Camões, os Portugueses e o Índico

Que influência tiveram Os Lusíadas na aventura de Alcácer-Quibir? Teria Luis Vaz incendiado a imaginação do Rei-adolescente com as suas ideias sobre a grandeza do destino português? Teria sido outra a trajectória portuguesa no final do Séc. XVI? Talvez, mas é pura especulação.
Verdade, é que Camões, depois de inúmeras vicissitudes – pobreza, traições, abandono em Moçambique por gente em quem confiava, quando conseguiu regressar à Pátria, em Lisboa passou a receber uma pensão outorgada pelo Rei “pelos seus bons serviços”, que, correspondia a ¼ do que ganhava um carpiteiro na época… El-Rei mandou publicar o poema, é certo, mas a sua divulgação pequena e, mesmo assim com as emendas que o Santo Ofício determinou. A miséria – e a fome, acompanharam os últimos anos de Camões. E o desfecho da expedição de D. Sebastião e a ascensão ao trono de Filipe II de Castela e I de Portugal, deixaram-no em profundo abatimento, até que a peste o ceifou.
Contudo, não deixa de ser significativo, ser o rei castelhano, homem culto na sua época, quem tenha providenciado à divulgação d’Os Lusíadas e que a ele e a outros homens cultos de Castela, se deveram o reconhecimento e a admiração por Camões, que haveriam depois de o tornar famoso.
A epopeia de Camões não defendia apenas a raça portuguesa. Levantava dúvidas sobre a razoabilidade da expansão marítima e sobre o carácter dos seus protagonistas. Havia heróis corruptos, cobiçosos, vis. De qualquer forma, Os Lusíadas são fundamentalmente a elegia dos portugueses, a sua vocação para grandes feitos, para a sua missão de evangelizar os povos que descobriam, esses apresentados como mais fracos ou submissos.
A epopeia, como documento de viagem, é fiel. Se Camões não tivesse percorrido todas as regiões por onde Vasco da Gama se atrevera, se não tivesse estudado minuciosamente os relatos conhecidos dessa viagem, como também dos episódios históricos que evoca, Os Lusíadas não teriam o rigor que se lhe reconhece ou talvez não lhe tivesse sido possível escrevê-los.
Mas outros foram os textos mais ou menos contemporâneos que falaram dos Descobrimentos. Em primeiro lugar, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que terá convivido com Camões em Macau. O herói português da Peregrinação é um aventureiro, frequentemente pirata, que comerceia e guerreia para lucro próprio. É um relato das misérias humanas vividas por Pedro de Faria. No Oriente os portugueses são bárbaros e os Orientais civilizados. As viagens atribuladas de Fernão Mendes pela Birmânia, Sião (actual Tailândia), China e Japão, forneceram-lhe material para o livro que só seria publicado após a sua morte e cujo conteúdo extraordinário foi posto em causa (chamando ao autor, Fernão Mendes Minto). E também S. Francisco Xavier muitas vezes se manifestou contra a imoralidade da Administração portuguesa.
Portugal, que se expandira tanto para Oriente como para Ocidente, sofria na Europa um evidente declínio que a perda da independência haveria de agravar. Outras vozes, como a de Gil Vicente no Auto da India, apesar de se tratar de uma peça de costumes (envolvendo adultério, hipocrisia e oportunismo), abordava a história de um marinheiro que embarca à procura de fortuna e poder.
Visitar hoje as praias do Índico, as igrejas, os fortes mais ou menos em ruínas, descobrir uma lápide, uma estátua, um jardim, não são actos de saudosismo. São pretextos para recordar a História portuguesa, analisar a sua nobreza e misérias, e, se possível, traçar paralelos e tirar conclusões.
O regresso do Império à expressão mais simples, nem com a tragédia dos retornados, parece ter acordado os portugueses. O seu destino de grandeza é uma miragem. Afinal, o velho do Restelo ao apostrofar os navegantes, era a voz da sensatez. Sempre foi necessário sonhar, como é preciso ter os pés assentes na terra. Não dar um passo sem ter o outro pé apoiado. Alcácer-Quibir foi o resultado do fanatismo religioso, associado à cupidez de nobres e burgueses e à falta de senso do Rei. Os Homens do Infante desenharam os mapas e os navegadores seguintes venceram o medo apoiados na cartografia e no nónio. Mas os seus sucessores passaram a viajar à bolina do destino. Quase 500 anos depois, cercados pelas dívidas do Estado, pelas exigências dos credores, não temos mais qualquer fuga possível, a não ser encarar a realidade.

FM

 

As armas e os barões assinalados,/Que da ocidental praia Lusitana,/Por mares nunca de antes navegados,/Passaram ainda além da Taprobana,/Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana,/E entre gente remota edificaram/Novo Reino, que tanto sublimaram;

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E também as memórias gloriosas/Daqueles Reis, que foram dilatando/A Fé, o Império, e as terras viciosas/De África e de Ásia andaram devastando;/E aqueles, que por obras valerosas/Se vão da lei da morte libertando;/Cantando espalharei por toda parte,/Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano/As navegações grandes que fizeram;/Cale-se de Alexandro e de Trajano/A fama das vitórias que tiveram;/Que eu canto o peito ilustre Lusitano,/A quem Neptuno e Marte obedeceram:/Cesse tudo o que a Musa antígua canta,/Que outro valor mais alto se alevanta.

Camões é um dos grandes poetas da Humanidade. Além dos Lusíadas, a sua obra estende-se pela lírica e teatro. A 1ª metade do séc. XVI, época em que viveu, corresponde à expansão portuguesa e a um período de exacerbado orgulho patriótico pelas Descobertas. Os Lusíadas são a celebração da viagem do caminho marítimo para a Índia e de episódios da História de Portugal.

Nele coexistem a visão cristã e a mitologia greco-romana. Os mitos aparecem lado a lado com factos históricos (como a morte de Inês de Castro ou a batalha de Aljubarrota). A perspectiva da grandiosidade da Pátria e da predestinação do seu Futuro não invalida que Camões denuncie a Ambição e a Cobiça e questione a Fama e a Glória da aventura marítima (Velho do Restelo).

Monumento a Camões em Constância (Ribatejo) Camões nasceu em 1524 ou 25, provindo de família nobre. Um dos tios, iminente intelectual, era Reitor da Universidade de Coimbra. Foi ele que o auxiliou nos estudos, obtendo naquela Universidade o título de Bacharel de Artes. De volta a Lisboa, Camões frequentou a Corte. Aqui se inicia a sua fama da Poeta. A paixão por uma dama de honor da Rainha (a quem dedicou versos, com o anagrama de Natércia, mas a quem não podia aspirar por não ter fortuna), valeram-lhe o exílio durante 2 anos em Constância. Parte depois numa expedição para o norte de África, onde em Ceuta perde em combate o olho direito. De regresso, é uma vida boémia, feita de duelos, saraus, também reconhecimento popular, invejas…Num desses duelos fere um moço de arreios do Rei. Preso, é libertado um ano depois com a exigência de embarcar para a Índia. Era o ano de 1553. Para trás ficava a representação da sua 1ª peça teatral.

Camões foi um Homem que antecipou o seu tempo. Verdadeiro humanista, estudou os clássicos – Homero, Virgílio, Ovídio, como também outros – Petrarca (cujo estilo adoptou na lírica), Tasso, Boccaccio…. Sabia latim e castelhano. O Renascimento italiano fizera interessar os homens do seu tempo por áreas tão diferentes como matemáticas, filosofia, medicina… E Camões, mesmo vivendo no Oriente, por vezes em condições de indigência, como sucedia à generalidade dos soldados que para aí iam, reunia os amigos (onde se encontraram Garcia de Orta e Diogo do Couto) e liam os poetas clássicos, como trocavam a informação científica que lhes chegava ou de que eram autores.

Estátua de Vasco da Gama (na Ilha de Moçambique). Quanto a Vasco da Gama, herói e figura central d’Os Lusíadas, partira de Belém, em Lisboa, em 1497, rumo à Índia. A armada era composta por três naus.. Depois de bordejar toda a costa de África e ultrapassado o Cabo da Boa Esperança, entraram no Oceano Índico, ancorando em Calecute, no ano de 1498. Estava traçado o caminho marítimo para a Índia e estabelecida uma nova rota de comércio para o Oceano Índico.

“Mais ia por diante o monstro horrendo /Dizendo nossos fados, quando alçado /Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo Corpo certo me tem maravilhado.— /A boca e os olhos negros retorcendo, /E dando um espantoso e grande brado, /Me respondeu, com voz pesada e amara, /Como quem da pergunta lhe pesara:

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— “Eu sou aquele oculto e grande Cabo, /A quem chamais vós outros Tormentório, /Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo, /Plínio, e quantos passaram, fui notório. /Aqui toda a Africana costa acabo /Neste meu nunca visto Promontório, /Que para o Pólo/Antarctico se estende, /A quem vossa ousadia tanto ofende.

Ilha de Moçambique – Na sua viagem inaugural, Vasco da Gama aí chegou em 1498. Na Ilha havia uma povoação swahili de árabes e negros com o xeque, subordinado ao sultão de Zanzibar. Onde, na Ilha de Moçambique é hoje o Palácio dos Capitães-Generais, os portugueses, no ano de 1507, construíram a Torre de São Gabriel – pequena fortificação com uma guarnição de 15 homens para proteger a feitoria nela instalada.

A Ilha tem cerca de 3 km de comprimento e situa-se à entrada da Baía de Mossuril .A sua costa oriental estabelece com as ilhas irmãs de Goa e de Sena (também conhecida por Ilha das Cobras) a Baía de Moçambique

Ilha de Goa (em Moçambique), que apresenta como atração um farol que funciona desde 1876

O farol

Em 1558 principiou a construção da Fortaleza de S. Sebastião, só concluída em 1620. Esta fortificação, a maior da África Austral, era estrategicamente muito importante. A Ilha tinha-se tornado o entreposto comercial para troca de panos e missangas da Índia por ouro, escravos, marfim e pau preto de África. Era também da Ilha que partiam as viagens comerciais para Quelimane, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques

É pobre e já foi rica. Era mais pobre/quando Camões aqui passou primeiro,/cheia de livros a cabeça e lendas/e muita estúrdia de Lisboa reles./Quando passados nele os/Orientes/e o amargor dos vis sempre tão ricos,/aqui ficou, isto crescera, mas/a fortaleza ainda estava em obras,/as casas eram poucas, e o terreno/passeio descampado ao vento e ao sol/desta alavanca mínima, em coral,/de onde saltavam para Goa as naus, que dela vinham cheias de pecados/e de bagagens ricas e pimentas podres./Como nau nos baixios que aos Sepúlvedas/deram no amor corte primeiro à vida,/aqui ficou sem nada senão versos./Mas antes dele, como depois dele,/aqui passaram todos: almirantes, ladrões e vice-reis, poetas e cobardes,/os santos e os heróis, mais a canalha/sem nome e/sem memória, que serviu/de lastro, marujagem, e de carne/para os canhões e os/peixes, como os outros./Tudo passou aqui ? Almeidas e Gonzagas,/Bocages e Albuquerques, desde o Gama./Naqueles tempos se fazia o espanto/desta pequena aldeia citadina/…

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…de brancos, negros, indianos e cristãos,/e muçulmanos, brâmanes, e ateus./Europa e África, o Brasil e as Índias,/cruzou-se tudo aqui neste calor tão branco como do forte a cal no pátio, e tão cruzado/como a elegância das nervuras simples da capela pequena do baluarte./Jazem aqui em lápides perdidas/os nomes todos dessa gente que,/como hoje os negros, se chegava às rochas,/baixava as calças e largava ao mar/a mal-cheirosa escória de estar vivo./Não é de bronze, louros na cabeça, nem no escrever parnasos, que te vejo aqui/Mas num recanto em cócoras marinhas, soltando às ninfas que lambiam rochas/o quanto a fome e a glória da epopeia/em ti se digeriam. Pendendo para as pedras/teu membro se lembrava e estremecia/de recordar na brisa as cróias mais as damas,/e versos de soneto perpassavam/junto de um cheiro a/merda lá na sombra,/de onde n’alma fervia quanto nem pensavas…

…Depois, aliviado, tu subias/aos baluartes e fitando as águas/sonhavas de outra Ilha, a Ilha única,/enquanto a mão se te pousava lusa,/em franca distracção, no que te era a pátria/por ser a ponta da/semente dela./E de zarolho não podias ver/distâncias separadas: tudo te era uma/e nada mais: o Paraíso e as Ilhas,/heróis, mulheres, o amor que mais se inventa,/e uma grandeza que não há em nada./Pousavas n’água o olhar e te sorrias/? mas não/amargamente, só de alívio,/como se te limparas de miséria,/e de desgraça e de injustiça e dor/de ver que eram tão poucos os melhores,/enquanto a caca ia-se na brisa esbelta,/igual ao que se esquece e se lançou de nós. (Jorge de Sena)

Igreja de Santo António /Ilha

“Esta ilha pequena, que habitamos, /em toda esta terra certa escala /De todos os que as ondas navegamos/De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;/E, por ser necessária, procuramos,/Como próprios da terra, de habitá-la;/E por que tudo enfim vos notifique, Chama-se a pequena ilha Moçambique. Canto I

Ilha de Moçambique – No Largo de S. Paulo situa-se o Palácio dos Capitães-Generais, também conhecido como Palácio de S. Paulo ou Palácio do Governador. Foi construído em 1610 e reconstruído em 1674, após incêndio que o destruíu. Em 1759 passou a ser a residência do Governador-Geral (ou Capitão-General, daí o seu nome), até a capital da colónia passar para Lourenço Marques, em 1898.

Praia das Chocas

Pormenor da Praia das Chocas

Praia da Carrusca, contígua às Chocas

A exportação de escravos era o principal comércio da Ilha, mas a Independência do Brasil, principal destino do comércio negreiro, deixou a ilha no marasmo, que veio a agravar-se com a passagem da capital da colónia para Lourenço Marques, em 1898 e com a abertura do porto de Nacala, em 1970.

Pemba Os swahilis são uma etnia da África Oriental que se estende por regiões que incluem o Norte de Moçambique, Tanzânia e Quénia. Na maioria são muçulmanos e sempre tiveram estreitas relações com os povos do Golfo Pérsico e da Península da Arábia, cuja influência é evidente. A sua principal atividade é a pesca, que continua a fazer-se de modo artesanal. O comércio de escravos e de marfim representou durante séculos importante atividade económica.

Tanzânia, Forte de Quiloa Parece terem sido populações swahili quem, no Séc IX, ocupou em primeiro lugar as ilhas de Quiloa, que viria a ser um importante centro comercial.

O Forte de Quiloa (primeira fortificação erguida em pedra e cal na África Oriental) foi construído em 1505, por ordem do Vice-Rei da India, D. Francisco de Almeida para proporcionar abrigo aos passageiros das naus da Carreira das Índias, que demandavam aquele porto

“Mas eis outro (cantava) intitulado/Vem com nome real e traz consigo/O filho, que no mar será ilustrado,/Tanto como qualquer Romano antigo./Ambos darão com braço forte, armado,(A Quíloa fértil, áspero castigo,/Fazendo nela Rei leal e humano,/Deitado fora o pérfido tirano. (Canto X)

Mombaça A presença portuguesa foi conflituosa. Desde Vasco da Gama, hostilizado na sua passagem, a represálias posteriores ordenadas por vários Vice-Reis da Índia, há histórias de ataques, cercos, traições, até à sua perda para forças islâmicas, em 1698. 30 anos depois o forte haveria de ser entregue aos Portugueses, que por pouco tempo o conservaram. O Forte Jesus foi erguido, sob o reinado de Filipe I de Portugal, para proteger o porto (que era um dos melhores da África Oriental), após ataques de turcos otomanos.

Mombaça Forte Jesus Estava a ilha à terra tão chegada,/Que um estreito pequeno a dividia;/Uma cidade nela situada,/Que na fronte do mar aparecia,/De nobres edifícios fabricada,/Como por fora ao longe descobria,/Regida por um Rei de antiga idade:/Mombaça é o nome da ilha e da cidade.

Segundo Os Lusíadas, na sua rota pela costa de África, Vasco da Gama foi recebido afavelmente pelo Rei de Melinde que lhe pediu para contar histórias do seu povo. Camões, pela voz de Vasco da Gama, aproveitou para glorificar Portugal e a sua História.

Melinde Vós, poderoso Rei, cujo alto Império/O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;/Vê-o também no meio do Hemisfério,/E quando desce o deixa derradeiro;/Vós, que esperamos jugo e vitupério/Do torpe Ismaelita cavaleiro,/Do Turco oriental, e do Gentio,/Que inda bebe o licor do santo rio;

Inclinai por um pouco a majestade,/Que nesse tenro gesto vos contemplo,/Que já se mostra qual na inteira idade,/Quando subindo ireis ao eterno templo;/Os olhos da real benignidade/Ponde no chão: vereis um novo exemplo/De amor dos pátrios feitos valerosos,/Em versos divulgado numerosos.

Ormuz Ontem, como hoje, é um ponto estratégico fundamental, ligando o Golfo Pérsico ao Golfo de Oman. Ao Norte, o Irão; a sul os Emiratos Árabes Unidos. Até ao séc. XVI era por ali que se escoavam as especiarias e outros géneros que, em caravanas, entravam no Mediterrâneo e daí chegavam à Europa. Em Ormuz transacionavam-se os melhores cavalos da Arábia e da Pérsia que dali seguiam para todo o Oriente, sobretudo para a Índia.

Ormuz Foi Afonso de Albuquerque, quem em 1507 a conquistou, mandado erguer a fortaleza, que ainda hoje existe. Dada a importância estratégica desta Praça foram construídas outras fortificações em ilhas vizinhas, as quais se conservaram sob domínio português, até 1622. As naus portuguesas patrulhavam as águas para controlar o comércio e garantir que o seu escoamento se fazia pelo Cabo da Boa Esperança. Hoje a importância de Ormuz deve-se, sobretudo, ao grande número de petroleiros que por ali passam, rumo ao Ocidente.

Calecute Vasco da Gama e seus marinheiros são recebidos pelo Samorim de Calecute. São estabelecidas relações comerciais amigáveis com os povos do Oriente.

Chegada a frota ao rico senhorio,/Um Português mandado logo parte/A fazer sabedor o Rei gentio/Da vinda sua a tão remota parte./Entrando o mensageiro pelo rio,/Que ali nas ondas entra, a não vista arte,/A cor, o gesto estranho, o trajo novo/Fez concorrer a vê-lo todo o povo. Canto VII

Ribandar (Rio Mandovil) O que se passou em Goa e, mais propriamente, no Estado Português da Índia, até à chegada de Luis Vaz, é um exemplo (triste) da colonização portuguesa. Afonso de Albuquerque foi o grande conquistador, talvez o exemplo maior da expansão portuguesa. Depois, sucederam-se Vice-Reis, cujos mandatos de 3 anos, serviam, na maioria dos casos, para, como todos os funcionários, rapidamente enriquecerem. A administração era escandalosa. Os veleiros que asseguravam a “Carreira das Índias” levavam soldados esfomeados. Os mantimentos que, por lei, deveriam garantir 8 meses de viagem , chegavam, na melhor das hipóteses, para 6, e eram de má qualidade. A época de bom tempo para a viagem era atrasada pela burocracia de Lisboa. Foram grandes as perdas em vidas e navios.

Preso em Goa (pintura anónima) Camões era um fidalgo pobre, que mostrara coragem em combate, tanto no Norte de África como no Oriente. Homem íntegro, escrevia também sátiras que, mesmo inofensivas, incomodavam o Poder e levaram-no várias vezes à cadeia. Valeram-lhe amigos que na rotatividade da Administração, conhecendo-lhe os méritos, conseguiram a sua libertação. Camões recluso, ia escrevendo Os Lusíadas.

16 anos foi o tempo que Luis Vaz viveu no Oriente, não só em Goa como na China. Em Macau onde procurou isolar-se para escrever o poema épico, perduram vários marcos que assinalam a sua estada. Este quadro relativo à “Gruta”, mostra-o com o fiel escravo Jau, que o acompanhou, mesmo depois de regressar a Portugal, e que, consta, teria mendigado os parcos alimentos que Camões na velhice, pobre e doente, não podia angariar.

Sé e Igreja de S. Francisco Xavier em Goa. Devido ao grande número de igrejas, Goa é conhecida pela Roma do Oriente. Camões permaneceu aí muito tempo, viajando para a China e volta, quer como militar quer como funcionário.

Sé PatriarcalO chamado Estado Português da Índia viria a ser integrado na União Indiana em Dezembro de 1961. Contra um poder militar avassalador, Salazar declarara que só concebia “soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”. O Governador-Geral Vassalo e Silva, na iminência de um massacre, assinou a rendição. Em vez de uma transição pacífica de soberania que acautelasse a presença e a cultura portuguesa, preferiu-se o calvário dos prisioneiros, largos meses em cativeiro e recebidos desdenhosamente quando libertados. Era o início do fim do Império.

Goa Forte AguadaHouve excepções, algumas delas fruto do acaso e das circunstâncias, como a da resistência oposta pela guarnição deste forte, motivada pelas deficientes comunicações que impediram saber da rendição. O comportamento dos defensores fez deles um exemplo para o Regime. Mas o” Estado da Índia” desaparecia e só nos anos 90 voltaria a ser visitado por um governante português – Mário Soares. Fechava-se o ciclo de Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, S. Francisco Xavier e da enorme influência que os cristãos e hindus nascidos em Goa, Damão e Diu tiveram na Administração colonial portuguesa,

Os restos mortais de S. Francisco Xavier encontram-se aqui, na Basílica do Bom Jesus de Goa, local de peregrinação. Descendente uma família aristocrática de Navarra, fundou, com Inácio de Loyola e mais cinco devotos, a Companhia de Jesus, congregação religiosa destinada ao ensino, à conversão e à caridade. Respondendo a um apelo de D. João II, partiu para o Oriente, chegando a Goa em 1542. Foi grande a sua acção missionária – a Igreja Católica considera que tenha convertido mais pessoas ao Cristianismo do que qualquer outro missionário. Daí o epíteto de “Apóstolo do Oriente”. A sua acção estendeu-se também a Macau, Japão, à actual Indonésia, Sri Lanka, Moçambique… Numa das suas viagens teve contactos com Fernão Mendes Pinto.

Templo de Pondá

Igreja de Candolim

Delta do Rio Mekong Numa viagem de regresso de Macau para Goa, a nau em que viajava naufragou, na foz do rio Mekong. Segundo relatos, Luis Vaz, segurando num braço o manuscrito d‘Os Lusíadas, conseguiu, nadando apenas com o outro, atingir terra. O rio Mekong, no actual Cambodja, que nos evoca hoje a Guerra do Vietnam…

Alma minha gentil, que te partiste/Tão cedo desta vida, descontente,/Repousa lá no Céu eternamente,/E viva eu cá na terra sempre triste.//Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta sida se consente,/Não te esqueças daquele amor ardente/Que já nos olhos meus tão puro viste.//E se vires que pode merecer-te/Alguma cousa a dor que me ficou/Da mágoa, sem remédio, de perder-te,//Roga a Deus, que teus anos encurtou,/Que tão cedo de cd me leve a ver-te,/Quão cedo de meus olhos te levou

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S. Francisco Xavier

Fortaleza de Diu: é considerada a mais importante e bem fortificada estrutura militar erguida no Estado Português da Índia. Reputada como inexpugnável, resistiu a inúmeros cercos e ataques de árabes, turcos, indianos e holandeses. Foi para reconstruir as suas muralhas, arruinadas por um cerco, que D. João de Castro (4º Vice-Rei da Índia) solicitou à Câmara Municipal de Goa um empréstimo de 20 mil pardaus, dando em garantia a própria barba.

Macau

Macau: ruínas da Catedral de S. Paulo. A fachada é o que resta do templo, começado a construir no final do Séc. XVI e destruído parcialmente por um incêndio, mais de duzentos depois. Foi a igreja cristã mais importante da Ásia. Constitui, hoje, um autêntico ícone da cidade.

A Peregrinação é o relato fantástico das viagens e aventuras de Fernão Mendes Pinto, que durante 21 anos percorreu as costas do Oriente, desde o Japão até à India. Conheceu Francisco Xavier e Luis Vaz, combateu ao lado de Pedro de Faria, foi preso, libertado, entrou para a Companhia de Jesus, mas desiludiu-se com o comportamento da própria Companhia. De regresso a Portugal, escreve as suas aventuras, que só seriam publicadas 20 anos após a sua morte, possívelmente com amputações feitas pelos Jesuítas.

“Depois de ser embarcado António de Faria, e nós todos com ele, que seria já quase às ave-marias, nos passámos a remo à outra parte da ilha, e surtos a cerca de um tiro de falcão, dela, nos deixámos assim estar até quase à meia-noite, com determinação, como já atrás disse, de logo que ao outro dia fosse manhã, tornarmos a sair em terra e acometer as capelas dos jazigos dos reis que estavam a menos de um quarto de légua de nós, para nelas carregarmos ambas as embarcações, o que quiçá poderia muito bem ser, se nos quiséramos negociar ou António de Faria quisesse tomar o conselho que lhe davam, o qual foi que pois que até então não éramos sentidos, que trouxesse consigo o ermitão para que não desse recado na casa dos bonzos do que tínhamos feito, o que António de Faria não quis fazer, dizendo que seguro estava disso, tanto por ser o ermitão tão velho como todos víamos, como por ser gotoso e ter as pernas tão inchadas que se não podia ter nelas…

porém não foi assim como ele cuidava, porque o ermitão logo que nos viu embarcados (segundo o que depois soubemos) assim trôpego como estava, se foi em pés e em mãos à outra ermida que distava da sua pouco mais de um tiro de besta, e deu conta ao ermitão dela do que tínhamos feito, e lhe requereu que pois ele se não podia bulir por causa da sua hidropisia, fosse ele logo dar rebate na casa dos bonzos, o que o outro ermitão logo fez. […]Porém António de Faria, sem fazer caso do que eles diziam, saltou em terra com seis homens de espadas e rodelas, e subiu pelas escadas do cais acima, quase afrontado e fora de si, e subindo desatinadamente por cima das grades de que toda a ilha, como já disse, era cercada, correu como doido de uma parte para a outra, sem sentir coisa alguma, e tornando-se às embarcações muito afrontado conversou com todos sobre o que nisto se devia fazer, e depois de se darem muitas razões que ele não queria aceitar, lhe fizeram os mais dos soldados requerimento que em todo o caso partissem.

Macau logo, e ele receoso de haver algum motim, respondeu que assim o faria, mas que para sua honra lhe convinha primeiro saber o de que havia de fugir, e que portanto lhes pedia muito por mercê que o quisessem ali esperar, porque queria ver se podia tomar alguma língua que o certificasse mais na verdade desta suspeita, e que para isso lhes não pedia mais de espaço que só meia hora, visto que ainda havia tempo para tudo antes que fosse manhã. (Peregrinação)

Jardim de Camões em Macau

Camões pintado por Malhoa. “Ditoso seja aquele que somente/Se queixa de amorosas esquivanças; Pois por elas não perde as esperanças/De poder nalgum tempo ser contente.//Ditoso seja quem, estando absente,/Não sente mais que a pena das lembranças,/Porque, inda mais que se tema de mudanças, Menos se teme a dor quando se sente.//Ditoso seja, enfim, qualquer estado,/Onde enganos, desprezos e isenção/Trazem o coração atormentado.//Mas triste de quem se sente magoado/De erros em que não pode haver perdão,/Sem ficar na alma a mágoa do pecado.”

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho/Destemperada e a voz enrouquecida, /E não do canto, mas de ver que venho/Cantar a gente surda e endurecida. /O favor com que mais se acende o engenho/Não no dá a pátria, não, que está metida /No gosto da cobiça e na rudeza/Dua austera, apagada e vil tristeza.(Canto X)

Oiça o poema

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Os autores agradecem a colaboração de A. L. Matos Pereira, Francisco Vaz Garcia e Nacional Filmes Lda.

Que influência tiveram Os Lusíadas na aventura de Alcácer-Quibir? Teria Luis Vaz incendiado a imaginação do Rei-adolescente com as suas ideias sobre a grandeza do destino português? Teria sido outra a trajectória portuguesa no final do Séc. XVI? Talvez, mas é pura especulação.
Verdade, é que Camões, depois de inúmeras vicissitudes – pobreza, traições, abandono em Moçambique por gente em quem confiava, quando conseguiu regressar à Pátria, em Lisboa passou a receber uma pensão outorgada pelo Rei “pelos seus bons serviços”, que, correspondia a ¼ do que ganhava um carpiteiro na época… El-Rei mandou publicar o poema, é certo, mas a sua divulgação pequena e, mesmo assim com as emendas que o Santo Ofício determinou. A miséria – e a fome, acompanharam os últimos anos de Camões. E o desfecho da expedição de D. Sebastião e a ascensão ao trono de Filipe II de Castela e I de Portugal, deixaram-no em profundo abatimento, até que a peste o ceifou.
Contudo, não deixa de ser significativo, ser o rei castelhano, homem culto na sua época, quem tenha providenciado à divulgação d’Os Lusíadas e que a ele e a outros homens cultos de Castela, se deveram o reconhecimento e a admiração por Camões, que haveriam depois de o tornar famoso.
A epopeia de Camões não defendia apenas a raça portuguesa. Levantava dúvidas sobre a razoabilidade da expansão marítima e sobre o carácter dos seus protagonistas. Havia heróis corruptos, cobiçosos, vis. De qualquer forma, Os Lusíadas são fundamentalmente a elegia dos portugueses, a sua vocação para grandes feitos, para a sua missão de evangelizar os povos que descobriam, esses apresentados como mais fracos ou submissos.
A epopeia, como documento de viagem, é fiel. Se Camões não tivesse percorrido todas as regiões por onde Vasco da Gama se atrevera, se não tivesse estudado minuciosamente os relatos conhecidos dessa viagem, como também dos episódios históricos que evoca, Os Lusíadas não teriam o rigor que se lhe reconhece ou talvez não lhe tivesse sido possível escrevê-los.
Mas outros foram os textos mais ou menos contemporâneos que falaram dos Descobrimentos. Em primeiro lugar, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que terá convivido com Camões em Macau. O herói português da Peregrinação é um aventureiro, frequentemente pirata, que comerceia e guerreia para lucro próprio. É um relato das misérias humanas vividas por Pedro de Faria. No Oriente os portugueses são bárbaros e os Orientais civilizados. As viagens atribuladas de Fernão Mendes pela Birmânia, Sião (actual Tailândia), China e Japão, forneceram-lhe material para o livro que só seria publicado após a sua morte e cujo conteúdo extraordinário foi posto em causa (chamando ao autor, Fernão Mendes Minto). E também S. Francisco Xavier muitas vezes se manifestou contra a imoralidade da Administração portuguesa.
Portugal, que se expandira tanto para Oriente como para Ocidente, sofria na Europa um evidente declínio que a perda da independência haveria de agravar. Outras vozes, como a de Gil Vicente no Auto da India, apesar de se tratar de uma peça de costumes (envolvendo adultério, hipocrisia e oportunismo), abordava a história de um marinheiro que embarca à procura de fortuna e poder.
Visitar hoje as praias do Índico, as igrejas, os fortes mais ou menos em ruínas, descobrir uma lápide, uma estátua, um jardim, não são actos de saudosismo. São pretextos para recordar a História portuguesa, analisar a sua nobreza e misérias, e, se possível, traçar paralelos e tirar conclusões.
O regresso do Império à expressão mais simples, nem com a tragédia dos retornados, parece ter acordado os portugueses. O seu destino de grandeza é uma miragem. Afinal, o velho do Restelo ao apostrofar os navegantes, era a voz da sensatez. Sempre foi necessário sonhar, como é preciso ter os pés assentes na terra. Não dar um passo sem ter o outro pé apoiado. Alcácer-Quibir foi o resultado do fanatismo religioso, associado à cupidez de nobres e burgueses e à falta de senso do Rei. Os homens do Infante venceram o medo apoiados na ciência do nónio e da cartografia. Os seus seguidores passaram a viajar à bolina do destino. Quase 500 anos depois, cercados pelas dívidas do Estado, pelas exigências dos credores, não temos mais qualquer fuga possível, a não ser encarar a realidade.

FM

Veja o vídeo:

2 thoughts on “Camões, os Portugueses e o Índico”

  1. No meio desta crescente blogosfera, em que são discutidos os mais variados assuntos, são raros os blogs que conseguem prender a atenção do leitor…Este é definitivamente um deles. Pelos temas que explora, pela forma como os aborda…Porque revela um trabalho e uma pesquisa cuidadosos, porque nos possibilita conciliar texto, som e voz, porque nos permite viajar até outros “universos”, nem sempre tão profundamente conhecidos.
    Porque revela da parte dos autores uma grande sensibilidade que é facilmente perceptível para quem está deste lado.

    Parabéns e fico à espera do próximo caderno.

  2. Que belo Caderno! Que primorosamente o Autor contextualizou Camões, o homem, o criador, na sua época histórica, social e religiosa! Que bem dissertou, através das palavras, das fotos e da geografia, acerca deste símbolo da Portucalidade (que escreveu, n’ Os Lusíadas”, “é fraqueza, entre ovelhas, ser leão” – brilhante, não é?), a sua vida tumultuosa e sofrida, a sua obra épica e lírica!
    Não resisto a deixar um pequeno poema de Luís Vaz que penso ser pouco conhecido, mas que considero sempre actual. E de que gosto muito, pronto!

    “AO DESCONCERTO DO MUNDO

    Os bons vi sempre passar
    No Mundo graves tormentos;
    E pera mais me espantar,
    Os maus vi sempre nadar
    Em mar de contentamentos.

    Cuidando alcançar assim
    O bem tão mal ordenado,
    Fui mau, mas fui castigado.
    Assim que, só pera mim,
    Anda o Mundo concertado.”

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