D. João V: um deslumbramento português

Portugal foi uma espécie de Egipto e D. João V, o nosso faraó. Em vez de pirâmides deixou um maciço quadrilátero em pedra – o convento de Mafra. Porém, o rei não se limitou áquele faraónico monumento. Outras obras, de palácios a igrejas, estão espalhadas pelo país, atestando a fortuna do séc. XVIII.

Olhamos o Convento e sentimos a dimensão da riqueza que veio do Brasil. País cronicamente pelintra, quando a torneira do ouro secou, Portugal continuava pobre, beato, ignorante. Uma plêiade de artistas tinha lucrado com o mecenato promovido pelo rei, mas o desenvolvimento económico ficara por realizar.
O que valem as obras de arte do Barroco Joanino? Goste-se ou não, são testemunhos históricos e culturais. Há que preservá-las, o que não impede a reflexão.

D. João V frequentava conventos. Aí, hóspedes especiais passavam a desfrutar de alcova, depois de convívio discreto e íntimo com alguma freira dilecta ou Senhora que se tivesse retirado para a tranquilidade monástica. Eram usos do tempo.
Ao longo da vida, manteve várias amantes que ia substituindo conforme lhe aprouvesse. No Convento de Odivelas, emprenhou a respectiva Abadessa, Madre Paula, que parece ter-lhe dado volta à cabeça. Imagine-se Sua Majestade em pleno Convento, de cabeleira postiça, maquilhado com pó branco, calções ajustados, saltos altos, entre uma bênção e uma genuflexão, deliciando-se com uma perdiz assada, para terminar numa apoteose de toucinho do céu! Por mor dos seus amores freiráticos, terá D. João V, contribuído para a divulgação da doçaria conventual? Saborear Barriga-de-freira deixou de ser uma predilecção exclusivamente régia.
Como grande devoto, ofereceu ao Papa e outros dignitários eclesiásticos vultuosíssimas somas, a pretexto e a despropósito. Entre centenas de milhares de Missas que mandou rezar e de Indulgências recebidas (e pagas), o dinheiro gasto foi enorme. Quase toda a sua vida, o rei teve, pois, a Igreja por perto. No meio de paramentos, crucifixos, confessionário e oratório – ficava a alcova a rescender a incenso.

O ouro do Brasil terá, assim, apaziguado a senha secular pela luxúria real… Na época, o Santo Ofício zelava pelo cumprimento das práticas cristãs, mas o Rei pairava absoluto acima das regras. Azar, mesmo, tiveram António José da Silva, dos nomes maiores do teatro português, a quem os Autos de Fé supliciaram até à morte por judaísmo ou o Padre António Vieira, por denunciar comportamentos imorais.
Quanto ao Convento de Mafra, terá nascido duma promessa do rei, que desesperava por não ter um descendente. Aliás, o soberano diligenciou na responsabilidade de manutenção da dinastia dos Braganças. E, quando o Convento foi inaugurado, já o Infante D. José, futuro rei, tinha nascido. No entanto, D. João V continuou a porfiar, mesmo com suplementos de cantáridas para levantar o aprumo real, a bem da Nação.

Em muitas cidades brasileiras estão patentes sinais da corrida ao ouro e da vida dos escravos. Foram estes que extraíram o ouro e os diamantes, era nos pelourinhos que eram castigados – e de quem pouco se fala; como em Mafra foram dezenas de milhar de operários que realizaram as obras que se estenderam por muitos anos. Deles, falou José Saramago.

O exercício da política é muitas vezes hipócrita. O absolutismo permitia não prestar contas a ninguém. A Igreja abençoava-o e dele retirava (largos) proventos. D. João V mereceu ser Rei fidelíssimo
Em Portugal o fim do absolutismo demoraria ainda muito tempo, mas o parlamentarismo de liberais ou republicanos não modificou substantivamente o modo hipócrita de fazer política. As frequentes relações pantanosas entre Estado e Igreja, ou como esta continua a esconder e a relevar comportamentos indignos dos seus agentes. Hipocrisia política e religiosa.

FM

 

Em 1706, com a idade de 17 anos, ascendeu ao trono de Portugal, D. João V. Nascera 4 anos depois de Bach, Scarlatti e Haendel. Era filho de D. Pedro II e de Sofia de Neuburgo. À data da sua coroação reinava em França Luís XIV, o Rei-Sol, considerado o maior expoente do absolutismo francês.

Estátua de D. João V em Mafra. Pragmatismo nas relações internacionais –a “real politik”, foi herança política recebida por D. João V. Portugal, aliado de Inglaterra, envolvera-se na Guerra da Sucessão de Espanha, juntamente com alemães e holandeses. Carlos II de Espanha não tinha herdeiros da Rainha. Quando morreu, havia 2 pretendentes: por um lado, Filipe, duque de Anjou, neto de Luis XIV, apoiado pela França e Espanha; por outro, o arquiduque Carlos de Áustria. O motivo principal era o receio da união dinástica Espanha/França…

…O conflito arrastou-se durante 10 anos e a paz só foi estabelecida com a coroação de Carlos VI como Imperador de Sacro Império Romano-Germânico (que, assim, perdeu o apoio dos ingleses, receosos dele deter excessivo poder) e de Filipe V, em Espanha. Para Portugal as operações militares foram desastrosas, com a perda de diversas praças e o esgotamento das finanças públicas. Aos ingleses a paz selada em Utrecht garantiu a posse de bases estratégicas e a hegemonia marítima. Os portugueses tinham “comprado” uma guerra que só a outros beneficiaria.

D. João V foi um rei absolutista, à semelhança do que acontecia na época. O seu poder não dependia de qualquer outro órgão. A política era ele quem a definia. D. João V proclamou a intenção de manter as leis e costumes tradicionais. Em Política Externa não evidenciou muito interesse pelas questões europeias, mantendo, porém, Portugal fiel à sua aliança com Inglaterra. As relações com Espanha estabilizaram-se. Era um homem culto, inteligente, educado por padres da Companhia de Jesus. Conhecia autores clássicos, gostava de música, falava várias línguas.

O absolutismo assentava no princípio da origem divina do poder do Rei. Luis XIV proclamara “L’état c’est moi” (nunca teve um 1º Ministro). O fausto, o luxo, as carruagens, os banquetes, a decoração, a arquitectura eram instrumentos que reforçavam o perfil do Rei, a sua distância, o seu poder imanente. D. João V foi o expoente maior do absolutismo em Portugal.

D. João V era extremamente beato. Despendeu quantias fabulosas com a Cúria Romana. Dádivas enormes ao papa Benedito XIV. Construiu capelas, igrejas e outros monumentos religiosos. Para acudir ao Papa num conflito com venezianos e turcos, enviou uma esquadra que se bateu na batalha de Matapan, iniciativa que deixou os cofres públicos na penúria. E, para conseguir que Lisboa tivesse um Patriarcado, pagou elevadíssima soma, o que lhe valeu ainda o reconhecimento como Rei fidelíssimo

Goya: Tribunal da Inquisição. Para defender a pureza da fé cristã, reforçou a severidade dos Tribunais do Santo Ofício que perseguiam suspeitos de bruxaria, os que cometiam actos considerados imorais, os judeus, os hereges e muita gente que, pelas suas ideias demasiado inovadoras, constituía um perigo para a Igreja e para o poder absoluto do rei.

No Brasil, depois da restauração, a necessidade de custear as despesas militares originara as expedições dos bandeirantes, à procura de ouro. Só é descoberto a partir de 1695, nos territórios hoje conhecidos por Minas Gerais e Goiás. Desde essa altura, a emigração dos portugueses e a chegada de escravos de África para trabalharem nas minas, levaria a uma produção que atingiu o seu máximo entre 1735 e 1766.

A obra mais emblemática foi erguida em Mafra, constituída pelo Complexo Convento/Palácio/ Basílica associado à Tapada. O Complexo demorou treze anos a ser construído e, quando inaugurado (1730), ainda não estava concluído. Projecto de Johann Friedrich Ludwig, requereu mais de 50000 trabalhadores. Inclui uma bela biblioteca, decorada com madeiras exóticas, mármores vindos de Itália (Pero Pinheiro, próximo de Mafra tem mármore abundante…) e inúmeras obras de arte. De salientar as salas do Palácio, nomeadamente os aposentos do rei e rainha, separados por mais de 200 m, a fachada, o hospital privado, onde os doentes podiam assistir à missa sem sair de cama. O custo da obra incalculável, foi suportado pelo ouro do Brasil. Foi daqui que saiu em 1910 o último rei para embarcar na Ericeira a caminho do exílio.

No Brasil, os primeiros colonos tinham tentado a escravização dos índios, com fracos resultados. Viraram-se, então, para os negros africanos que começaram a chegar em ondas sucessivas. Inicialmente utilizados nos engenhos de cana-de-açúcar, foram depois empregados nas áreas de mineração.

Entre 6,5 e 10 Toneladas foi a quantidade anual de ouro que chegou a Portugal entre 1715-54. A descoberta de jazidas de ouro e diamantes modificou a vida da colónia, promovendo a colonização do interior. Ouro Preto é uma das cidades que são criadas nos locais das minas. Surgem conflitos entre imigrantes, tomam-se medidas administrativas e a Coroa Portuguesa passa a recolher 1/5 de toda a produção aurífera. Os novos imigrantes necessitam de passaporte na colónia. As moedas que D. João V manda cunhar espalham-se rapidamente pela Europa, O ouro vai ter um papel decisivo no reinado de D. João V.

Catedral de Ouro Preto. Escreveu um Jesuíta italiano em 1710:« A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como os das Minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Cada ano vêm nas frotas quantidades de portugueses e estrangeiros para passarem às Minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e pretos e muitos índios de que os Paulistas se servem.»

Cidade de Ouro Preto, na actualidade. Praça de Tiradentes. A cidade tem este nome devido a uma característica do mineral aqui encontrado: o ouro era escurecido por uma camada de paládio, que lhe dava uma tonalidade diferente da usual.

IMG_1379Era neste edifício em Salvador (Bahía) – que foi a primeira capital do Brasil – que se armazenava o ouro que seria transportado para Portugal.

Aspecto da biblioteca do Complexo de Mafra. Tem 88 m de comprimento, 9.5 de largura e 13 de pé direito, chão de mármore rosa, cinzento e branco, estantes em madeira do Brasil, decoradas em estilo rococó e inúmeras obras de arte. Planta em cruz, é iluminada por luz natural. Alberga mais de 40.000 livros com encadernações em couro gravadas a ouro, alguns autênticas preciosidades. Consta ter sido na Biblioteca que os príncipes aprenderam a patinar. É a jóia do Palácio.

Para a prática musical, o Complexo dispõe de dois carrilhões dispostos em torres de 68 metros de altura, cada uma com 57 sinos. O mais conhecido, por ser o de maior ressonância pode ser ouvido a 15 km de distância. Dispõe também de seis órgãos construidos simultaneamente e pensados como um todo. Estes últimos foram recentemente restaurados, de acordo com o perfil original, após cerca de 200 anos de silêncio.

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Refira-se o apoio dado aos novos compositores durante o Barroco, os quais puderam estudar no estrangeiro e cuja obra é marcante. Casos de Carlos Seixas, Domingos Bomtempo ou Marcos Portugal. Mas também da cantora lírica Luísa Todi, já na segunda metade do século, uma meio soprano cufa fama ia desde Paris a São Petersburgo, mas que na Pátria encontrava indiferença e desconfiança…

Pormenor da entrada da Igreja. Em primeiro plano parte de um cartaz a anunciar um dos primeiros concertos efectuados após a recuperação dos orgãos (2010)

Pormenor do teto do Convento de Mafra

A Tapada de Mafra foi criada em 1747, na sequência da construção do Complexo de Mafra, que lhe é contíguo. É rodeada por um muro de pedra e cal, com uma extensão de 16 Km. Uma parte está hoje sob administração militar. Desde a sua criação foi uma zona de lazer real vocacionada para a caça. Não só D. João V, como os seus sucessores, utilizaram-na nas Caçadas da Corte. Podem encontra-se gamos, javalis ou veados-vermelhos.

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O reinado de D. João V é contemporâneo do Barroco. O espólio a nível da arquitectura e artes decorativas é de grande riqueza. No campo literário, António José da Silva (nascido no Rio de Janeiro) foi uma personalidade que marcou o teatro português. Judeu, viu-se perseguido pela Inquisição que haveria de o condenar à fogueira (1739)…

Jardins do Complexo de Mafra… Também Luís António Verney, com o “Verdadeiro Método de Estudar”, foi outra figura da época. Mais factos relevantes: fundada a Real Academia Portuguesa de História; introduzida a ópera italiana; pintores, escultores, músicos estrangeiros (como Scarlatti) fixaram-se em Portugal e fizeram escola.

Mobiliário de “estilo” D. João V

Terrina em porcelana

Igreja de Camarate. Altar em talha dourada. Esta é uma técnica em que a madeira (principalmente carvalho ou castanho) é esculpida e posteriormente revestida por película de ouro.

Capela de S. Gonçalo. Angra do Heroísmo

Revestimento interior em talha dourada da Igreja de S. Francisco (Porto)

Carruagem de D. João V. Museu dos Coches / Lisboa. Ficaram célebres as cerimónias do casamento do Rei, bem como da comitiva que, em Viena, pediu ao Imperador austríaco a mão da filha. Do mesmo modo os cortejos ao papa, as festas e os banquetes na Corte testemunharam quanto, para D. João V, o luxo era uma forma de propaganda da realeza

Biblioteca da Universidade de Coimbra. O gosto pelos livros é patente nas bibliotecas que criou, pela reedição de livros já com número reduzido de exemplares, pela recolha e organização de escritos científicos de autores portugueses, que se encontravam dispersos e fora do país, como pela importação de obras, gravuras e tratados estrangeiros

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No Barroco Joanino integram-se todas as manifestações artísticas que aconteceram durante o longo reinado de D. João V. Na denominação “barroco” incluem-se diferentes tendências, as mais inovadoras resultaram sobretudo da vinda para Portugal de pintores, escultores, músicos, arquitectos, etc. da Europa evoluída (Itália e França, principalmente). De comum entre elas, estava a noção de grandiloquência, de teatralidade e excesso, de grandeza e ostentação, próprias do absolutismo. Mas não só os estrangeiros imigrantes contribuíram para a abertura em relação ao Barroco tradicional. Também artistas portugueses enviados como Bolseiros para a Europa culta – os “estrangeirados”, estiveram na origem de um certo “arejamento”. Este período foi dos mais fecundos da História da Cultura Portuguesa.

Porém, a ostentação e o luxo não eram consentidos a todas as classes sociais. Fora da Nobreza, D. João V estabeleceu regras que se aplicavam não só em Portugal como nas colónias. Foi a denominada Pragmática contra o Luxo. Nela se regulava a moderação dos adornos e proibia o luxo e excesso dos trajes, carruagens, móveis e lutos, o uso de espadas a pessoas de baixa condição. Nas colónias, definia-se o que, negros e mulatos, deviam usar, impedindo-os de trajar do mesmo modo que os brancos. Tudo era regulamentado, roupas, jóias, cristais e vidros. Quanto ao mobiliário nada de dourados ou prateados, só admitidos em molduras ou espelhos. O luxo era exclusivo da família real e aristocracia. As outras classes tinham de se manter no seu lugar…Luzes e sombras do absolutismo.

Para além da corte faustosa, exemplos das prodigalidades reais. De acordo com informação disponível: em indulgências e canonizações enviou para Roma perto de 1,38 milhões de cruzados; por uma imagem de prata dourada benzida pelo papa, deu 120.000 cruzados; para diferentes igrejas do estrangeiro mandou alfaias e adornos de incalculável valor; para Jerusalém enviou 1.377 cruzados…D. João V delapidou a enorme fortuna que a extração de ouro e diamantes do Brasil proporcionou.

Aqueduto das Águas Livres. Começou a funcionar em 1748 após turbulenta e morosa construção. O Alvará Régio de D. João V, que ditou o início dos trabalhos, ocorreu em 1731. Arquitetos responsáveis, António Canevari, Manuel da Maia e João Frederico Ludovice e, mais tarde, Custódio Vieira e Carlos Mardel. Servia para abastecer Lisboa com distribuição por rede de chafarizes.

Torre dos Clérigos, projecto do arquiteto Nicolau Nasoni.

Casa de Mateus, projeto de Nicolau Nasoni

Jardim da Casa de Mateus

Palácio do Raio, construído em 1754-55, projeto do arquitecto André Soares

Palácio das Necessidades. Mandado construir por D. João V, tornou-se residência real a partir de Maria II, excepção feita ao seu filho Luís I, que preferiu o Palácio da Ajuda.

Palácio das Necessidades

Palácio das Necessidades

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Palácio de Queluz

Memorial do Convento faz o enquadramento histórico da construção do Convento. Os protagonistas são gente do povo que têm em comum a capacidade de sonhar ou o dom de ver o que os outros não conseguem. Construir uma pianola e fazê-la erguer-se feita pássaro de maravilhas (Frei Bartolomeu de Gusmão); Belimunda capaz de ver as pessoas por dentro, mesmo por debaixo da pele; Baltazar que perdera um braço na guerra com os espanhóis, aturdido no seu regresso a Mafra encontra Belimunda que passa a sua parceira de amor e muitos fascínios…Tudo isto e mais as ondas de pessoas arrancadas à sua vida para vir construir o Convento na urgência dum capricho real e, sobretudo a Inquisição, a rígida defensora do estabelecido, com os seus Autos de Fé, os desgraçados queimados vivos perante as aclamações da populaça que gosta de emoções fortes…Memorial do Convento, um extraordinário romance de José Saramago.

Em 1750 (Tratado de Madrid) são reconhecidas as fronteiras do Brasil sensivelmente como hoje existem. Deixara, assim, de valer o Tratado de Tordesilhas para vigorar o princípio da ocupação efectiva dos territórios. Portugal cedia à Espanha, Sacramento e eram-lhe reconhecidos os territórios de Rio Grande do Sul. Já nos anos 500, os portugueses tinham-se estabelecido ao longo do litoral, desde a foz do Amazonas até o estuário do Rio da Prata. A fixação de açorianos no sul fizera-se desde o séc. XVII. A descoberta de ouro levou à intensificação da colonização. D. João V favoreceu a emigração de açoreanos oferecendo contrapartidas aos que decidissem emigrar para o litoral sul do Brasil. O Rei percebera a importância da ocupação do território da colónia.

Salvador da Bahia – Centro histórico (Pelourinho). Aí se encontram abundantes vestígios da presença portuguesa, nomeadamente do estilo barroco (ao fundo o edifício azul alberga a Fundação – Casa de Jorge Amado)

Em Salvador encontram-se cerca de 80 igrejas com pinturas, azulejos e talhas douradas, que testemunhando o período.

Interior da Catedral de Salvador da Bahia

Azulejos da Catedral de Salvador

Catedral Metropolitana de Belém. Considerada um dos monumentos mais expressivos da arquitectura eclesiástica setecentista da região Norte do Brasil, foi mandada construir por D. João V

Interior barroco em edifício de Belém

Mangal das Garças em Feliz Lusitania. Este foi o primeiro nome da actual cidade de Belém

Forte do Castelo na baía do Guajará em Belém, Pará

Palácio de Palhavã. D. João V deixou grande descendência. Do casamento nasceram 6 filhos, um dos quais, D. José, lhe sucedeu no trono. De diversas relações extra-conjugais há notícia de mais cinco filhos, um deles com a freira Paula do Convento de Odivelas. Três dos filhos fora do casamento foram educados no Palácio de Palhavã, edifício onde hoje funciona a Embaixada de Espanha. Curiosamente todos os “meninos de Palhavã” tiveram a sua vida ligada à Igreja, 2 deles receberam o Grau de Doutores em Teologia, dos quais um (D. José) foi Inquisidor-Mor em 1758.

A 31 de Julho de 1750 morreu D. João V. Já oito anos antes sofrera um Acidente Vascular Cerebral que o diminuíra. No último período da sua vida deu-se a ascensão de Alexandre Gusmão, outro “brasileiro” de Santos, como chefe de governo, o qual negociou o Tratado de Madrid, talvez o ponto mais alto da diplomacia portuguesa da época. 43 anos durou o reinado de D. João V.

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Aspecto actual do Largo do complexo de Mafra

Veja o vídeo:

Camões, os Portugueses e o Índico

Que influência tiveram Os Lusíadas na aventura de Alcácer-Quibir? Teria Luis Vaz incendiado a imaginação do Rei-adolescente com as suas ideias sobre a grandeza do destino português? Teria sido outra a trajectória portuguesa no final do Séc. XVI? Talvez, mas é pura especulação.
Verdade, é que Camões, depois de inúmeras vicissitudes – pobreza, traições, abandono em Moçambique por gente em quem confiava, quando conseguiu regressar à Pátria, em Lisboa passou a receber uma pensão outorgada pelo Rei “pelos seus bons serviços”, que, correspondia a ¼ do que ganhava um carpiteiro na época… El-Rei mandou publicar o poema, é certo, mas a sua divulgação pequena e, mesmo assim com as emendas que o Santo Ofício determinou. A miséria – e a fome, acompanharam os últimos anos de Camões. E o desfecho da expedição de D. Sebastião e a ascensão ao trono de Filipe II de Castela e I de Portugal, deixaram-no em profundo abatimento, até que a peste o ceifou.
Contudo, não deixa de ser significativo, ser o rei castelhano, homem culto na sua época, quem tenha providenciado à divulgação d’Os Lusíadas e que a ele e a outros homens cultos de Castela, se deveram o reconhecimento e a admiração por Camões, que haveriam depois de o tornar famoso.
A epopeia de Camões não defendia apenas a raça portuguesa. Levantava dúvidas sobre a razoabilidade da expansão marítima e sobre o carácter dos seus protagonistas. Havia heróis corruptos, cobiçosos, vis. De qualquer forma, Os Lusíadas são fundamentalmente a elegia dos portugueses, a sua vocação para grandes feitos, para a sua missão de evangelizar os povos que descobriam, esses apresentados como mais fracos ou submissos.
A epopeia, como documento de viagem, é fiel. Se Camões não tivesse percorrido todas as regiões por onde Vasco da Gama se atrevera, se não tivesse estudado minuciosamente os relatos conhecidos dessa viagem, como também dos episódios históricos que evoca, Os Lusíadas não teriam o rigor que se lhe reconhece ou talvez não lhe tivesse sido possível escrevê-los.
Mas outros foram os textos mais ou menos contemporâneos que falaram dos Descobrimentos. Em primeiro lugar, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que terá convivido com Camões em Macau. O herói português da Peregrinação é um aventureiro, frequentemente pirata, que comerceia e guerreia para lucro próprio. É um relato das misérias humanas vividas por Pedro de Faria. No Oriente os portugueses são bárbaros e os Orientais civilizados. As viagens atribuladas de Fernão Mendes pela Birmânia, Sião (actual Tailândia), China e Japão, forneceram-lhe material para o livro que só seria publicado após a sua morte e cujo conteúdo extraordinário foi posto em causa (chamando ao autor, Fernão Mendes Minto). E também S. Francisco Xavier muitas vezes se manifestou contra a imoralidade da Administração portuguesa.
Portugal, que se expandira tanto para Oriente como para Ocidente, sofria na Europa um evidente declínio que a perda da independência haveria de agravar. Outras vozes, como a de Gil Vicente no Auto da India, apesar de se tratar de uma peça de costumes (envolvendo adultério, hipocrisia e oportunismo), abordava a história de um marinheiro que embarca à procura de fortuna e poder.
Visitar hoje as praias do Índico, as igrejas, os fortes mais ou menos em ruínas, descobrir uma lápide, uma estátua, um jardim, não são actos de saudosismo. São pretextos para recordar a História portuguesa, analisar a sua nobreza e misérias, e, se possível, traçar paralelos e tirar conclusões.
O regresso do Império à expressão mais simples, nem com a tragédia dos retornados, parece ter acordado os portugueses. O seu destino de grandeza é uma miragem. Afinal, o velho do Restelo ao apostrofar os navegantes, era a voz da sensatez. Sempre foi necessário sonhar, como é preciso ter os pés assentes na terra. Não dar um passo sem ter o outro pé apoiado. Alcácer-Quibir foi o resultado do fanatismo religioso, associado à cupidez de nobres e burgueses e à falta de senso do Rei. Os Homens do Infante desenharam os mapas e os navegadores seguintes venceram o medo apoiados na cartografia e no nónio. Mas os seus sucessores passaram a viajar à bolina do destino. Quase 500 anos depois, cercados pelas dívidas do Estado, pelas exigências dos credores, não temos mais qualquer fuga possível, a não ser encarar a realidade.

FM

 

As armas e os barões assinalados,/Que da ocidental praia Lusitana,/Por mares nunca de antes navegados,/Passaram ainda além da Taprobana,/Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana,/E entre gente remota edificaram/Novo Reino, que tanto sublimaram;

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E também as memórias gloriosas/Daqueles Reis, que foram dilatando/A Fé, o Império, e as terras viciosas/De África e de Ásia andaram devastando;/E aqueles, que por obras valerosas/Se vão da lei da morte libertando;/Cantando espalharei por toda parte,/Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano/As navegações grandes que fizeram;/Cale-se de Alexandro e de Trajano/A fama das vitórias que tiveram;/Que eu canto o peito ilustre Lusitano,/A quem Neptuno e Marte obedeceram:/Cesse tudo o que a Musa antígua canta,/Que outro valor mais alto se alevanta.

Camões é um dos grandes poetas da Humanidade. Além dos Lusíadas, a sua obra estende-se pela lírica e teatro. A 1ª metade do séc. XVI, época em que viveu, corresponde à expansão portuguesa e a um período de exacerbado orgulho patriótico pelas Descobertas. Os Lusíadas são a celebração da viagem do caminho marítimo para a Índia e de episódios da História de Portugal.

Nele coexistem a visão cristã e a mitologia greco-romana. Os mitos aparecem lado a lado com factos históricos (como a morte de Inês de Castro ou a batalha de Aljubarrota). A perspectiva da grandiosidade da Pátria e da predestinação do seu Futuro não invalida que Camões denuncie a Ambição e a Cobiça e questione a Fama e a Glória da aventura marítima (Velho do Restelo).

Monumento a Camões em Constância (Ribatejo) Camões nasceu em 1524 ou 25, provindo de família nobre. Um dos tios, iminente intelectual, era Reitor da Universidade de Coimbra. Foi ele que o auxiliou nos estudos, obtendo naquela Universidade o título de Bacharel de Artes. De volta a Lisboa, Camões frequentou a Corte. Aqui se inicia a sua fama da Poeta. A paixão por uma dama de honor da Rainha (a quem dedicou versos, com o anagrama de Natércia, mas a quem não podia aspirar por não ter fortuna), valeram-lhe o exílio durante 2 anos em Constância. Parte depois numa expedição para o norte de África, onde em Ceuta perde em combate o olho direito. De regresso, é uma vida boémia, feita de duelos, saraus, também reconhecimento popular, invejas…Num desses duelos fere um moço de arreios do Rei. Preso, é libertado um ano depois com a exigência de embarcar para a Índia. Era o ano de 1553. Para trás ficava a representação da sua 1ª peça teatral.

Camões foi um Homem que antecipou o seu tempo. Verdadeiro humanista, estudou os clássicos – Homero, Virgílio, Ovídio, como também outros – Petrarca (cujo estilo adoptou na lírica), Tasso, Boccaccio…. Sabia latim e castelhano. O Renascimento italiano fizera interessar os homens do seu tempo por áreas tão diferentes como matemáticas, filosofia, medicina… E Camões, mesmo vivendo no Oriente, por vezes em condições de indigência, como sucedia à generalidade dos soldados que para aí iam, reunia os amigos (onde se encontraram Garcia de Orta e Diogo do Couto) e liam os poetas clássicos, como trocavam a informação científica que lhes chegava ou de que eram autores.

Estátua de Vasco da Gama (na Ilha de Moçambique). Quanto a Vasco da Gama, herói e figura central d’Os Lusíadas, partira de Belém, em Lisboa, em 1497, rumo à Índia. A armada era composta por três naus.. Depois de bordejar toda a costa de África e ultrapassado o Cabo da Boa Esperança, entraram no Oceano Índico, ancorando em Calecute, no ano de 1498. Estava traçado o caminho marítimo para a Índia e estabelecida uma nova rota de comércio para o Oceano Índico.

“Mais ia por diante o monstro horrendo /Dizendo nossos fados, quando alçado /Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo Corpo certo me tem maravilhado.— /A boca e os olhos negros retorcendo, /E dando um espantoso e grande brado, /Me respondeu, com voz pesada e amara, /Como quem da pergunta lhe pesara:

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— “Eu sou aquele oculto e grande Cabo, /A quem chamais vós outros Tormentório, /Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo, /Plínio, e quantos passaram, fui notório. /Aqui toda a Africana costa acabo /Neste meu nunca visto Promontório, /Que para o Pólo/Antarctico se estende, /A quem vossa ousadia tanto ofende.

Ilha de Moçambique – Na sua viagem inaugural, Vasco da Gama aí chegou em 1498. Na Ilha havia uma povoação swahili de árabes e negros com o xeque, subordinado ao sultão de Zanzibar. Onde, na Ilha de Moçambique é hoje o Palácio dos Capitães-Generais, os portugueses, no ano de 1507, construíram a Torre de São Gabriel – pequena fortificação com uma guarnição de 15 homens para proteger a feitoria nela instalada.

A Ilha tem cerca de 3 km de comprimento e situa-se à entrada da Baía de Mossuril .A sua costa oriental estabelece com as ilhas irmãs de Goa e de Sena (também conhecida por Ilha das Cobras) a Baía de Moçambique

Ilha de Goa (em Moçambique), que apresenta como atração um farol que funciona desde 1876

O farol

Em 1558 principiou a construção da Fortaleza de S. Sebastião, só concluída em 1620. Esta fortificação, a maior da África Austral, era estrategicamente muito importante. A Ilha tinha-se tornado o entreposto comercial para troca de panos e missangas da Índia por ouro, escravos, marfim e pau preto de África. Era também da Ilha que partiam as viagens comerciais para Quelimane, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques

É pobre e já foi rica. Era mais pobre/quando Camões aqui passou primeiro,/cheia de livros a cabeça e lendas/e muita estúrdia de Lisboa reles./Quando passados nele os/Orientes/e o amargor dos vis sempre tão ricos,/aqui ficou, isto crescera, mas/a fortaleza ainda estava em obras,/as casas eram poucas, e o terreno/passeio descampado ao vento e ao sol/desta alavanca mínima, em coral,/de onde saltavam para Goa as naus, que dela vinham cheias de pecados/e de bagagens ricas e pimentas podres./Como nau nos baixios que aos Sepúlvedas/deram no amor corte primeiro à vida,/aqui ficou sem nada senão versos./Mas antes dele, como depois dele,/aqui passaram todos: almirantes, ladrões e vice-reis, poetas e cobardes,/os santos e os heróis, mais a canalha/sem nome e/sem memória, que serviu/de lastro, marujagem, e de carne/para os canhões e os/peixes, como os outros./Tudo passou aqui ? Almeidas e Gonzagas,/Bocages e Albuquerques, desde o Gama./Naqueles tempos se fazia o espanto/desta pequena aldeia citadina/…

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…de brancos, negros, indianos e cristãos,/e muçulmanos, brâmanes, e ateus./Europa e África, o Brasil e as Índias,/cruzou-se tudo aqui neste calor tão branco como do forte a cal no pátio, e tão cruzado/como a elegância das nervuras simples da capela pequena do baluarte./Jazem aqui em lápides perdidas/os nomes todos dessa gente que,/como hoje os negros, se chegava às rochas,/baixava as calças e largava ao mar/a mal-cheirosa escória de estar vivo./Não é de bronze, louros na cabeça, nem no escrever parnasos, que te vejo aqui/Mas num recanto em cócoras marinhas, soltando às ninfas que lambiam rochas/o quanto a fome e a glória da epopeia/em ti se digeriam. Pendendo para as pedras/teu membro se lembrava e estremecia/de recordar na brisa as cróias mais as damas,/e versos de soneto perpassavam/junto de um cheiro a/merda lá na sombra,/de onde n’alma fervia quanto nem pensavas…

…Depois, aliviado, tu subias/aos baluartes e fitando as águas/sonhavas de outra Ilha, a Ilha única,/enquanto a mão se te pousava lusa,/em franca distracção, no que te era a pátria/por ser a ponta da/semente dela./E de zarolho não podias ver/distâncias separadas: tudo te era uma/e nada mais: o Paraíso e as Ilhas,/heróis, mulheres, o amor que mais se inventa,/e uma grandeza que não há em nada./Pousavas n’água o olhar e te sorrias/? mas não/amargamente, só de alívio,/como se te limparas de miséria,/e de desgraça e de injustiça e dor/de ver que eram tão poucos os melhores,/enquanto a caca ia-se na brisa esbelta,/igual ao que se esquece e se lançou de nós. (Jorge de Sena)

Igreja de Santo António /Ilha

“Esta ilha pequena, que habitamos, /em toda esta terra certa escala /De todos os que as ondas navegamos/De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;/E, por ser necessária, procuramos,/Como próprios da terra, de habitá-la;/E por que tudo enfim vos notifique, Chama-se a pequena ilha Moçambique. Canto I

Ilha de Moçambique – No Largo de S. Paulo situa-se o Palácio dos Capitães-Generais, também conhecido como Palácio de S. Paulo ou Palácio do Governador. Foi construído em 1610 e reconstruído em 1674, após incêndio que o destruíu. Em 1759 passou a ser a residência do Governador-Geral (ou Capitão-General, daí o seu nome), até a capital da colónia passar para Lourenço Marques, em 1898.

Praia das Chocas

Pormenor da Praia das Chocas

Praia da Carrusca, contígua às Chocas

A exportação de escravos era o principal comércio da Ilha, mas a Independência do Brasil, principal destino do comércio negreiro, deixou a ilha no marasmo, que veio a agravar-se com a passagem da capital da colónia para Lourenço Marques, em 1898 e com a abertura do porto de Nacala, em 1970.

Pemba Os swahilis são uma etnia da África Oriental que se estende por regiões que incluem o Norte de Moçambique, Tanzânia e Quénia. Na maioria são muçulmanos e sempre tiveram estreitas relações com os povos do Golfo Pérsico e da Península da Arábia, cuja influência é evidente. A sua principal atividade é a pesca, que continua a fazer-se de modo artesanal. O comércio de escravos e de marfim representou durante séculos importante atividade económica.

Tanzânia, Forte de Quiloa Parece terem sido populações swahili quem, no Séc IX, ocupou em primeiro lugar as ilhas de Quiloa, que viria a ser um importante centro comercial.

O Forte de Quiloa (primeira fortificação erguida em pedra e cal na África Oriental) foi construído em 1505, por ordem do Vice-Rei da India, D. Francisco de Almeida para proporcionar abrigo aos passageiros das naus da Carreira das Índias, que demandavam aquele porto

“Mas eis outro (cantava) intitulado/Vem com nome real e traz consigo/O filho, que no mar será ilustrado,/Tanto como qualquer Romano antigo./Ambos darão com braço forte, armado,(A Quíloa fértil, áspero castigo,/Fazendo nela Rei leal e humano,/Deitado fora o pérfido tirano. (Canto X)

Mombaça A presença portuguesa foi conflituosa. Desde Vasco da Gama, hostilizado na sua passagem, a represálias posteriores ordenadas por vários Vice-Reis da Índia, há histórias de ataques, cercos, traições, até à sua perda para forças islâmicas, em 1698. 30 anos depois o forte haveria de ser entregue aos Portugueses, que por pouco tempo o conservaram. O Forte Jesus foi erguido, sob o reinado de Filipe I de Portugal, para proteger o porto (que era um dos melhores da África Oriental), após ataques de turcos otomanos.

Mombaça Forte Jesus Estava a ilha à terra tão chegada,/Que um estreito pequeno a dividia;/Uma cidade nela situada,/Que na fronte do mar aparecia,/De nobres edifícios fabricada,/Como por fora ao longe descobria,/Regida por um Rei de antiga idade:/Mombaça é o nome da ilha e da cidade.

Segundo Os Lusíadas, na sua rota pela costa de África, Vasco da Gama foi recebido afavelmente pelo Rei de Melinde que lhe pediu para contar histórias do seu povo. Camões, pela voz de Vasco da Gama, aproveitou para glorificar Portugal e a sua História.

Melinde Vós, poderoso Rei, cujo alto Império/O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;/Vê-o também no meio do Hemisfério,/E quando desce o deixa derradeiro;/Vós, que esperamos jugo e vitupério/Do torpe Ismaelita cavaleiro,/Do Turco oriental, e do Gentio,/Que inda bebe o licor do santo rio;

Inclinai por um pouco a majestade,/Que nesse tenro gesto vos contemplo,/Que já se mostra qual na inteira idade,/Quando subindo ireis ao eterno templo;/Os olhos da real benignidade/Ponde no chão: vereis um novo exemplo/De amor dos pátrios feitos valerosos,/Em versos divulgado numerosos.

Ormuz Ontem, como hoje, é um ponto estratégico fundamental, ligando o Golfo Pérsico ao Golfo de Oman. Ao Norte, o Irão; a sul os Emiratos Árabes Unidos. Até ao séc. XVI era por ali que se escoavam as especiarias e outros géneros que, em caravanas, entravam no Mediterrâneo e daí chegavam à Europa. Em Ormuz transacionavam-se os melhores cavalos da Arábia e da Pérsia que dali seguiam para todo o Oriente, sobretudo para a Índia.

Ormuz Foi Afonso de Albuquerque, quem em 1507 a conquistou, mandado erguer a fortaleza, que ainda hoje existe. Dada a importância estratégica desta Praça foram construídas outras fortificações em ilhas vizinhas, as quais se conservaram sob domínio português, até 1622. As naus portuguesas patrulhavam as águas para controlar o comércio e garantir que o seu escoamento se fazia pelo Cabo da Boa Esperança. Hoje a importância de Ormuz deve-se, sobretudo, ao grande número de petroleiros que por ali passam, rumo ao Ocidente.

Calecute Vasco da Gama e seus marinheiros são recebidos pelo Samorim de Calecute. São estabelecidas relações comerciais amigáveis com os povos do Oriente.

Chegada a frota ao rico senhorio,/Um Português mandado logo parte/A fazer sabedor o Rei gentio/Da vinda sua a tão remota parte./Entrando o mensageiro pelo rio,/Que ali nas ondas entra, a não vista arte,/A cor, o gesto estranho, o trajo novo/Fez concorrer a vê-lo todo o povo. Canto VII

Ribandar (Rio Mandovil) O que se passou em Goa e, mais propriamente, no Estado Português da Índia, até à chegada de Luis Vaz, é um exemplo (triste) da colonização portuguesa. Afonso de Albuquerque foi o grande conquistador, talvez o exemplo maior da expansão portuguesa. Depois, sucederam-se Vice-Reis, cujos mandatos de 3 anos, serviam, na maioria dos casos, para, como todos os funcionários, rapidamente enriquecerem. A administração era escandalosa. Os veleiros que asseguravam a “Carreira das Índias” levavam soldados esfomeados. Os mantimentos que, por lei, deveriam garantir 8 meses de viagem , chegavam, na melhor das hipóteses, para 6, e eram de má qualidade. A época de bom tempo para a viagem era atrasada pela burocracia de Lisboa. Foram grandes as perdas em vidas e navios.

Preso em Goa (pintura anónima) Camões era um fidalgo pobre, que mostrara coragem em combate, tanto no Norte de África como no Oriente. Homem íntegro, escrevia também sátiras que, mesmo inofensivas, incomodavam o Poder e levaram-no várias vezes à cadeia. Valeram-lhe amigos que na rotatividade da Administração, conhecendo-lhe os méritos, conseguiram a sua libertação. Camões recluso, ia escrevendo Os Lusíadas.

16 anos foi o tempo que Luis Vaz viveu no Oriente, não só em Goa como na China. Em Macau onde procurou isolar-se para escrever o poema épico, perduram vários marcos que assinalam a sua estada. Este quadro relativo à “Gruta”, mostra-o com o fiel escravo Jau, que o acompanhou, mesmo depois de regressar a Portugal, e que, consta, teria mendigado os parcos alimentos que Camões na velhice, pobre e doente, não podia angariar.

Sé e Igreja de S. Francisco Xavier em Goa. Devido ao grande número de igrejas, Goa é conhecida pela Roma do Oriente. Camões permaneceu aí muito tempo, viajando para a China e volta, quer como militar quer como funcionário.

Sé PatriarcalO chamado Estado Português da Índia viria a ser integrado na União Indiana em Dezembro de 1961. Contra um poder militar avassalador, Salazar declarara que só concebia “soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”. O Governador-Geral Vassalo e Silva, na iminência de um massacre, assinou a rendição. Em vez de uma transição pacífica de soberania que acautelasse a presença e a cultura portuguesa, preferiu-se o calvário dos prisioneiros, largos meses em cativeiro e recebidos desdenhosamente quando libertados. Era o início do fim do Império.

Goa Forte AguadaHouve excepções, algumas delas fruto do acaso e das circunstâncias, como a da resistência oposta pela guarnição deste forte, motivada pelas deficientes comunicações que impediram saber da rendição. O comportamento dos defensores fez deles um exemplo para o Regime. Mas o” Estado da Índia” desaparecia e só nos anos 90 voltaria a ser visitado por um governante português – Mário Soares. Fechava-se o ciclo de Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, S. Francisco Xavier e da enorme influência que os cristãos e hindus nascidos em Goa, Damão e Diu tiveram na Administração colonial portuguesa,

Os restos mortais de S. Francisco Xavier encontram-se aqui, na Basílica do Bom Jesus de Goa, local de peregrinação. Descendente uma família aristocrática de Navarra, fundou, com Inácio de Loyola e mais cinco devotos, a Companhia de Jesus, congregação religiosa destinada ao ensino, à conversão e à caridade. Respondendo a um apelo de D. João II, partiu para o Oriente, chegando a Goa em 1542. Foi grande a sua acção missionária – a Igreja Católica considera que tenha convertido mais pessoas ao Cristianismo do que qualquer outro missionário. Daí o epíteto de “Apóstolo do Oriente”. A sua acção estendeu-se também a Macau, Japão, à actual Indonésia, Sri Lanka, Moçambique… Numa das suas viagens teve contactos com Fernão Mendes Pinto.

Templo de Pondá

Igreja de Candolim

Delta do Rio Mekong Numa viagem de regresso de Macau para Goa, a nau em que viajava naufragou, na foz do rio Mekong. Segundo relatos, Luis Vaz, segurando num braço o manuscrito d‘Os Lusíadas, conseguiu, nadando apenas com o outro, atingir terra. O rio Mekong, no actual Cambodja, que nos evoca hoje a Guerra do Vietnam…

Alma minha gentil, que te partiste/Tão cedo desta vida, descontente,/Repousa lá no Céu eternamente,/E viva eu cá na terra sempre triste.//Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta sida se consente,/Não te esqueças daquele amor ardente/Que já nos olhos meus tão puro viste.//E se vires que pode merecer-te/Alguma cousa a dor que me ficou/Da mágoa, sem remédio, de perder-te,//Roga a Deus, que teus anos encurtou,/Que tão cedo de cd me leve a ver-te,/Quão cedo de meus olhos te levou

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S. Francisco Xavier

Fortaleza de Diu: é considerada a mais importante e bem fortificada estrutura militar erguida no Estado Português da Índia. Reputada como inexpugnável, resistiu a inúmeros cercos e ataques de árabes, turcos, indianos e holandeses. Foi para reconstruir as suas muralhas, arruinadas por um cerco, que D. João de Castro (4º Vice-Rei da Índia) solicitou à Câmara Municipal de Goa um empréstimo de 20 mil pardaus, dando em garantia a própria barba.

Macau

Macau: ruínas da Catedral de S. Paulo. A fachada é o que resta do templo, começado a construir no final do Séc. XVI e destruído parcialmente por um incêndio, mais de duzentos depois. Foi a igreja cristã mais importante da Ásia. Constitui, hoje, um autêntico ícone da cidade.

A Peregrinação é o relato fantástico das viagens e aventuras de Fernão Mendes Pinto, que durante 21 anos percorreu as costas do Oriente, desde o Japão até à India. Conheceu Francisco Xavier e Luis Vaz, combateu ao lado de Pedro de Faria, foi preso, libertado, entrou para a Companhia de Jesus, mas desiludiu-se com o comportamento da própria Companhia. De regresso a Portugal, escreve as suas aventuras, que só seriam publicadas 20 anos após a sua morte, possívelmente com amputações feitas pelos Jesuítas.

“Depois de ser embarcado António de Faria, e nós todos com ele, que seria já quase às ave-marias, nos passámos a remo à outra parte da ilha, e surtos a cerca de um tiro de falcão, dela, nos deixámos assim estar até quase à meia-noite, com determinação, como já atrás disse, de logo que ao outro dia fosse manhã, tornarmos a sair em terra e acometer as capelas dos jazigos dos reis que estavam a menos de um quarto de légua de nós, para nelas carregarmos ambas as embarcações, o que quiçá poderia muito bem ser, se nos quiséramos negociar ou António de Faria quisesse tomar o conselho que lhe davam, o qual foi que pois que até então não éramos sentidos, que trouxesse consigo o ermitão para que não desse recado na casa dos bonzos do que tínhamos feito, o que António de Faria não quis fazer, dizendo que seguro estava disso, tanto por ser o ermitão tão velho como todos víamos, como por ser gotoso e ter as pernas tão inchadas que se não podia ter nelas…

porém não foi assim como ele cuidava, porque o ermitão logo que nos viu embarcados (segundo o que depois soubemos) assim trôpego como estava, se foi em pés e em mãos à outra ermida que distava da sua pouco mais de um tiro de besta, e deu conta ao ermitão dela do que tínhamos feito, e lhe requereu que pois ele se não podia bulir por causa da sua hidropisia, fosse ele logo dar rebate na casa dos bonzos, o que o outro ermitão logo fez. […]Porém António de Faria, sem fazer caso do que eles diziam, saltou em terra com seis homens de espadas e rodelas, e subiu pelas escadas do cais acima, quase afrontado e fora de si, e subindo desatinadamente por cima das grades de que toda a ilha, como já disse, era cercada, correu como doido de uma parte para a outra, sem sentir coisa alguma, e tornando-se às embarcações muito afrontado conversou com todos sobre o que nisto se devia fazer, e depois de se darem muitas razões que ele não queria aceitar, lhe fizeram os mais dos soldados requerimento que em todo o caso partissem.

Macau logo, e ele receoso de haver algum motim, respondeu que assim o faria, mas que para sua honra lhe convinha primeiro saber o de que havia de fugir, e que portanto lhes pedia muito por mercê que o quisessem ali esperar, porque queria ver se podia tomar alguma língua que o certificasse mais na verdade desta suspeita, e que para isso lhes não pedia mais de espaço que só meia hora, visto que ainda havia tempo para tudo antes que fosse manhã. (Peregrinação)

Jardim de Camões em Macau

Camões pintado por Malhoa. “Ditoso seja aquele que somente/Se queixa de amorosas esquivanças; Pois por elas não perde as esperanças/De poder nalgum tempo ser contente.//Ditoso seja quem, estando absente,/Não sente mais que a pena das lembranças,/Porque, inda mais que se tema de mudanças, Menos se teme a dor quando se sente.//Ditoso seja, enfim, qualquer estado,/Onde enganos, desprezos e isenção/Trazem o coração atormentado.//Mas triste de quem se sente magoado/De erros em que não pode haver perdão,/Sem ficar na alma a mágoa do pecado.”

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho/Destemperada e a voz enrouquecida, /E não do canto, mas de ver que venho/Cantar a gente surda e endurecida. /O favor com que mais se acende o engenho/Não no dá a pátria, não, que está metida /No gosto da cobiça e na rudeza/Dua austera, apagada e vil tristeza.(Canto X)

Oiça o poema

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Os autores agradecem a colaboração de A. L. Matos Pereira, Francisco Vaz Garcia e Nacional Filmes Lda.

Que influência tiveram Os Lusíadas na aventura de Alcácer-Quibir? Teria Luis Vaz incendiado a imaginação do Rei-adolescente com as suas ideias sobre a grandeza do destino português? Teria sido outra a trajectória portuguesa no final do Séc. XVI? Talvez, mas é pura especulação.
Verdade, é que Camões, depois de inúmeras vicissitudes – pobreza, traições, abandono em Moçambique por gente em quem confiava, quando conseguiu regressar à Pátria, em Lisboa passou a receber uma pensão outorgada pelo Rei “pelos seus bons serviços”, que, correspondia a ¼ do que ganhava um carpiteiro na época… El-Rei mandou publicar o poema, é certo, mas a sua divulgação pequena e, mesmo assim com as emendas que o Santo Ofício determinou. A miséria – e a fome, acompanharam os últimos anos de Camões. E o desfecho da expedição de D. Sebastião e a ascensão ao trono de Filipe II de Castela e I de Portugal, deixaram-no em profundo abatimento, até que a peste o ceifou.
Contudo, não deixa de ser significativo, ser o rei castelhano, homem culto na sua época, quem tenha providenciado à divulgação d’Os Lusíadas e que a ele e a outros homens cultos de Castela, se deveram o reconhecimento e a admiração por Camões, que haveriam depois de o tornar famoso.
A epopeia de Camões não defendia apenas a raça portuguesa. Levantava dúvidas sobre a razoabilidade da expansão marítima e sobre o carácter dos seus protagonistas. Havia heróis corruptos, cobiçosos, vis. De qualquer forma, Os Lusíadas são fundamentalmente a elegia dos portugueses, a sua vocação para grandes feitos, para a sua missão de evangelizar os povos que descobriam, esses apresentados como mais fracos ou submissos.
A epopeia, como documento de viagem, é fiel. Se Camões não tivesse percorrido todas as regiões por onde Vasco da Gama se atrevera, se não tivesse estudado minuciosamente os relatos conhecidos dessa viagem, como também dos episódios históricos que evoca, Os Lusíadas não teriam o rigor que se lhe reconhece ou talvez não lhe tivesse sido possível escrevê-los.
Mas outros foram os textos mais ou menos contemporâneos que falaram dos Descobrimentos. Em primeiro lugar, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que terá convivido com Camões em Macau. O herói português da Peregrinação é um aventureiro, frequentemente pirata, que comerceia e guerreia para lucro próprio. É um relato das misérias humanas vividas por Pedro de Faria. No Oriente os portugueses são bárbaros e os Orientais civilizados. As viagens atribuladas de Fernão Mendes pela Birmânia, Sião (actual Tailândia), China e Japão, forneceram-lhe material para o livro que só seria publicado após a sua morte e cujo conteúdo extraordinário foi posto em causa (chamando ao autor, Fernão Mendes Minto). E também S. Francisco Xavier muitas vezes se manifestou contra a imoralidade da Administração portuguesa.
Portugal, que se expandira tanto para Oriente como para Ocidente, sofria na Europa um evidente declínio que a perda da independência haveria de agravar. Outras vozes, como a de Gil Vicente no Auto da India, apesar de se tratar de uma peça de costumes (envolvendo adultério, hipocrisia e oportunismo), abordava a história de um marinheiro que embarca à procura de fortuna e poder.
Visitar hoje as praias do Índico, as igrejas, os fortes mais ou menos em ruínas, descobrir uma lápide, uma estátua, um jardim, não são actos de saudosismo. São pretextos para recordar a História portuguesa, analisar a sua nobreza e misérias, e, se possível, traçar paralelos e tirar conclusões.
O regresso do Império à expressão mais simples, nem com a tragédia dos retornados, parece ter acordado os portugueses. O seu destino de grandeza é uma miragem. Afinal, o velho do Restelo ao apostrofar os navegantes, era a voz da sensatez. Sempre foi necessário sonhar, como é preciso ter os pés assentes na terra. Não dar um passo sem ter o outro pé apoiado. Alcácer-Quibir foi o resultado do fanatismo religioso, associado à cupidez de nobres e burgueses e à falta de senso do Rei. Os homens do Infante venceram o medo apoiados na ciência do nónio e da cartografia. Os seus seguidores passaram a viajar à bolina do destino. Quase 500 anos depois, cercados pelas dívidas do Estado, pelas exigências dos credores, não temos mais qualquer fuga possível, a não ser encarar a realidade.

FM

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Miguel Torga: o poeta visita o médico

Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Miguel Torga, após a transmissão de uma série televisiva sobre a sua obra (“Eu, Miguel Torga”), a que emprestei a voz. O encontro promovido pelo realizador João Roque, realizou-se em casa do Dr. António Arnaut, amigo de ambos, e para  a qual fui convidado a almoçar. Desse encontro conservo uma lembrança viva e sobre ele escrevi há anos numa Revista científica. O texto, dirigido a um público específico, conserva toda a actualidade, pelo que o trancrevo:
Foi numa tarde chuvosa de Primavera, com o poeta à cabeceira da mesa discorrendo sobre o destino do Homem, Portugal, os médicos, a sua recusa de capelinhas e grupos literários. Havia em todos os presentes fascínio por aquele homem justo, antítese da hipocrisia e pretensiosismo do meio em que nos movimentamos. E, eis, que, de súbito, nas suas costas recortadas sobre o Mondego, magicamente se abre um arco-iris

Miguel Torga é o pseudónimo literário do médico otorrinolaringologista Adolfo Rocha e essa coincidência terá sido determinante para o encontro.

Voluntariamente exilado em si próprio, longe das associações corporativas (literárias e médicas) e de partidos políticos, recusando-se a quaisquer compromissos com a mediocridade, Torga confessa-se marginal, insusceptível de ser metido nas baias da “normalização”. Verdadeira consciência nacional, faz da liberdade e da esperança as linhas de força do seu humanismo.

A sua obra estende-se pela ficção, teatro, poesia e narrativa autobiográfica e é, principalmente, nos volumes do Diário e da Criação do Mundo que se encontram reflexões sobre o quotidiano dos médicos e sobre “certas misérias morais da classe” e relatos das angústias, calúnias, invejas e velhacarias que sofrem muitos dos que se entregam à clínica.

Entre essas narrativas e observações é possível encontrar referências à sua actividade otorrinolaringológica, o que para nós possui significado particular, porquanto elas exprimem. em linguagem de alto nível, vivências nossas familiares. A recolha que efectuámos aí fica.”

Aqui fica, agora, parte dessa recolha, feita com a ajuda do próprio Miguel Torga. É o retrato do olhar do poeta a acrescentar uma dimensão autobiográfica ao quotidiano do Dr. Adolfo Rocha.

F. Vaz Garcia

 

Miguel Torga (pseudónimo de Adolfo Correia Rocha), médico otorrinolaringologista, nasceu em S. Martinho de Anta (12.08.907) e morreu em Coimbra (17.01.995).

Escola primária em S. Martinho de Anta

Concelho de Sabrosa. Após breve passagem pelo seminário de Lamego, emigra para o Brasil, em 1920. Trabalha na fazenda do tio: é a dureza da “capinagem” do café. Faz de tudo um pouco (desde vaqueiro a caçador de cobras…). Mas, o tio apercebe-se das suas qualidades. Paga-lhe ingresso e estudos no liceu de Leopoldina, onde os professores igualmente registam as suas aptidões.

Serra do Marão. Em 1925 regressa a Portugal e matricula-se na Universidade de Coimbra, onde conclui a licenciatura em Medicina em 1933. Antes de iniciar a sua formação como otorrinolaringologista, trabalhou como médico municipal numa pequena aldeia (Sendim) e, mais tarde, nos arredores de Leiria, até se radicar em Coimbra.

“Dispus-me, finalmente, a meter o corpo aos varais. Comecei a praticar no consultório dum colega oto-rino-laringologista. Muito embora a clínica geral – o doente visto na sua totalidade física e psíquica – estivesse mais de acordo com a minha vocação profissional, eram inegáveis as vantagens da especialização. Poderia fixar-me na cidade, ficaria com mais tempo livre para escrever, e pouparia a saúde, que fora sempre precária e via agora sériamente comprometida. Mas a aprendizagem que iniciava exigia um grande esforço. Depois de espreitar narizes, ouvidos e gargantas o dia inteiro, tinha ainda de rever parte da anatomia, avivar matérias esquecidas, estudar técnicas e teorias. Prometera a mim mesmo preparar-me o melhor possível. Herdara de meu Pai o sentimento de fazer bem feitas todas as coisas em que me metesse. De maneira que trabalhava a valer. Repelia as tentações do sono às horas dele, e abria mastóides na morgue, em vez de atender as musas…”

S. Martinho de Anta “…Ia descobrindo, de resto, algumas novidades apaixonantes naquele pequeno território médico. 0 drama murado da surdez, por exemplo – um dos pesados tributos que o homem desta civilização de ruídos traumatizantes teria de pagar ao futuro. Até ali, era a cegueira que eu julgava a suprema clausura humana, longe de supor que havia ainda outra pior: a perda da audição. Só agora avaliava em toda a medida a solidão de uma criatura sem diálogo possível. E via subitamente a outra luz certas particularidades do comportamento de meu tio, que nunca conseguira compreender. 0 atacamento que dava às baboseiras com que minha tia o azoeirava dia e noite, tinha, afinal, uma explicação simples. Cada vez mais duro de ouvido, encontrava nela a única interlocutora que ajudava a iludir o terror do emparedamento progressivo em que se via. Mas a entrega quotidiana ao espéculo e ao diapasão, por mais porfiada e consciente que fosse, não conseguia trazer-me a pacificação…”

S. Martinho de Anta “…0 sentimento de vazio, que a supressão de Trajecto me deixara, alastrava dentro de mim como unia gangrena. Abri o coração ao Alvarenga. – Queres tu ir até lá fora, arejar? – perguntou-me à queima¬roupa. Como? – De automóvel. -Estás a brincar… – Palavra. Se te interessa, tenho aí um amigo que te leva. – 0 poema de Mallarmé começou a cantar-me na memória: La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres. Fuir! là-bas fuir!”

Foi bonito /O meu sonho de amor. /Floriram em redor /Todos os campos em pousio. /Um sol de Abril brilhou em pleno estio, /Lavado e promissor. /Só que não houve frutos /Dessa primavera. /A vida disse que era /Tarde demais. /E que as paixões tardias /São ironias /Dos deuses desleais.

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“Abrira a tenda num sítio mau. Apesar de ter corrido por todo o lado, não consegui arranjar coisa melhor dentro do apertado orçamento de que dispunha. Um primeiro andar modesto, num cotovelo sombrio e sem movimento. Mas como a mobília que mandara fazer a um merceneiro remendão e o equipamento estritamente indispensável, adquirido com as magras economias de Sendim, destoariam noutro cenário, ficou tudo em harmonia. E ali passava parte das manhãs e das tardes, sonolento, a atender os raros doentes que a notícia da minha chegada num jornal da terra ia trazendo, a ler e a escrever nos longos intervalos das consultas, enquanto os quartos caíam monotonamente da torre da Sé e a senhora Glória fazia renda ou ponteava na sala de espera…

…Aparecera-me logo no primeiro dia, esquelética, desdentada, vestida de preto, a farejar o emprego num desespero esfaimado. A pensar numa rapariga airosa, que ajudasse a alegrar o consultório e a dispor bem a freguesia, disse-lhe que não, que já estava comprometido. Mas tanto pediu e chorou, a falar na viuvez e em quatro filhos pequenos para criar, que fraquejei. Sem saber nada de enfermagem, desajeitada, nos momentos de aflição, em vez de auxiliar, estorvava. Incapacitado, dava-lhe um berro. Pior. Ficava atarantada, e então é que era escusado. Aquela ignorância da arte tinha, contudo, uma vantagem, pelo menos de início: testemunhava os meus erros e insucesso sem entender. 0 que não aconteceu com o finório dum parolo dos Marrazes, que ia dando comigo em pantanas antes mesmo de eu assentar pé….

…Quase cego, devido a compressão inflamatória do nervo óptico, só havia uma solução: trepanar-lhe o seio esfenoidal infectado. Correu tudo bem, a visão normalizou-se e, na altura do pagamento, quando me viu a gaguejar, sem compreender a verdadeira natureza do meu embaraço. — a relutância com que sempre cobrei os honorários —, tentou ajudar-me: — Diga lá, porque eu sei que a operação foi difícil e agora tenho de gemer… — Realmente foi… — A avaliar pelo medo com que o senhor trabalhava… — Medo?! — atalhei, a sentir-me perdido. — Medo, pois! Nunca vi uma pessoa tremer tanto. — ó criatura de Deus, se tremesse, dava cabo de si! Bastava uma pancada em falso, um pequeno desvio do ferro… — As mãos estariam firmes… Não pude ver, porque tinha cara tapada… Mas as pernas pareciam castanholas a bater nas minhas… — Foi impressão sua… Talvez à anestesia…

…Ainda inseguro no terreno da agressividade operária, tremera, efectivamente, a abrir e a curetar a pequena cavidade separada da caixa craniana por uma fina lâmina óssea. A clínica geral, onde assentara praça, embora cheia de escolhos também, era outro mundo. 0 paciente escancarava as portas da intimidade e o médico entrava por ali dentro como um convidado, sem nunca haver verdadeiro conflito entre os dois. Na cirurgia, não. Depois do primeiro golpe consentido, a vítima deixava de ter vontade, de ser ela. Reduzida a mero objecto de conquista, só retomava a independência quando o operador, saciado, depunha o bisturi. Durante os anos de especialização, a responsabilidade dessa fúria ofensiva pertencera ao mestre, a comandar, imperativo, as lançadas…

…Mas agora era eu próprio que tinha de assumir o acto feroz. E ficava inibido perante a perspectiva da violência em si, e ainda mortificado pela ideia de poder, por qualquer erro de técnica, transformar de repente um corpo intacto e indefeso numa fonte aberta, acrescentando um mal maior, e até irremediável, ao que prometera curar. A verdade, porém é que os doentes, quando procuravam um médico, não queriam encontrar um homem, mas um taumaturgo. Inquietações, dúvidas, terrores, traziam-nos eles. E de nenhum modo entendiam que o semi-deus se desmentisse. Condenavam-no tanto por uma incerteza confessada como por uma certeza inconfirmada. Se dizia morre, tinha de morrer; se dizia vive tinha de viver. A esperança tem uma vertente irracional. Incapaz de distinguir a clarividência clínica da vivência bruxa, o inferno vincula o médico indelevelmente à fama do primeiro êxito ou do primeiro fracasso. …

Rio Douro …Ai de mim, se o resultado da operação tivesse sido nulo ou precário e o Bernardino exibisse publicamente a cegueira como um cartaz vivo da minha incompetência!” In “A Criação do Mundo”, IV

Homenagem pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1980, após ter sido galardoado com o Prémio Morgado de Mateus, ex-aequo com o escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade.

“Dei-te os dias, as horas e os minutos /Destes anos de vida que passaram; /Nos meus versos ficaram /Imagens que são máscaras anónimas /Do teu rosto proibido; /A fome insatisfeita que senti /Era de ti, Fome do instinto que não foi ouvido. //Agora retrocedo, leio os versos, /Conto as desilusões no rol do coração, /Recordo o pesadelo dos desejos, /Olho o deserto humano desolado, /E pergunto porquê, por que razão /Nas dunas do teu peito o vento passa /Sem tropeçar na graça /Do mais leve sinal da minha mão…”

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“Sim esforço-me por escrever bem. Inimigo figadal do esteticismo vazio e do purismo caturra, tento, contudo, ser correcto, no que digo, e dizer da melhor maneira. Nem chego a compreender os sibilinos alfabetos que me censuram um propósito tão elementar. Se na vida profissional procurei sempre ser honesto e capaz, porque não hei-de fazer o mesmo como escritor? Ora um escritor honesto e capaz deve escrever bem. Por isso, pego na pena com o escrúpulo com que pego no bisturi. 0 canhestro manuseamento deste pode matar o doente; a má utilização daquela pode preverter o gosto e torcer a consciência do leitor. Ambos, portanto, exigem igual precisão e honradez. Não é uma boa prosa que ambiciono, mas sim uma claridade gráfica. Gostaria de restituir às palavras a alma que lhes roubaram, e que a língua tivesse nas minhas mãos, além da graça possível, uma dignidade insofismável. Que não agredisse a sensibilidade alheia, e me testemunhasse e responsabilizasse.

“…Que cada frase, em vez dum habilidoso disfarce, fosse uma sedução e um acto. Uma sedução sem condescendências, e um acto sem subterfúgios. Para tanto, limpo-a escrupulosamente de todas as impurezas e ambiguidades, na porfiada esperança de que a sua claridade se veja e se entenda ao mesmo tempo. E a vejam e a entendam, sobretudo, os que não são profissionais da leitura. De onde resulta que, muito mais do que o juízo da crítica encartada, me interesse principalmente a opinião do leitor comum e da polícia. Ele, na sua desprevenida entrega a uma solicitação atraente e leal, e ela, na sua profissional desconfiança da verdade, é que me dizem se vou por bom caminho, ou não. Uma obra desapaixonadamente lida e estimada, e repressivamente apreendida, dá muitas garantias de ter ao mesmo tempo encanto e autenticidade. E só esse encanto e autenticidade, em meu entender, valem a pena — e as penas — que custam.” Coimbra, 17 de Fevereiro de 1958

Orfeu rebelde, canto como sou:/Canto como um possesso/Que na casca do tempo, a canivete,/Gravasse a fúria de cada momento;/Canto, a ver se o meu canto compromete/A eternidade do meu sofrimento.//Outros, felizes, sejam os rouxinóis…/Eu ergo a voz assim, num desafio:/Que o céu e a terra, pedras conjugadas/Do moinho cruel que me tritura,/Saibam que há gritos como há nortadas,/Violências famintas de ternura.//Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa,/Canto como quem usa/Os versos em legítima defesa./Canto, sem perguntar à Musa/ Se o canto é de terror ou de beleza.

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“O homem ainda está muito longe da sabedoria. Pergunta-se, até, se em alguns domínios já não teria estado mais perto. No da Medicina, por exemplo. Tudo quanto os mestres e os manuais ensinam a ver da realidade a um Esculápio de agora, não passa duma pobre aparência. Andei durante anos a aprender a observar e a tratar doentes. E apenas aprendi a observá-los e a tratá-los por fora. Havia ferida – desinfecção e penso; havia nervoso – calmantes; havia sezão – quinino. Ora a coisa fia mais fino, como verifico neste preciso momento pela milionésima vez. Atendo doentes no consultório. Sai um, entra outro, soma e segue. Caras conhecidas e desconhecidas, simpáticas e antipáticas, velhas e novas. Inquiridor atento, vou interrogando, examinando, convidando, concluindo. Transito de sintoma em sintoma, de sofrimento em sofrimento, de vida em vida…

..Prometo curas, melhoras, prevejo mortes, junto palavras de esperança a todas as receitas. E, embora a sentir-me eficiente, sinto-me frustrado. Tenho plena consciência de que nado em seco à beira dum grande oceano. Vejo perfeitamente que aplico regras lógicas a um jogo ilógico, que era do outro lado que eu devia estar, no centro do mundo desordenado, ou que assim me parece, da efermidade. Mas aí não há lugar para a minha razão ordenada, que aborda metódicamente o que não tem método, que já sabe antes de saber. Respondo a perguntas de dramática incerteza com evidências estabelecidas, argumento objectivamente contra a subjectividade, cubro de afirmações peremptórias as clareiras de dúvida que pequenos descuidos da lógica vão abrindo no diálogo. E salva-me a própria cegueira dos pacientes, que na ânsia de cura tomam a nuvem por Juno. Almas em pânico que bateram à porta dum feiticeiro com tabuleta, ouvem-no de boa fé, na pia crença de que tudo o que diz o soletra no fundo do poço onde se encontram mergulhadas…

…Nem de longe suspeitam que a reza é fingida e feita à tona da angústia, e me rio dela quando outros, que leram pela mesma cartilha, a engrolam por minha própria intenção” Coimbra, 14 de Outubro de 1963

Douro “Tantas formas revestes, e nenhuma /Me satisfaz! /Vens às vezes no amor, e quase te acredito. /Mas todo o amor é um grito /Desesperado /Que apenas ouve o eco… /Peco Por absurdo humano: /Quero não sei que cálice profano /Cheio de um vinho herético e sagrado.”

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“A pergunta é sempre a mesma, mas o tamanho da resposta varia consoante a disponibilidade e a pachorra. — A medicina dá muitos escritores! Por que será? Pacientemente, dobro a receita, tiro os óculos, levanto-me e começo o sermão, que hoje me saiu um pouco sincopado: — Não é ela que os dá. Limita-se, simplesmente, a preservar esse dom aos que nasceram com ele, o que já não é pouco. Ao invés doutras profissões, que estrangulam no indivíduo o espírito de aceitação e compreensão do semelhante, esta faz o contrário. 0 médico, como tal, nem pode fechar as portas da alma, nem apagar a luz do entendimento. É todo o humano que o solicita a todas as horas: o que sofre, o que simula, o que teme e o que desvaria…

…E só a graça de uma certa dimensão afectiva e mental permite corresponder eficientemente a tantos e tão diversos apelos. Ora, essa dimensão está implícita na condição do artista, o mais receptivo e perceptivo dos mortais. Por isso, quando o acaso sobrepõe a uma vocação criadora uma condenação clínica, não há dramas sangrentos. A caneta que escreve e a que prescreve revesam-se harmoniosamente na mesma mão.” Coimbra, 20 Janeiro de 1961

Serra do Marão “Há muito tempo já que não escrevo um poema /De amor. /E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! /A nossa natureza /Lusitana /Tem essa humana /Graça /Feiticeira /De tornar de cristal /A mais sentimental /E baça /Bebedeira. //Mas ou seja que vou envelhecendo /E ninguém me deseje apaixonado, //Ou que a antiga paixão /Me mantenha calado /O coração Num íntimo pudor, /— Há muito tempo já que não escrevo um poema /De amor. “

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“Uma pequena cidade mesquinha, bibilhoteira, doméstica, onde todos os passos tinham não sei que falsa direcção, a importância das pessoas se avaliava pela inclinação das vénias recebidas, e o ar parecia mais rarefeito aos domingos. Uma aldeia grande, com os adultérios catalogados, as falências previstas, os sucessos e insucessos clínicos conhecidos e comentados na barbearia. — 0 capitão está melhor? — Continua mal… — Mas salva-se? —Vamos a ver… Faço tudo por isso… Agora certeza, certeza… Defendia-me. Desta vez as circunstâncias eram de tal ordem, que de maneira nenhuma podia dar um passo em falso. Seria a desclassificação profissional pura e simples. A posição social do doente – comandante da Polícia – chamara a atenção geral sobre o médico assistente, sobretudo a dos colegas, a vislumbrar pela primeira vez um desaire espectacular e mortal. Chegava a perguntar a mim mesmo se aquele sádico contentamento que sentiam ao ver-me em apuros não seria uma forma de justificação dos próprios reveses…

…0 certo é que, abanado insidiosamente por eles, o meu prestígio aluía à medida que a cara do militar inchava. A semana inteira sem conseguir arredar do pensamento aquela imagem exasperante: uma máscara nojenta e pegajosa de colargol, cega e disforme, onde a barba parecia um restolho estrumado a crescer, e cada traço perdera a nitidez do desenho e se degradava no atropelo da inflamação. 0 sujeito apavorado, a tentar em vão fitar-me com os olhos soterrados pelas pápebras entumecidas, assado de febre, a família aterrorizada também, e eu a tentar sossegá-los, mais aflito ainda. No que dava a porcaria de um furúnculo da asa do nariz! Nunca me resignaria na profissão ao absurdo constante de semelhantes situações catastróficas, em que a teimosia de um micróbio ou a rebeldia de uma célula desafiavam caprichosamente todas as forças mobilizadas do engenho humano. — Dizem que parece um bicho! Como elas se arranjam! Uma coisa de nada… —…

…-Nisso é que as pessoas se enganam. o que julgam ser essa coisa de nada, pode transformar-se num caso gravíssimo… — Ah, sim? — Pois. Foi precisamente o que aconteceu agora. — Falam numa espinha carnal… — Sim, mas a espinha complicou-se… E agora, realmente. 0 raio do estafilococo, quando lhe dava para asnear, nem o maior sábio da Grécia. Felizmente que com a miraculosa sulfamida, o último prodígio terapêutico de que me socorri também, a infecção começava a ceder, e tudo indicava que podia intimamente confiar no triunfo. Apesar do edema ainda generalizado, realmente de meter medo, o perigo da septicémia diminuía. Mas, à cautela mantinha o prognóstico carregado. Se a roda desandasse por qualquer motivo imprevisto, o trambolhão estaria pelo menos almofadado. In “A Criação do Mundo”, IV

Trás-os-Montes “Avivo no teu rosto o rosto que me deste, /E torno mais real o rosto que te dou. /Mostro aos olhos que não te desfigura /Quem te desfigurou. /Criatura da tua criatura, /Serás sempre o que sou. //E eu sou a liberdade dum perfil /Desenhado no mar. /Ondulo e permaneço/Cavo, remo, imagino, /E descubro na bruma o meu destino /Que de antemão conheço: //Teimoso aventureiro da ilusão, /Surdo às razões do tempo e da fortuna, /Achar sem nunca achar o que procuro, /Exilado /Na gávea do futuro, /Mais alta ainda do que no passado. “

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“Acabei de operar, estou a fumar um cigarro e a pensar nas freiras que cirandam à minha volta. Bondosas, prestáveis, pacientes, injectam, fazem curativos, despejam, limpam. Mas sente-se que, embora presentes e funcionais, pairam acima da realidade. Que actuam fora do jogo da vida. Parece, até que nos olham com certa dose de comiseração por tanta freima que pomos nos actos temporais. Que força interior escuda estas mulheres? Que voz imperativa as chamou, que tudo largaram para a ouvir, desfazendo laços afectivos, calcando instintos, desprezando bens e honrarias? De onde lhes vem a paz que trazem estampada no rosto, e que nenhum vendaval perturba? Sei o que me responderiam se as interrogasse. Mas não quero ouvir palavras que na boca delas soariam a evidência, e nos meus ouvidos ressoariam a mistério. Deus, fé, vocação…

…Com três substantivos destes no processo, de que ilações cavilosas não seria capaz o demónio chicaneiro que mora dentro de mim! Presunção, simpleza… Só isso! E o pior é que o problema ficava na mesma. Era cobrir apenas com outros substantivos, mais pedantes ainda, a minha perplexidade. Santas irmãs! Mal imaginam, tão brancas de corpo e alma, o bem e o mal que me fazem. 0 bem de serem como são, e o mal de não poder entendê-las”. Hospital de Arganil, 1 de Dezembro de 1966.

“Toda a manhã a cortar amígdalas, longe de supor que no fim da carnificina sentiria esta necessidade, a que vou dar razão, de escrever qualquer coisa sobre a agressividade operatória. Contar da sanha insólita que se apodera do cirurgião contra o desgraçado paciente que tenta de qualquer modo resistir ao ataque de que é vítima. Iniciado na boa consciência de quem presta um serviço ao semelhante, o acto cirúrgico, às tantas, descamba insensivelmente em não sei que sádica crispação ofensiva, que já pouco tem a ver com a solicitude fraterna do começo. De certa altura em diante, o magarefe procura romper caminho de qualquer maneira. Tudo se passa como se o mecanismo de reorientação agressiva se desarranjasse dentro dele, e a sua natureza instintiva recalcada viesse subitamente à tona em toda a plenitude animal. E acontece muitas vezes que, quando o operador despe a bata, adivinha nos olhos do operado não o reconhecimento dorido pelos serviços q recebeu, mas a raiva impotente contra o bandido q lhe saiu à estrada”

Residência de Miguel Torga/Adolfo Rocha, agora transformada em Casa-Museu. Lá podem encontrar-se livros da biblioteca do poeta, incluindo algumas primeiras edições de obras de sua autoria, outras publicadas antes da sua morte ou a título póstumo. Também objectos pessoais, como a máquina de escrever, uma caneta, um estetoscópio, correspondência diversa, objectos de identificação pessoal e o espólio fotográfico e fonográfico.

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

O poeta é um fingidor (ou o Labirinto do Ser)

Fernando Pessoa é um dos maiores poetas portugueses do séc. XX. Escreveu como se factos, estados de espírito ou imagens fossem realidades diferentes, consoante o heterónimo que os tivesse experimentado. Um rio, uma rua, um café, um rebanho suscitavam conjecturas diferentes. Os rios de Ricardo Reis não deveriam ser idênticos aos de Pessoa (ortónimo) ou, para este, os rios e a Natureza em geral eram simples ambientes bucólicos, para que não estava desperto. Aparentemente, não é um, mas vários poetas.

As emoções descritas eram diferentes. Álvaro de Campos, mesmo Engenheiro, talvez fosse a personagem mais próxima do Fernando Pessoa, empregado comercial, discreto, a beber uns copos no Abel Pereira da Fonseca. Ricardo Reis, regressado do Brasil para onde se exilara com a implantação da República, era resignado e contemplativo, mas mais próximo de Alberto Caeiro, que o Poeta considerava quase como “pai” da sua heteronímia. Através desta multiplicidade, Fernando Pessoa desceu às contradições, aos paradoxos, aos jogos de espelhos da mente humana. A sua escrita é genialmente multidimensional.

As muitas abordagens que têm sido feitas à personalidade de Fernando Pessoa – literárias, sociológicas, psiquiátricas, etc., ficam aquém daquilo que ele escreveu de si próprio. Ninguém, melhor do que ele, se analisou (e mistificou), acreditando e preparando a glória futura. Por ela, secundarizou o reconhecimento público na sua época (embora o não tenha recusado). Em vida apenas publicou um livro, a “Mensagem”, embora os seus poemas mais importantes tivessem tido divulgação em várias revistas: Orpheu (de que foi um dos fundadores), etc.

O grande poeta – o Super-Camões sebastiânico, redentor de uma Nação mítica, capaz de refazer o seu destino histórico pela sua voz, pela língua portuguesa, aí estava. Era o seu destino, era ele. As fases de teosofia, ocultismo teriam sido a evolução desse propósito, que, no final da vida, haveria de desmentir.

A preparação teórica de Fernando Pessoa passou pelos poetas ingleses – Milton, Shakespeare, Poe, Byron, Keats…Estudou Filosofia (Nietzche, foi uma referência constante). O facto de ter feito o equivalente ao Liceu em Durban, deu-lhe grande domínio no Inglês, cuja escrita chegou a ser premiada. Os seus Poemas Ingleses, alguns deles com um cariz mais erótico que não se encontra no resto da obra, são, pois, consequência desse conhecimento….

Provavelmente, Fernando Pessoa sofreria de Perturbação Esquizóide da Personalidade, associada a traços de megalomania e de ideação delirante (aos psiquiatras e psicólogos, um diagnóstico). Mas, quem escreveu como Ricardo Reis “deixar correr o rio…sem desassossegos grandes”, ou como Álvaro de Campos  “olha que as religiões todas não ensinam mais do que a confeitaria” ou Alberto Caeiro “o único poeta da Natureza” ou como ele próprio “o poeta é um fingidor”, para além de interesse clínico, que importância têm as “etiquetas”?! A metafísica é uma consequência de estar mal disposto, como ele escreveu, pelo punho de Álvaro de Campos.

FM

 

 

Agonizava, e no meio da sua agonia, repuxando a dobra do lençol, teve, de súbito, uma pausa de estranha quietação. Abriu os olhos, olhou em roda, e apercebendo-se que não via, serenamente, como quem não esquece que os míopes, para ver, precisam de óculos, pediu que lhe trouxessem os seus: “Dá-me os óculos!”, murmurou, semicerrando os olhos enevoados. (João Gaspar Simões). Depois terá evocado os seus heterónimos, acabando por escrever: “I know not what tomorrow will bring” (“Eu não sei o que o amanhã trará”). A sua última frase.

Foi neste Hospital, São Luiz dos Franceses, à rua Luz Soriano, que, a 30 de Novembro de 1935, o poeta morreu aos 47 anos de idade de cirrose hepática (há quem afirme ter-se tratado de uma pancreatite aguda). Curiosamente, no mesmo quarto, onde cerca de 40 anos depois, morreria Almada Negreiros, um dos seus companheiros de tertúlias literárias.

Os antepassados de Fernando Pessoa (FP) foram figuras importantes na época: o avô paterno, General, combatente das campanhas liberais e o mateno, Director-Geral do Ministério do Reino. Na sua ascendência misturavam-se judeus e fidalgos. Contudo, o pai era um obscuro funcionário do Ministério da Justiça, actividade que associava à de crítico musical no Diário de Notícias. Era um homem frágil, que morreu de tuberculose, tinha FP cinco anos. A mãe voltou a casar pouco tempo depois, já após a morte duma irmã mais nova.

Cottage em Durban, onde a “nova” família residiu. O padrasto era Cônsul de Portugal. Lá, FP fez a High School e chegou a ganhar o prémio de melhor composição de Língua Inglesa entre mais de 1000 concorrentes. Porém, o seu objectivo de obter uma Bolsa para estudar em Oxford ou Cambridge não foi atingido. São dessa altura os seus primeiros poemas ingleses.

Em Durban nasceram mais irmãos. Terá o 2º casamento tido uma influência funesta na personalidade de FP? E o nascimento dos irmãos? Esta é uma questão que sempre foi evocada por todos os que tentaram fazer uma abordagem psicológica à obra do poeta. Como lembra Joana Amaral Dias, em apenas 3 anos FP perdeu o pai e o irmão, mudou de casa, de país, de “pai”, de irmão, de família, de cultura e de língua…

Quando finalmente regressou a Portugal aos 17 anos, falava melhor o Inglês que a língua materna. Cá inscreveu-se na Faculdade de Letras, mas não chegou a concluir o 1º ano.

Estátua da autoria de Lagoa Henriques, defronte da Brasileira do Chiado. Criou-se a ideia que FP seria um solitário, sem amigos, pobre, triste, ignorado, o que não corresponde inteiramente à verdade. Quanto à vida sentimental, a única relação que se lhe conheceu foi Ofélia, com quem trocou abundante correspondência, mas vida sexual activa parece nunca ter tido. Há quem admita, através dos seus escritos ter tido uma inclinação homossexual não concretizada.

No Martinho da Arcada, numa das suas tertúlias. Pessoa é o primeiro da direita. FP não era um solitário, embora não fosse extrovertido. Convivia, frequentava cafés, dava passeios, visitava amigos. Mantinha relações com as tias, com uma avó (que teria enlouquecido), com o padrasto. Teve relações de amizade com Sá-Carneiro, António Botto, Almada. Trocou correspondência com escritores da Presença como Régio, Casais Monteiro, Torga, Gaspar Simões.

Mário de Sá-Carneiro, com quem FP trocou importante correspondência até ao suicídio daquele em Paris.

FP teve sempre grande cuidado na construção da sua imagem. As cartas que escreveu, muitas delas não tinham um único destinatário, dirigiam-se a todos os que o viessem a ler. Era ao futuro, ao reconhecimento da importância da sua obra, ele o grande poeta – o Super-Camões. Só assim se entende a meticulosidade da explicação dos heterónimos a Casal Monteiro ou a arrumação de todo o seu espólio literário pelos diferentes heterónimos feita por ele próprio ou as cartas que escrevia e reescrevia (ficando com uma cópia), não tanto para aguardar resposta, mas para que elas viessem também a fazer parte da sua obra (como salientou J. Amaral Dias).

Independentemente da sua actividade literária (onde colaborou em diversas revistas) e do tempo que consumia na sua condição de leitor compulsivo, FP teve de deitar mão à sua formação de inglês para garantir a sobrevivência económica. Assim, como empregado de comércio, foi correspondente estrangeiro; dactilografo, redactor e tradutor de cartas. Com o dinheiro de uma herança fundou uma Tipopografia-Editora em Portalegre (Íbis) que seria um desastre financeiro, como sucedeu com outras iniciativas empresariais a que meteu ombros.

Fernando Pessoa (“ele mesmo”) escreveu poesia com traços épicos, trágicos, cujo paradigma deverá ser a Mensagem. Entendia que essa busca de alguém salvador, um Dom Sebastião, perdido em Alcácer-Quibir, devolveria à Pátria um Super-Camões (ele, Pessoa). Porém o seu nacionalismo, dizia, não era reaccionário. Mantinha uma certa ambivalência em relação às ditaduras. Admirou Sidónio Pais, talvez pelo seu consulado ter sido breve, mas não se identificou com o emergente Estado Novo de Salazar (retrato de João Luis Roth).

A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…” (carta a A. C. Monteiro)

Desde criança, tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.” (excerto de carta a A.C .Monteiro).

Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente Suicidária’. Aí se despe da sua própria ficção, oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis (Eduardo Lourenço).

Para Almada Negreiros o Modernismo era “o encontro entre as letras e a pintura” (cit. de Bernardo Pinto de Almeida). Entre os pintores mais relevantes deste movimento encontra-se Santa Rita Pintor, de quem existem muito poucas obras, pois pediu ao irmão que queimasse tudo após a sua morte, que foi precoce (1889-1918). A estada de Santa Rita em Paris foi determinante, trazendo para Portugal as influências de novas estéticas, presentes no Orpheu 2. Com Almada, funda o Comité Futurista de Lisboa, que pouco produz. Assim, deve-se a FP a maior produção da corrente futurista, até na atitude provocatória e repúdio dos cânones vigentes, que a espaços causou. Na revista “Portugal Futurista” publicou “Mandato de despejo aos Mandarins da Europa” ou o “Ultimatum”.

Amadeo de Souza-Cardoso é dos pintores portugueses mais importantes do séc. XX. Como Santa Rita viveu em Paris, fazendo uma evolução que passou pelo impressionismo, expressionismo, cubismo…Futurista, como também Almada, embora procurando escapar a classificações. Com o início da I Guerra regressou a Lisboa, fazendo várias exposições. Morreu em 1918, aos 31 anos.

Pessoa por Almada Negreiros

Amadeo foi amigo dos Delaunay em Paris (os quais posteriormente viveriam em Portugal), como de Modigliani, Apollinaire e Bracque. Esteve representado no Salon des Independants, ao lado de Bracque e Picasso. Almada, em 1917, chamou-lhe: “a primeira Descoberta de Portugal na Europa no século xx”. A espantosa força conceptual e formal da maioria das suas obras colocam-no, sem esforço de concessão, a par dos mais importantes artistas do seu tempo, de Kupcka a Léger, de Delaunay a Picabia, de Braque e Dérain. O 3º número de Orpheu ser-lhe-ia dedicado, mas a revista não passou do 2º número. “Amadeo é um paradigma do isolamento da solidão do criador mas em situação paroxística, porque ao mesmo tempo interior e exterior” (Bernardo Pinto de Almeida).

Orpheu foi a Revista do Modernismo português, da qual apenas se publicaram dois números, o 2º (1915) dirigido por FP e Sá-Carneiro e na qual se acolheram importante número de poetas (como Alfredo Guisado, Almada, Raul Leal e António Ferro). O primeiro número esgotou e o 2º vendeu 600 exemplares. Evidentemente, sendo uma linha de ruptura com o marasmo intelectual, escandalizou a imprensa da época. “os bardos do Orpheu são doidos com juízo”, “os engraçadinhos” da Brasileira e do Martinho.

Este edifício, situado na Rua Coelho da Rocha nº 16, em Campo de Ourique, foi reabilitado pela Câmara Municipal de Lisboa, por ter sido o local onde, no 1º andar, viveu os seus últimos anos. Neste prédio, que alberga parte do espólio do poeta, realizam-se regularmente colóquios, conferências, sessões de leitura de poesia, encontros de escritores, etc. A decoração, o jardim, as salas de exposição são de grande bom gosto e criam um ambiente intimista de acordo com a(s) personalidade(s) do poeta.

“Em pleno delitro” foi a legenda que FP escreveu na fotografia que enviou à sua namorada Ofélia, imagem que é hoje um ícone pessoano.

FP sempre demonstrou interesse pela teosofia, esoterismo, espiritismo, misticismo e por sociedades secretas como Maçonaria e Rosacruz. Dedicou-se também à astrologia, tendo traçado os horóscopos aos seus próprios heterónimos…

A revista Presença (1927-1940) foi fundada por Branquinho da Fonseca e José Régio, e nela colaboraram dos mais importantes escritores e pintores portugueses, como Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Adolfo Casais Monteiro, FP, Almada Negreiros, Mário Sá-Carneiro ou João Gaspar Simões. No estilo, na grafia e nos conteúdos, visou uma literatura oposta ao academismo tradicional, da sobreposição do individual ao colectivo, do psicológico ao social. Para o seu desaparecimento contribuíram divergências de Régio com Torga, e depois com outros colaboradores. Elegeu como “mestres” os artistas da Orpheu, Após a morte de FP, consagrou-lhe os nºs 47 e 48, reconhecendo “uma das mais ricas e originais individualidades da literatura portugesa”.

“O mostrengo” (Fernando Pessoa)

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A obra de Pessoa é uma sinfonia de uma só nota destinada a cobrir o outro lado do sonho que é para ele a Morte. Por isso, a mais do que a ninguém foi Luís da Baviera que se assimilou Pessoa, como ele, rei da nossa própria Baviera do sonho. O Livro do Desassossego desarticula todas as ficções que o separaram em vão do único amor que o habitou, herói de Wagner sem legenda, o da própria Morte. É à luz, agora soberana, do Livro do Desassossego que todo o texto — falsamente plural — de Fernando Pessoa deve ser relido. Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista pouco conforme ao mito-Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista. Nem há na literatura do Ocidente mais completa expressão do Simbolismo. O Modernismo foi a sua e nossa ficção. Devolvamo-lo, para terminar, à sua verdade-ficção, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar como o seu duplo e não menos wagneriano Luís Segundo, Rei da Baviera: ,,Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas. Rei-Virgem que desprezaste o amor, Rei-Sombra que desdenhaste a luz, Rei-Sonho que não quiseste a vida! Entre o estrépito surdo de címbalos e atabales, a Sombra te proclama Imperador!» (Eduardo Lourenço).

“The Times”

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Outro heterónimo de Pessoa: Ricardo Reis. Na carta a Adolfo Casais Monteiro escreve: “Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil.” Sobre as suas características literárias, é um poeta clássico, triste, que aceita com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas; procura a tranquilidade capaz de evitar a perturbação; vive em conformidade com as leis do destino, indiferente à dor e ao desprazer numa verdadeira ilusão da felicidade.”

A figura de Ricardo Reis, cuja morte não ficara definida, foi retomada por José Saramago. Faz dele um liberal que foge para o Brasil, escapando-se ao regime de Salazar, para regressar em 1936, depois de instalada a ditadura de Getúlio Vargas. Durante 9 meses é testemunha do totalitarismo emergente que prenuncia uma catástrofe.

José Saramago situa o final do seu romance na época da Revolta dos Marinheiros, quando a tripulação de vários navios de guerra se rebelou contra o Governo de Salazar, em 1936. Lídia relatara ao Dr. Ricardo Reis a iminência da revolta e o envolvimento do irmão. Vai ao Terreiro do Paço, vê os avisos e os contratorpedeiros: Afonso de Albuquerque, Dão… É abordado pelo Victor (o PIDE da época), que se mostra como que surpreeendido: “Então o senhor doutor veio ver os barcos…”, insinuou. Devia avisar Lídia que talvez a revolta fosse conhecida?

Entre Ricardo Reis e Pessoa, de quem provem, estabelece-se uma relação de cumplicidade e quando no final, Pessoa dele se despede, porque é tempo de morrer, Ricardo Reis afirma: vou consigo.

“Para ser grande, sê inteiro” (Ricardo Reis).

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“Vem sentar-te comigo, Lídia à beira do rio…”

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Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Tem o rosto rapado. Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

“Tabacaria”

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“Aniversário” (Álvaro de Campos)

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“Quando vier a Primavera” (Alberto Caeiro)

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“O rio que corre na minha aldeia” (Alberto Caeiro)

Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó.…Num dia em que finalmente desistir [de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada] – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

“Se depois de eu morrer” (Alberto Caeiro)

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“Pensar em Deus é desobedecer a Deus” (Alberto Caeiro)

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Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa – não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio. Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento. Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento , pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão. Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passei o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo.”

O Livro do Desassossego é para nós, hoje, um manual de sobrevivência. (…) É um livro de sonhos e, completamente, uma apologia do sonhador. Em toda a sua grande diversidade e fragmentação existe, ainda assim, um refrão constante: mais vale viver na imaginação do que no mundo real. O génio do Livro reside, em parte, no que tem de fragmentário, de hesitante e de (recorrendo agora ao léxico de Pessoa) ‘intervalar’. É um livro que não o é, e, como tal, reflecte perfeitamente a alma de quem o escreveu. Pessoa, um pós-modernista avant la lettre, deixou-nos o livro, ou anti-livro, mais emblemático do final deste século”. (Richard Zenith, investigador pessoano, responsável pela organização da mais completa edição do Livro do Desassossego de Bernardo Soares).

Tudo se passa no Livro do Desassossego, como se FP retirasse toda a ficção às suas ficções, eliminando nelas o que é imaginariamente positivo (contentamento puro de Caeiro, indiferença ostensiva de Reis, exaltação tumultuosa e precária da Campos) para converter apenas o inverso da experiência que uns e outros, miticamente encarnam, em suma, a mesma vida, mas nua (Eduardo Lourenço).

 

Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.”


Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos. Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é objecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana. As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois «amo-te» ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a actividade da alma. É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar.


«Cada pessoa é apenas o sonho de si-próprio. Eu nem isso sou.» (Bernardo Soares).



“Vem noite antiquíssima e idêntica…” (Álvaro de Campos)

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Caricatura de Pessoa por Almada Negreiros, feita no dia do seu funeral.

 


Consultados: Fernando Pessoa, Rei da nossa Baviera (Eduardo Lourenço), O lugar do Anjo (Eduardo Lourenço); Pessoa revisitado (Eduardo Lourenço), Uma fotobiografia (Maria José de Lencastre), Fernando Pessoa, empregado de escritório (João Rui de Sousa), Maníacos de Qualidade (Joana Amaral Dias), Bibliografia passiva selectiva e temática (José Blanco), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo português, Fazer pela vida (José Mega Ferreira).
 
Tudo se passa no Livro do Desassossego, como se FP retirasse toda a ficção às suas ficções, eliminando nelas o que é imaginariamente positivo (contentamento puro de Caeiro, indiferença ostensiva de Reis, exaltação tumultuosa e precária da Campos) para converter apenas o inverso da experiênciaque uns e outros, miticamente encarnam, em suma, a mesma vida, mas nua (Eduardo Lourenço)

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Memórias de um Embondeiro e outras histórias

O colonialismo português foi o rosto do país – pelintra e atrasado. No que respeita a Moçambique, no séc. XIX e início do XX, tirando períodos em que surgiram homens de visão, competência e coragem – como Sá da Bandeira, Andrade Corvo, Mouzinho de Albuquerque, Capelo, Ivens ou Gago Coutinho, os portugueses ficaram-se na orla marítima, traficaram escravos (mesmo depois do abolicionismo), venderam trabalhadores para as minas de ouro do Transval, como mercadoria para contrabalançar as contas da Colónia e dedicavam-se ao pequeno comércio. Edificaram cidades, é certo, e abriram caminhos-de-ferro para os portos do Índico para escoamento dos minérios, sobretudo da Rodésia, mas o atraso relativamente aos territórios vizinhos era grande.
Moçambique, economicamente, dava prejuízo (!). Se os Descobrimentos e a rota marítima para a Índia corresponderam ao acto supremo da Nação, o que veio a seguir foi muitas vezes lastimável. Ironicamente, se a afronta sentida pelos portugueses perante a cedência de D. Carlos ao Ultimatum inglês foi um dos factores que contribuíram para a ascensão dos Republicanos e o Regicídio, quando Portugal participou na I Guerra Mundial , visando, sobretudo, a defesa das colónias, a mortandade nas tropas, abandonadas e mal preparadas, não só na Flandres como em Moçambique, levou ao assassínio do Presidente Sidónio Pais.
Depois da I Guerra, houve tímidas políticas de descentralização e de alfabetização dos nativos. Acreditava-se na reedição de novos Brasis. Porém, o Acto Colonial promulgado nos anos 30 vem definir um novo estatuto legal dos territórios e acabar com veleidades descentralizadoras. Portugal assumia-se como potência colonial. Desfasado, portanto.
Salazar foi surdo aos ventos do nacionalismo africano, mesmo aos tumultos da Independência do ex-Congo belga. Os colonos brancos tinham a protecção dos Administradores e Chefes de Posto, os quais distribuíam palmatoadas e vergastadas com o “chamboco” (cavalo marinho) aos prevaricadores. Os “assimilados” não ganhavam o mesmo que os brancos, mesmo que executassem as mesmas funções…
O massacre dos brancos em Angola desperta o país. Depois, é conhecida a evolução dos acontecimentos. Perante as críticas da ONU, o Governo defende-se na retórica de Portugal “do Minho a Timor”. A percentagem de negros a falar, mesmo um português rudimentar, nos anos 60 em Moçambique, era reduzida e estava limitada às cidades. Nas escolas ensinavam-se as serras e os rios de Portugal e ignorava-se a geografia local. Em Moçambique começa a guerra. O regime apodrece. Não raras vezes são os militares a garantir alguma justiça social.
A tibieza de Marcelo deixou que a situação militar chegasse ao colapso. Foram, depois, as independências ad hoc, o trágico regresso dos colonos, muitos já lá nascidos. Quer dizer que, enquanto as outras potências coloniais, exploravam e tinham lucro com as colónias, no caso de Moçambique passava-se o oposto. Quando as outras potências se preparavam para a autodeterminação e independência dos seus territórios, Portugal promulgava o Acto Colonial. Quando eclodiram os nacionalismos africanos,  Moçambique era a “África Oriental Portuguesa”…Sempre atrasados na História.

XXX

Passou já tempo suficiente para falar abertamente de questões graves que nunca foram esclarecidas e – pior, sem que tenha sido feito qualquer esforço sério nesse sentido: o que aconteceu em Omar e Nangade, dos piores “buracos” de Cabo Delgado, antes do acordo de Lusaka, em 1974? É verdade que em Omar a Companhia se entregou e confraternizou com o inimigo mais de um mês antes das negociações (mesmo que houvesse instruções para preparar o cessar-fogo)? E que, em Nangade, a Companhia depôs as armas, quase uma semana antes do acordo firmado? Se é verdade, como é possível não ter julgado os respectivos comandantes?
Foram actos vergonhosos, indignos dum exército regular. Honrar a memória dos soldados mortos e não trair os milhares que ficaram estropiados, é o mínimo que se deveria exigir.
Os americanos, por muitos erros que cometam, sempre honraram a memória dos seus soldados. Portugal envergonha-se. Não há que ter vergonha, nem há que pedir desculpa, como agora se usa. A guerra (sobretudo, a sua continuação sem legitimidade nem perspectivas) foi um erro trágico. Mas, de qualquer modo, se militares portugueses se comportaram em Omar desse modo, injuriaram a memória dos mortos e o drama dos deficientes.

FM

Talvez por este embondeiro tenham passado os alemães que, em 1917 por duas vezes, atravessaram o Rovuma e chegaram a controlar todo o planalto dos macondes; ignora-se se foi testemunha do apoio que os ajauas deram quase sempre aos alemães que prometiam isentá-los do “imposto”; se o General Lettow-Vorbeck e outros oficiais alemães,  que fizeram gato-sapato das forças portuguesas e dos cipaios arregimentados, ali descansaram. O comandante Roxo esteve aqui de certeza, pois foram várias as vezes em que o ponto de partida para acções de contra-guerrilha era o Unango, onde se encontra o nosso embondeiro; ou se o mesmo possa ter acontecido com Orlando Cristina, secretário do Eng. Jorge Jardim, e que por aqui andou a caçar elefantes e, mais tarde, em acções militares na fronteira com o Malawi.

Elefante

Alguns embondeiros terão vários milhares de anos de idade, mas como a sua madeira não produz anéis de crescimento, isso é impossível de ser verificado. Mas, é verdade que mostraremos fotografias com um intervalo de 40 anos. Que histórias poderia aquele embondeiro contar? As suas folhas na sua caducidade, não nos ajudam.

Alguns dados históricos: a Companhia do Niassa foi formada por alvará régio de 1880, com poderes para administrar as províncias de Cabo Delgado e Niassa, desde o rio Rovuma ao rio Lúrio e do Oceano Índico ao Lago Niassa, numa extensão  de mais de 160 mil Km2. Como os portugueses não tivessem capacidade financeira, venderam a concessão a um consórcio de capitais franceses e britânicos. Uma vez que o território não tinha ainda sido ocupado militarmente por Portugal, em 1897 a Companhia projectou uma expedição contra o Chefe Mataca do Niassa, mas abandonou a iniciativa por prever uma grande resistência daquele chefe.

Tenente Valadim, foi um herói das campanhas militares africanas que os portugueses desenvolveram nos finais do século XIX. Em 1884 embarcou para Moçambique, onde participou em várias acções militares contra os régulos insurgidos contra Portugal. Numa dessas campanhas, já em 1890, acabou decapitado e esquartejado pelo régulo Mataca. Esta zona, que tinha o seu nome, em 1972, albergava a sede de um batalhão e as suas instalações eram modelares. Estava numa zona “pacificada” e nem abrigos capazes havia. Mas foi alvo de um ataque…

Pressionado para promover a ocupação de tão grandes territórios, o Governo cria as Companhias Majestáticas com administração própria, que são quase Estados dentro da Colónia. É o caso da Companhia do Niassa e da Companhia de Moçambique. Outras regiões foram atribuídas em regime de arrendamento como foi o caso da Sena Sugar Estates, a Companhia do Luabo, a Companhia da Zambézia ou a Boror.

Mas duas décadas antes da constituição da Companhia do Niassa, aquele território serviu para recrutamento de escravos, os quais eram embarcados em pangaios e enviados sobretudo para Madagáscar e Zamzibar. A pressão inglesa contra as práticas esclavagistas encontrou forte resistência nos negreiros, sobretudo árabes. Atribui-se a morte do Tenente Valadim a intrigas destes traficantes, que receavam que o seu comércio secular de escravos fosse ameaçado pelos portugueses

A Conferência de Berlim realizada em 1884-85 estabeleceu as regras de ocupação de África pelas potências coloniais e dele resultou que essas potências, mesmo com territórios que historicamente lhes pertencessem, tinham de os ter ocupado, efectivamente. Em 1891, a Inglaterra reivindicou a posse dos territórios situados entre Angola e Moçambique (o chamado «Mapa Cor-de-Rosa»). Como Portugal não aceitasse, o governo inglês apresentou um ultimatum, o qual fez ceder o Governo. A indignação dos portugueses foi grande. E, no entanto, Portugal era um país com uma economia quase na bancarrota. Moçambique dava prejuízo. A maior parte do comércio fazia-se com Marselha e depois com os Alemães e Ingleses, mas não com Portugal. A única actividade próspera era o comércio de escravos. O país que fizera os descobrimentos marítimos tinha uma marinha ridícula, onde os navios a vapor eram minoritários. Para as transacções comerciais Portugal recorria a navios estrangeiros.

Em 1899, com o apoio dum pequeno exército fornecido pela administração colonial, formado por 300 soldados portugueses e 2800 “cipaios” (indígenas recrutados noutras regiões de Moçambique), a Companhia assegurou uma posição militar em Metarica. Em 1900 e 1902, tomou Messumba e Metangula, nas margens do Lago Niassa. Nessa altura, o consórcio dissolveu-se, alegadamente por desisteresse económico. Vemos, assim, que só nos primeiros anos do séc XX passou a existir alguma força militar portuguesa.

A ocupação de todo este território, nomeadamente do planalto de Mueda, só pode ser considerada após a abertura duma picada entre Mocímboa do Rovuma e Porto Amélia (actual Pemba), e depois de vários acções militares contra os macondes. Em 1929 extingue-se a Companhia do Niassa e a administração passa para o governo da colónia. Durante a Guerra Colonial Mueda foi uma zona de guerra séria, onde no final os portugueses tinham perdido a iniciativa militar, alguns aquartelamentos tinham sido evacuados e defrontavam um inimigo com melhor armamento.

Desde o séc. XIX que grandes contingentes de negros foram trabalhar para fora de Moçambique. Ou ficavam e tinham de fazer prova que não eram ociosos (apresentar um “contrato”, pagar o “imposto” que ficava averbado na “caderneta”) ou iam trabalhar para as minas de ouro do Transval (isto para as populações do sul), Mas, sobretudo, na Zambézia, duma forma mais ou menos às claras, o esclavagismo continuou nos Prazos da Coroa. Ao contrário de Angola, Moçambique era fortemente influenciado pelo Oriente e pelos muçulmanos. Para o negro moçambicano, até na altura da guerra colonial, tão estrangeiro era o português como o “monhé”. Em 1964, a população branca representaria 1,4% do total. As principais etnias são a macua implantada principalmente no distrito de Moçambique, a Ajaua (Niassa) e Maconde (Cabo Delgado). No Unango, que fica ao Norte da antiga Vila Cabral, no sopé da serra Jessi (na foto), está o embondeiro da nossa história.

Lago Niassa

Foto da foz do Zambeze, tirada nos anos de 1950. Na Costa do Indico, os portugueses só na região da Zambézia se aventuraram para o interior, na mira de ouro e prata, que nunca chegaram a encontrar. Surgiram, assim já no séc. XVIII vastas zonas, ao longo do rio Zambeze, da pertença, não poucas vezes, de brancos sem escrúpulos que possuíam autênticos haréns, hordas de filhos e exércitos próprios de escravos. A sua descendência ia-se, portanto, africanizando. A Coroa promulgou os “Prazos”, que estabeleciam a outorga desses territórios por um prazo de 3 gerações , sendo a sucessão obrigatoriamente pela linha feminina e as herdeiras obrigadas a casar com portugueses brancos.

A Conferência de Berlim serviu para o arranque de um novo espírito colonial, que fez submeter régulos, percorrer o interior de África, fazer o levantamento cartográfico, intensificar o comércio, desenvolver a agricultura, delimitar as fronteiras. Antonio Enes e Mouzinho de Albuquerque foram os expoentes do novo colonialismo. O rio Zambeze passou a ser navegado (muitas décadas depois, ainda se via esta velha canhoneira que percorria o rio desde o Chinde até Tete). A Sena Sugar Estates comerciava açúcar; outras explorações foram implantadas: chá, algodão, tabaco (mais para norte). Entretanto, a República é implantada. Inicia-se a I Grande Guerra, em que Portugal intervém. São mobilizadas para Moçambique forças importantes e razoavelmente equipadas. Porém, a falta de cuidados sanitários e de saúde e a malária desbaratam o exército. Os alemães em número reduzido, mas utilizando tácticas de guerrilha, aniquilam a força expedicionária desmoralizada. Morreram mais homens neste conflito do que na Guerra Colonial entre 1964-74.

O massacre de Mueda, em 1960 foi o rastilho para a luta armada. Eis o relato de um sobrevivente (Alberto Joaquim Chipande): “…alguns desses homens [dirigentes] tinham entrado em contacto com as autoridades e pedido liberdade e melhor salário… Tempos depois, quando o povo começava a apoiar estes chefes, os portugueses mandaram a Polícia às aldeias, convidando as pessoas para uma reunião em Mueda. Vários milhares de pessoas vieram ouvir o que os portugueses iriam dizer. Enquanto isso decorria, o administrador pedia ao governador da província de Cabo Delgado que viesse a Porto Amélia e trouxesse uma companhia de soldados. Mas estes esconderam-se quando chegaram a Mueda. De princípio não os vimos. Então o governador convidou os nossos chefes a entrar no gabinete do administrador. Eu esperei de fora. Estiveram lá durante quatro horas. Quando surgiram da varanda, o governador perguntou à multidão se alguém queria falar. Muitos quiseram fazê-lo e o governador mandou que todos passassem para o mesmo lado. ..

…”Então, sem mais palavras ordenou à Polícia que amarrasse as mãos de todos os que tinham sido separados e a Polícia começou a espancá-los. Eu estava perto. Vi tudo. Quando o povo viu o que estava a acontecer manifestou-se contra os portugueses e os portugueses ordenaram pura e simplesmente aos carros da Polícia que avançassem e reunissem os presos. Isso desencadeou mais manifestações. Nesta ocasião a tropas estavam ainda escondidas e o povo correu para a Polícia para impedir que os presos fossem levados. Então o governador chamou as tropas e quando apareceram mandou abrir fogo. Foram mortas mais de 600 pessoas.” Mesmo que este número seja exagerado, estes factos ocorreram, como igualmente aconteceu na Baixa do Cassange, em Angola

Em 1964 ocorre a primeira acção da Frelimo contra a povoação de Chai, isto depois duma discussão interna, donde resultou a eleição de Eduardo Monlane, como seu Presidente. Era o início da Guerra Colonial em Moçambique. A seguir, começaram acções de guerrilha também no Niassa. Segundo os seus dirigentes, a Frelimo pretenderia estender a sua acção a vários outros distritos, mas não tinha meios logísticos, pelo que a acção militar se confinou a Cabo Delgado e Niassa. Do lado português, o dispositivo militar era insuficiente. Havia que reforçar as tropas.

Mina anti-carro. Calcula-se que metade dos mortos e feridos graves portugueses tenham sido causadas pelo accionamento destas minas e de anti-pessoais

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Além do número de baixas humanas que causavam, originavam ainda importantes destruições de material e um forte impacto psicológico. A quase ausência de estradas alcatroadas em Cabo Delgado, Niassa e Tete facilitavam a sua utilização. Os portugueses também as colocaram com o objectivo de tentar impedir a infiltração de guerrilheiros pela fronteira

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Durante a Guerra Colonial procurou-se agrupar os nativos junto dos estabelecimentos militares, como forma de os poder controlar. Não raro eles faziam jogo duplo. Como parte da estratégia de conquistar as populações eram prestados cuidados médicos e sanitários

Daniel Roxo, transmontano de nascimento, foi uma figura mítica da contra-guerrilha sobretudo na zona do Niassa. Antigo caçador-profissional, conhecia o mato como os nativos. Falava quase todos os dialectos e fazia pactos de sangue com os régulos. Com o início da guerra e, juntamente com um grupo de 30 homens da sua confiança (ex-guerrilheiros), obtêm resultados surpreendentes, desde captura de material ao inimigo, à destruição de bases e número de guerrilheiros abatidos. Com o colapso militar português alista-se nas forças especiais sul-africanas, combate os cubanos no sul de Angola e acaba vítima de uma emboscada. Uma vez perguntaram-lhe como tinha sido a passagem de caçador profissional para a de combatente. Terá respondido: é apenas uma questão de mira. Sem ser militar, obteve 2 Cruzes de Guerra e a Cruz de Honra do Exército Sul-africano

Armas capturadas ao inimigo. Por cada uma havia um prémio para estimular os resultados das operações.

Um abrigo num destacamento do mato

Mas voltamos ao nosso embondeiro. De muitos dos acontecimentos relatados, ele não foi testemunha, mas devem ter-lhe chegado ecos. Seguramente, terá visto manadas de elefantes e caçadores que os abatiam para vender marfim. No final da década de 1960, não havia já elefantes e terá servido para décors dos militares portugueses, ali estacionados, como se eles estivessem em Paris com a torre Eiffel em fundo. Mas, como se de um batuque longínquo se tratasse e o sol estivesse a desaparecer, pintando o céu daqueles tons vermelhos que só em África existe, chegavam-lhe os murmúrios de um tempo novo, talvez mudança. De novo, os portugueses, agora numerosos e os ajauas acantonados na povoação ao lado do quartel. A comunicação exigia um intérprete. Mas eles diziam spoon para designar uma colher e um ou outro vocábulo adulterado do alemão. De origem portuguesa raras palavras e de aprendizagem recente.

Bimotor Islander, tripulado por civis e que faziam o reabastecimento de géneros frescos

As acções de guerrilha consistiam em emboscadas, flagelações, morteiradas sobre os quarteis e colocação de minas nos itinerários. À medida que o tempo passava essas acções recrudesciam. O Niassa em 1968 foi baptizado como o Estado de Minas Gerais. A progressão dos soldados era lenta. Certos trechos dos caminhos eram “picados” minuciosamente, por meio de uma vara, que procurava detectar qualquer engenho metálico. Com o tempo algumas picadas deixaram de ser utilizadas pelas viaturas militares. Os reabastecimentos de géneros frescos faziam-se por via aérea E quando se tinha de organizar uma coluna-auto a progressão era penosa e, não raras vezes, quando havia uma rendição, os “checas” (novatos) chegavam ao seu destino já com várias baixas. Isto aconteceu sobretudo em Cabo Delgado, onde, p ex. a distancia entre Mocímboa da Praia e Mueda (120Km) levava 10 dias

Podia chamar-se Festa de recepção aos caloiros (“checas”)…

Nord-Atlas ou o “barriga de ginguba”. Utilizado para transporte de géneros e passageiros. Era a partir deles que se fizeram os lançamentos de para-quedistas

Dos vários Comandantes-Chefe, aquele que porventura mais marcou a guerra em Moçambique terá sido o Gen. Kaúlza de Arriaga (K). Conotado com a linha mais à direita do regime, foi nomeado por Marcello Caetano. Inicialmente procurou agrupar as populações junto dos aquartelamentos. A estas só restavam duas soluções: ou aceitarem vir para os novos aldeamentos ou refugiar-se na Tanzânia. Estes aldeamentos eram protegidos por arame farpado e dispunham de uma milícia a quem foram distribuídas armas, embora obsoletas. Porém, em Cabo Delgado as populações estavam do lado da Frelimo

K vangloriou-se de ter defendido Cabora Bassa com 100% de êxito, mas a verdade é que à Frelimo não interessava destruir uma infra-estrutura que lhe poderia ser útil no futuro.

K, a par da intensa acção psico-social defendia acções que eliminassem as chamadas “áreas libertadas”, como foi o caso da Operação “Nó-Górdio”, através de operações de grande envergadura com o máximo de forças disponíveis. Visava também a segurança e defesa de locais de importância estratégica, como era Cabora-Bassa e a construção de aldeamentos junto das unidades militares.

T6 avião de reconhecimento da 2ª Guerra Mundial, adaptado a bombardeiro.

A acção psicológica que a doutrina de K defendia tinha em conta o apoio médico-sanitário às populações acantonadas nos aldeamentos (por vezes em condições de quase indigência, como se vê na foto, um exemplo) até à propaganda massiva que era feita pela distribuição de panfletos, convidando à rendição e apresentação às unidades do exército

Vacinação da população dum aldeamento

Quanto à Operação Nó Górdio, que envolveu os maiores meios militares jamais vistos em Moçambique (forças do Exército, Marinha e Força Aérea), conseguiu atingir e destruir as chamadas bases Gungunhana, Moçambique e Nampula, mas os guerrilheiros já lá não estavam… Para a sua efectivação reuniram-se artilharia e auto-metralhadoras; transferiram-se depósitos de munições, combustíveis e víveres para o Norte; prolongou-se a pista de Mueda, de modo a nela poderem operar aviões Fiat G-91, e a de Nangololo, para receber Nord-Atlas de transporte; deslocaram-se tropas do sul para reforçar o dispositivo. A montanha, aliás o planalto, tinha parido um rato. A guerra de guerrilha não se ganha com operações de envergadura como esta.

Os Fiat G.91 foram utilizados como aviões de ataque ao solo e de reconhecimento. O seu curto raio de acção limitava-o operacionalmente. Foram utilizados em Cabo Delgado

28 mortos e 27 feridos graves foi quanto custou em vidas a aventura militar de K. Este dissera que ia acabar com a Frelimo, mas os resultados desmentiram-no. K desdobrava-se em declarações, fazia a sua propaganda pessoal. A Frelimo, entretanto, vivia uma nova fase com a chegada de Samora ao poder, depois do assassinato de Mondlane. E a guerra aumentou, sobretudo no distrito de Tete

Aproximação a Mueda de um Alouette III. “Em M., a chegada das colunas com as companhias que regressavam de operações era sempre um acontecimento, toda a tropa se juntava e gritavam uns pelos outros como a dizerem que estavam vivos. Em M. só os macondes que viviam no aldeamento não partilhavam desta excitação, continuando a fazer a sua vida como se aquele movimento não lhes dissesse respeito, as mulheres iam à água carregando à cabeça as latas que haviam sido de óleo para os motores, os filhos escanchados nos quadris ou atados às costas com um pano, os homens desinteressados à porta das palhotas…A festa que todos faziam nestas ocasiões era o pretexto para quebrar a monotonia de cada dia à espera de que a comissão acabasse ou que viesse a ordem de transferência para o sul.” (in Nó Cego de Carlos Vale Ferraz)

Era nos sulcos escavados na picada, por onde as rodas seguiam como num carril, que os picadores procuravam as minas. Quando as encontravam, rebentavam-nas colocando-lhes por cima um petardo de trotil, a partir daí as viaturas desviavam-se e abriam novos regos para passarem ao lado dos buracos abertos com as explosões, nasciam novos trilhos de que tinham de se desviar quando surgiam novas minas e voltavam ao caminho inicial passando pela antiga cratera, entretanto disfarçada com a terra caída das beiras esboroadas; e assim sucessivamente até se irem aplainando e esquecendo não só os buracos, mas os que neles tinham morrido, ou ficado aleijados, até aparecerem novas minas e novos feridos” (in Nó Cego de Carlos Vale Ferraz)

Vale de Miteda “Quando metade da Companhia de comandos se encontrava a atravessar o vale com o passo acelerado, quase a correr, ouviram-se estampidos secos de rolhas a saltarem de garrafas de champanhe vindos da encosta em frente…-Saída de morteirada, capitão! Avisou o Evaristo, enquanto se atirava sem cerimónia para o chão. Deitar! – Uma, duas, três, quatro, cinco. Vêm pelo menos cinco no ar – anotou o Alferes Lourenço em voz alta…Ouvia-se já o zumbido assobiado da primeira granada. Caiu com o estrondo da trovoada seca, outra mais perto…-Os gajos estão a acertar – constatou o furriel, o que era evidente…Outros estampidos, saídas de granada…As granadas caíam agora mais perto dos homens e os estilhaços zuniam por cima dos ouvidos, fazendo-os abrir a boca…-Há feridos, meu capitão, ouvi gritar lá atrás!” (in Nó Cego de Carlos Vale Ferraz)

As “áreas libertadas” eram zonas não controladas pela administração civil ou militar portuguesas. Nelas, a Frelimo tinha pequenas “machambas” (plantações), onde se cultivava mandioca, milho, etc. pelas populações que lhe era afecta e onde os guerrilheiros se reabasteciam. Havia doutrinação política, esboço de escolas onde se ensinava o português. Se o exército português tomava a iniciativa de destruir essas “machambas”, muitas vezes à custa de baixas e importante destruição de material, podia fazer alguns prisioneiros, habitualmente velhos, e queimar as palhotas ou matar gado que lá se encontrasse. Mas quando os soldados retiravam, as machambas apareciam noutros locais. Sobrevoando o Niassa em 1972, havia zonas de floresta onde aqui e ali apareciam cubatas.

Com o evoluir da guerra, porém, havia cada vez mais “áreas libertadas”. Embora alvo de ataques das forças portuguesas que queimavam as palhotas e detruiam alimentos e matavam animais, as palhotas surgiam noutros locais. Como o próprio K referiu, o dispositivo militar era insuficiente para conter a guerrilha e a sua progressão para Sul e para a região de Tete, onde se iniciavam as obras da enorme barragem de Cabora-Bassa. Porém, a “metrópole” não tinha capacidade para mobilizar mais europeus. Assim, foram-se criando grupos especiais (GE), além da inclusão de negros nas Compahias de Caçadores

Queimando uma palhota (muitos macondes continuavam no mato, fazendo as suas machambas, que serviam de apoio logístico aos guerrilheiros)

Um Dornier, vulgo DO, avião de reconhecimento

Quartel de Malapísia. Porque Cus de Judas não eram só no Leste de Angola, como os descreveu António Lobo Antunes. No Niassa, havia muitos. Conta um médico ter ido uma vez de helicóptero visitar um destacamento no Luatize, onde um pelotão fazia protecção a uma ponte sobre o rio Lugenda. O comandante era um alferes que acabava as frases dizendo invariavelmente: “Nem pó” ou “Bruxo!”. As instalações eram dois edifícios cheios de buracos por onde se passeavam ratazanas que pareciam coelhos. A ementa do dia era “chouriço com marmelada”. Os soldados eram na maioria negros e estavam lá por castigo. O maior problema era disenteria, que os deixara esquálidos, desidratados, de vincos profundos nos olhos encovados. Metade deles foram evacuados.

No edifício sinistro do hospital civil, idêntico a uma pensão de província moribunda de paredes empoladas por furúnculos de humidade, os doentes de paludismo estremeciam de febre nos degraus da entrada, no corredor, na sala de consulta, cubículo destinado às injecções, à espera das ampoias de quinino na tranquilidade imemorial dos negros, para quem o tempo, a distância e a vida possuem uma profundeza e um significado impossíveis de explicar a quem nasceu entrer túmulos de infantas e despertadores de folha, aguilhoado por datas de batalhas, mosteiros e relógios de ponto. Diante da secretária, espessa como um bunker, à qual instalava a minha ciência de manual, a miséria e a fome desfilavam e a única resposta que a minha impotência me permitia eram pastilhas de vitaminas da tropa adoçadas por um sorriso de desculpa e de vergonha. Impedidos de pescar e de caçar, sem lavras, prisioneiros do arame farpado e das esmolas de peixe seco da administração, espiados pela PIDE, tiranizados por Cipaios…”…

a mesma pergunta aflita me ocorria, a mim, filho da Mocidade Potuguesa, do Novidades e do Debate, sobrinho de catequistas e íntimo da Sagrada Família que nos visitava a domicílio numa redoma de vidro, empurrado para aquele espanto de pólvora numa imensa surpresa: são os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, os Americanos, os Russos, os Chineses, o caralho da puta que os pariu combinados para nos foderem os cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de pó vermelho e de areia, a jogar as damas com o capitão idoso saído de sargento que cheirava a menopausa de escriturário resignado e sofria do azedume crónico da colite, quem me decifra o absurdo disto, as cartas que recebo e me falam de um mundo que a lonjura tomou estrangeiro e irreal, os calendários que risco de cruzes a contar os dias que me separam do regresso e apenas achando à minha frente um túnel infindável de meses, um escuro túnel de meses onde me precipito mugindo, boi ferido que não entende, que não entende, que não logra entender e acaba por enterrar o triste focinho molhado nos ossos de frango com esparguete do rancho, do mesmo modo, percebe, que aqui, na sua companhia, me sinto cavalo de narinas enfiadas na alcofa de vodka, mastigando o feno azedo do limão.” (in Os Cus de Judas/A. Lobo Antunes)

Quadro de Malangatana Valente“Eu sou carvão!/E tu arrancas-me brutalmente do chão E fazes-me tua mina/Patrão!//Eu sou carvão!/E tu acendes-me, patrão/Para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não/Patrão!//Eu sou carvão!/E tenho que arder, sim/E queimar tudo com a força da minha combustão.//Eu sou carvão! Tenho que arder na exploração/ Arder até às cinzas da maldição/ Arder vivo como alcatrão, meu Irmão/ Até não ser mais tua mina/Patrão//Eu sou carvão!/Tenho que arder/E queimar tudo com o fogo da minha combustão./sim!/ Eu serei o teu carvão/ Patrão!” (José Craveirinha)

E de novo, o embondeiro, onde defronte funcionava um posto de socorros. “Nesta altura deixara de estar colocado numa Companhia e passara a deslocar-me a várias, entre as quais aquela a que pertenci no início.” conta este médico. “Fazia parte da “psico”, sempre que chegava, se o régulo viesse à consulta, atendê-lo em primeiro lugar. Era um velho muito velho de carapinha toda branca. O intérprete, que apenas arranhava umas palavras de português, traduziu-me: “dotô, seu régulo está a dizer que não aguenta fazer máquina (copular)… Era uma situação melindrosa. O régulo tinha várias mulheres e os soldados andavam a invadir-lhe a coutada.”

“O capitão receava represálias. Lembrei-me dos tratamentos pavlovianos aos bêbados no Banco: injecções de Vitamina C, para se recordarem quanto aquilo doía, se bebessem… Foi o Furriel que lhe deu a injecção (o régulo apenas enrugou a testa). Dias depois parti para regressar passado um mês. De novo o Régulo (e eu que já me esquecera do episódio), desta vez, recusou o intérprete e com um sorriso disse-me: “embôlo já cresce, mas não cospe nada!”. A acção afrodisíaca da Vitamina C!”

“… Mas põe nas mãos de África o pão que te sobeja/e da fome de Moçambique dar-te-ei os restos da tua gula e verás como também te enche o nada que te restituo dos meus banquetes de sobras.//Que para mim/todo o pão que me dás é tudo /o que tu rejeitas, Europa!” (José Craveirinha)

A Operação Nó Górdio, ao contrário do que K escreveu mesmo em 1998, foi um fracasso. Quando os portugueses chegavam às “bases”, depois de enormes sacrifícios, elas estavam desertas; as unidades militares criadas junto ao Rovuma no âmbito da Operação Fronteira de modo a evitar a passagem de guerrilheiros vindos da Tanzânia foi outro fiasco, e viriam a ser em pouco tempo um pesadelo para as colunas de reabastecimento. E, entretanto, os guerrilheiros tinham avançado para Tete e antes de 25/4/74 iniciaram acções na região de Manica. Aí, os brancos aperceberam-se de que a guerra não era uma coisa longínqua que os militares não ganhavam porque queriam era “encher-se”, como alguns insinuavam… Na Beira há uma manifestação, a messe de oficiais é apedrejada. Costa Gomes (Chefe do Estado-Maior General) acode para serenar os ânimos. Mas pouco havia a fazer…

A guerra não é uma luta de cavalheiros, ainda mais de guerrilha, quando, de um lado se fazem emboscadas e põem minas que esfacelam as pernas ou matam; e do outro, p.ex. se recolhem informações por meio de torturas bárbaras, como foi feito habitualmente pela PIDE/DGS. Será sempre difícil impedir excessos, mortes injustificadas. Mas, neste caso falamos de massacres. Em 1973, um jornal inglês (Times) fez a denúncia pormenorizada de um massacre ocorrido em Tete, segundo o qual teriam sido mortas 400 pessoas, incluindo mulheres e crianças. Outros massacres semelhantes teriam acontecido em Mocumbura, também em Tete e em Inhaminga. Como se imagina estes factos tiveram grande repercussão internacional. Portugal perdia a face.

A impossibilidade de mobilizar mais soldados na Metrópole e a crescente exigência de mais efectivos, levou a uma africanização da Guerra. Em Abril de 1974, mais de metade dos soldados eram negros. Jorge Jardim na Beira comandava uma força que dispunha de bastante autonomia em relação ao exército português, até com um Serviço de Informações próprio. Dele se esperava , a iniciativa de uma declaração unilateral de independência. Nos tumultos de Lourenço Marques, já no período de transição, a sua implicação foi suspeitada, mas nunca confirmada.

Quando se deu a independência, a Frelimo instaurou um regime de partido único. Os dissidentes e adversários políticos foram neutralizados. Como resposta, surgiu a Renamo que reuniu os descontentes do regime, inicialmente apoiada pelo Governo da África do Sul e da Rodésia, de Ian Smith. A sua implantação no centro de Moçambique era grande e iniciou-se a Guerra Civil, que só viria a terminar com o Acordo de Roma celebrado em 1998, pelo qual se estabeleceu um regime pluripartidário e foi extinta a “República Popular”

Escultura maconde– “É o fatídico mês de Março, estou/no piso superior a contemplar o vazio. /Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon/e olha-me, obliquamente, nos olhos: Não voltas mais? Digo-lhe só que não.//Não voltarei, mas ficarei sempre,/algures em pequenos sinais ilegíveis,/a salvo de todas as futurologias indiscretas,/ preservado apenas na exclusividade da memória/ privada. Não quero lembrar-me de nada,//só me importa esquecer e esquecer/o impossível d esquecer. Nunca/se esquece, tudo se lembra ocultamente./ Desmantela-se a estátua do Almirante, /peça a peça, o quilómetro cem durando//orgulhoso no cimo da palmeira esquiva./Desmembrado, o Almirante dorme no museu,/o sono do bronze na morte obscura das estátuas/ inúteis. Desmantelado, eu sobrevirei/ apenas no precário registo das palavras. “(Rui Knopfli)

Edifício em Ribaué (distrito de Moçambique), antes da Guerra Civil. Talvez ainda não existisse quando Neutel de Abreu daqui partiu e submeteu os régulos de Malema e Mutuáli. A ele se ficou a dever a abertura de picadas e postes telegráficos. Participou ainda em combates na I Guerra Mundial contra os macondes.

Ruinas de Ribaue, depois da Guerra Civil

Nova Viseu foi sede de um quartel do Exército português. No início de 1972 a picada estava pejada de minas e só se organizava uma coluna, para reabastecer um destacamento que protegia uma ponte. Até algum tempo atrás sofrera flagelações dos guerrilheiros. A lixeira encontrava-se dentro do arame farpado. Um dos passatempos era contar o número de moscas que caíam na sopa. O capitão morrera em combate. O quartel era constituído por uma série de barracas feitas de troncos de árvores cobertas por lata. O calor era insuportável. A única zona cuidada era a “messe” dos graduados, que se vê na foto.

Do regime colonial passara-se para uma ditadura comunista. À polícia política (SNASP), foram atribuídos numerosos crimes, desde prisões arbitrárias, torturas até à execução sumária de antigos dissidentes ou adversários políticos. Os métodos da PIDE/DGS tinham sucessores, em nome da “Justiça Popular”. Criaram-se Centros de Reeducação para onde foram deslocados os presos políticos mais importantes, os quais depois “misteriosamente” desapareceram. Uria Simango, Joana Simeão, Lázaro Cavandame foram alguns deles. No Niassa, o centro de fama mais tenebrosa foi M’telala, que era a antiga Nova Viseu…

O que leva os ex-combatentes, cerca de 40 anos depois, a reunirem-se periodicamente? O que faz multiplicar pela Net os pedidos de informações sobre o paradeiro de antigos camaradas? O tempo passou, cada um deles seguiu o seu percurso, mas houve um período das suas vidas que estará sempre presente, às vezes de uma forma patológica. Chama-se stress pós-traumático. De qualquer modo, será um modo de exorcizar os fantasmas, mais ou menos dolorosos, porque passaram.

Desde a partida na Rocha de Conde de Óbidos, oficiada pela Polícia Militar e pelas Senhoras do Movimento Nacional Feminino, que a repetição retirara a pompa (não a circunstancia). Para muitos ficaram laços vitalícios. Às vezes para se identificarem pelo telefone, não se tratam pelos nomes. “Daqui fala…o cripto”! “Ou…o cozinheiro!” Claro que houve gente que se portou bem e outra mal. De tudo a memória se encarrega. Passou por Nampula um Major do Estado-Maior que se emboscava para interceptar os militares para ver se estavam bem uniformizados! E de mais alguns oficiais superiores incapazes, que o Gen. Spínola sacudira da Guiné e que apareceram em Moçambique, como se lá fosse a cloaca do Império! (A estes os operacionais grunhiam: vai pró mato malandro!) . K garantira no início do seu comando que ia ganhar a guerra em 4 meses. Viu-se. E, no entanto ainda hoje se lê, escrito por responsáveis militares da época, que em Moçambique a guerra estava ganha ou controlada! Cegueira, estupidez ou pura desonestidade? Ou tudo isto?

E o que leva ex-militares a visitarem os locais, onde iam contando os dias para regressar, riscando-os meticulosamente no calendário? O que sentirão ao ver as ruínas dos Cus de Judas por onde passaram tantos momentos amargos? Como no Vietnam, como os sobreviventes do desembarque na Normandia…

Ao verem as novas gerações de negros, presente e futuro do país, que pensarão das suas vidas? Para que serviu o seu sofrimento? Quando partiram de Lisboa, a grande maioria não tinha qualquer formação política, outros acharam que seria o preço para viver no seu país.

À boa maneira estalinista, foram sujeitos a trabalhos humilhantes de capinar compulsivamente o mato, brancos que ficaram e que acharam que aquela também era a sua terra. Outros tornaram-se comissários políticos do partido, para cair nas boas graças. Era o mito da criação de um “Homem Novo”. Em 1974, mais de metade dos efectivos da tropa colonial eram negros. Muitos deles não se deveriam rever na Frelimo.

É conhecida a tragédia do Zimbawbé, onde apesar de ter sido reconhecido temporariamente o direito a um número determinado de brancos no Parlamento, depois seguiu-se a escalada de perseguição e o êxodo dos europeus, deixando o país numa das maiores misérias de África. E, no entanto, o sr. Mugabe era o líder que parecia representar a vontade da maioria negra e tinha a simpatia de quem tinha uma visão progressista de África.

Para que serviu o seu sofrimento? E, apesar dos excessos e massacres em vários locais, a Tropa foi um elemento moderador, que obrigou as autoridades civis (Chefes de Posto, Administradores) a cumprirem as medidas de justiça social, que tão tardiamente foram promulgadas. Valeu a pena? É uma dúvida para a qual provavelmente nunca obterão resposta. Mas, não deixarão de desejar que aqueles, que agora encontraram, possam ter uma vida melhor. Assim, os políticos tenham estatura para a promover. África precisa.

monumento

Consultados: História de Moçambique de Henry Pellissier (Vol I e II), Le naufrage des caravelles de Henry Pellissier, Portugal Século XX 1910-1920 do Círculo de Leitores, A Guerra de África do Círculo de Leitores, O Escravismo Colonial em Moçambique de José Capela, Moçambique 1489-1975 de Alexandre A. Ferreira, Série da RTP sobre a Guerra Colonial de Joaquim Furtado, Donas, Senhores e Escravos de José Capela

Os autores agradecem a colaboração do ex-Furriel Miliciano Joaquim Carvalho

Veja os vídeos:

Toxicodependência: uma vida em farrapos

Não me considero qualificado para dissertar sobre toxicodependência. O depoimento recolhido é, apenas, uma reprodução de memória, onde se alteraram os elementos identificativos.

Uma das causas que os psicoterapeutas apontam para o jovem se iniciar no consumo de drogas psicotrópicas tem a ver com a falta de afectos, de referências, de sentido de responsabilidade e da inversão do papel pais/filho. O jovem procurará incessantemente parceiros onde a relação humana não esteja presente o que lhe dá a ilusão de independência e poder. É manipulador, amoral, egocêntrico. Mas, faltando-lhe uma ligação afectiva sustentada, um vínculo sólido, mesmo que tivesse deixado de consumir, retoma a droga, que lhe traz euforia e a ilusão de felicidade. Os afectos, sempre os afectos. E, é por isso, que abordamos este tema.

E, na toxicodependência a família desempenha um papel-chave. Já não falo das famílias disfuncionais (violência doméstica, ambiente degradado, alcoolismo, etc.), mas daquelas aparentemente normais, embora descurando o essencial – a atenção ao adolescente, o carinho sem contrapartidas, a criação de regras e responsabilidade, a preocupação pelo próprio comportamento,. Mesmo presentes, os pais são demasiadas vezes ausentes. Não se podem substituir afectos por jogos de computador ou consolas, etc. Às famílias dos toxicodependentes passam muitas vezes despercebidos os primeiros consumos e, quando dão por isso, é tarde (passaram anos, por vezes) e recusam-se a aceitar a sua própria responsabilidade. Raramente são as “más companhias”, ou a má índole do jovem, as razões do desastre.

A crise económica, com a degradação da qualidade de vida que acarreta, agravou o problema. A Escola é o local onde se supõe que se educam os jovens, mas é uma ideia errada: a educação é tarefa dos pais.

Sou muito descrente da eficácia de quaisquer políticas sobre a toxicodependência. Daí que também entenda o desânimo dos governos e não concorde com a generalização da ideia de hipocrisia. O que leva um jovem a iniciar-se nas drogas duras? Qual o seu perfil psicológico, quais as omissões familiares? Mas, não conhecia ele o percurso dos viciados? O início do consumo poderá resultar de uma imprevidência, uma simples “experiência”, durante a adolescência ou na transição da infância para a adolescência. Mas a dependência e, logo a compulsão pelo consumo da droga, é uma doença,

Apoio, todo o apoio, a quem queira libertar-se (por meio de intervenções integradas medicamentosas e psicoterapêuticas). Mesmo sem haver muitas soluções, tem de se investir, insistir, prosseguir. Com os meios disponíveis, há que alargar a rede de Instituições governamentais e privadas de Solidariedade Social, capazes, de forma séria, minorar as consequências devastadoras da toxicodependência,

O texto e as imagens que o ilustram são arrasadores. Romy não chegou a escrever qualquer livro, mas concretizou um sonho: teve uma filha. Que não pôde desfrutar porque morreu, tempo depois. De overdose. Que descanse em paz.

FM

 

O apartamento era pequeno. Havia um aquário que separava o quarto da sala única. Numa das paredes um placard com fotografias de Romy, algumas tiradas em ambientes exóticos, com diferentes pessoas. “Aqui foi na Tailândia com este meu amigo. Andámos juntos e hoje somos amigos. Este, já morreu. Quando a tirou já estava muito mal. Esta, é a minha mãe, este o meu irmão. Este, é outro amigo meu, vivemos juntos 6 anos, estivemos para casar.” O aquário é iluminado e os peixes parecem deformados por um jogo de espelhos. Ondulam junto às paredes, parece terem fome. Dois deles com olhos saídos evocam uma exoftalmia. Uma pequena estante com livros com predomínio de filosofia oriental.

“Vivi no Casal (ventoso), havia casas sórdidas onde, no meio da merda e da urina, se preparava o chuto e curtíamos a ganza. Mas eu preferia injectar-me sozinha, ali perto, nas portas das casas de Campo de Ourique ou no vão da escada.”

“Hoje tenho o corpo todo cheio de cicatrizes. Mãos, braços, pernas. Às vezes parecia que já não tinha sítio! Quando se vêm os agarrados apoiados a um pau para andarem, como se fosse uma bengala, é porque têm infecções nas pernas causadas pelas agulhas.”

“Alguns dos sem-abrigo foram escorraçados de casa pelas famílias que já não podiam mais. Chantagens afectivas, roubos, todo o tipo de de misérias. Às vezes são enviados para centros de recuperação no estrangeiro, para quebrar os circuitos de amizades. Mas os resultados são maus. Se o agarrado não quiser mesmo sair da sua dependência, não há recuperação possível. Se as pessoas continuarem a dar dinheiro (a moedinha para arrumar o carro, p. ex.), vão gastá-lo numa dose, logo que o dinheiro baste. A ajuda é dar-lhes de comer ou vestir, não é dinheiro.”

“Aquilo que eu vi e porque passei, está sempre na minha cabeça. Os meus pais estão separados há muito. O meu irmão é só filho da minha mãe. O meu pai vive em S. Paulo, onde é Director-Geral de uma multinacional. O primeiro charro foi na Escola, onde estava como interna. Andei num bom colégio. Falo inglês e alemão correntemente. O meu padrasto, um dia ao ver-me em fase de privação e sem dinheiro, abusou de mim e eu condescendi, como passei a deixar, sempre que precisava de papel. Ao meu pai, se lhe telefono, tenho uma secretária que diz se ele está ou não, julgo que para filtrar a chamada. Quando eu andei pelo Casal fez saber que não me conhecia. Mesmo agora, que estou limpa, não me dá qualquer ajuda.”

“Se fui presa? Sim, uma vez. Às vezes fazíamos pequenos roubos – carteiras, esticão. Assaltos, foram alguns em casas desabitadas. Uma vez fomos caçados, ainda fugimos, mas a polícia agarrou-nos. Mas, foi só uma noite passada no Governo Civil. “

“Ao meu namorado que, ao princípio não era consumidor, algumas vezes ajudei a comprar droga. “

“Um dia tive uma overdose. Via uma luz ao fundo, eu a afastar-me, a procurar uma mão para me agarrar. Achei que ia morrer e nunca desejei tanto viver. Queria viver! Quando soube que era seropositiva, ao princípio fiquei incrédula, mas, claro, era verdade. Achei que tinha de mudar a minha vida. A sida para mim não é o problema principal, mas sim a dependência das drogas.”

“O que eu não percebo é porque não se perseguem os alcoólicos, que são também adictos como nós, e se importunam as pessoas se forem apanhadas a fumar um charro. Até o Clinton confessou que tinha experimentado quando era novo…E o tabaco, não é também uma dependência?! Mas é uma fonte de receita para os Impostos. E se liberalizarem as drogas leves, os traficantes deixam de ter lucro, não é?!”

“E quem são os grandes traficantes, não os que consomem, mas os que estão por detrás dos dealers, dos correios, etc? Os carteis, as máfias. Sei que é um problema também político, como sei que por cada carregamento apanhado há várias vezes outros que entram no circuito. Como há países onde os camponeses ganham mais se plantarem canabis que outras colheitas. Que há governos e países que vivem do tráfico. E a corrupção nas Polícias?! É só no estrangeiro?”

“E fazem alguma ideia de quanta gente importante, em todos os tipos de actividade, snifa cola? E o crack que é mais barato e tem uma acção mais rápida? E de tantas outras pastilhas excitantes, que se conseguem nas farmácias? E do ecstasy?”

“Todos os filhos da mãe, que não perceberam que estava doente, que era dependente de drogas, que faria tudo para as conseguir, a todos esses eu não vou poupar. Quero escrever um livro a denunciar a hipocrisia, a dizer tudo o que sei, desde os políticos que se servem da nossa desgraça para se promoverem, à caridadezinha para aliviar a consciência.”

“Abusaram de mim, quando me prostituí na Artilharia Um. Paravam os carros, eu metia a cabeça. Combinávamos, era mesmo no carro ou íamos para uma pensão, sacava o dinheiro e ia ao Casal comprar “produto”.

“Alguns eram gordos, cheiravam a suor e queriam sexo anal, que eu lhes batesse, ou coisas asim.”

“Uma vez aproveitei um descuido e mesmo no carro enquanto me dobrava sobre a braguilha do cliente, descobri com uma das mãos um maço de dinheiro que sorrateiramente introduzi na mala. Logo que pude, escapuli-me a correr.”

“Sempre preferi andar na rua a ir para os bares. Aí tem de se falar: nas tangas, por vezes diz-se a verdade, que importa se o cliente percebe ou não, às vezes nem nós sabemos o que é verdadeiro, do que é máscara! Mas falar é tornar as coisas mais claras, é recordar-nos ainda de um resto da pessoa que nós fomos ou que ainda somos. E isso dói. Na rua, ou se consegue sacar o dinheiro sem mais, ou na pior vai-se para uma pensão ou é mesmo ali no carro, sem grandes conversas.”

“Fugi de chulos e de outras putas.”

“Na prostituição é cada um por si. Desconfia-se de toda a gente. E a única coisa que eu precisava era de dinheiro. Estava agarrada, nada mais interessava. Não há amigos, há outros agarrados e os dealers que vendem para poder consumir. As ressacas são horríveis. É preciso mais uma dose e arranjar dinheiro para ela.”

“Pensei muitas vezes quando estava com um “cliente”: vingo-me de ti, do teu corpo, entrego-me com raiva, não sei quem és, um gajo qualquer que se calhar tem mulher e filhos. Metes uma puta no carro e vais para uma pensão manhosa. Mas não sabes, nem te interessa que sinto asco por ti, que me vendo porque preciso da dose. Despacha-te! “Como te chamas, afinal?”, quando tudo acabou. Está tudo dito, não é?!”

“Aprendi todas as tangas, sacar o dinheiro a quem o tivesse. Às vezes com a cumplicidade do motorista de táxi, metíamos o papalvo no táxi e logo que eu tivesse o dinheiro, arranjava um estratagema que o fizesse saír do carro e logo que ele estivesse fora, arrancávamos.”

“Fiz o meu curso de terapeuta, achava que precisava de ajudar os outros. Com os outros adictos conseguia criar grande empatia, em alguns casos falámo-nos incessantemente, quando recaíam e muitas vezes recaíam e me batiam à porta, procurava ajudá-los, mostrar-lhes que o chuto lhes fazia diminuir a auto-estima, que cada vez que recaíssem se iriam sentir pior por não terem sido capazes de se aguentar.”

“Quantas vezes recaí? Algumas, durante a desintoxicação, já lá vão sete anos. É por isso que somos um bocado fundamentalistas. Temos de estar atentos: a adicção leva-nos a substituir esta droga por qualquer outra dependência. E temos de perceber os sinais, desmontá-los, reagir a eles, discutir em grupo, em comunidade não como um exorcismo, mas para compararmos as experiências e nos tornarmos mais atentos. Hoje, sinto que preciso de desenvolver esta tarefa. É o objectivo da minha vida.”

“Hoje vivo cada dia, não posso perder tempo. Tentei trabalhar mas não consigo. Fazer o mesmo todos os dias, não me apetece. Tenho de espremer cada dia, sei que eles estão contados. Procuro aquilo que má prazer. Dizem que guio depressa, é verdade que gosto de assapar, é um gozo. Já perdi o conto das multas que me passaram! Não bebo mas fumo”. Como para corroborar, puxa um cigarro. Acende uns atrás de outros.”

“Não me vejo a fazer trabalhos da treta. Arranjar dinheiro, tenho-o conseguido. Tem havido pessoas que me têm ajudado, mas prefiro não falar disso.” Percebo que é um assunto melindroso e não insisto.

“Gostava de ter um filho, hei-de tê-lo. Já há maneiras de fazer com que não seja sero-positivo. Quando vejo uma overdose e prenderem os pequenos traficantes, que o fazem porque consomem e sei que os grandes narcotraficantes passam incólumes…Eles não traficam, fazem “lavagens de dinheiro”, ganho à custa da nossa doença, do nosso risco, da nossa vida. Às vezes aparecem nas revistas apontados como pessoas de sucesso, beneméritos, merdas dessas…Sinto uma raiva enorme. É uma hipocrisia total!”

Aquilo que mais impressiona é o total desencanto, a secura. Alguém que desceu ao Inferno e voltou. Não mostra qualquer complacência. É um desprezo frio por tudo e todos que estejam fora do seu mundo armado por droga, dependência, abusos, horrores (Apocalypse now?) . Arrebatada, calculista. Chegar ao fim da linha e olhar para trás. Abre uma caixa: uma foto dela com tranças, no Liceu Maria Amália. Tem prazer em desafiar o que quer que seja, arremete como um Miura. Não sabe, porventura, qual o seu caminho. Mas sabe que não vai por aí (como dizia o Régio). Conservará ainda algum resto de sensibilidade por detrás desta fachada? “Queres ver uns poemas meus?”

Veja os vídeos:

 

 

Coisas da vida

São factos vulgares, mas que nos tocam. A memória é um arquivo vivo de episódios e emoções, em que os mais banais não são por isso menos importantes. Um dos meus filhos um dia destes despertou-me, chamando “Pai!”, e como isso ecoou na minha cabeça e me encheu de orgulho!

Às histórias que lhes contei para adormecerem, ia sempre acrescentando personagens inverosímeis, em situações burlescas que eram caricaturas rascas do suburbano lisboeta. O Lucas Serapião, a Sara, o Quinhones e o Quincas Berro-de-Água (roubado ao Jorge Amado) e tantos outros “heróis” de que já não me lembro. Terei estimulado o imaginário de cada um? Pelo menos, demarquei uma fronteira do ridículo e mau gosto.

Como me recordo, uma vez com o outro filho, depois de eu ter passado uma noite sem dormir, irmos ao velho cinema Alvalade, às 18,30h ver os “101 Dálmatas” e quando a luz se apagou, quase em simultâneo receber uma cotovelada e um aviso: “Estás a ressonar!”

Mas há também acontecimentos inesperados que originam alterações da rotina, muitas vezes dolorosos. E, no entanto, talvez subjacente exista uma atitude resignada perante aquilo que se acha não ter remédio. São as “coisas da vida”, e, segundo um provérbio chinês, há três que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida.

Aquilo que apresento são ficções, mas podiam ser realidade.

FM

 

 

E às vezes tudo fica suspenso. Uma formiga caminha nas ervas próximas dos meus olhos. Começo a lembrar-me do que aconteceu. Ouço vozes em fundo comentando o acidente. Tudo tão inesperado e, de repente, apercebo-me do fim. Talvez, não. Sinto calor, mas choveu toda a noite… Estou caído de bruços. A vida recente passa em retrospectiva. A sirene duma ambulância.?

Os rostos dos curiosos. Ah não consigo mexer as pernas! O carro está a arder, fui cuspido no acidente. Faz umas grandes labaredas. Sinto-me desfalecer. Passa-me como num écran o rosto de Helène e Catherine. A viagem projectada à Tunísia para recomeçar uma nova vida com Helène. As dificuldades dela para encarar a minha pouca disponibilidade.

Como tudo isto é estranho. Apetece-me um cigarro. Lembro-me do rosto do meu filho, do meu pai que me procura para o ajudar nos apertos financeiros. A vista desfoca-se, sinto-me esvair. É curioso tudo parece por vezes branco, a memória atraiçoa-me, depois recupero. Estarei a morrer?

A Tunísia, será aí que a minha vida recomeçará. Consigo abrir as pálpebras! Como tudo pode, de repente, modificar-se. Vinha a guiar depressa, é verdade, mas para evitar um acidente com aquelas furgonetas atravessadas na estrada, despistei-me. Mas não tive culpa. Amo Helène, a Catherine é compreensiva, mas a relação esgotou-se. Tudo fica cada vez mais tempo branco. Estou já no Hospital, isto é o bloco operatório. Vejo as coisas, o meu barco, eu a beijar Helène, a tomar banho, mas a afundar-me, perco o pé…mas não as percebo, os sons tornam-se mais longínquos. A Tunísia, sim, mas o que é? A Helène parece-se com a Catherine. Vão-se afastando, mas são uma só. Uma parte de mim. Branco, tudo branco.

Os acidentes que interrompem brutalmente a vida, fazem parte dos acasos, dos imprevistos. Sorte ou azar. Mas há outras histórias que envolvem cobardias, remorsos, equívocos. São também coisas da vida. Temos de desconfiar de tudo e todos? Perceber se um sorriso traz qualquer premeditação malévola? Resignarmo-nos a deixar de valer pelo que somos, mas por aquilo que temos? Não.

A fidelilidade (I) in Não te deixarei morrer, David Crockett. Miguel Sousa Tavares. 1ª edição em 2001

Não me sinto culpada, embora os teus olhos fossem acusadores. Não me apetecia fazer amor. Ao princípio condescendia, mas, depois, quando te sentia a chegar ao fim, semi-abria os olhos e olhava para o tecto. Porque serão as coisas assim? Não me excitavas, não tinha desejo. Tu sentias-te vexado e às vezes colérico, sobretudo quando eu passei a dizer que não queria. A rotina dum casal vai desgastando o entusiasmo. Tu não percebes isto, no teu egoísmo de viver para a profissão. Acho que não percebes nada do que se passa na cabeça de uma mulher.

Quiseste fazer-me sentir responsável pela nossa frieza. Não sei se me detestava mais a mim se a ti. A velha cumplicidade desapareceu qundo te começaste a afastar para falar ao telemóvel ou saíres para “dar uma volta”. Aí suspeitei que houvesse outra mulher. Mas sabes, não me importei, assim não me procuravas. Vazio, era isso. Um enorme vazio que eu sentia. Procurei refúgio nos meus amigos, no trabalho. Mas sentia-me afundar.

O Joaquim apareceu como uma bóia de salvação. Eu que detestava o meu corpo, reaprendi a gostar dele: melhorei a minha auto-estima. E tu, tão distante, nada deste por isso. Suspeito que era isso mesmo que pretendias. Deixar-me tomar a iniciativa da ruptura. Foste ou eras um bocado sabujo. Hoje, já nada disso tem importância.

Quando te levaram para o Hospital senti um misto de aflição e alívio. Apesar de tudo, talvez o hábito de me preocupar contigo, com a tua segurança e a tua saúde, me inquietassem; mas, a perspectiva de uma vez por todas acabarmos com aquele equívoco mastigado, fosse uma libertação..Era um aneurisma cerebral, não resististe. Serei um traste assim tão grande?! As coisas da vida!

A fidelidade (II)

Tu não sabes quanto te achava linda! Era um fascínio, um frémito que me percorria o corpo e me fazia crescer o desejo. Olhava-te daquele modo em que tudo à volta desaparece. E julgava que o mesmo se passava contigo. Quando me falaste da Carla, tua companheira e colega do Jornal, senti-me lisonjeado: ser capaz de te desencadear um orgasmo, tu que dizias nunca o ter conseguido com um homem.

Planeámos as férias…Depois aquelas tardes loucas, onde a refeição parca antecipava o gozo de fazermos amor tão avidamente que eu não deixava de me surpreender. Admirável, ver-te montada em mim, olhos semicerrados, como se procurasses sozinha, não tanto o teu prazer como o meu.

Mas, porquê as pequenas mentiras, as omissões? Quando te perguntava se se passava alguma coisa, negavas e dizias para eu ter confiança em ti. O que seria tão importante que te fazia saíres de madrugada, depois de quase 2 noites sem dormir? As incompreensíveis mudanças de humor…

Mas, claro que se passava, era a tua namorada, hesitavas… Acabou, ali. Hoje, se passo nos locais por onde andámos, vejo-os como lugares sem alma. O pequeno restaurante onde saia de manhã para comprar o pequeno-almoço com que te despertava, a Agência para marcar as passagens para Madrid, a farmácia, o quiosque do jornal, esse Agosto quente quando tudo parecia possível. Virado para ti enquanto almoçávamos, suspendia-me nos teus olhos, pretensão de te agarrar, âncora para eternizar aqueles momentos que o vinho adoçava. Esse encantamento insensato de acreditar que tínhamos futuro!

O meu amor-próprio de macho ficou duplamente ferido. Há momentos exaltantes de felicidade, que habitualmente se pagam com juros de sofrimento. A tua passagem pela minha vida foi um toque de magia; de repente os dias iluminaram-se, tudo voltou a ter sentido. Mas olho para este entardecer, e se sinto o crepúsculo e a enorme tristeza de te não ter, dou-me conta que não eras quem eu imaginei que fosses e percebo dolorosamente que o teu destino não passava por mim.

São coisas da vida!

É uma história de amor, simples e apaixonada. Alain Josseret, etnólogo francês, tem um mês para estar em Paris antes de se juntar a um grupo de exploradores na América do Sul. Conhece Anna, jornalista, numa viagem de comboio e acabam por se apaixonar. A sua relação é ardente mas não conseguem ignorar a separação próxima. Têm de tirar partido de todos os momentos de felicidade, sabendo que quanto maior for o seu envolvimento, mais sofrerão quando se separarem. Aqui fica o episódio do jogo de sedução e conquista.

…”Anna tem uma marca de vacina no seu ombro…como ela dormia tão profundamente. Que situação embaraçosa!”…

Je t’ai cherchée au bout des chambres/Où la lampe était allumée/Nos pas n’y sonnaient pas ensemble/Ni nos bras sur nous refermés//Que sais-tu du malheur d’aimer/Je t’ai cherchée à la fenêtre/Les parcs en vain sont parfumés/Où peux-tu où peux-tu bien être A quoi bon vivre au mois de mai/Que sais-tu du malheur d’aimer//Que sais-tu de la longue attente/Et ne vivre qu’à te nommer/Dieu toujours même et différente/Et de toi moi seul à blâmer/Que sais-tu du malheur d’aimer//Que je m’oublie et je demeure/Comme le rameur sans ramer/Sais-tu ce qu’il est long qu’on meure/A s’écouter se consumer/Connais-tu le malheur d’aimer (Louis Aragon)

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

 

      Fidelidade I de Miguel Sousa Tavares

 

      Fidelidade II de Miguel Sousa Tavares

Excerto de “Infortúnio de amar” de Claude Roy:

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Veja os vídeos:

 

México: As Pedras e o Homem (roteiro de viagem)

Com o dedo retiro o sal do bordo da taça e levo-a à boca. Gosto de Margueritas, mas dispenso o sal. A dose de Tequila lentamente vai-me impregnando e cria uma sensação de abandono, bem-estar. Na ementa, hesito: nachos com guacamole, burritos, enchiladas…

Penso como os maias tinham calculado a duração do ano solar em 433 A.C. com a mesma exactidão do calendário gregoriano, só que este, foi estabelecido dois mil anos depois! Como eles concebiam o tempo, como algo sem princípio nem fim, o que tornava possível projectar cálculos sobre momentos separados no passado sem alcançar nunca o ponto de partida…Como este conceito de intemporalidade nos leva a admitir não haver início nem fim no Universo (o Infinito em ambos os sentidos), a sua dimensão impossível de calcular (o Absoluto). Perturbador.

O Homem é uma experiência única, finita. Nascemos e morremos. Vivemos entre parêntesis; o que aprendemos, porém, é uma migalha; consciência, temos daquilo que experimentámos. Da amiba ao ser humano, uma evolução adaptada ao ambiente; um elemento fundamental – o carbono, depois um cromossoma, um código genético. Decifrámo-lo, mas não, o mistério da Vida.

Também as civilizações maias tiveram os seus códigos. Os livros, cujo papel era mais durável do que os papiros romanos escritos na mesma época, foram destruídos; poucos resistiram. O nosso conhecimento dos maias é escasso. Ficaram, sobretudo, pedras, cerâmica. E hieróglifos, para os “Champollions” dedicados às culturas ameríndias.

A segunda Marguerita recorda-me a destilaria que visitei em Guadalajara. E dos “shots”, a que me recusei. Parece que a tradição se ficou a dever a uma epidemia de gripe e de como eles eram receitados como tratamento…Do abandono à levitação.

Descoberta ou achamento é uma polémica tola. Descobre-se o que se vai à procura de encontrar; acha-se por acaso. Quantos povos índios existiam na época de Colombo? Muitos. Admitem-se a hoje as suas origens e percursos. Até os vikings tinham ido à América. Mas, perante o extraordinário nível científico e cultural de alguns povos índios, não podemos deixar de perder a arrogância que a civilização judaico-cristã nos incutiu. E de entender quanto qualquer forma de intolerância religiosa ou outra – como aconteceu, na época, com a Inquisição, pode travar o Conhecimento. Mas, sobretudo, a humildade de reconhecer a nossa ignorância.

A terceira Marguerita é o ponto final: que viva México!

FM

 

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Catedral da Cidade do México. Visitamos o México e apercebermo-nos da grandiosidade das civizações pré-colombianas, como depois dos sinais do período colonial, da independência, da ditadura de Porfírio Diaz e da Revolução de 1910. Brancos, índios, crioulos, mestiços – todos eles constituem o povo mexicano. Mas haverá uma identidade no Homem mexicano? Viajar, não é perder países, como dizia Pessoa. Pode ser um estímulo para a descoberta de mundos fascinantes. A comprovação de como, afinal, os europeus – neste caso os castelhanos, não tinham um nível superior de cultura em relação àqueles “bárbaros” da América. Os conquistadores, eles próprios, se maravilharam com o desenvolvimento arquitectónico e científico, a organização política, a agricultura, etc.

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Riviera maia no Yucatán: as histórias que, praias como esta, podem evocar!

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Não é muito relevante saber a verdadeira nacionalidade de Cristóvão Colombo que, em 1492, às ordens de Dona Isabel, rainha de Castela, aportou a uma terra que julgava ser a Índia, mas que se tratava das Antilhas. Talvez genovês, talvez catalão, talvez grego, talvez português da vila de Cuba que, a soldo de D. João II, procurasse convencer os Reis Católicos a atingir a Índia por ocidente. O objectivo seria assegurar para Portugal a posse de todo o Brasil (que já seria conhecido, antes da viagem de Cabral), para depois da assinatura do tratado de Tordesilhas (1494).

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Estátua da Rainha Isabel I, em Madrid

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De qualquer modo, agente secreto de D. João II, como assegura Mascarenhas Barreto, ou não, comandando três naves pequenas (Santa Maria, Pinta e Niña), a 12 de Outubro descobre o continente que virá a ser chamado América. Explora as ilhas que são hoje as Bahamas, Haiti e Cuba. Regressa a Castela em 1493 e volta à América mais três vezes. Em 1506 morre em Valhodolid, esquecido e abandonado.

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Hernán Cortés era um fidalgo, bacharel em direito, conhecedor de latim, insinuante, mulherengo, com dom de palavra, que acompanhou o governador Diogo Velasquez na conquista de Cuba, em 1511. Aqui estabelecido, fez fortuna e ele mesmo custeou parte da armada que haveria de partir para o México. A 10 de Fevereiro de 1519, largou de Cuba. Já anteriormente, Hernandez de Córdova e Juan de Grijalva tinham comandado expedições, que fizeram parte do reconhecimento da costa do Yucatán e trazido notícias da rica cultura dos maias e do império asteca.

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As populações maias de várias tribos mostraram-se entre receosas e hostis. A todas, os castelhanos pediam ouro e ofereciam roupas, espelhos, pentes, objectos metálicos – agulhas, tesouras (que faziam grande sucesso, pois desconheciam o ferro). Procuravam também abastecer-se de água potável e alimentos. Nos combates que travaram, ao princípio era a artilharia o que mais intimidava os índios, mas a grande surpresa foi a utilização de cavalos, animais até aí desconhecidos, e que consideravam como “monstros de quatro patas”. Outro pormenor a favor dos castelhanos era o objectivo dos indios ser ferir e capturar os inimigos (para depois os sacrificarem aos deuses), não matá-los, o que os fazia desperdiçarem a sua superioridade numérica.

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A arquitectura, tanto do povo maia como asteca, estava muito desenvolvida. Na sua viagem para sul, Cortés, como todos os navegadores que o antecederam, viram enormes pirâmides que eram utilizadas para o culto e sacrifícios humanos. Estes, eram realizados em datas específicas em homenagem aos deuses. O culto ex?g?a que as divindades fossem al?mentadas com sangue humano, para assegurar a marcha do Un?verso. Eram sobretudo os prisioneiros, os sacrificados. Hav?a 18 mane?ras de morrer: por flechada, por ?mersão na água, por degola, por esfolamento…

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O Imperador Carlos V, num óleo de Tiziano. Os contactos com os astecas (ou mexicas) foram-se repetindo. Além de pedir ouro, Cortés fazia prédicas sobre Deus e a necessidade de os índios abandonarem os seus cultos tradicionais; negava-se a aceitar sacrifícios humanos e canibalismo; e falava do grande Rei longínquo, Carlos V, senhor de um enorme Império, a quem deviam prestar vassalagem e de quem se dizia embaixador. Nos seus contactos com os astecas teve papel importante uma índia, a quem chamaram Marina, depois de a baptizarem, e que se tornou amante de Cortés (para os mexicanos actuais é doña Malinche). Sobre Tenochtitlan, onde residia o Imperador Monctezuma, foi-se inteirando da sua importância. Várias foram as viagens em que Cortés e o Imperador trocaram mensagens. Cortés queria que ele viesse visitá-lo.

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Moctezuma hesitava: seriam aqueles estrangeiros sacerdotes do deus Quetzalcóatl (que representava as energias telúricas)? Se Cortés era um embaixador ou o próprio deus, eram-lhe devidas honras e cortesia, e deveria ser recebido na sua cidade, de acordo com os princípios astecas…Ou eram apenas conquistadores gananciosos em busca do ouro? Entretanto, Cortés escolhia um porto (hoje, Veracruz) para se instalar. Ele e os seus homens são recebidos por emissários de Moctezuma com ouro e jóias. Mas vão estabelecendo relações com tribos índias inimigas dos astecas, embora tenham conseguido a libertação de altos dignitários astecas aprisionados. Esse gesto é recompensado em mais ouro…E os espanhóis chegam à capital. São recebidos amistosamente. Cortés visita o Imperador e fala-lhe de cristianismo. Sobe ao Templo Maior e horrorizado vê a decoração feita de cabeças humanas. A pretexto de soldados seus terem sido mortos, acusa Moctezuma e ameaça matá-lo.

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O Imperador acaba por aceitar a exigência de Cortés, que o quer apr?s?onar, de partir com ele. Declara que, por amizade, vai viver uns tempos com os espanhóis. Era evidente que estes não pertenciam à linhagem dos sacerdotes de Quetzalcóatl e que tão pouco eram deuses. Após importante batalha em 1519, na qual as forças invasoras foram derrotadas, os espanhóis reagruparam-se e regressam passados oito meses, tendo a seu lado um contingente ainda maior de nativos seus aliados. A capital Tenochtitlan foi sitiada e depois destruída (Tenochtitlan, aqui reconstituída, onde hoje se localiza a Cidade do México), o que acabou por levar à derrota total dos astecas em 1521. O cerco durou sete meses. A superioridade das armas espanholas (canhões, bestas, espadas de ferro), as hesitações religiosas sobre a origem dos espanhóis e a varíola, terão sido factores decisivos para a derrota dos aztecas.

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Quanto a Moctezuma, inicialmente foi tratado de acordo com a dignidade do cargo e era respeitado pelo seu povo. Mas, após o massacre da nobreza asteca, cria-se um clima de revolta. Cortés exige que o Imperador vá ao tecto do palácio mandar parar os ataques. Entre flechas e pedras que chovem, Moctezuma é atingido e morre. Quem o matou? Ainda hoje Moctezuma é desprezado por muitos mexicanos e não há qualquer celebração em sua honra. Figura polémica, Moctezuma foi o traidor do seu povo ou tentou evitar um massacre? De qualquer modo, este existiu. No final foram centenas de milhares de astecas mortos, pilhagens enormes de ouro e prata e destruições.

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Durante o governo de Moctezuma, o império asteca chegou a ser formado por cerca de 500 cidades, que pagavam elevados impostos. Os castelhanos apropriaram-se de grande parte dos objectos de ouro para depois os fundirem, o que justifica a raridade actual destes objectos. A sociedade era hierarquizada, tendo no topo o imperador, também chefe do exército. A nobreza era formada por sacerdotes e chefes militares. As classes sociais mais baixas (camponeses, artesãos e trabalhadores urbanos) eram obrigadas a trabalho compulsivo, quando o Imperador os convocava (redes de regadio, estradas, templos, pirâmides).

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E se muitas práticas hoje nos horrorizam (sacrifícios humanos e canibalismo, nomeadamente), não foi em nome da pureza dos dogmas da Igreja que na mesma época funcionavam os Tribunais do Santo Ofício e tantos “hereges” foram torturados e/ou queimados vivos?!

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Arte asteca

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Esta escultura distingue os astecas de todos os outros povos índios – é a Pedra do Sol, descoberta em 1790, na Praça Maior da capital da Nova Espanha. Em virtude do seu conteúdo simbólico, com o nome dos dias e dos sóis da origem do universo, foi incorrectamente identificado como Calendário Asteca.

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Todos os diferentes povos que ocuparam as terras mexicanas eram oriundos do norte do continente americano. Alguns deles ficaram por aí, continuando as suas tradições de nómadas. Os que chegaram às terras mais a sul, às terras do México, tornaram-se sedentários e evoluíram no sentido de um sistema cultural que teve o seu apogeu na civilização de Teotihuacan. No meio da planície ergueram montes de terra sem muros de retenção.

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A principal cidade asteca que visitaremos é Teotihuacán, que foi ocupada pelos astecas, mas há evidência de ter sido ocupada anteriormente por zapotecas, mixtecas, maias, totonacas e mesmo nahuas. Impressionam principalmente as duas grandes pirâmides (a do Sol e a da Lua, sendo a primeira, uma das maiores, senão a maior, da Mesoamérica), Testemunho da sua importância é o facto de Teotihuacán, mesmo após seu declínio, por volta do final do século VII, continuar a ser importante centro de peregrinações.

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Teotihuacan foi a maior cidade conhecida da época pré-Colombiana. Porém, há muito por esclarecer. Um dos maiores desafios que se colocam aos investigadores é dec?frar o complexo sistema de escrita utilizado. Os caracteres podiam representar sons, ideias ou ambos. Além disso, há indícios de que os maias se serviam de diferentes formas de escrita para um único conceito. Os materiais de registo mais empregados foram pedras, madeira, papel e cerâmica. Fabricavam também livros e códigos confeccionados a partir de fibra vegetal, resina e cal. Porém, a dominação espanhola tratou de incinerar a grande maioria da documentação escrita: sob a aprovação da Igreja, os registos maias foram queimados em virtude de sua origem pagã. Foi pouco o que escapou.

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Assunto também não esclarecido, é o da decadência do Império maia, que ter-se-ia iniciado já antes da chegada dos Espanhóis. É possível que na sua origem tenha estado uma seca prolongada o que, aliado à pobreza dos terrenos no Yucatan, arrastasse os maias para guerras de conquista de mais terras. Terramotos e epidemias teriam também contribuído para a decadência.

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No caso de Teotihuacan ter-se-ia devido a uma revolta ocorr?da na própria cidade (que chegou, no seu apogeu a ter cerca de 150 mil habitantes). Existem indícios de um grande incêndio. No entanto, as chamas teriam atingido apenas os palácios e edificações governamentais, o que leva a crer que os habitantes, revoltados, tenham ateado fogo aos prédios daqueles que os oprimiam. Os templos astecas e maias eram sempre rectangulares e escalonados, gerando pirâmides coroadas por uma plataforma, onde se supõe que tenham sido locais de sacrifício.

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O que escreve Octávio Paz (OP) em “O labirinto da solidão”: …contempla-se a Conquista da perspectiva indígena ou da espanhola, este acontecimento é expressão de uma vontade unitária. Apesar das contradições que a constituem, a Conquista é um facto histórico destinado a criar uma unidade, da pluralidade cultural e política pré-cortesiana. Diante da variedade de raças, línguas, tendências e Estados do mundo pré-hispânico, os espanhóis postulam um único idioma, uma única fé, um único senhor. Se o México nasce no século XVI, é preciso convir que é filho de uma dupla violência imperial e unitária: a dos astecas e a dos espanhóis.

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Xcaret (Cancun) Entre ir e ficar duvida o dia,/enamorado de sua transparência./A tarde circular é já baía: em seu quieto vaivém se mexe o mundo./Tudo é visível e tudo é efusivo, tudo está perto e tudo é intocável./Os papéis, o livro, o copo, o lápis repousa à sombra de seus nomes./Bater do tempo que em minha têmpora repete a mesma teimosa sílaba de sangue./A luz faz do muro indiferente/um espectral teatro de reflexos./No centro de um olho me descubro;/não me olha, me olho em seu olhar./Dissipa-se o instante. Sem me mover,/eu fico e me vou: sou uma pausa. (Octávio Paz, Tradução de Maria Teresa Almeida Pina).

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Quetzalcoatl (religião maia pré-colombiana) aparece como uma serpente representativa da terra, vestida de preciosas plumas de quetzal (ave que vive nas florestas da América Central), que por sua vez significa o céu.

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Os maias estabeleceram-se ao norte da península de Yucatán e construíram várias cidades-santuários.

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O seu império estava bem organizado com classes sociais e profissões bem definidas. Possuíam elevado nível científico e cultural. Os progressos na astronomia e matemática foram notáveis. O seu calendário de 365 dias revelou-se mais exacto que o utilizado então na Europa. Além disso, já conheciam o zero. Parte de seus conhecimentos e organização foi adoptada pelos astecas, estabelecidos mais a sul.

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A arquitectura esteve sempre ligada aos ideais religiosos. Colunas, arcos e templos foram erguidos em homenagem às divindades celebradas pela cultura maia. Como todos os povos índios, os maias eram panteístas.

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A necessidade de agradar aos deuses para lhes trazerem a chuva, o sol e o milho, levava-os a rituais onde eram sacrificados animais e em situações especiais pessoas, principalmente inimigos capturados. Acreditavam na vida após a morte e ser sacrificado era uma honra.

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“A cidade maia é um núcleo de população de carácter religioso e administrativo, centro de cerimónias onde não pode faltar a pirâmide, o templo e o palácio, as colunas e salas hipóstilas, jogos de bola, arcos triunfais, observatórios, túmulos e sepulcros e uma arquitectura doméstica à base de cabanas cobertas de palmas e folhas” (López-Portillo)

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A serpente emplumada (Quetzalcoatl) é um símbolo relacionado com uma dualidade de conceitos: a vida e a morte, o animal e o homem, a ave e a serpente. As esculturas representando a cabeça da serpente e do quetzal são facilmente encontradas.

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Na religião de Quetzalcoatl acreditava-se que a alma voltava à terra depois de uma estadia num local de repouso. A construção de todas as estátuas e esculturas não deixa de ser surpreendente pois, feitas em pedra (a maior parte em calcário e material vulcânico), exigiam um material mais duro para serem trabalhadas e estes povos desconheciam o ferro.

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Os maias acreditavam que a terra era plana com quatro cantos, correspondendo aos quatro pontos cardeais e cada uma dessas direcções tinha uma cor. Segundo a sua mitologia, para sustentar o céu em cada canto havia um jaguar, de cor diferente para cada ângulo. Na selva, onde se desenvolveu a cultura maia, o jaguar era um animal importante e a sua representação encontra-se em numerosas ruínas.

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Sou homem: duro pouco /e é enorme a noite./ Mas olho para cima:/as estrelas escrevem. Sem entender compreendo:/Também sou escritura/e neste mesmo instante /alguém me soletra. (Octávio Paz)

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Todos os dias descubro/A espantosa realidade das coisas:/Cada coisa é o que é./Que difícil é dizer isto e dizer/Quanto me alegra e como me basta/Para ser completo existir é suficiente//Tenho escrito muitos poemas./Claro, hei de escrever outros mais./Cada poema meu diz o mesmo,/Cada poema meu é diferente,/Cada coisa é uma maneira distinta de dizer o mesmo//Às vezes olho uma pedra./Não penso que ela sente/Não me empenho em chamá-la irmã./Gosto porque não sente,/Gosto porque não tem parentesco comigo./Outras vezes ouço passar o vento:/Vale a pena haver nascido/Só por ouvir passar o vento//Não sei que pensarão os outros ao lerem isto/Creio que há de ser bom porque o penso sem esforço;/O penso sem pensar que outros me ouvem pensar,/O penso sem pensamento,/O digo como o dizem minhas palavras.//Uma vez me chamaram poeta materialista./E eu me surpreendi: nunca havia pensado/Que pudessem me dar este ou aquele nome./Nem sequer sou poeta: vejo./Se vale o que escrevo, não é valor meu./O valor está aí, em meus versos./…

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…Tudo isto é absolutamente independente de minha vontade.(Octávio Paz, Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

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Das três grandes civilizações ameríndias do momento da conquista, os maias foram os que desenvolveram o sistema de comunicação por sinais mais sofisticado. A escrita maia é presentemente a única mesoamericana já decifrada. Foi chamada hieroglífica pelos exploradores europeus dos séculos XVIII e XIX, os quais, apesar de a não compreenderem, viram, na sua aparência, reminiscências dos hieroglifos egípcios.

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Riviera Maia “O que ingrato me deixa busco amante;/o que amante me segue deixo ingrata; adoro fiel quem meu amor maltrata;/firo quem meu amor busca constante.//O que trato de amor, acho-o diamante,/e sou diamante ao que de amor me trata;/triunfante quero ver o que me mata,/e mato o que quer ver-me triunfante. //Se a este acedo, padece o meu desejo;/se rogo àquele, o pundonor enojo;/de ambos os modos infeliz me vejo.//Assim, prefiro, por menor antojo,/de quem não quero, ser cruel motejo/a, de quem não me queira, vil despojo.” (Sor Juana Inés De La Cruz, Traduzido por Anderson Braga Horta)

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Vestígios do período colonial que persistem em todas as cidades.

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Guadalajara é a capital do Estado de Jalisco e a segunda maior cidade do país.

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Baixo relevo da Praça da Libertação

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Catedral de Guadalajara. É grande a devoção dos mexicanos por Nossa Senhora de Guadalupe, também chamada Virgem de Guadalupe. É considerada pelos católicos Padroeira da Cidade do México, do país, da América Latina e Imperatriz da América. A sua origem está na aparição da Virgem Maria a um pobre índio em 1531.

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Trata-se, pois, de uma Virgem índia que apareceu num local onde, anteriormente existira, para os astecas, um santuário dedicado à deusa da fertilidade. A Conquista espanhola representou a derrota das divindades masculinas e a instauração de um novo reinado divino, que significou o regresso ao útero materno. Para OP, o seu atributo principal é o refúgio dos desamparados…consolo dos pobres, o escudo dos fracos, o amparo dos oprimidos.

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Guadalajara: Plaza de Armas

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Teatro Degollado

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Alejandro Colunga esculturas em bronze na Praça principal

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Centro Cultural Cabañas

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O Centro Cultural Cabañas, como hoje é conhecido, foi concluído em 1845, sob projecto do arquitecto Manuel Tolsá, e cuja construção demorou meio século. Até 1882 foi um asilo para órfãos.

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A importância actual do edifício deve-se, sobretudo, ao facto de albergar numerosos murais de José Clemente Orozco, um dos três grandes pintores muralistas mexicanos. As suas figuras têm uma enorme força. Embora, também ele tenha sido um pintor revolucionário, defendia que a pintura possui imutáveis tradições universais de que não pode separar-se, para não ser uma arte menor folclórica. São várias as influências artísticas que lhe são atribuídas: realismo, arte renascentista italiana e expressionismo. Os outros dois muralistas são Siqueiros e Diego Rivera.

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Diego Rivera. Este último, cuja obra se encontra principalmente na cidade do México e também nos Estados Unidos, procurou mostrar o povo mexicano desde a fase pré-colombiana até à actualidade. Defendia que os murais eram a forma de facilitar a divulgação da pintura junto do povo. Ele próprio revolucionário, foi membro do Partido Comunista Mexicano e do qual haveria de ser expulso. Tratou da Revolução Mexicana nos seus aspectos de sentido social e de denúncia do povo subjugado por uma pequena oligarquia. Mas não ficou manietado pelos modelos do realismo socialista, ele próprio teve uma fase cubista. A sua vida foi atribulada. Foi Rivera quem acolheu Trotsky durante parte do seu exílio no México.

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Diego Rivera

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Diego Rivera

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Emiliano Zapata, por Diego Rivera (MOMA de Nova York). A pintura muralista mexicana aborda, principalmente, a Revolução. Após a deposição e morte do Imperador Maximiliano e a restauração da Republica, segue-se uma longa ditadura (39 anos) de Porfírio Diaz. Neste período são gritantes as diferenças na riqueza, educação e qualidade de vida entre o reduzido núcleo de apoio porfirista e a maioría do povo, condenada à miséria e ignorancia.

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Emiliano Zapata, por Orozco (Guadalajara). Entre 1910 e 1920, apesar do desenvolvimento económico, o país vive uma série de revoltas que procuram derrubar o Presidente e acabar com o proteccionismo aos donos da terra e capitalistas industriais. Entre os líderes estão figuras hoje míticas: Emiliano Zapata e Pancho Villa.

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Após a demissão de Porfírio Diaz, que ainda tentou fraudulentamente ganhar uma eleição contra o representante das forças contestárias, Madero, este é investido Presidente. Mas o entusiasmo dura pouco. Os camponeses reclamavam uma reforma agrária e os fazendeiros queriam sufocar o radicalismo de Zapata. As tensões, agravadas pela revolta dos porfiristas e potenciadas pelos Estados Unidos, conduzem à prisão e assassínio de Madero.

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Frescos de Orozco no Centro Cultural Cabañas

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Um novo governo toma posse, presidido por Victoriano Huerta. As primeiras medidas – proibição da liberdade de imprensa, eliminação dos líderes revolucionários e perseguição dos movimentos de trabalhadores, recebem o apoio dos sectores mais conservadores. No entanto, a oposição organiza-se e rapidamente a insurreição reacende-se em vários locais.

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O novo Presidente, Carranza, está em oposição às ideias tanto de Villa no norte do país, como de Zapata no sul. Estes defendem a restituição de terras e expropriação de latifúndios. Mas, apesar do apoio dos camponeses, os revoltosos tinham reduzida capacidade militar.

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Por outro lado o “exército constitucionalista” de Carranza era profissionalizado e contava com o apoio de operários, mineiros e intelectuais.

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Tentam-se conciliar as políticas do Presidente, Zapata e Villa, mas sem sucesso. A rivalidade, sobretudo entre o Presidente e Villa, é manifesta e o único resultado é a designação de um novo Presidente Interino.

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Villa e Zapata reúnem-se e enfrentam as tropas de Carranza, que tinha o apoio dos Estados Unidos. São derrotados e decidem retirar-se para os respectivos estados. Zapata regressa, mas montam-lhe uma emboscada e é assassinado.

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Por seu lado, Villa reorganiza o seu exército e, embora vencido numa batalha, consegue manter a guerrilha, com a qual realiza incursões aos Estados Unidos (a quem acusava de apoiar Carranza).

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Carranza volta à Presidência e dedica-se a reorganizar o país, ao mesmo tempo que as suas tropas eliminam os focos de rebelião. A Constituição de Querétaro, por ele promulgada, confere amplos poderes ao Presidente, dá ao Governo direitos para confiscar terras aos latifundiários, introduz medidas laborais relativas a salários e duração dos dias de trabalho e tem uma matriz anticlerical.

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No entanto, a decisão de dispersar uma greve ferroviária abana-lhe o prestígio e retira-lhe apoios. Abandonado pelos correlegionários, fica só. Foge da cidade do México, mas não evita o assassinato em 1920.

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Após a morte de Carranza e da presidência interina de Adolfo de la Huerta, Obregón, antigo aliado político de Carranza, é eleito em Novembro desse mesmo ano.

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O ano de 1920 marcará o final da Revolução Mexicana, apesar de algumas erupções golpistas que surgiram até 1934, data do início da presidência de Lázaro Cárdenas, que institucionalizou as reformas iniciadas no processo revolucionário.

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Orozco

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Como definir o povo mexicano? Apesar do desenvolvimento económico e de ter diminuído a percentagem de pobres, aumentou o número de ricos mas ainda mais o número de pobres. Ideias chave, de acordo com OP: o retrato do mexicano pobre é o homem de alpercatas que come milho em vez de usar sapatos e comer pão de trigo, como fazem os mais ricos; a sua pobreza fá-los emigrar para os Estados Unidos, legal ou ilegalmente, onde é tratado com desprezo; é “hispânico” (seja de Cuba, Porto Rico ou Honduras); lá continua a vestir a mesma roupa, exprime-se no seu idioma, tem um sentimento de inferioridade, às vezes com comportamento marginal; é reservado e tímido.

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No México este retrato adapta-se apenas a uma parte da população, principalmente rural ou outros membros das classes mais baixas. O mexicano é crente, gosta de mitos e lendas, desconfiado, triste e sarcástico. Mente por fantasia, por desespero ou para superar uma vida sórdida. Porém, gosta de festas, nelas descarrega alma, são o seu luxo que o compensa da pobreza.

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Mas não é possível falar em termos genéricos dum tipo de ” mexicano” com tão grande mistura de influências e raças e poder económico. A percentagem de índios é variável, consoante a fonte (20%?).

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Os sombreros e os mariachis são meros aspectos folclóricos. A mexicanidade será tudo isso, a diversidade na busca das suas origens (OP). Para a preservar é preciso que o México desenvolvido que segue o modelo americano, não ignore as culturas pré-colombianas e assuma a história da conquista espanhola: são genes da sua nação, tão importantes como o seu passado mais recente.

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Consultados: Los mayas Historia de um povo indómito (Raúl Pérez López-Portillo), O labirinto da solidão (Octávio Paz), La conquista de México (Hugh Thomas), La España Imperial 1469-1716 (J H Elliott), Wikipedia

Os autores agradecem a colaboração da Nacional Filmes Lda.

O Cinema segundo JbC

(João Bénard da Costa)
JbC era um homem culto, apaixonado pelo cinema (que até escrevia muito bem) ou era um escritor que falava de arte (e da vida), a partir de filmes? Provavelmente, as duas coisas. O conhecimento, conseguiu-o de um modo sistematizado (ele mesmo dizia ter passado anos da sua vida a organizar enciclopédias), mas o seu gosto por Mozart, Wagner, Mahler, Verdi, p.ex., de tanta literatura, ”cúmplice” da poesia de Ruy Belo, Sophia, Sena, etc, excederam a erudição regrada da gente bem pensante e educada.
Ele amou actores e actrizes como se as suas figuras saíssem da tela e por magia o tocassem e foi capaz de alargar tal prodígio a muitos afortunados alunos e leitores. Transformou cenas de filmes em vivências pessoais que passaram a fazer parte do nosso imaginário. Recordou-nos a voz de cantores e actores, os seus timbres e versatilidade (como esquecer Mason ou Burton?!), a inocência e a perversidade, a beleza e a sensualidade, tudo isso numa perspectiva também pictórica, onde quadros de Rubens, Raphael, como de  pintores modernos, ele associou. Testemunhou a importância de Manoel de Oliveira e César Monteiro, como da escrita de Agustina. Foi interventivo, apaixonado, arrebatado – a sua cultura, era uma cultura de afectos.
Não poderia ser um verdadeiro crítico de cinema, mesmo que isento, pois não mantinha a distância que a avaliação que uma obra exige. Gostava ou não (e ensinava-nos a olhar e a ver), mas daquilo que gostava, servia-se como gatilho para efabulações que só a sua cultura permitiam. A prosa de JbC é o trabalho fantástico de tessitura dum casulo de palavras de seda, segregadas por todas as referências que o estudo e a contemplação lhe trouxeram e a sua sensibilidade matizou e hierarquizou.
Nunca deixou de ser um cineclubista, fossem quais fossem as funções que tivesse desempenhado. Como tal privilegiou o que não passava nas sessões comerciais. Mas não se referiu apenas aos filmes do “tempo da Maria Cachucha” (a expressão foi dele). Filmes mais recentes e de autores vivos (Coppola, Scorsese, etc.), mereceram-lhe atenção.
Hoje, as novas tecnologias permitem ver filmes em dimensões e qualidade que não ficam atrás de muitas salas de cinema. Os filmes (muitos deles) estão editados em DVD ou acessíveis na internet, só é preciso ir buscá-los e possuir um razoável sistema de reprodução. Mas, o essencial é o gosto, a cultura e haver quem os possa promover. E, isso, JbC fez: o crítico de cinema Jorge Leitão Ramos, do Expresso, afirmou ter sido JbC “responsável por uma geração inteira de cinéfilos ter descoberto mais cinema”.
A sua mais importante actividade foi a de Director da Cinemateca Portuguesa, entre 1991 a 2009. Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas, dirigente cineclubista, presidiu à Juventude Universitária Católica (1957-1958) e foi um dos fundadores da revista O Tempo e o Modo, que dirigiu até 1970. Activista político, foi-lhe vedado o acesso à carreira universitária, durante a ditadura de Salazar. Dirigiu o Sector de Cinema do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian e presidiu à Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal. Em 1973, exerceu funções docentes na Escola Superior de Cinema do Conservatório Nacional, onde se manteve a leccionar História do Cinema, até 1980. Além de colaboração dispersa por vários jornais e revistas, publicou obras de filosofia, pedagogia e história do cinema. Entre estas últimos avultam monografias sobre Alfred Hitchcock, Luis Buñuel, Fritz Lang, John Ford, Nicholas Ray ou Howard Hawks. São também de salientar, entre outros, os livros “Os Filmes da Minha Vida”, “Histórias do Cinema Português”, “Muito Lá de Casa” e “O Cinema Português Nunca Existiu”. Entre outras distinções saliente-se o Prémio Pessoa, atribuído em 2001.
Reflectindo sobre a obra de JbC, creio que o seu modo apaixonado de ensinar e arregimentar prosélitos, não só para o Cinema em particular como para a Arte em geral, o fazia um Homem fora deste tempo, um dos raros e que cada vez são menos.

FM

 

Não somos dos “suspeitos do costume”, embora amemos Música e Cinema e a Liberdade sempre fosse um Bem sagrado. Nas palavras, somos coniventes com Ruy Belo e Sophia, como com Eugénio e tantos outros. Nunca privámos com Bénard da Costa, mas nele, nas suas crónicas do Independente e do Público, nos seus livros, encontrámos o GPS que nos conduziu à sedimentação de referencias incontornáveis do cinema (Godard, Visconti, Buñuel, Truffaut…), não como arte isolada, mas integrada na Vida e na Música e na Pintura… Esse modo global de olhar (e ver) as coisas. Quando alguém notável morre, habitualmente rebentam os ditirambos e chovem as lágrimas de crocodilo. No caso do João, paradoxalmente, não foi assim.

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Vai-se à Net e lêem-se depoimentos de quem não gostava da sua escrita e da sua pose. Sabe-se que criou invejas (ah, Portugal!): quando se soube ter ganho o prémio Pessoa, um realizador indignado perguntou se ele o tinha aceite?! Quando lhe prorrogaram a Direcção da Cinemateca, as deserções que aconteceram!…A prosa de Bénard era cheia de adornos déco, funda, poética e a sua pose, de facto, não era deste tempo. Trazia consigo a sabedoria dos clássicos, as esculturas de Florença, a pintura do Renascimento, os olhos cheios da Arrábida, a ópera de Verdi ou a voz de Callas e o Cinema, todo o cinema do Mundo. Tinha “de la classe”. É muito. Sobretudo para quem o não mereceu.

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João Bénard da Costa (JbC) foi uma espécie de Professor Keating do Clube dos Poetas Mortos. Em vez de aulas de poesia, escreveu textos maravilhosos onde o cinema era o pretexto, mas onde a poesia, a música, a arte “total” sempre estiveram presentes. Ensinou-nos a olhar, a repudiar a vulgaridade. Possuía a aristocracia dos estetas.

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Recordemos esse filme admirável, de 1989, dirigido por Peter Weir, com o Prof. Keating (que poderia ser JbC) a ensinar numa escola preparatória altamente tradicionalista e conservadora. Com o seu talento e sabedoria, Keating motivava os alunos a preencherem as suas vidas, sem deixarem que ninguém condicionasse o seu modo de pensar. O filme deixava uma mensagem de vida “aproveita o dia”, cujo sentido é – aproveita, goza a vida, ela dura pouco, é muito breve.

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Não sabemos se JBC apreciou o filme. Mas, escolhemo-lo por nos parecer adequado para homenagear a importância que ele teve na formação do gosto e do cinema, mesmo que a sua postura lhe tivesse trazido dissabores…Transcreveremos também comentários seus a propósito dos filmes e seus artífices. Há vários modos de contar a História – aquela que é mais atrativa, tem sempre personagens. Aqui surgem realizadores, os actores que ele amou ou por quem se apaixonou e que se transformaram em pessoas vivas. São filmes que sempre nos emocionam e ocupam um espaço importante na nossa memória afectiva. É, deste modo, que despretenciosamente o evocamos.

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JbC escreveu neste livro que pôde ser mais útil, falando de filmes que que não estavam em cartaz, nem passavam na televisão, pois fora de modas e fora de tempos, prolongava essa transmissão de imagens e histórias, recriando a magia própria do cinema. Permito-me acrescentar mais: ele ajudou-nos a ver o cinema para além dos filmes, a gozá-los enquanto obras de arte com a sua linguagem própria e utilizando e fundindo teatro, música, fotografia… Ajudou-nos a entender a escolha de determinado plano ou movimento de câmara, dum silêncio, duma sombra, duma partitura. Mas não estamos condenados, como na ópera (onde quase só se repetem os espectáculos clássicos), a ver apenas o cinema das décadas de 50, 60 e 70. Grandes filmes continuam a ser feitos e o avanço tecnológico não castrou a criação artística.

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Em todas as ruas te encontro /em todas as ruas te perco /conheço tão bem o teu corpo sonhei tanto a tua figura/ que é de olhos fechados que eu ando /a limitar a tua altura e bebo a água e sorvo o ar /que te atravessou a cintura /tanto tão perto tão real /que o meu corpo se transfigura /e toca o seu próprio elemento /num corpo que já não é seu num rio que desapareceu/onde um braço teu me procura/Em todas as ruas te encontro/ em todas as ruas te perco (Mario Cesariny)

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Rafael. Muitos dos textos mais recentes foram peregrinações pelo seu cânone de pintores (Ticiano, Rubens, Piero della Francesca, Fragonard, Van der Weyden, Matisse, Rafael). Pelos lugares eleitos (“em Florença devia ter nascido, em Nova Iorque devia ter vivido, na Arrábida nasci e vivi“). [Alexandra Lucas Coelho]

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TicianoNoli me tangere. [Sobre a Páscoa]:… “É em S. João que se encontra a narração do episódio mais perturbador. Maria de Magdala, depois da morte do Senhor, não saiu de ao pé do túmulo e soluçava. “E não sei para onde O levaram.” Dizendo isto, voltou-se e viu Jesus que estava de pé, mas ela não sabia que era Ele. Jesus disse-lhe: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” Julgando que Ele era o jardineiro, ela respondeu: “Senhor, se foste tu que O levaste, diz-me onde O puseste e eu irei buscá-Lo.” Jesus disse: “Maria.” Ela reconheceu-O e disse-lhe em hebreu: “Rabuni!”, o que quer dizer Mestre. Jesus disse-lhe: “Noli me tangere” [não me toques], porque ainda não subi para junto do Pai.”

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Fragonard “Porque a criação humana era “uma forma de nos defendermos contra a morte e uma forma de compensação diante do terror que a vida inspira” (DN, 2005).

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A propósito do Rei dos Reis, de Cecil B. de Mille: “Depois, havia milagres, cada um mais aparatoso do que o outro e com mais efeitos especiais. Lembro-me da cara de poucos amigos dos Apóstolos. Depois, só me lembro da Agonia no Horto, do beijo de Judas e do julgamento. A coroa de espinhos, a flagelação, o sangue, os ladrões. O ecrã ficava escuríssimo e milhares de figurantes acompanhavam a subida ao Calvário, e a morte na Cruz…Pouco depois, deram-me um livro (o livro da minha vida) sobre os museus alemães, Berlim, Dresde, Munique. Lá vi o Cristo na Cruz de Rubens, que está na Pinacoteca de Munique e em que o Corpo do Crucificado pende da Cruz tanto quanto nela se ergue, recortado contra um imenso escuro. Associei sempre essa reprodução à imagem final de H.B. arrier no filme de DeMille…se há cineasta rubenisiano ele é Cecil B. DeMille…é o mesmo sangue, ou melhor a mesma carne. Os temas de DeMille são os mesmos de Rubens; o mito, a história, a narureza, a alegoria, a fé”.

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Se tivesse de viver uma vida além da sua, “escolheria a de Federico de Montefeltro, senhor de Urbino e príncipe das humanidades, retratado de perfil e em carmim por Piero della Francesca”.

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Van der Weyden: “Se invocamos a memória, é para nos sentirmos mais acompanhados, quando sabemos que ela não é compartilhada por mais ninguém. Não há nada de mais solitário do que a memória.”

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E são de Florença que JBC tanto amou, as imagens seguintes. Não deixa de ser notável e raro que uma grande cidade mundial mantenha o seu centro quase inalterado desde o século XV. “Todas as viagens têm que acabar e nunca há o tempo que ao tempo pedimos e que do tempo esperamos

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É fundamental assistir a uma missa no grandioso Duomo que conta com alguns vitrais da autoria de Donatello, passear na única Ponte Vecchia e visitar o museu Uffizi

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O centro de Florença não é de uma cidade, é um museu: Hércules vencendo o minotauro. O mito do Minotauro foi um dos mais contados na época da Grécia Antiga. Passou de geração em geração, principalmente de forma oral. Pais contavam para os filhos, filhos para os netos e assim por diante. Era uma maneira dos gregos ensinarem o que poderia acontecer àqueles que desrespeitassem ou tentassem enganar os deuses.

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Em Florença habitaram algumas das figuras mais ilustres da história como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Dante, Maquiavel ou Galileu.

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Michelangelo: Apolo

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Piazza Signori

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Um dos mais curiosos paradoxos a que a história da relação cinema-ópera deu lugar, a descendência de Senso não é cinematográfica, mas operática. Se se quiser pensar numa posteridade para este filme, ela está…nas encenações de 1955 ou de 1956, com que o mesmo Visconti revolucionou todos os caminhos da encenação operática neste século…É estranho …Foi ele afinal de contas quem “autorizou” a Callas a recitá-lo (è strano) tão estranhamente estranha, nas Traviatas de tempo de Senso.

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Maria Callas cantou no Teatro São Carlos em 27 de Março de 1958 La Traviata com Alfred Kraus. A ópera, da autoria de Giuseppe Verdi é composta por quatro actos e apresenta doze personagens. A história gira em torno de um romance intenso mas controverso entre Violetta e Alfredo.

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Visconti foi buscar [Alida Valli]…para a transformar na única imagem possível à voz de Callas, a Condessa Livia Serpieri do Senso…, na mais maldita e operática de todas as amantes adúlteras do cinema. Jamais, neste, voltou a haver excessos como os dela, quer na fulgurante carnalidade das frisas do La Venice, quer no amortalhado e descomposto final em Verona, quando Farley Granger lhe arranca os véus para chamar “Una signora, una grande signora”. Nunca vi um animal mais ferido, uma mulher mais faminta. [Talvez nenhum outro realizador tenha conseguido a fusão do cinema e da ópera, não a “filmagem”, mas a respiração, a expressão corporal, as emoções rosto/voz de acordo com o libretto, como se o próprio filme fosse a ópera]

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Mal nos conhecemos /Inauguramos a palavra amigo! /Amigo é um sorriso De boca em boca,/Um olhar bem limpo /Uma casa, mesmo modesta, que se oferece./Um coração pronto a pulsar/Na nossa mão! /Amigo (recordam-se, vocês aí,/Escrupulosos detritos?) /Amigo é o contrário de inimigo! /Amigo é o erro corrigido, /Não o erro perseguido, explorado. /É a verdade partilhada, praticada. Amigo é a solidão derrotada! /Amigo é uma grande tarefa, /Um trabalho sem fim,/Um espaço útil, um tempo fértil,/Amigo vai ser, é já uma grande festa! (Alexandre O’Neill)

      Ouça o poema

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Johnny Guitar (1954) é um western, de Nicholas Ray.O filme centra-se na figura de Vienna (Joan Crawford), dona dum saloon, ameaçada pelos rancheiros que pretendem expropiá-la, em virtude da putativa valorização dos terrenos que a próxima passagem do caminho-de-ferro originará. Emma, proprietária da maior parte dos terrenos, apaixona-se por Dancin’ Kid, um fora-da-lei com poucos escrúpulos, sentimento que ela mantém em segredo. Ameaçada por Vienna, com quem Kid já teve um relacionamento, Emma procura incriminá-los, como forma de vingança, quando quatro homens assaltam uma diligência e matam o seu irmão. Vienna chama, então, o seu antigo companheiro e pistoleiro Johnny Guitar, para a ajudar a manter os rancheiros afastados. Emma quer enforcá-la, acusando-a de participar do crime. As duas confrontam-se numa última luta mortal, habitualmente desempenhada por homens. As cenas finais são de antologia.

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Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as rouletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem ¨Keep the wheel spinning, Ed. I like to ear it spin¨No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projeccionistas: ¨Keep the film spinning. I like to see it spin¨. Tanto, tanto.”

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Num inquérito de jornal, em que lhe pediam para dizer qual o seu filme preferido, JbC respondeu: Johnny Guitar, de Nicholas Ray; porque era ele; porque era eu”.

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Cruel vitória (Bitter Victory/1957), também de Nick Ray. A história de um triângulo amoroso: Major Brand (Curt Jurgens), Capitão Leith (Richard Burton) e a mulher do primeiro (Ruth Roman). Na véspera de uma operação perigosa no norte de África, a mulher do major chega ao aquartelamento. Ela e Leigh tiveram uma relação forte antes do casamento dela. Jurgens descobre. Durante a acção, o Major mostra-se incapaz de eliminar uma sentinela e é Leigh quem tem de o fazer. A fraqueza (ou cobardia) do Major de carreira, odiado pelos seus homens, contrasta com a coragem serena do capitão, arqueólogo, que era adorado. Este é mordido por um escorpião e Leigh “viu, calou-se e não disse nada…só gritou quando o bicho já tinha mordido”.

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O filme tem o mais portentoso diálogo da história do cinema e as palavras não dizem nada. Tem a mais bela música de filme que alguma vez vi…e aquela música é um enigma. Tem a voz de Burton, a beleza de Burton e talvez em coisas tão belas não seja o essencial. A morte de Burton é um dos momentos mais belos da história do cinema. No chão, agonizante, acusa-o: “you’re not the sort of man, Brand, who’d kill for his woman. But you’d… murder to stop her from finding out that you’re a coward.” E, depois, a levantar-se para proteger o seu assassino da tempestade de areia “I always contradict myself”….”Burton com o vento nos cabelos e o olhar no infinito é a imagem de uma modernidade cinematográfica que nunca mais voltou a ser achada”

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A propósito, não sei se JBC alguma vez se referiu a Becket (Peter Glenville/1964), que relata o conflito entre o Rei Henrique (Peter O’Toole) e o seu companheiro de estroina Thomas Becket (Richard Burton), a quem o Rei decide nomear Arcebispo de Cantuária, para poder controlar a Igreja. Porém, Becket entende assumir a dignidade do lugar. Os conflitos vão-se sucedendo. Uma cena admirável – a da excomunhão dum nobre próximo do Rei por ter mandado matar um padre por suspeita de abuso de uma jovem, sem julgamento. Outra cena admirável a tentativa de aproximação do rei quando Becket regressa do refúgio que procurara em França. É uma praia que podia ser na Normandia. “Becket porque me abandonaste?” O cinismo do rei que favorece a morte do Arcebispo mas depois de se fazer flagelar o proclama Santo…Enormes actores, com registos de voz diferentes, O´Toole cortante, Burton “that buge, instrumental voice, capable of thrilling switchies from whisper to roar, with every syllabe an honest transaction between you and him”.

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Sobre Orson Welles escreveu JbC que o admirava mas não amava (como também, a Eisenstein, Fellini, Tarkowsky, etc). De Citizen Kane (1941): …”Há mais de 50 anos encabeça, invariável e imerecidamente, a lista dos “all the times best”…Orson Welles acabou os dias quase igual à caracterização do velho Kane…”Realmente, JbC não amava Welles!

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Conheço o sal da tua pele seca/depois que o estio se volveu inverno/da carne repousando em suor nocturno.//Conheço o sal do leite que bebemos /quando das bocas se estreitavam lábios /e o coração no sexo palpitava.//Conheço o sal dos teus cabelos negros /ou louros ou cinzentos que se enrolam neste dormir de brilhos azulados.//Conheço o sal que resta em minha mãos/ como nas praias o perfume fica/quando a maré desceu e se retrai.//Conheço o sal da tua boca, o sal /da tua língua, o sal de teus mamilos, /e o da cintura se encurvando de ancas.//A todo o sal conheço que é só teu, /ou é de mim em ti, ou é de ti em mim, um cristalino pó de amantes enlaçados. (Jorge de Sena)

      Ouça o poema

32

John Ford (1894–1973) tornou-se célebre pelos seus westerns, embora filmes de outros géneros sejam também importantes, como a Estrada do Tabaco ou as Vinhas da Ira. Mas, foi o western que o tornou famoso. Filmes como Stagecoach ou o Homem que matou Liberty Valence ou The Searchers são referências maiores da História do Cinema. Sobre este último, diz JBC: este é um filme da busca. Este é um filme dos que buscam. Bem-aventurados, pois encontrarão Deus. Em The Searchers John Ford dá a Monument Valley o papel que Homero deu ao mar na Odisseia (transcrição de JA Place)

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Foi em 1939, que, depois do “King”(Kong), nasceu o “Duke”, John Wayne em Ringo Kid no western homérico chamado Stagecoach, com que John Ford cobriu o luto de ter visto num necrotério de Phoenix (Arizona), de smoking branco e cinto de diamantes, o corpo espatifado do único cow-boy a Wayne comparável, Tom Mix, “that rough-riding son of a bitch” .

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Roberto Rossellini (1906-1977) foi um dos mais importantes cineastas do neo-realismo italiano. Deste período os filmes principais: Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (1947). Depois desta fase, realizou o que agora se chamam “filmes de transição”: L’Amore (1948) com Ana Magnani e La macchina ammazzacattivi (1952). Mas é depois do seu encontro com Ingrid Bergman que atinge o momento mais alto da sua carreira. Os filmes que fizeram juntos: Stromboli terra di Dio (1950) Europa ’51 (1952) and Journey to Italy (1953), La paura (1954) e Giovanna d’Arco al rogo (1954) não tiveram na época grande aceitação, embora fossem grandes os louvores dos Cahiers du Cinema. Teve um romance com a atriz Anna Magnani, com quem fez Roma, Cidade Aberta, e de quem se separou para casar com Ingrid Bergman. Em 1963, Rossellini fez o roteiro de Tempo de Guerra, de Jean-Luc Godard.

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O inicio do neorrealismo ocorreu em 1944-1945 com o aparecimento de Roma Cidade Aberta. Com Anna Magnani, intervieram atores amadores. O filme é considerado um dos maiores da História do Cinema. Decorre em Roma, ocupada pelos nazis, quando é declarada “cidade aberta”, para evitar bombardeamentos aéreos. Naquele momento, comunistas e católicos unem-se para combater os alemães e as tropas fascistas. “Porque entre o olhar que não aguenta a câmara e entre a câmara que não aguenta o olhar (…Anna Magnani) nasceu o cinema moderno… Sobre a exibição do filme na Gulbenkian, conta JbC: quando apareceu a palavra “Fim” a sala levantou-se em peso para a maior ovação de que me lembro em sessões de cinema. Rossellini esperou 10 minutos para agradecer. Os bravos deram lugar a distintíssimos…”Abaixo o Fascismo!”, “Liberdade!” 1970, Lisboa. Eu estava lá.

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Outro filme de Rossellini: Viagem à Itália que gira à volta de um casal – Alexander (George Sanders) e Katherine (Ingrid Bergman) em viagem à Itália, cuja relação está à beira da ruptura. Depois de oito anos de casamento, tomam consciência de que são dois estranhos e nada sabem um do outro. Gradualmente, a descoberta do fracasso conjugal repercute-se em cada um deles. Porém, se por um lado, se sentem estranhos, por outro comportam-se como esposos ciumentos e possessivos, onde as recriminações se multiplicam. Estas contradições acabam por levá-los à reconciliação, isto no meio de uma procissão que momentaneamente a arrasta, enquanto a multidão grita Milagre! Os sinais que o filme deixa são eloquentes. A visita de Katherine à Grotta della Sibilla, Templo de Apollo e ao Vesúvio, onde um guia lhe mostra uma pequena cratera que se formou em sua última erupção, bem como, o efeito da ionização, Pompéia, numo sítio arqueológico que indica a descoberta de um casal enterrado sob as lavas do Vesúvio.

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Aparentemente, nada se passou de particularmente interessante…Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal. E é a acumulação de todos esses momentos, de todos esses sinais que, a cada momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem fatalmente seguir numa direcção (a ruptura) e, não menos fatalmente, estão a seguir noutra (a redescoberta)…Ninguém vos pode jurar que…não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem e a mulher estejam sós. …Segundo Rohmer, Viagem em Itália é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E quem não O vir não vê nada. É apenas um filme? Precisamente.”

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La Règle du Jeu (J. Renoir/1939)-André, prestigiado aviador, está obcecado por Christine, mulher dum aristocrata. André consegue um convite para uma festa realizada pelo casal. Os sorrisos dos convidados escondem, porém segredos e sentimentos,e o resultado disso é um assassinato..,”Nunca houve filme mais odiado e amado. Reacções que surpreenderam sobretudo, o autor. Não há retrato nenhum: La Règle é uma opera buffa (exactamente como Mozart chamou a Le Noze di Fígaro…). Renoir nunca foi impiedoso…O filme não trata de uma classe…É a suprema ilustração da velha história favorita dos cépticos gregos quando um juiz, na presença do filho, ainda criança, dava razão às duas partes absolutamente contrárias que para ele apelavam. Observava o miúdo que as duas partes não podiam ter razão ao mesmo tempo. “Também tens razão meu filho”, era a resposta do pai…O que talvez se tenha perdido é outra acepção da palavra classe… Todas as culpas serão desculpadas a quem tiver “de la classe”. Et ça devient rare à notre époque..”

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Os Cahiers du cinéma exerceram influência determinante na crítica francesa e mundial. Fundados em 1951 por André Bazin, veio a reunir nomes importantes, como Éric Rohmer e François Truffaut. Sob a influência deste último, surge a Nouvelle Vague, criada por jovens cineastas. Defendiam que a responsabilidade dum filme dependia quase que exclusivamente do realizador e pretendiam produções intimistas e a baixo custo. Truffaut deixou uma filmografia importante. Entre os filmes laureados “La nuit américaine” (1973), “Les 400 coups” (1959), “Le dernier métro” (1980), “Vivement Dimanche!” “L’Argent de Poche” (1976). São incontáveis as referências a este autor por JbC.

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Cet obscur objet du désir (L. Buñuel/1977) “Nas trevas e na ilusão de desejo se situa o filme. Vezes sem conta…, Conchita (as Conchitas) [são duas actrizes para o mesmo papel] repete(m) ao velho e rico Fernando Rey que o ama(m) muito mais a ele do que ele a(s) ama a ela(s). Mentira? Tudo no filme parece confirmar que, de facto, mentem para convencer tão ingénuo sedutor. Mas quem pode garantir que assim seja? Reduzir o filme à fábula habitual do velho gaiteiro ou do anjo mais ou menos azul, é não perceber nada de nada. Porque se há mito convocado nesta obra, não é o das fábulas moralistas. É o das Mil e uma Noites, a mulher sabendo que o seu poder reside na sua não doação. Reter o desejo. Suspendê-lo para a noite seguinte.”

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Vertigo (Hitchcock/1958): o mais belo dos filmes…a paixão sempre cria a ilusão do duplo e só nessa ilusão se perfaz. Contra o mundo dos fantasmas, dos mortos-vivos, das aparições, da água que escorre, das ondas do mar, nada pode o mundo das sequóias semprevivas, das raízes, da duração e do tempo…Também se pode resumir o filme dizendo que ele começa com um polícia a matar um polícia e acaba com um polícia a matar uma assassina. E, olhem, não se está longe da verdade.

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A propósito de Um Verão de Amor (Somarlek/1951/Ingmar Bergman): quem me tem vindo a seguir, já sabe…porque Somarlek é o mais belo dos filmes…Apesar do happy end ou por causa do happy end – é um filme de dor e nostalgia, um filme de luto…O grande prodígio – um dos grandes prodígios – é a dissolução de tudo em tudo, do tempo para amar no tempo para morrer e do tempo para morrer no tempo para amar. Pelo tempo começa o filme – badaladas de um relógio. E a imagem do relógio funde-se com a de girassóis e pássaros, barcos e mar. E do tempo passamos ao templo – a Ópera, o Ballet, …e os sinais continuam a acumular-se…Uma história de frutos e flores, de sol e águas transparentes. Uma história de sítios secretos, de pássaros de verão, de nuvens e rochas…

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Some came running (V. Minnelli/1959): Centro deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema alguma vez inventou, Ginny (Shirley MacLaine) é menina e moça perdida na vida e perdida na morte, no sentido em que também se diz “mulher perdida “, “mulher da vida”, tão belas expressões. E no fim, no enterro dela, percebemos que, se Dean Martin nunca tirou o chapéu, foi para o tirar naquele momento, para a única mulher a que esse gesto obrigava…Há cineastas como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.Some Came Running é o último filme dos fifties e o primeiro dos sixties. E é um dos maiores filmes modernos de Hollywood.

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James Mason.…a incomparável voz dele, a mais bela voz masculina jamais ouvida no cinema…a viagem à pátria das sombras e dos turbilhões, a danação do arco-iris, a doce e mortal dentada da felicidade… No Humbert da Lolita de Kubrick (1962), …se o filme é melhor do que o livro, não o deve a Sue Lyon…mas à absoluta sofreguidão de Mason, absolutamente consumido pelo fogo dela…[Na Embaixada de França] foi na voz dele – pela voz dele que ouvi histórias de Nick Ray, de Ophuls, de Mankiewicz. Deixou-se ficar a um canto e cedeu o centro da sala a Gregory Peck cheio de lifting e de cabelo pintado de preto.

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Em vez de dizer Marilyn dizer mulher, como escreveu Ruy Belo e parafraseou JbC…Foi a voz e o corpo acesos por…Wilder, Cukor, Hawks, Hataway, Logan…Bastava que surgisse para tudo ser luz: uns perceberam-no e quedaram-se maravilhados; outros, não sei se o perceberam, mas a maravilha acontecia igualmente…Nunca houve luminosidade assim. E esse é o nome da beleza. Depois há o medo. Quantas vezes Marilyn no-lo mostrou, quantas vezes aludiu a ele?. Há gente assim, os seres que não são deste mundo, de que falava Régio…[Mas] cada plano de Marilyn nos fala da morte

      Na morte de Marilyn
, poema de Ruy Belo

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Humphrey Bogart: após uma série de filmes da série B, o seu desempenho em Casablanca levou-o ao pico da carreira e, simultaneamente, contribuiu para a sua imagem-de-marca de cíinico escondendo uma alma nobre. Outros filmes: High Sierra, The Maltese Falcon, To Have and Have Not, The Big Sleep, Dark Passage, and Key Largo, The Treasure of the Sierra Madre; The African Queen, e The Caine Mutiny. Sobre ele escreveu Nick Ray: ele era muito mais que um actor – era a verdadeira imagem da nossa condição. O seu rosto era uma repreensão viva. Morreu em 1957 de cancro no esófago. Últimas palavras:”I should never have switched from Scotch to Martinis.”. Em 1999, o American Film Institute classificou-o como the Greatest Male Star of All Time.

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Sobre Casablanca:…tão fremente, tão generosa e tão confiante como Ingrid Bergman o era. Aparentemente nessa sequência (o reencontro no Rick’s Bar em que ela pede a Sam para tocar As times goes by)…triunfa a expansão do grande amor sobre a contenção dele, a dádiva de Ingrid Bergman sobre o ressentimento de Humphrey Bogart…

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Sempre teremos Paris¨diz no fim Rick a Ilsa. A imensidão desse adeus vem de sabermos que não. Terão Paris (sempre, como terão Casablanca, porque nunca mais se tocarão e se beijarão como em Paris e Casablanca). Ficaram com todo o tempo, quando ja sabiam “as times go by”

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Se viu Casablanca, amará ate ao fim Bogart e Bergman. E procurará toda a vida o Rick’s Bar em Casablanca, sabendo perfeitamente que não há nenhum Rick’s Bar em Casablanca e que nao há outra Casablanca senão aquela onde um dia se encontraram e se perderam Ingrid Bergman e Humphrey Bogart. Se isto não for o cinema é porque o cinema nao existe”

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Os alunos que a assimilaram [mensagem de vida “aproveita o dia”, cujo sentido é – aproveita, goza a vida, ela dura pouco, é muito breve], quando ele foi despedido – porque aos inovadores só tardiamente lhes fazem justiça, contra a cólera do professor-arauto das “boas normas”, subiram às carteiras e saudaram-no como o faziam nas suas reuniões clandestinas “My Captain”. Assim, me apeteceu despedir-me de si, João! E é tão a propósito recordá-lo porque li vários artigos seus sobre Veneza, Verdi, os olhos espantosos da Alida Valli, a voz de Callas (a sua Traviata em S. Carlos) , o cinema de Visconti, Godard. V. foi um homem fora do seu tempo, de todos os tempos, que ensinou caminhos para descobrir e amar a Arte. Dreyer, Visconti, Bergman, Buñuel, Truffaut e Antonioni, entre muitos e muitos outros.

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Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

      Ouça os poemas

Veja os vídeos:

http://www.youtube.com/watch?v=BG0qd5VT52I&feature=player_embedded

Visconti e o Romantismo

Luchino Visconti (1906-1976) é dos mais importantes realizadores da História do Cinema Mundial. Aristocrata descendente da família Sforza de Milão, marxista convicto, absolutamente genial, dedicou-se também ao Teatro e à Ópera. Dirigiu espectáculos com Vittorio Gassmann, encenou peças de Jean Cocteau e Tenessee Williams e óperas, como “Anna Bolena” de Donizetti em La Scala de Milão (1957), com Maria Callas, apontada como um espectáculo excepcional .
Durante o fascismo italiano e no pós-guerra, os seus filmes tiveram uma matriz politica marcada, vindo Visconti a ser considerado um dos autores fundamentais do neo-realismo. “”Ossessione”  (1943) e “La terra trema” (1948) são filmes dessa época, estruturados a partir da miséria e desespero do povo a procurar sobreviver num mundo em ruínas.
A partir de “Senso” (1954), os seus filmes estribam-se numa nova estética, interrompida por “As noites brancas” (1957) e  por ”Rocco e seus Irmãos” (1960). Há opulência de cenários, côr e guarda-roupa (sempre associados a bandas sonoras belíssimas, a movimentos de câmara rigorosos  e sábios enquadramentos)  e temas recorrentes: a decadência, sobretudo da aristocracia, resultante da ascensão da burguesia, o declínio pelo tempo e a inevitabilidade da morte. Em “O Leopardo” (1963), Visconti auto-retrata-se, no papel do Príncipe de Salina – interpretado por um magnífico e inesperado Burt Lancaster, bem como aos senhores da terra que, naquele momento histórico, se viram compelidos a abdicar do seu fausto, quando as tropas de Garibaldi chegaram à Sicília. A decadência da aristocracia está presente em outros filmes como em “Violência e Paixão” (1974), também com Burt Lancaster e, nesse outro filme terrível “Os Malditos” (1969), que conta a desintegração de uma família da alta finança alemã, durante a ascensão do nazismo.
“Morte em Veneza”  (1971) é a crónica da morte anunciada do compositor Gustav von  Aschenbach (homenagem a Gustav Mahler). Gradualmente vamos acompanhando à aproximação do fim dum Aschenbach embutido na paisagem de Veneza com a obsessão da perfeição e beleza. Acreditava poder atingi-los, renunciando aos prazeres mais banais. Mas acaba por entregar-se de corpo e alma a uma relação platónica de admiração pela beleza de um jovem apolíneo. Assistimos à sua decadência, aos olhares patéticos e, por fim, a sua morte.
A obra de Visconti não pode, pois, ser considerada globalmente romântica. Mas há filmes cuja estética admirável e enredo são paradigmas românticos. Luis da Baviera, de “Ludwig” (1973), que atribui um nome de ópera à sua “noiva” e que decora os castelos com cisnes, outra figura da mitologia alemã… Aschenbach, elegante e metódico, quase a perder a compostura diante da paixão/revelação…O Príncipe de Salina, que representa o próprio Visconti, a olhar o quadro do moribundo ou a ver-se ao espelho com uma lágrima pela face tão inexorável como a morte que se aproxima…

FM

 

1

Luchino Visconti foi um indivíduo ambivalente e de algum modo contraditório: aristocrata e marxista; homem requintado, quase toda a sua obra reflecte preocupações sociais ou relata importantes acontecimentos políticos. Como todos os artistas, falou principalmente de si. Homosexual, não escondeu a sua fixação erótica em actores, como Helmut Berger. Foi um director de actores “difícil”. Da sua filmografia extensa, é difícil seleccionar as “obras-primas”. Falamos daquelas que mais gostamos…mas não é fácil a escolha!

2

A acção do filme decorre em 1866, durante a guerra que opôs os Italianos que lutavam pela unificação, e o exército austríaco invasor. As primeiras cenas de Senso (A sedução da carne), que também ele é um filme-ópera, passam-se ao som da ária “Di quella pira” do Trovatori de Verdi, que serve para uma manifestação patriótica contra os ocupantes.

3

Figurantes centrais: a condessa Livia Serpieri (Alida Valli), o marido, seu primo e chefe dos patriotas e o tenente austríaco Mahler (Farley Granger). A um insulto do austríaco, o primo da condessa desafia-o para um duelo que não chega a realizar-se porque Mahler o denuncia à polícia (sabe-se depois) e ele é preso. Antes, porém Lívia tentara convencer Mahler que não atribuisse importância ao incidente… O oficial austríaco oferece-se para acompanhar Lívia e inicia-se aqui um longo passeio pelas ruas de Veneza e não sei o que será mais importante se a 7ª Sinfonia de Bruckner, se as palavras de Mahler ou ambos.

4

É um processo de sedução que se vai tornando cada vez mais cego e louco. Os encontros secretos de ambos a que ele começa a faltar e que a levam a procurá-lo na casa que partilha com outros oficiais austríacos e a sujeitar-se a comentários jocosos.

5

A iminência da guerra faz partir o marido para uma casa de campo, arrastando-a consigo, mas onde ela julga encontrar a paz. Porém, eis que numa noite ele aparece. Lívia tenta resistir: “Já não estamos em Veneza”…mas Mahler uma vez mais consegue seduzi-la. Não pode viver sem ela, a guerra, o horror da guerra, a possibilidade de ficar mutilado…e fala de um camarada que subornara um médico para ser considerado inapto…é uma questão de dinheiro…

6

Ensaia uma pequena resistência, quando Lívia lhe pergunta quanto. À resposta, ela fica desesperada, não dispõe daquela quantia. Mas, lembra-se dum pequeno tesouro que o primo lhe confiara e que pertencia à causa patriótica. Vai buscá-lo. Entrega-lhe o dinheiro e ele parte. Recebe depois uma carta dando-lhe conta do sucesso do expediente e do local onde estava a morar, pedindo-lhe para não ir, por agora, por não ser seguro. Mas a guerra continua, está às portas de Verona, onde ele se encontra. Lívia atravessa as linhas de batalha numa carruagem preta e descobre-o, alcoolizado com uma prostituta…

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O diálogo é tremendo: Mahler diz nunca ter estado tão lúcido como naquele momento: ele não corresponde à ideia que ela tinha feito de si, pois era, de facto – um velhaco, um desertor…e acaba por expulsá-la da casa que diz ter sido paga também com o dinheiro que ela lhe tinha dado. Como também servira para pagar à prostituta…havia mulheres a quem se pagava e outras…Lívia (Alida) tem uns olhos espantosos: cabem neles toda a raiva pela infâmia da paixão emporcalhada

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Lívia vai denunciá-lo ao Quartel-General, sabendo que isso corresponde ao fuzilamento. O General lembra-lhe que a delação é uma infâmia e ela pede-lhe que ele cumpra o seu dever. O General manda proceder à prisão e execução…o que acontece…os gritos de Lívia pelas ruas de Verona, chamando pelo seu nome… Traição: dela ao marido, aos ideais políticos e a si própria. Ele: cobarde, golpista, falso, hipócrita. Romantismo: imaginar Mahler ou inventar quem quer que seja, sem estar atento aos sinais da realidade.

9

Este é um filme admirável, sob todos os pontos de vista. Exemplar no modo como apresenta o personagem Lívia, idealizando um homem que só existia na sua cabeça e se recusou a entender os sinais que ele e outros lhe enviaram (as ausências aos encontros, as revelações dos camaradas de armas) sobre o carácter de Mahler. E, depois, numa ambivalência de amor-ódio leva-o à morte. Vingança? Como vingança, se quem sobrevive vai expiar para sempre essa culpa? Rever Senso é também admirar Veneza e recordar outras obras incontornáveis como o Mercador de Veneza e, sobretudo o Othelo de Shakespeare. Haverá alguma relação entre a tragédia de Desdémona vítima dos ciúmes loucos de Othelo e este melodrama histórico? Se o João Bénard da Costa pudesse responder…

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Mas Senso, Visconti e Veneza faziam parte, como não podia deixar de ser dos 50 ou 500 filmes da vida de João Bénard da Costa, como da nossa. O requinte aristocrático de Visconti, aliado a uma perspectiva histórica rigorosa fizeram dele talvez o maior cineasta do Romantismo, que estará como Wagner ou Verdi para a música. Aliás, não é por acaso, que a música de ambos está tão presente nos filmes de Visconti.

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Luís da Baviera é talvez o expoente máximo do Romantismo. Relata com rigor a vida de Ludwig que ocupou o trono da Baviera entre 1864 e 1886. Politicamente, defendia uma linha contrária à opinião popular. Profundamente misantropo, vivia isolado do mundo.

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O rei, coroado aos 18 anos, sentia enorme devoção por Elisabeth da Áustria “ma cousine”. Pedia-lhe que nunca o abandonasse. Ela, manipuladora, queria vê-lo casado com a irmã Sofia.

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Ludwig vivia a arte de forma obsessiva e dedicava grandes somas à construção de luxuosas residências com predomínio dos estilos neogótico e rococó: os palácios de Herrenchiemsee, Neuschwanstein e Linderhof.

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Acolheu com entusiasmo o compositor Richard Wagner, a quem financiou, pagou dívidas e para quem mandou construir um teatro. A correspondência entre ambos mostra quanto as relações foram importantes, sobretudo para Ludwig, mesmo que, por razões políticas, o tivesse de expulsar da Baviera.

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Não é por acaso que Ludwig chamava à sua noiva (com quem nunca chegou a casar-se) Elsa. Elsa é, nem mais nem menos, a amada de Lohengrin e este, o cisne, filho de Parsifal!

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Lohengrin é, pois, evocado pela presença de cisnes que Ludwig mantinha nos seus castelos, nomeadamente Neuschwanstein.. Segundo a lenda, Elsa teria sido acusada injustamente da morte de seu irmão, herdeiro do trono de Brabante. Sabendo-se inocente, declara estar disposta a submeter-se ao julgamento de Deus, através de um combate e invoca o protetor com o qual sonhara, e eis que surge no julgamento um cavaleiro num barco puxado por um cisne…Ele aceita lutar por Elsa desde que ela nunca pergunte o seu nome ou a sua origem, proposta essa prontamente aceite. O cavaleiro prova a inocência da princesa e, depois, pede-a em casamento.

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Porém, Elsa rompe o pacto com o cavaleiro, agora seu marido, fazendo-lhe as perguntas proibidas. O cavaleiro então anuncia diante de todos sua a verdadeira identidade: Lohengrin, um cavaleiro do Santo Graal, filho do rei Parsifal. Revela também que foi enviado pelo Cálice, mas que era hora de regressar, tendo aparecido somente para provar a inocência de Elsa.

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Ludwig teria, de acordo com um relatório psiquiátrico (que não é citado no filme), uma fobia social. No entanto, alguns criados dos palácios passam a favoritos… O alheamento dos assuntos de Estado em prol da arte, conduziram à loucura e à morte (em circunstancias que o filme não explica).

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Segundo o filme, sua prima Elizabeth acusou-o de desprezar o povo e querer passar à história à custa de Wagner e de construir obras de arte. No entanto, hoje, a monumentalidade da Baviera deve-se muito aos seus empreendimentos e Wagner teve nele um mecenas precioso.

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O expoente máximo do Romantismo em Visconti? Trata de uma figura histórica e prenuncia a proximidade do Império germânico, a importância de Bismark e a emergência prussiana. Há em Ludwig uma certa desrealização: ele tem modelos na cabeça, onde quer encaixar as pessoas, não o contrário: a noiva é Elsa sem o ser, os cisnes estão sempre presentes (o Lohengrin).

Baviera 1 Castelo de Neuschwanstein

Castelo de Neuschwanstein. Situado a escassas dezenas de quilómetros da fronteira com a Áustria. O castelo possui um estilo fantástico e serviu de inspiração ao “Castelo da Bela Adormecida”, símbolo dos estúdios Disney.

Baviera 2 Schloss Hohenschwangau

Schloss Hohenschwangau que foi a residência de infância de Luís II, mas construído pelo seu pai, o Rei Maximiliano II da Baviera. Fica localizado na aldeia alemã de Schwangau, também muito próximo da fronteira com a Áustria. O mundo de Luis II é fantástico. Mas isto não é uma “loucura”. Estas perturbações evocam uma monomania de construções e uma fobia social.

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Helmut Berger, actor que desempenhou o papel de Ludwig, aqui nos Malditos, outro filme de Visconti.

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Morte em Veneza é o filme vencedor do Grande Prémio do 25º Aniversário do Festival de Cannes. Adaptado do romance de Thomas Mann, com o rigor habitual de Visconti, relata as férias do compositor Gustav Ashenbach (Dirk Bogarde), que vive um período de crise pessoal.

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No entanto, na obra de Mann, Aschembach era escritor, e sentia que pela sua condição artística era sexual e intelectualmente superior ao seu próximo e, considerava a homossexualidade como a mais intelectual forma de amor.

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Aschenbach estava na casa dos 50 anos e sentia os sinais do envelhecimento. No Lido em Veneza, para onde viaja, apaixona-se por um adolescente Tadzio (Björn Andrésen), que está em férias com sua família. Os cuidados que manifesta para que a sua admiração/encantamento pelo jovem não seja notada, sugere o recalcamento a que a sociedade o submetia, a preocupação pelas aparências.

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Tadzio representará o ideal de beleza que Aschenbach sempre imaginou. Vive uma permanente ambivalência entre o ser metódico, racional, disciplinado, o qual por outro lado procura o desmedido e o eterno, talvez a transgressão. Este conflito fá-lo partir (escapar), tanto mais que a cólera está a chegar a Veneza. Mas é um afastamento abortado e o regresso tanto lhe deu prazer como descontentamento (mais uma ambivalência)

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O filme, como Aschenbach, é de uma admirável delicadeza, passado em cenários deco utilizando o Adágio da 5ª Sinfonia de Mahler, que parece ter sido feito de propósito para a entrada do vapor em Veneza.

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Uma vez mais parte dum diálogo do filme: “A realidade apenas nos confunde e avilta””o que é a dignidade humana?” Este fascínio pela beleza que é de Aschenbach e de Visconti…O lado sombrio da solidão evidencia o drama de Aschenbach, ao «amor» impossível de um homem de meia idade por um adolescente.

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Aschembach tem a atitude narcisista de rever a beleza do corpo (a beleza do “seu” corpo) através das formas de efebo do jovem. O tema da obra de arte é sempre o autor. A dignidade e a compostura com que chega a Veneza vão-se transformando através desta paixão que vincam a sua decadencia e prenunciam o fim.

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“Um homem tem a idade que aparenta”, comenta o barbeiro enquanto lhe pinta o cabelo, numa tentativa de rejuvenescimento. Depois na praia, quando o vemos desfalecer com a tinta a escorrer pela face e o vulto de Tadzio em contra-luz a entrar no mar, Ascenbach afunda-se no cadeirão e na vida. Serve de pouco esconder a idade (“a velhice a maior das impurezas”)

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É um filme belíssimo, que temos dificuldade em encarar, quando o objecto da paixão dum homem de meia idade é um adolescente, mesmo que se trate duma relação platónica e aquilo que são analisadas são as contradições do artista (músico ou escritor) cujo ego está em constante auto-análise. Difícil e perigoso. Mas a arte não tem de ser inócua.

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O Leopardo é outra das obras-primas de Visconti (1963). Adaptado do romance de mesmo nome, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa é um fresco da Itália da época de Garibaldi, em que se assiste à decadência da aristocracia rural e à emergência da burguesia, com a denúncia do cinismo político, que é de todos os tempos, e, uma vez mais, a dialéctica do envelhecimento.

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Na iminência da unificação da Itália, D. Fabrício, Príncipe de Salina (Burt Lancaster), aristocrata siciliano, procura preservar os seus privilégios e benesses no meio da revolução liderada por Garibaldi.

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A ascensão da burguesia é uma ameaça. Ao tomar da influência local e da fortuna recente de um administrador de propriedades, homem um tanto boçal,, arquitecta o casamento de seu sobrinho Tancredo (Alain Delon) com a filha do administrador, a belíssima Angélica (Claudia Cardinali).

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Tancredo partira a juntar-se às forças revolucionárias, mas estas seriam derrotadas…e Tancredo muda de lado. É ambicioso, associa-se a quem lhe puder ser útil…não consta que sentisse vergonha.

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“Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.”, é o lema do sobrinho que mais tarde o próprio tio adopta

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O Príncipe é dotado de grande faro político (ou cinismo?). Os seus diálogos com o padre que representa os interesses da Igreja, são antológicos, bem como a chegada à povoação de Donnafugata onde resolve refugiar-se temporariamente com a família, cidade em que costuma passar regularmente suas temporada de férias.

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O casamento significará a harmonização entre a aristocracia decadente com a burguesia emergente e enriquecida. É uma união, anteriormente impensável (recorde-se a sonora e escandalosa gargalhada de Angélica no meio do jantar), logo depois de ouvir uma piada de duplo sentido de Tancredo), tanto mais que sacrifica a paixão da sua tímida filha por Tancredo. Mas é tudo aquilo que o Príncipe Salinas deseja. “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.”

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Na cena do baile há aspectos muito interessantes: o jogo de sedução entre Angélica e o Príncipe que de algum modo ela incita, o olhar de ciúme de Tancredo e como que a decisão do tio, que sente que o seu tempo se está a esgotar: pertence agora a seu sobrinho.

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A presença de nobres e burgueses, lado a lado, no mesmo nível, prenunciando a decadência de uns e a ascensão dos outros. O Principe percorre os salões. Salinas é Visconti. Há amargura. A decadência é social e dele próprio.

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Sempre o princípio e o fim em Visconti: a consciência do envelhecimento. O seu cepticismo e lucidez. Mesmo que o Príncipe ainda esteja apto a deslumbrar a assistência ao valsar com Angélica, acode-lhe a percepção da morte, simbolizada no quadro da biblioteca representando um moribundo rodeado pela família. E ao olhar para o espelho uma lágrima atravessa-lhe o rosto…Chega um padre para dar a extrema-unção a um personagem desconhecido. No baile, os últimos resistentes ensaiam um passo de dança no salão quase vazio. As premonições do fim.

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Realiza o seu último filme – O Inocente (1976) já de cadeira de rodas, depois de um AVC. A história do aristocrata que mata o seu bebé, convencido de que este resulta do adultério da mulher. Trata da culpa da aristocracia e é um final terrível para a obra de Visconti. Sobre o realizador e este filme: “…Adormecia tarde e era o primeiro a despertar. Chamou para que o lavassem, o vestissem. Recomeçaria uma vez mais a cena, com nova iluminação. O rosto de Tullio Hermil deveria estar na penumbra, só as mãos francamente iluminadas. Porque é nas mãos… Não, não, as mãos são inocentes. É no espírito que tudo tem origem; mesmo o amor; mesmo o crime. Excepto a morte. A morte era bem no seu corpo que principiava. Ali estava ela, tomando conta de si. Via-a crescer a cada instante, essa cadela. De súbito, tornara-se real, os dentes afiados, a baba escorrendo, o salto iminente. Em grande plano.” (Eugénio de Andrade/Vertentes do olhar)

 

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Olhares (e ver)