Vemos jovens febrilmente comunicarem por telemóvel. As mensagens são crípticas, os símbolos da escrita estão abreviados. A oralidade ressente-se. A língua empobrece.
Mas esta comunicação é apenas um sinal. Para os mais velhos, as imagens (seja qual o suporte) substituem o imaginário. Importante passou a ser a notícia, por boa ou má razão. De preferência boa, mas se for má, mas bem embrulhada – serve. A reflexão vai desaparecendo. Os livros, os jornais, os artigos de opinião, são para consumo das minorias. Os outros lêem os títulos, as revistas de futilidades, os jornais gratuitos e os noticiários da TV, quanto mais sensacionalistas, melhor. A conversa, a tertúlia foram substituídas pelos diálogos nas redes sociais (Facebook e similares). Generaliza-se a ostentação pela internet de fotografias íntimas. A sociabilização do vazio, a alienação.
Em casa, da TV passa-se para os jogos de computador, para a realidade virtual. A solidão de cada um convive com a dos outros, só perturbada pela disputa do poder. Raramente há comunhão, mas afrontamentos. As vidas passam ao lado umas das outras, desapercebidas.
As dificuldades presentes vieram agudizar tudo isto. Diminuíram as saídas profissionais para os mais novos, mas o espírito consumista foi anteriormente inculcado, tantas vezes para substituir os afectos. Muitos jovens acham-se com direito a um padrão de vida que não irão conseguir. Outros, mais velhos, estão de repente desempregados. E, no limiar da miséria.
A esperança de vida aumenta na justa medida em que a sua qualidade é reduzida. Talvez no futuro, recebamos uma carta, quando deixarmos de ser contribuintes, para nos submetermos, a bem da Sociedade, a um processo, voluntário ou não, de eutanásia.
Os afectos parecem ser, também eles, outra realidade virtual. Mistificam-se, simulam-se, tira-se partido deles. Talvez que o caminho que reste seja ficar só. Já há muito que se fala disto como resultado da modernidade. E da pós-modernidade?
FM
Esta é a viagem a que a minha teimosia me obriga. Não desisto. Nada está escrito, tudo está na nossa cabeça. A realidade é a desolação inóspita da areia escaldante do sol a pino ou gélida pela noite.
Ouça o poema
Dos sonhos que ainda moram em mim, deles faço a minha força. Vou desfiando, uma vez e outra, a cada passo, a memória das coisas boas, mas evito enternecer-me. Perder pessoas que amámos torna-nos mais frágeis, e eu perdi algumas, mais ou menos recentemente.
Há quem valorize os sucessos, eu sempre achei que eles eram naturais… Poucas vezes me entusiasmei com uma conquista. Em contrapartida, cada derrota, cada ofensa ao amor-próprio, causou sempre grandes estragos (mesmo que eu também os tenha causado). O meu deserto é a soma das todas as decepções, rejeições, desastres, sempre ampliados. A mais recente é a revisitação de todo o passado. São cinzas que queimam. Mas esforço-me por não deixar de acreditar que tenho razão, que a vida tem de ter magia. Que esta maneira de olhar os outros de um modo sensorial, pode levar-me ao fascínio, ao arrebatamento, embora tenha de pagar em desilusões e sofrimento, está certa. É a que sempre quiz e pagarei o que tiver que pagar por ela.
Não há oásis nesta devastação. E se oásis aparecesse, certamente seria uma miragem. É um esforço inútil, este esgotamento sequioso. Por vezes quase adormeço no automatismo da caminhada. O meu rosto está coberto de areia branca, como antes de terra vermelha nas picadas em África.
Mas este meu deserto é interior, ninguém dá por ele. Talvez possa ser pressentido pela obstinação em afastar-me da convivência com a maioria. Eu, Lawrence de nenhuma Arábia, mas apenas de mim próprio, anseio por conquistar Akaba. Serei capaz de fazer o que os outros consideram impossível?
Derrotarei uns quaisquer turcos, tentarei que se cumpram os acordos estabelecidos, que a palavra e os compromissos sejam respeitados. As negociações e as artimanhas para retirar os maiores lucros possíveis, não foram feitas para os Lawrence da Arábia ou este, como eu.
Já não é inadaptação à realidade industrial, à marginalização de um dos membros de um par, neste filme belíssimo de Antonioni (O deserto vermelho) que mais parece uma aguarela sobre a paisagem fabril, mas que projecta a solidão da protagonista (Mónica Vitti). Mas é, como aí, a incomunicabilidade entre os dois, cada um virado para os seus pequenos mundos.
Não é preciso ter-se um cenário de fábricas. A incomunicabilidade estabelece-se a todos os níveis. Desatentos, demasiado pressionados pelas exigências profissionais ou por puro desleixo. Substitui-se o alvoroço pela rotina.
Às vezes tivemos oportunidade de mudar as coisas, mas desperdiçámo-la. Envelhecemos separados, vamos ficando cada vez mais sozinhos. Estamos condenados a estar sós. A velhice não é nada promissora.
Somos ou estamos inadaptados aos códigos de hoje? Mesmo que camaleònicamente nos disfarcemos, alguns não suportam os desajustamentos: Por solidão podemos encontrar um parceiro de ocasião, mas até a isso alguns se recusam.
Ao que conduz o desespero, a luta pela sobrevivência? A todas as degradações. Nessa maratona de dança que era o concurso em que ganhava quem chegasse ao fim, onde todas as solidariedades desapareciam, onde cada par se arrasatava até à exaustão e em alguns casos à morte, era a a ganância e a ausência de escrúpulos do empresário que ditava as regras. Sempre que há possibilidade, a natureza humana tende a explorar os deserdados da vida – é o que acontece com os imigrantes ilegais, os velhos e doentes abandonados. “Os cavalos também se abatem” é um filme que é uma metáfora sobre o desespero. Tão clássico que é preciso rever. Como o romance do H. Mccoy. E o que se faz quando se chega ao fim da linha, quando o sofrimento é irreversível e intolerável, às vezes sem fim à vista?
O sol do meu deserto enrijou a pele e a têmpera. Houve alturas em que senti a necessidade de um pouco de compaixão. Agora, creio que já não. Não faço piruetas, não sigo modas. Não tenho a pretensão de ser duro, só que tive de sobreviver. Procurarei manter a atenção ao que me rodeia, mas irei por onde eu quiser, não por onde me quiserem levar.
Vivo, atento aos rumores da noite, dissimulando-me nela sempre que puder. Mas quando for preciso, darei a cara. Não sou Quixote, os meus moinhos de vento são outros. Mas chegou a altura de deixar de fazer concessões. Sou como sou. Aceitem-me ou não. O problema não é meu (estou-me nas tintas). Apenas não me ofendam nos meus gostos, nas minhas escolhas. E não tentem enganar-me. Será cruel para todos.
A noite, outro fime de Antonioni. A degradação da relação do casal. A perda do desejo de um pelo outro, a procura de ambos nos acasos externos, até que que a ruptura se concretiza. Filme a preto e branco, admirável, como o Grito e a Aventura.
A noite camufla-nos. Engole-nos na semiobscuridade. Os passos podem ser mais hesitantes se o álcool desequilibrar o rumo, mas passamos mais despercebidos. Não será a capa dos pobres mas o refúgio dos solitários.
Por vezes quando a solidão nos leva a juntarmo-nos sucedem coisas (boas ou más), mas vivas, muitas vezes dolorosas para quem está fragilizado.Vejam o que acontece nesse clássico e mítico filme “The Misfits” de John Huston, que reuniu Clark Gable, Marilyn Monroe e Montgomery Clift (todos eles mortos quase a seguir).
Gable representa o papel de cowboy de meia-idade e Marilyn de recém divorciada, os quais se envolvem. Surge a notícia de ter sido visto um grupo de cavalos selvagens. Logo, o grupo decide ir capturá-los. A sua carne será utilizada para alimento de cães.
A surpresa e desprezo de Marilyn perante tal actividade e finalmente o seu gesto de libertação, são a demonstração dos equívocos que podem estar latentes numa relação amorosa. Chegaremos alguma vez a conhecer o parceiro?
O que fez Arthur Miller, autor de A morte de um Caixeiro Viajante e de As Bruxas de Salém, vencedor do Prémio Pulitzer, casar com Marilyn? Ou, se quiserem, o contrário? Consta que ela o deixava de “pernas bambas”… Entretanto, teria continuado com o seu caso com J. Kennedy (pelo menos). Que futuro entre um intelectual e uma sex-symbol? Ou não se deve pensar nesses termos? Enquanto durou o casamento, Miller apenas escreveu o argumento de Os inadaptados…
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. /Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto/ Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo./Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes/ Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,/ Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.//Grandes são os desertos, minha alma!/ Grandes são os desertos.//Não tirei bilhete para a vida,/ Errei a porta do sentimento,/Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse./Hoje não me resta, em vésperas de viagem,/Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,/Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,/Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)/Senão saber isto:/Grandes são os desertos, e tudo é deserto./Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,// Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar/Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)/Acendo o cigarro para adiar a viagem,/ Para adiar todas as viagens./ Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade! / Basta por hoje, gentes! /Adia-te, presente absoluto! Mais vale não ser que ser assim. //Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. //Mas tenho que arrumar mala, Tenho por força que arrumar a mala, //A mala. //Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. //Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. /Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, /A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. //Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas. /A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. /Olho para o lado, verifico que estou a dormir. /Sei só que tenho que arrumar a mala, /E que os desertos são grandes e tudo é deserto, E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. //
Ergo-me de repente todos os Césares. //Vou definitivamente arrumar a mala. Arre, hei de arrumá-la e fechá-la; /Hei de vê-la levar de aqui, /Hei de existir/independentemente dela. //Grandes são os desertos e tudo é deserto, /Salvo erro, naturalmente. /Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! /Mais vale arrumar a mala. /Fim. (Álvaro de Campos)
De noite os defeitos se ocultam (Ovídio / A arte de amar)
Akaba foi o objectivo impossível que Lawrence desafiou. Talvez eu aí encontre tâmaras, beringelas e chá de menta que me mitiguem a fome e a sede e, finalmente possa passear pela praia, atirar grinaldas de flores para o mar e sentir o crepúsculo impregnar-me. Talvez possa fazer um derradeiro mergulho nuns olhos de amêndoa, para neles me afastar, enquanto o fôlego o permtir, saboreando finalmente o gosto de uma vitória e da paz.
Ouça o poema
Mas como atravessar o deserto, na obstinação de uma ilusão? Esse é o meu moinho de vento, a minha loucura: gosto do impossível, do paradoxal. Invento personagens: sou Hamlet, Cyrano e, afinal, talvez mais uma singular personagem de Kafka…Mas o que vale nesta travessia sem fim será a beleza dos afectos, dos objectos, das palavras, dos rostos, das cores, dos sons. Mesmo que mos tirem eu tenho-os na cabeça. O meu deserto preserva-os. Só por isso, continuo.
Este Deserto Interior é sublime!
Palavras fascinantes, comoventes, sensíveis!
Escritas certamente por alguém detentor de uma grande alma!
Parabéns!
“Na dor mais funda, apesar das palavras de compaixão, permanecemos sós. Temos de percorrer sozinhos o labirinto da desolação”
após a leitura do “seu silêncio” e das suas belas considerações sobre o amor, apeteceu-
-me enviar-lhe este meu poema:
do outro lado
da rua
está o amor
como é imaculado
o amor
do outro lado
da rua.
até breve, pois foi um prazer, conhecê-lo.
Este caderno é belíssimo. Sensível, quase pungente e cheio de referências magníficas: Lawrence of Arabia, They shoot horses, don’t they?, The misfits, Álvaro de Campos…
Mas não estamos condenados a acabar sós. A quem passa pela vida vivendo-a acontece, um dia, reparar num olhar luminoso, num sorriso sedutor, numa palavra quente ou numa ideia irresistível. O inesperado e insuspeito atravessa o nosso deserto, sussurra ou grita-nos e apenas “temos que” o ouvir. Porque é oásis: raro, fresco e fecundo e os oásis não se desperdiçam. E porque, como muito bem disse, por vezes quando a solidão nos leva a juntarmo-nos, acontecem coisas boas.