mais as damas,/e versos de soneto perpassavam/junto de um cheiro a/merda lá na sombra,/de onde n’alma fervia quanto nem pensavas…

…Depois, aliviado, tu subias/aos baluartes e fitando as águas/sonhavas de outra Ilha, a Ilha única,/enquanto a mão se te pousava lusa,/em franca distracção, no que te era a pátria/por ser a ponta da/semente dela./E de zarolho não podias ver/distâncias separadas: tudo te era uma/e nada mais: o Paraíso e as Ilhas,/heróis, mulheres, o amor que mais se inventa,/e uma grandeza que não há em nada./Pousavas n’água o olhar e te sorrias/? mas não/amargamente, só de alívio,/como se te limparas de miséria,/e de desgraça e de injustiça e dor/de ver que eram tão poucos os melhores,/enquanto a caca ia-se na brisa esbelta,/igual ao que se esquece e se lançou de nós. (Jorge de Sena)

Igreja de Santo António /Ilha

“Esta ilha pequena, que habitamos, /em toda esta terra certa escala /De todos os que as ondas navegamos/De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;/E, por ser necessária, procuramos,/Como próprios da terra, de habitá-la;/E por que tudo enfim vos notifique, Chama-se a pequena ilha Moçambique. Canto I

Ilha de Moçambique – No Largo de S. Paulo situa-se o Palácio dos Capitães-Generais, também conhecido como Palácio de S. Paulo ou Palácio do Governador. Foi construído em 1610 e reconstruído em 1674, após incêndio que o destruíu. Em 1759 passou a ser a residência do Governador-Geral (ou Capitão-General, daí o seu nome), até a capital da colónia passar para Lourenço Marques, em 1898.

Praia das Chocas

Pormenor da Praia das Chocas

Praia da Carrusca, contígua às Chocas

A exportação de escravos era o principal comércio da Ilha, mas a Independência do Brasil, principal destino do comércio negreiro, deixou a ilha no marasmo, que veio a agravar-se com a passagem da capital da colónia para Lourenço Marques, em 1898 e com a abertura do porto de Nacala, em 1970.

Pemba Os swahilis são uma etnia da África Oriental que se estende por regiões que incluem o Norte de Moçambique, Tanzânia e Quénia. Na maioria são muçulmanos e sempre tiveram estreitas relações com os povos do Golfo Pérsico e da Península da Arábia, cuja influência é evidente. A sua principal atividade é a pesca, que continua a fazer-se de modo artesanal. O comércio de escravos e de marfim representou durante séculos importante atividade económica.

Tanzânia, Forte de Quiloa Parece terem sido populações swahili quem, no Séc IX, ocupou em primeiro lugar as ilhas de Quiloa, que viria a ser um importante centro comercial.

O Forte de Quiloa (primeira fortificação erguida em pedra e cal na África Oriental) foi construído em 1505, por ordem do Vice-Rei da India, D. Francisco de Almeida para proporcionar abrigo aos passageiros das naus da Carreira das Índias, que demandavam aquele porto

“Mas eis outro (cantava) intitulado/Vem com nome real e traz consigo/O filho, que no mar será ilustrado,/Tanto como qualquer Romano antigo./Ambos darão com braço forte, armado,(A Quíloa fértil, áspero castigo,/Fazendo nela Rei leal e humano,/Deitado fora o pérfido tirano. (Canto X)

Mombaça A presença portuguesa foi conflituosa. Desde Vasco da Gama, hostilizado na sua passagem, a represálias posteriores ordenadas por vários Vice-Reis da Índia, há histórias de ataques, cercos, traições, até à sua perda para forças islâmicas, em 1698. 30 anos depois o forte haveria de ser entregue aos Portugueses, que por pouco tempo o conservaram. O Forte Jesus foi erguido, sob o reinado de Filipe I de Portugal, para proteger o porto (que era um dos melhores da África Oriental), após ataques de turcos otomanos.

Mombaça Forte Jesus Estava a ilha à terra tão chegada,/Que um estreito pequeno a dividia;/Uma cidade nela situada,/Que na fronte do mar aparecia,/De nobres edifícios fabricada,/Como por fora ao longe descobria,/Regida por um Rei de antiga idade:/Mombaça é o nome da ilha e da cidade.

Segundo Os Lusíadas, na sua rota pela costa de África, Vasco da Gama foi recebido afavelmente pelo Rei de Melinde que lhe pediu para contar histórias do seu povo. Camões, pela voz de Vasco da Gama, aproveitou para glorificar Portugal e a sua História.

Melinde Vós, poderoso Rei, cujo alto Império/O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;/Vê-o também no meio do Hemisfério,/E quando desce o deixa derradeiro;/Vós, que esperamos jugo e vitupério/Do torpe Ismaelita cavaleiro,/Do Turco oriental, e do Gentio,/Que inda bebe o licor do santo rio;

Inclinai por um pouco a majestade,/Que nesse tenro gesto vos contemplo,/Que já se mostra qual na inteira idade,/Quando subindo ireis ao eterno templo;/Os olhos da real benignidade/Ponde no chão: vereis um novo exemplo/De amor dos pátrios feitos valerosos,/Em versos divulgado numerosos.

Ormuz Ontem, como hoje, é um ponto estratégico fundamental, ligando o Golfo Pérsico ao Golfo de Oman. Ao Norte, o Irão; a sul os Emiratos Árabes Unidos. Até ao séc. XVI era por ali que se escoavam as especiarias e outros géneros que, em caravanas, entravam no Mediterrâneo e daí chegavam à Europa. Em Ormuz transacionavam-se os melhores cavalos da Arábia e da Pérsia que dali seguiam para todo o Oriente, sobretudo para a Índia.

Ormuz Foi Afonso de Albuquerque, quem em 1507 a conquistou, mandado erguer a fortaleza, que ainda hoje existe. Dada a importância estratégica desta Praça foram construídas outras fortificações em ilhas vizinhas, as quais se conservaram sob domínio português, até 1622. As naus portuguesas patrulhavam as águas para controlar o comércio e garantir que o seu escoamento se fazia pelo Cabo da Boa Esperança. Hoje a importância de Ormuz deve-se, sobretudo, ao grande número de petroleiros que por ali passam, rumo ao Ocidente.

Calecute Vasco da Gama e seus marinheiros são recebidos pelo Samorim de Calecute. São estabelecidas relações comerciais amigáveis com os povos do Oriente.

Chegada a frota ao rico senhorio,/Um Português mandado logo parte/A fazer sabedor o Rei gentio/Da vinda sua a tão remota parte./Entrando o mensageiro pelo rio,/Que ali nas ondas entra, a não vista arte,/A cor, o gesto estranho, o trajo novo/Fez concorrer a vê-lo todo o povo. Canto VII

Ribandar (Rio Mandovil) O que se passou em Goa e, mais propriamente, no Estado Português da Índia, até à chegada de Luis Vaz, é um exemplo (triste) da colonização portuguesa. Afonso de Albuquerque foi o grande conquistador, talvez o exemplo maior da expansão portuguesa. Depois, sucederam-se Vice-Reis, cujos mandatos de 3 anos, serviam, na maioria dos casos, para, como todos os funcionários, rapidamente enriquecerem. A administração era escandalosa. Os veleiros que asseguravam a “Carreira das Índias” levavam soldados esfomeados. Os mantimentos que, por lei, deveriam garantir 8 meses de viagem , chegavam, na melhor das hipóteses, para 6, e eram de má qualidade. A época de bom tempo para a viagem era atrasada pela burocracia de Lisboa. Foram grandes as perdas em vidas e navios.

Preso em Goa (pintura anónima) Camões era um fidalgo pobre, que mostrara coragem em combate, tanto no Norte de África como no Oriente. Homem íntegro, escrevia também sátiras que, mesmo inofensivas, incomodavam o Poder e levaram-no várias vezes à cadeia. Valeram-lhe amigos que na rotatividade da Administração, conhecendo-lhe os méritos, conseguiram a sua libertação. Camões recluso, ia escrevendo Os Lusíadas.

16 anos foi o tempo que Luis Vaz viveu no Oriente, não só em Goa como na China. Em Macau onde procurou isolar-se para escrever o poema épico, perduram vários marcos que assinalam a sua estada. Este quadro relativo à “Gruta”, mostra-o com o fiel escravo Jau, que o acompanhou, mesmo depois de regressar a Portugal, e que, consta, teria mendigado os parcos alimentos que Camões na velhice, pobre e doente, não podia angariar.

Sé e Igreja de S. Francisco Xavier em Goa. Devido ao grande número de igrejas, Goa é conhecida pela Roma do Oriente. Camões permaneceu aí muito tempo, viajando para a China e volta, quer como militar quer como funcionário.

Sé PatriarcalO chamado Estado Português da Índia viria a ser integrado na União Indiana em Dezembro de 1961. Contra um poder militar avassalador, Salazar declarara que só concebia “soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”. O Governador-Geral Vassalo e Silva, na iminência de um massacre, assinou a rendição. Em vez de uma transição pacífica de soberania que acautelasse a presença e a cultura portuguesa, preferiu-se o calvário dos prisioneiros, largos meses em cativeiro e recebidos desdenhosamente quando libertados. Era o início do fim do Império.

Goa Forte AguadaHouve excepções, algumas delas fruto do acaso e das circunstâncias, como a da resistência oposta pela guarnição deste forte, motivada pelas deficientes comunicações que impediram saber da rendição. O comportamento dos defensores fez deles um exemplo para o Regime. Mas o” Estado da Índia” desaparecia e só nos anos 90 voltaria a ser visitado por um governante português – Mário Soares. Fechava-se o ciclo de Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, S. Francisco Xavier e da enorme influência que os cristãos e hindus nascidos em Goa, Damão e Diu tiveram na Administração colonial portuguesa,

Os restos mortais de S. Francisco Xavier encontram-se aqui, na Basílica do Bom Jesus de Goa, local de peregrinação. Descendente uma família aristocrática de Navarra, fundou, com Inácio de Loyola e mais cinco devotos, a Companhia de Jesus, congregação religiosa destinada ao ensino, à conversão e à caridade. Respondendo a um apelo de D. João II, partiu para o Oriente, chegando a Goa em 1542. Foi grande a sua acção missionária – a Igreja Católica considera que tenha convertido mais pessoas ao Cristianismo do que qualquer outro missionário. Daí o epíteto de “Apóstolo do Oriente”. A sua acção estendeu-se também a Macau, Japão, à actual Indonésia, Sri Lanka, Moçambique… Numa das suas viagens teve contactos com Fernão Mendes Pinto.

Templo de Pondá

Igreja de Candolim

Delta do Rio Mekong Numa viagem de regresso de Macau para Goa, a nau em que viajava naufragou, na foz do rio Mekong. Segundo relatos, Luis Vaz, segurando num braço o manuscrito d‘Os Lusíadas, conseguiu, nadando apenas com o outro, atingir terra. O rio Mekong, no actual Cambodja, que nos evoca hoje a Guerra do Vietnam…

Alma minha gentil, que te partiste/Tão cedo desta vida, descontente,/Repousa lá no Céu eternamente,/E viva eu cá na terra sempre triste.//Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta sida se consente,/Não te esqueças daquele amor ardente/Que já nos olhos meus tão puro viste.//E se vires que pode merecer-te/Alguma cousa a dor que me ficou/Da mágoa, sem remédio, de perder-te,//Roga a Deus, que teus anos encurtou,/Que tão cedo de cd me leve a ver-te,/Quão cedo de meus olhos te levou

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S. Francisco Xavier

Fortaleza de Diu: é considerada a mais importante e bem fortificada estrutura militar erguida no Estado Português da Índia. Reputada como inexpugnável, resistiu a inúmeros cercos e ataques de árabes, turcos, indianos e holandeses. Foi para reconstruir as suas muralhas, arruinadas por um cerco, que D. João de Castro (4º Vice-Rei da Índia) solicitou à Câmara Municipal de Goa um empréstimo de 20 mil pardaus, dando em garantia a própria barba.

Macau

Macau: ruínas da Catedral de S. Paulo. A fachada é o que resta do templo, começado a construir no final do Séc. XVI e destruído parcialmente por um incêndio, mais de duzentos depois. Foi a igreja cristã mais importante da Ásia. Constitui, hoje, um autêntico ícone da cidade.

A Peregrinação é o relato fantástico das viagens e aventuras de Fernão Mendes Pinto, que durante 21 anos percorreu as costas do Oriente, desde o Japão até à India. Conheceu Francisco Xavier e Luis Vaz, combateu ao lado de Pedro de Faria, foi preso, libertado, entrou para a Companhia de Jesus, mas desiludiu-se com o comportamento da própria Companhia. De regresso a Portugal, escreve as suas aventuras, que só seriam publicadas 20 anos após a sua morte, possívelmente com amputações feitas pelos Jesuítas.

“Depois de ser embarcado António de Faria, e nós todos com ele, que seria já quase às ave-marias, nos passámos a remo à outra parte da ilha, e surtos a cerca de um tiro de falcão, dela, nos deixámos assim estar até quase à meia-noite, com determinação, como já atrás disse, de logo que ao outro dia fosse manhã, tornarmos a sair em terra e acometer as capelas dos jazigos dos reis que estavam a menos de um quarto de légua de nós, para nelas carregarmos ambas as embarcações, o que quiçá poderia muito bem ser, se nos quiséramos negociar ou António de Faria quisesse tomar o conselho que lhe davam, o qual foi que pois que até então não éramos sentidos, que trouxesse consigo o ermitão para que não desse recado na casa dos bonzos do que tínhamos feito, o que António de Faria não quis fazer, dizendo que seguro estava disso, tanto por ser o ermitão tão velho como todos víamos, como por ser gotoso e ter as pernas tão inchadas que se não podia ter nelas…

porém não foi assim como ele cuidava, porque o ermitão logo que nos viu embarcados (segundo o que depois soubemos) assim trôpego como estava, se foi em pés e em mãos à outra ermida que distava da sua pouco mais de um tiro de besta, e deu conta ao ermitão dela do que tínhamos feito, e lhe requereu que pois ele se não podia bulir por causa da sua hidropisia, fosse ele logo dar rebate na casa dos bonzos, o que o outro ermitão logo fez. […]Porém António de Faria, sem fazer caso do que eles diziam, saltou em terra com seis homens de espadas e rodelas, e subiu pelas escadas do cais acima, quase afrontado e fora de si, e subindo desatinadamente por cima das grades de que toda a ilha, como já disse, era cercada, correu como doido de uma parte para a outra, sem sentir coisa alguma, e tornando-se às embarcações muito afrontado conversou com todos sobre o que nisto se devia fazer, e depois de se darem muitas razões que ele não queria aceitar, lhe fizeram os mais dos soldados requerimento que em todo o caso partissem.

Macau logo, e ele receoso de haver algum motim, respondeu que assim o faria, mas que para sua honra lhe convinha primeiro saber o de que havia de fugir, e que portanto lhes pedia muito por mercê que o quisessem ali esperar, porque queria ver se podia tomar alguma língua que o certificasse mais na verdade desta suspeita, e que para isso lhes não pedia mais de espaço que só meia hora, visto que ainda havia tempo para tudo antes que fosse manhã. (Peregrinação)

Jardim de Camões em Macau

Camões pintado por Malhoa. “Ditoso seja aquele que somente/Se queixa de amorosas esquivanças; Pois por elas não perde as esperanças/De poder nalgum tempo ser contente.//Ditoso seja quem, estando absente,/Não sente mais que a pena das lembranças,/Porque, inda mais que se tema de mudanças, Menos se teme a dor quando se sente.//Ditoso seja, enfim, qualquer estado,/Onde enganos, desprezos e isenção/Trazem o coração atormentado.//Mas triste de quem se sente magoado/De erros em que não pode haver perdão,/Sem ficar na alma a mágoa do pecado.”

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho/Destemperada e a voz enrouquecida, /E não do canto, mas de ver que venho/Cantar a gente surda e endurecida. /O favor com que mais se acende o engenho/Não no dá a pátria, não, que está metida /No gosto da cobiça e na rudeza/Dua austera, apagada e vil tristeza.(Canto X)

Oiça o poema

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Os autores agradecem a colaboração de A. L. Matos Pereira, Francisco Vaz Garcia e Nacional Filmes Lda.

Que influência tiveram Os Lusíadas na aventura de Alcácer-Quibir? Teria Luis Vaz incendiado a imaginação do Rei-adolescente com as suas ideias sobre a grandeza do destino português? Teria sido outra a trajectória portuguesa no final do Séc. XVI? Talvez, mas é pura especulação.
Verdade, é que Camões, depois de inúmeras vicissitudes – pobreza, traições, abandono em Moçambique por gente em quem confiava, quando conseguiu regressar à Pátria, em Lisboa passou a receber uma pensão outorgada pelo Rei “pelos seus bons serviços”, que, correspondia a ¼ do que ganhava um carpiteiro na época… El-Rei mandou publicar o poema, é certo, mas a sua divulgação pequena e, mesmo assim com as emendas que o Santo Ofício determinou. A miséria – e a fome, acompanharam os últimos anos de Camões. E o desfecho da expedição de D. Sebastião e a ascensão ao trono de Filipe II de Castela e I de Portugal, deixaram-no em profundo abatimento, até que a peste o ceifou.
Contudo, não deixa de ser significativo, ser o rei castelhano, homem culto na sua época, quem tenha providenciado à divulgação d’Os Lusíadas e que a ele e a outros homens cultos de Castela, se deveram o reconhecimento e a admiração por Camões, que haveriam depois de o tornar famoso.
A epopeia de Camões não defendia apenas a raça portuguesa. Levantava dúvidas sobre a razoabilidade da expansão marítima e sobre o carácter dos seus protagonistas. Havia heróis corruptos, cobiçosos, vis. De qualquer forma, Os Lusíadas são fundamentalmente a elegia dos portugueses, a sua vocação para grandes feitos, para a sua missão de evangelizar os povos que descobriam, esses apresentados como mais fracos ou submissos.
A epopeia, como documento de viagem, é fiel. Se Camões não tivesse percorrido todas as regiões por onde Vasco da Gama se atrevera, se não tivesse estudado minuciosamente os relatos conhecidos dessa viagem, como também dos episódios históricos que evoca, Os Lusíadas não teriam o rigor que se lhe reconhece ou talvez não lhe tivesse sido possível escrevê-los.
Mas outros foram os textos mais ou menos contemporâneos que falaram dos Descobrimentos. Em primeiro lugar, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que terá convivido com Camões em Macau. O herói português da Peregrinação é um aventureiro, frequentemente pirata, que comerceia e guerreia para lucro próprio. É um relato das misérias humanas vividas por Pedro de Faria. No Oriente os portugueses são bárbaros e os Orientais civilizados. As viagens atribuladas de Fernão Mendes pela Birmânia, Sião (actual Tailândia), China e Japão, forneceram-lhe material para o livro que só seria publicado após a sua morte e cujo conteúdo extraordinário foi posto em causa (chamando ao autor, Fernão Mendes Minto). E também S. Francisco Xavier muitas vezes se manifestou contra a imoralidade da Administração portuguesa.
Portugal, que se expandira tanto para Oriente como para Ocidente, sofria na Europa um evidente declínio que a perda da independência haveria de agravar. Outras vozes, como a de Gil Vicente no Auto da India, apesar de se tratar de uma peça de costumes (envolvendo adultério, hipocrisia e oportunismo), abordava a história de um marinheiro que embarca à procura de fortuna e poder.
Visitar hoje as praias do Índico, as igrejas, os fortes mais ou menos em ruínas, descobrir uma lápide, uma estátua, um jardim, não são actos de saudosismo. São pretextos para recordar a História portuguesa, analisar a sua nobreza e misérias, e, se possível, traçar paralelos e tirar conclusões.
O regresso do Império à expressão mais simples, nem com a tragédia dos retornados, parece ter acordado os portugueses. O seu destino de grandeza é uma miragem. Afinal, o velho do Restelo ao apostrofar os navegantes, era a voz da sensatez. Sempre foi necessário sonhar, como é preciso ter os pés assentes na terra. Não dar um passo sem ter o outro pé apoiado. Alcácer-Quibir foi o resultado do fanatismo religioso, associado à cupidez de nobres e burgueses e à falta de senso do Rei. Os homens do Infante venceram o medo apoiados na ciência do nónio e da cartografia. Os seus seguidores passaram a viajar à bolina do destino. Quase 500 anos depois, cercados pelas dívidas do Estado, pelas exigências dos credores, não temos mais qualquer fuga possível, a não ser encarar a realidade.

FM

Veja o vídeo:

Miguel Torga: o poeta visita o médico

Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Miguel Torga, após a transmissão de uma série televisiva sobre a sua obra (“Eu, Miguel Torga”), a que emprestei a voz. O encontro promovido pelo realizador João Roque, realizou-se em casa do Dr. António Arnaut, amigo de ambos, e para  a qual fui convidado a almoçar. Desse encontro conservo uma lembrança viva e sobre ele escrevi há anos numa Revista científica. O texto, dirigido a um público específico, conserva toda a actualidade, pelo que o trancrevo:
Foi numa tarde chuvosa de Primavera, com o poeta à cabeceira da mesa discorrendo sobre o destino do Homem, Portugal, os médicos, a sua recusa de capelinhas e grupos literários. Havia em todos os presentes fascínio por aquele homem justo, antítese da hipocrisia e pretensiosismo do meio em que nos movimentamos. E, eis, que, de súbito, nas suas costas recortadas sobre o Mondego, magicamente se abre um arco-iris

Miguel Torga é o pseudónimo literário do médico otorrinolaringologista Adolfo Rocha e essa coincidência terá sido determinante para o encontro.

Voluntariamente exilado em si próprio, longe das associações corporativas (literárias e médicas) e de partidos políticos, recusando-se a quaisquer compromissos com a mediocridade, Torga confessa-se marginal, insusceptível de ser metido nas baias da “normalização”. Verdadeira consciência nacional, faz da liberdade e da esperança as linhas de força do seu humanismo.

A sua obra estende-se pela ficção, teatro, poesia e narrativa autobiográfica e é, principalmente, nos volumes do Diário e da Criação do Mundo que se encontram reflexões sobre o quotidiano dos médicos e sobre “certas misérias morais da classe” e relatos das angústias, calúnias, invejas e velhacarias que sofrem muitos dos que se entregam à clínica.

Entre essas narrativas e observações é possível encontrar referências à sua actividade otorrinolaringológica, o que para nós possui significado particular, porquanto elas exprimem. em linguagem de alto nível, vivências nossas familiares. A recolha que efectuámos aí fica.”

Aqui fica, agora, parte dessa recolha, feita com a ajuda do próprio Miguel Torga. É o retrato do olhar do poeta a acrescentar uma dimensão autobiográfica ao quotidiano do Dr. Adolfo Rocha.

F. Vaz Garcia

 

Miguel Torga (pseudónimo de Adolfo Correia Rocha), médico otorrinolaringologista, nasceu em S. Martinho de Anta (12.08.907) e morreu em Coimbra (17.01.995).

Escola primária em S. Martinho de Anta

Concelho de Sabrosa. Após breve passagem pelo seminário de Lamego, emigra para o Brasil, em 1920. Trabalha na fazenda do tio: é a dureza da “capinagem” do café. Faz de tudo um pouco (desde vaqueiro a caçador de cobras…). Mas, o tio apercebe-se das suas qualidades. Paga-lhe ingresso e estudos no liceu de Leopoldina, onde os professores igualmente registam as suas aptidões.

Serra do Marão. Em 1925 regressa a Portugal e matricula-se na Universidade de Coimbra, onde conclui a licenciatura em Medicina em 1933. Antes de iniciar a sua formação como otorrinolaringologista, trabalhou como médico municipal numa pequena aldeia (Sendim) e, mais tarde, nos arredores de Leiria, até se radicar em Coimbra.

“Dispus-me, finalmente, a meter o corpo aos varais. Comecei a praticar no consultório dum colega oto-rino-laringologista. Muito embora a clínica geral – o doente visto na sua totalidade física e psíquica – estivesse mais de acordo com a minha vocação profissional, eram inegáveis as vantagens da especialização. Poderia fixar-me na cidade, ficaria com mais tempo livre para escrever, e pouparia a saúde, que fora sempre precária e via agora sériamente comprometida. Mas a aprendizagem que iniciava exigia um grande esforço. Depois de espreitar narizes, ouvidos e gargantas o dia inteiro, tinha ainda de rever parte da anatomia, avivar matérias esquecidas, estudar técnicas e teorias. Prometera a mim mesmo preparar-me o melhor possível. Herdara de meu Pai o sentimento de fazer bem feitas todas as coisas em que me metesse. De maneira que trabalhava a valer. Repelia as tentações do sono às horas dele, e abria mastóides na morgue, em vez de atender as musas…”

S. Martinho de Anta “…Ia descobrindo, de resto, algumas novidades apaixonantes naquele pequeno território médico. 0 drama murado da surdez, por exemplo – um dos pesados tributos que o homem desta civilização de ruídos traumatizantes teria de pagar ao futuro. Até ali, era a cegueira que eu julgava a suprema clausura humana, longe de supor que havia ainda outra pior: a perda da audição. Só agora avaliava em toda a medida a solidão de uma criatura sem diálogo possível. E via subitamente a outra luz certas particularidades do comportamento de meu tio, que nunca conseguira compreender. 0 atacamento que dava às baboseiras com que minha tia o azoeirava dia e noite, tinha, afinal, uma explicação simples. Cada vez mais duro de ouvido, encontrava nela a única interlocutora que ajudava a iludir o terror do emparedamento progressivo em que se via. Mas a entrega quotidiana ao espéculo e ao diapasão, por mais porfiada e consciente que fosse, não conseguia trazer-me a pacificação…”

S. Martinho de Anta “…0 sentimento de vazio, que a supressão de Trajecto me deixara, alastrava dentro de mim como unia gangrena. Abri o coração ao Alvarenga. – Queres tu ir até lá fora, arejar? – perguntou-me à queima¬roupa. Como? – De automóvel. -Estás a brincar… – Palavra. Se te interessa, tenho aí um amigo que te leva. – 0 poema de Mallarmé começou a cantar-me na memória: La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres. Fuir! là-bas fuir!”

Foi bonito /O meu sonho de amor. /Floriram em redor /Todos os campos em pousio. /Um sol de Abril brilhou em pleno estio, /Lavado e promissor. /Só que não houve frutos /Dessa primavera. /A vida disse que era /Tarde demais. /E que as paixões tardias /São ironias /Dos deuses desleais.

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“Abrira a tenda num sítio mau. Apesar de ter corrido por todo o lado, não consegui arranjar coisa melhor dentro do apertado orçamento de que dispunha. Um primeiro andar modesto, num cotovelo sombrio e sem movimento. Mas como a mobília que mandara fazer a um merceneiro remendão e o equipamento estritamente indispensável, adquirido com as magras economias de Sendim, destoariam noutro cenário, ficou tudo em harmonia. E ali passava parte das manhãs e das tardes, sonolento, a atender os raros doentes que a notícia da minha chegada num jornal da terra ia trazendo, a ler e a escrever nos longos intervalos das consultas, enquanto os quartos caíam monotonamente da torre da Sé e a senhora Glória fazia renda ou ponteava na sala de espera…

…Aparecera-me logo no primeiro dia, esquelética, desdentada, vestida de preto, a farejar o emprego num desespero esfaimado. A pensar numa rapariga airosa, que ajudasse a alegrar o consultório e a dispor bem a freguesia, disse-lhe que não, que já estava comprometido. Mas tanto pediu e chorou, a falar na viuvez e em quatro filhos pequenos para criar, que fraquejei. Sem saber nada de enfermagem, desajeitada, nos momentos de aflição, em vez de auxiliar, estorvava. Incapacitado, dava-lhe um berro. Pior. Ficava atarantada, e então é que era escusado. Aquela ignorância da arte tinha, contudo, uma vantagem, pelo menos de início: testemunhava os meus erros e insucesso sem entender. 0 que não aconteceu com o finório dum parolo dos Marrazes, que ia dando comigo em pantanas antes mesmo de eu assentar pé….

…Quase cego, devido a compressão inflamatória do nervo óptico, só havia uma solução: trepanar-lhe o seio esfenoidal infectado. Correu tudo bem, a visão normalizou-se e, na altura do pagamento, quando me viu a gaguejar, sem compreender a verdadeira natureza do meu embaraço. — a relutância com que sempre cobrei os honorários —, tentou ajudar-me: — Diga lá, porque eu sei que a operação foi difícil e agora tenho de gemer… — Realmente foi… — A avaliar pelo medo com que o senhor trabalhava… — Medo?! — atalhei, a sentir-me perdido. — Medo, pois! Nunca vi uma pessoa tremer tanto. — ó criatura de Deus, se tremesse, dava cabo de si! Bastava uma pancada em falso, um pequeno desvio do ferro… — As mãos estariam firmes… Não pude ver, porque tinha cara tapada… Mas as pernas pareciam castanholas a bater nas minhas… — Foi impressão sua… Talvez à anestesia…

…Ainda inseguro no terreno da agressividade operária, tremera, efectivamente, a abrir e a curetar a pequena cavidade separada da caixa craniana por uma fina lâmina óssea. A clínica geral, onde assentara praça, embora cheia de escolhos também, era outro mundo. 0 paciente escancarava as portas da intimidade e o médico entrava por ali dentro como um convidado, sem nunca haver verdadeiro conflito entre os dois. Na cirurgia, não. Depois do primeiro golpe consentido, a vítima deixava de ter vontade, de ser ela. Reduzida a mero objecto de conquista, só retomava a independência quando o operador, saciado, depunha o bisturi. Durante os anos de especialização, a responsabilidade dessa fúria ofensiva pertencera ao mestre, a comandar, imperativo, as lançadas…

…Mas agora era eu próprio que tinha de assumir o acto feroz. E ficava inibido perante a perspectiva da violência em si, e ainda mortificado pela ideia de poder, por qualquer erro de técnica, transformar de repente um corpo intacto e indefeso numa fonte aberta, acrescentando um mal maior, e até irremediável, ao que prometera curar. A verdade, porém é que os doentes, quando procuravam um médico, não queriam encontrar um homem, mas um taumaturgo. Inquietações, dúvidas, terrores, traziam-nos eles. E de nenhum modo entendiam que o semi-deus se desmentisse. Condenavam-no tanto por uma incerteza confessada como por uma certeza inconfirmada. Se dizia morre, tinha de morrer; se dizia vive tinha de viver. A esperança tem uma vertente irracional. Incapaz de distinguir a clarividência clínica da vivência bruxa, o inferno vincula o médico indelevelmente à fama do primeiro êxito ou do primeiro fracasso. …

Rio Douro …Ai de mim, se o resultado da operação tivesse sido nulo ou precário e o Bernardino exibisse publicamente a cegueira como um cartaz vivo da minha incompetência!” In “A Criação do Mundo”, IV

Homenagem pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1980, após ter sido galardoado com o Prémio Morgado de Mateus, ex-aequo com o escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade.

“Dei-te os dias, as horas e os minutos /Destes anos de vida que passaram; /Nos meus versos ficaram /Imagens que são máscaras anónimas /Do teu rosto proibido; /A fome insatisfeita que senti /Era de ti, Fome do instinto que não foi ouvido. //Agora retrocedo, leio os versos, /Conto as desilusões no rol do coração, /Recordo o pesadelo dos desejos, /Olho o deserto humano desolado, /E pergunto porquê, por que razão /Nas dunas do teu peito o vento passa /Sem tropeçar na graça /Do mais leve sinal da minha mão…”

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“Sim esforço-me por escrever bem. Inimigo figadal do esteticismo vazio e do purismo caturra, tento, contudo, ser correcto, no que digo, e dizer da melhor maneira. Nem chego a compreender os sibilinos alfabetos que me censuram um propósito tão elementar. Se na vida profissional procurei sempre ser honesto e capaz, porque não hei-de fazer o mesmo como escritor? Ora um escritor honesto e capaz deve escrever bem. Por isso, pego na pena com o escrúpulo com que pego no bisturi. 0 canhestro manuseamento deste pode matar o doente; a má utilização daquela pode preverter o gosto e torcer a consciência do leitor. Ambos, portanto, exigem igual precisão e honradez. Não é uma boa prosa que ambiciono, mas sim uma claridade gráfica. Gostaria de restituir às palavras a alma que lhes roubaram, e que a língua tivesse nas minhas mãos, além da graça possível, uma dignidade insofismável. Que não agredisse a sensibilidade alheia, e me testemunhasse e responsabilizasse.

“…Que cada frase, em vez dum habilidoso disfarce, fosse uma sedução e um acto. Uma sedução sem condescendências, e um acto sem subterfúgios. Para tanto, limpo-a escrupulosamente de todas as impurezas e ambiguidades, na porfiada esperança de que a sua claridade se veja e se entenda ao mesmo tempo. E a vejam e a entendam, sobretudo, os que não são profissionais da leitura. De onde resulta que, muito mais do que o juízo da crítica encartada, me interesse principalmente a opinião do leitor comum e da polícia. Ele, na sua desprevenida entrega a uma solicitação atraente e leal, e ela, na sua profissional desconfiança da verdade, é que me dizem se vou por bom caminho, ou não. Uma obra desapaixonadamente lida e estimada, e repressivamente apreendida, dá muitas garantias de ter ao mesmo tempo encanto e autenticidade. E só esse encanto e autenticidade, em meu entender, valem a pena — e as penas — que custam.” Coimbra, 17 de Fevereiro de 1958

Orfeu rebelde, canto como sou:/Canto como um possesso/Que na casca do tempo, a canivete,/Gravasse a fúria de cada momento;/Canto, a ver se o meu canto compromete/A eternidade do meu sofrimento.//Outros, felizes, sejam os rouxinóis…/Eu ergo a voz assim, num desafio:/Que o céu e a terra, pedras conjugadas/Do moinho cruel que me tritura,/Saibam que há gritos como há nortadas,/Violências famintas de ternura.//Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa,/Canto como quem usa/Os versos em legítima defesa./Canto, sem perguntar à Musa/ Se o canto é de terror ou de beleza.

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“O homem ainda está muito longe da sabedoria. Pergunta-se, até, se em alguns domínios já não teria estado mais perto. No da Medicina, por exemplo. Tudo quanto os mestres e os manuais ensinam a ver da realidade a um Esculápio de agora, não passa duma pobre aparência. Andei durante anos a aprender a observar e a tratar doentes. E apenas aprendi a observá-los e a tratá-los por fora. Havia ferida – desinfecção e penso; havia nervoso – calmantes; havia sezão – quinino. Ora a coisa fia mais fino, como verifico neste preciso momento pela milionésima vez. Atendo doentes no consultório. Sai um, entra outro, soma e segue. Caras conhecidas e desconhecidas, simpáticas e antipáticas, velhas e novas. Inquiridor atento, vou interrogando, examinando, convidando, concluindo. Transito de sintoma em sintoma, de sofrimento em sofrimento, de vida em vida…

..Prometo curas, melhoras, prevejo mortes, junto palavras de esperança a todas as receitas. E, embora a sentir-me eficiente, sinto-me frustrado. Tenho plena consciência de que nado em seco à beira dum grande oceano. Vejo perfeitamente que aplico regras lógicas a um jogo ilógico, que era do outro lado que eu devia estar, no centro do mundo desordenado, ou que assim me parece, da efermidade. Mas aí não há lugar para a minha razão ordenada, que aborda metódicamente o que não tem método, que já sabe antes de saber. Respondo a perguntas de dramática incerteza com evidências estabelecidas, argumento objectivamente contra a subjectividade, cubro de afirmações peremptórias as clareiras de dúvida que pequenos descuidos da lógica vão abrindo no diálogo. E salva-me a própria cegueira dos pacientes, que na ânsia de cura tomam a nuvem por Juno. Almas em pânico que bateram à porta dum feiticeiro com tabuleta, ouvem-no de boa fé, na pia crença de que tudo o que diz o soletra no fundo do poço onde se encontram mergulhadas…

…Nem de longe suspeitam que a reza é fingida e feita à tona da angústia, e me rio dela quando outros, que leram pela mesma cartilha, a engrolam por minha própria intenção” Coimbra, 14 de Outubro de 1963

Douro “Tantas formas revestes, e nenhuma /Me satisfaz! /Vens às vezes no amor, e quase te acredito. /Mas todo o amor é um grito /Desesperado /Que apenas ouve o eco… /Peco Por absurdo humano: /Quero não sei que cálice profano /Cheio de um vinho herético e sagrado.”

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“A pergunta é sempre a mesma, mas o tamanho da resposta varia consoante a disponibilidade e a pachorra. — A medicina dá muitos escritores! Por que será? Pacientemente, dobro a receita, tiro os óculos, levanto-me e começo o sermão, que hoje me saiu um pouco sincopado: — Não é ela que os dá. Limita-se, simplesmente, a preservar esse dom aos que nasceram com ele, o que já não é pouco. Ao invés doutras profissões, que estrangulam no indivíduo o espírito de aceitação e compreensão do semelhante, esta faz o contrário. 0 médico, como tal, nem pode fechar as portas da alma, nem apagar a luz do entendimento. É todo o humano que o solicita a todas as horas: o que sofre, o que simula, o que teme e o que desvaria…

…E só a graça de uma certa dimensão afectiva e mental permite corresponder eficientemente a tantos e tão diversos apelos. Ora, essa dimensão está implícita na condição do artista, o mais receptivo e perceptivo dos mortais. Por isso, quando o acaso sobrepõe a uma vocação criadora uma condenação clínica, não há dramas sangrentos. A caneta que escreve e a que prescreve revesam-se harmoniosamente na mesma mão.” Coimbra, 20 Janeiro de 1961

Serra do Marão “Há muito tempo já que não escrevo um poema /De amor. /E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! /A nossa natureza /Lusitana /Tem essa humana /Graça /Feiticeira /De tornar de cristal /A mais sentimental /E baça /Bebedeira. //Mas ou seja que vou envelhecendo /E ninguém me deseje apaixonado, //Ou que a antiga paixão /Me mantenha calado /O coração Num íntimo pudor, /— Há muito tempo já que não escrevo um poema /De amor. “

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“Uma pequena cidade mesquinha, bibilhoteira, doméstica, onde todos os passos tinham não sei que falsa direcção, a importância das pessoas se avaliava pela inclinação das vénias recebidas, e o ar parecia mais rarefeito aos domingos. Uma aldeia grande, com os adultérios catalogados, as falências previstas, os sucessos e insucessos clínicos conhecidos e comentados na barbearia. — 0 capitão está melhor? — Continua mal… — Mas salva-se? —Vamos a ver… Faço tudo por isso… Agora certeza, certeza… Defendia-me. Desta vez as circunstâncias eram de tal ordem, que de maneira nenhuma podia dar um passo em falso. Seria a desclassificação profissional pura e simples. A posição social do doente – comandante da Polícia – chamara a atenção geral sobre o médico assistente, sobretudo a dos colegas, a vislumbrar pela primeira vez um desaire espectacular e mortal. Chegava a perguntar a mim mesmo se aquele sádico contentamento que sentiam ao ver-me em apuros não seria uma forma de justificação dos próprios reveses…

…0 certo é que, abanado insidiosamente por eles, o meu prestígio aluía à medida que a cara do militar inchava. A semana inteira sem conseguir arredar do pensamento aquela imagem exasperante: uma máscara nojenta e pegajosa de colargol, cega e disforme, onde a barba parecia um restolho estrumado a crescer, e cada traço perdera a nitidez do desenho e se degradava no atropelo da inflamação. 0 sujeito apavorado, a tentar em vão fitar-me com os olhos soterrados pelas pápebras entumecidas, assado de febre, a família aterrorizada também, e eu a tentar sossegá-los, mais aflito ainda. No que dava a porcaria de um furúnculo da asa do nariz! Nunca me resignaria na profissão ao absurdo constante de semelhantes situações catastróficas, em que a teimosia de um micróbio ou a rebeldia de uma célula desafiavam caprichosamente todas as forças mobilizadas do engenho humano. — Dizem que parece um bicho! Como elas se arranjam! Uma coisa de nada… —…

…-Nisso é que as pessoas se enganam. o que julgam ser essa coisa de nada, pode transformar-se num caso gravíssimo… — Ah, sim? — Pois. Foi precisamente o que aconteceu agora. — Falam numa espinha carnal… — Sim, mas a espinha complicou-se… E agora, realmente. 0 raio do estafilococo, quando lhe dava para asnear, nem o maior sábio da Grécia. Felizmente que com a miraculosa sulfamida, o último prodígio terapêutico de que me socorri também, a infecção começava a ceder, e tudo indicava que podia intimamente confiar no triunfo. Apesar do edema ainda generalizado, realmente de meter medo, o perigo da septicémia diminuía. Mas, à cautela mantinha o prognóstico carregado. Se a roda desandasse por qualquer motivo imprevisto, o trambolhão estaria pelo menos almofadado. In “A Criação do Mundo”, IV

Trás-os-Montes “Avivo no teu rosto o rosto que me deste, /E torno mais real o rosto que te dou. /Mostro aos olhos que não te desfigura /Quem te desfigurou. /Criatura da tua criatura, /Serás sempre o que sou. //E eu sou a liberdade dum perfil /Desenhado no mar. /Ondulo e permaneço/Cavo, remo, imagino, /E descubro na bruma o meu destino /Que de antemão conheço: //Teimoso aventureiro da ilusão, /Surdo às razões do tempo e da fortuna, /Achar sem nunca achar o que procuro, /Exilado /Na gávea do futuro, /Mais alta ainda do que no passado. “

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“Acabei de operar, estou a fumar um cigarro e a pensar nas freiras que cirandam à minha volta. Bondosas, prestáveis, pacientes, injectam, fazem curativos, despejam, limpam. Mas sente-se que, embora presentes e funcionais, pairam acima da realidade. Que actuam fora do jogo da vida. Parece, até que nos olham com certa dose de comiseração por tanta freima que pomos nos actos temporais. Que força interior escuda estas mulheres? Que voz imperativa as chamou, que tudo largaram para a ouvir, desfazendo laços afectivos, calcando instintos, desprezando bens e honrarias? De onde lhes vem a paz que trazem estampada no rosto, e que nenhum vendaval perturba? Sei o que me responderiam se as interrogasse. Mas não quero ouvir palavras que na boca delas soariam a evidência, e nos meus ouvidos ressoariam a mistério. Deus, fé, vocação…

…Com três substantivos destes no processo, de que ilações cavilosas não seria capaz o demónio chicaneiro que mora dentro de mim! Presunção, simpleza… Só isso! E o pior é que o problema ficava na mesma. Era cobrir apenas com outros substantivos, mais pedantes ainda, a minha perplexidade. Santas irmãs! Mal imaginam, tão brancas de corpo e alma, o bem e o mal que me fazem. 0 bem de serem como são, e o mal de não poder entendê-las”. Hospital de Arganil, 1 de Dezembro de 1966.

“Toda a manhã a cortar amígdalas, longe de supor que no fim da carnificina sentiria esta necessidade, a que vou dar razão, de escrever qualquer coisa sobre a agressividade operatória. Contar da sanha insólita que se apodera do cirurgião contra o desgraçado paciente que tenta de qualquer modo resistir ao ataque de que é vítima. Iniciado na boa consciência de quem presta um serviço ao semelhante, o acto cirúrgico, às tantas, descamba insensivelmente em não sei que sádica crispação ofensiva, que já pouco tem a ver com a solicitude fraterna do começo. De certa altura em diante, o magarefe procura romper caminho de qualquer maneira. Tudo se passa como se o mecanismo de reorientação agressiva se desarranjasse dentro dele, e a sua natureza instintiva recalcada viesse subitamente à tona em toda a plenitude animal. E acontece muitas vezes que, quando o operador despe a bata, adivinha nos olhos do operado não o reconhecimento dorido pelos serviços q recebeu, mas a raiva impotente contra o bandido q lhe saiu à estrada”

Residência de Miguel Torga/Adolfo Rocha, agora transformada em Casa-Museu. Lá podem encontrar-se livros da biblioteca do poeta, incluindo algumas primeiras edições de obras de sua autoria, outras publicadas antes da sua morte ou a título póstumo. Também objectos pessoais, como a máquina de escrever, uma caneta, um estetoscópio, correspondência diversa, objectos de identificação pessoal e o espólio fotográfico e fonográfico.

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.