Falsidades

Como é mentir, enganar, meses a fio, o parceiro, seja ele ou ela, sem um deslize, um indício? Ou eles existiam, mas passaram despercebidos? Resultado da usura do tempo? Como ir mantendo uma relação hipocritamente, como se nada se passasse? E preparar tudo meticulosamente para no momento adequado romper da forma economicamente mais vantajosa?

Temos o nosso imaginário cheio de personagens – heróis e vilões: sabemos da tradição dos marialvas trauliteiros que noutros tempos punham senhoras “por conta”, ou de libertinos, esses mais finos, argutos, que, agindo com inteligência iam seleccionando as suas presas. Como também de mulheres, como a Madame Bovary, que o vazio e as banalidades conduziam ao adultério. E, se o livro de Flaubert, causou escândalo é porque o adultério só era tolerado aos homens. Hoje, vemos os filmes de Woody Allen e o seu universo de gente pessimista e neurótica, com “affaires” complexos, pequenas traições, numa cidade como Nova York, balizada por psicanalistas e que mais não é, e sempre, que uma abordagem de si próprio. Os filmes são uma catarse de Woody Allen. Mas temos também os heróis que nos enobrecem: O Ricky de Casablanca, capaz do supremo gesto de generosidade de prescindir da mulher que ama e o ama, em nome de uma causa mais importante – a Liberdade. Como o extraordinário Cyrano de Bergerac, capaz de emprestar a sua eloquência e voz à figura de um jovem que, em relação a ele, apenas tinha a vantagem da beleza física. E, só às portas da morte, a mulher que sempre amou, Roxane, se dá conta do terrível equívoco. Romantismo folhetinesco? Certamente.

Há quem não suporte traições e raros os que as não cometem. Mas, e a hipocrisia?!

FM

 

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Proponho, agora, contar-vos uma história, com um misto de fábula e metáfora. Como persistem confusões em alguns termos, voltamos a insistir na sua distinção. “Marialva”:…o direito de usar e abusar, pura e simplesmente. O machismo, fundado na fidelidade da esposa e na soberania do pater-familia, tem um dicionário muito próprio (J. Cardoso Pires)

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Por sua vez, os “libertinos” sempre se realizaram como amantes e batalhadores de golpe matemático de palavra medida, poetas de régua e esquadro. (J. Cardoso Pires)

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O esplendor do corpo de uma mulher que se pode entregar por paixão, por interesse ou…por hábito, e que pode representar o papel do orgasmo para acabar a comédia de modo gratificante para o parceiro

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As lágrimas sempre foram, sobretudo nas mulheres, um meio fácil de ultrapassar momentos difíceis. Mesmo que a razão diga o contrário, é difícil ignorar um rosto lindo inundado de pranto…

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Anny Hall: uma das obras-primas de Woody Allen. O seu ar desengonçado, meio chaplinesco, o seu discurso cheio de referencias psicanalíticas, as referencias à origem judia, a Groucho Marx, o seu amor a Nova York (e o ódio à Califórnia/Hollywood) fazem-no um dos autores de cinema que retrata com mais verdade as contradições emocionais urbanas, os affaires, os enganos, os adultérios, os sentimentos de culpa.

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Pois, das deslealdades chegamos às traições…Também tu, Brutus?! tartamudeou Julio César, antes de cair assassinado à porta do Senado. Podemos confiar em alguém? Creio que sim, mas cada vez menos. A hipocrisia e a traição espreitam.

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Lembram-se das “Cenas da Vida Conjugal ” do Bergman? Os seus personagens pouco tinham a ver com este enredo. Os actuais não eram um casal perfeito, nem tão-pouco ele teria arranjado uma “amante” (que se soubesse): ele mais velho, outra cultura; ela linda, assediada, como de prever. Ele hesita em viverem juntos. No entanto, não a quer perder, por vezes sente-se perdido em como conciliar as coisas. Viver com outra pessoa não é fácil, disso tinha ele bastante experiência

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Muitas vezes pareceu que o infinito estava perto. À distancia duma palavra, dum gesto, duma intenção concretizada.  Abrir o espírito para outra dimensão, para outros horizontes…ler, aprender…e achou sinceramente que o sonho era possível.

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Mas a indecisão hamletiana: “ser ou não ser” (resulta ou não resulta, é possível ou não?)…, foi adiando o que precisava ser feito.

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E se as tartarugas andam devagar demais, quando menos esperam têm uma surpresa (e não a teriam, mesmo que tivessem feito tudo como deviam?, afinal, aquilo até já tivera antecedentes)…Esta situação duraria há quanto tempo?

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Porém, o Senhor de Salinas, que dança admiravelmente com a mulher mais atraente do baile e noiva de seu sobrinho, perante a admiração de todos…

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…ao ver-se ao espelho, depois daquela cena de sedução conclui que afinal, não estava velho demais! (L. Visconti)

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O que esconderá o sorriso de Gioconda? Tantas teorias e provavelmente esse mistério é o seu maior encanto. Atrás dele não haverá perversidade? Quantos punhais atrás daqueles olhos doces? Se ela saísse da tela de Leonardo e se transformasse num ser humano não estaria a pensar em outro quando fazia amor contigo? O que sabemos do não-dito, mesmo que muito seja dito? Que imaginamos mais dela? Inteligente? Talvez, não. Mas esperta, muito esperta, com a habilidade de conduzir a sua vida sempre por onde lhe for mais conveniente. É uma pessoa em quem não se pode confiar. Falsa e impiedosa. Mesmo que fale de Deus, a piedade não existe. É uma sobrevivente.

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Segundo a mitologia grega, Pigmaleão era um escultor e rei de Chipre que se apaixonou por uma estátua que esculpira ao tentar reproduzir a mulher ideal. A deusa Afrodite, apiedando-se dele e atendendo a um seu pedido, não encontrando na ilha uma mulher que chegasse aos pés da que Pigmaleão esculpira, em beleza e pudor, transformou a estátua numa mulher de carne e osso chamada Galatéia, com quem Pigmaleão se casou.

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Mas estátuas são estátuas e pessoas são pessoas com suas grandezas e misérias.

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Moral da história: não queiras modificar o que não pode ser modificado, nem desperdices o teu tempo com quem não o merece.

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“Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz…” (Álvaro de Campos/Fernando Pessoa)

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E uma metáfora para terminar: Aliás, poderia chamar-se “O enigma do jardineiro”

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É bem sabido haver árvores que mantêm as folhas todo o ano, seja Verão ou Inverno, haja tempestade ou não. São árvores perenes. Como algumas pessoas – constantes, solidárias, nos bons e maus momentos.

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Como há outras árvores que, quando se aproxima o Outono, começam a amarelecer e a perder as folhas. Também, como pessoas que, quando as situações se tornam difíceis, mesmo por razões alheias, tratam de se afastar ou fazer coisas feias. São caducas.

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Mesmo nas flores mais bonitas há umas que precisam de mais cuidados: umas têm espinhos

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Outras precisam de ser criadas em estufas

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Ao jardineiro exige-se-lhe competência, devoção, interesse. E se ele tiver deixado de os ter? Pouco provável. Ter-lhe-á acontecido alguma coisa que o impeça? Uma doença, uma preocupação profunda, um outro jardim mais viçoso e ter perfidamente preparado a sua saída? Como saber?

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Mas dele até se sabiam histórias de grande desapego e coragem, como a de se arriscar sózinho pela noite dentro num bosque cerrado para procurar uma criança que desaparecera, onde mais ninguém quisera arriscar-se a saír naquelas condições e ele, perante a aflição da mãe, que não conhecia de lado algum fora e conseguira resgatar a criança com vida.

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Deixando o jardineiro. Ele é um romântico à moda do Casablanca ou ela é uma mulher no mínimo egoísta e interesseira ou nem uma coisa nem outra? Ou ele será capaz de ser mesmo um Tartufo?

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Será ela alguém a quem a vida tornara hábil em manipular os sentimentos e as fraquezas dos outros, homens ou mulheres, adaptando-se às circunstâncias, camaleoa no que melhor servisse os seus interesses, capaz de usar uma cara como quem usa uma máscara, deitando-a fora e substituindo-a sempre que preciso?

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E ele um hipócrita, um dissimulador? Ter engendrado um plano meio maquiavélico e depois armar-se em vítima…

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Poderia ser uma espécie de Padre Amaro, que de ingénuo sacerdote da paróquia de Leiria, passa à postura de cínico, torna-se amante de Amélia, faz-lhe um filho e adopta a atitude hipócrita do clero. Para sua tranquilidade, Amélia morre de parto e o mesmo acaba por suceder à criança. Nada melhor que defender as aparências. Vícios privados, públicas virtudes

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De qualquer modo, seja ele quem for ou quem acharem que é – cínico, hipócrita, safado ou generoso, hesitante, sincero: “Never play it again, Sam!”

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Porquê este filme? Passando para outra dimensão, o papel desempenhado por Joaquim d’Almeida, representa a lealdade a um grupo, levada a um absurdo de violência que abafa todas as pulsões afectivas. No final, a lealdade é traída e origina uma tragédia que ele não consegue evitar. Durante a guerra em Moçambique, ao ver-se confrontado com a traição dum dos 5 membros do seu “grupo de combate”, que se passara para o outro lado, abate-o a sangue frio e provoca a chacina de todos os habitantes da aldeia onde aquele se abrigara. Uma chacina tipo Wiriamu.

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Depois da guerra acabada, esse grupo de ex-comandos reunia-se regularmente e ele sempre evitou que a traição do camarada fosse conhecida, para que a coesão entre eles se não desfizesse. Agora, perante uma nova deslealdade de mais um do grupo, entendeu que só lhe restava uma saída. Numa praia deserta segura num pauzinho, atira-o para longe para afugentar um cão e apertando uma granada contra o peito, retira-lhe a cavilha. Há pessoas que não suportam as falsidades ou traições, por mais duras ou violentas ou cruéis que sejam. THE END.

3 thoughts on “Falsidades”

  1. Falsidades leva-nos para a grande interrogação que é a própria vida com as suas múltiplas hipocrisias, quiçá, auto-hipocrisias. O próprio conceito material do que é falso e verdadeiro só é demonstrável matematicamente, pois em todos os campos da nossa existência nunca sabemos o que é falso ou verdadeiro, tudo depende das premissas de onde se parte e mesmo assim nunca podemos garantir a verdade e a falsidade. Em suma, dir-se-á que podem existir Falsidades de acordo com a nossa escala de valores, mas será que a escala do outro é igual à nossa?

  2. Traição…Falsidade…Hipocrisia…Os indícios e os deslizes existem…Mas nós, cegos pela paixão, não os queremos ver, não queremos tomar consciência deles…Preferimos fazer de conta que não estão lá…Mas estão! E nós sabemos disso! E sabemos que magoam, que ferem, que deixam marcas indeléveis que o tempo dificilmente apagará…
    Ninguém suporta a traição…Ninguém aceita a “substituição”…Queremos que aquele que amamos seja “sempre e apenas” nosso…E não é apenas a traição fisica…Essa pode ser momentânea, fugaz, efémera, inconsequente…Dói mais a traição da alma, aquela em que se sente a confiança perdida, aquela que custa mais a sarar…

    “Um acto de confiança dá paz e serenidade”… E um acto de traição? Provoca em nós um frémito de raiva, de conflito interior, de culpa, de rejeição, de inconformismo, de dúvida, de angústia…

    “E perdoa-se na medida em que se ama”…Mas será que vale a pena esse perdão? Será o outro merecedor desse perdão? Valerá a pena continuar a não querer enfrentar os deslizes e os indícios existentes?

    “Quando se ama, a fidelidade nada custa”…Porque não precisamos de procurar mais, porque sentimos que encontrámos o nosso porto seguro, que nos protege, que nos guia, que nos ampara…Mas e se o outro não sentir o mesmo? E se o outro continua a fazer o jogo falso e hipócrita? Valerá a pena? Não sei… Custa, dói, magoa, arrepia, entristece…Sem dúvida que sim! A perda do outro não é fácil…Está connosco, mas não está…Está o corpo, mas falta a alma…Falta o olhar cúmplice, falta o sorriso terno, falta a palavra afectuosa…Talvez seja melhor então deixá-lo partir…

    Mas “para quem ama, não será a ausência a mais certa, a mais eficaz, a mais intensa, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças”?…

  3. Ninguém passa pela vida, vivendo-a, sem magoar alguém, de uma ou outra maneira. O importante é não se ser cruel ou negligente, é respeitar os sentimentos alheios, mesmo quando há decisões e acções difíceis e inevitáveis em jogo. Por muito que doa o abandono e a ausência, dói muito mais quando há falsidade. E silêncio.
    E o que é a falsidade, afinal? É, talvez, o que há de mais intolerável nesta coisa dos afectos: o calculismo, a astúcia rasca, a hipocrisia, com vista à obtenção de ganhos que nada têm a ver com o coração ou as emoções.
    Neste belo texto, o autor deixa uma utilíssima “moral da história”: não tentar modificar o que não pode ser modificado e não perder tempo com quem não o merece. Com efeito, mesmo que pudéssemos, não devemos modificar ninguém. Devemos, sim, deixarmo-nos mudar ao sabor da vida, connosco e com os outros, e tentando sempre melhorar e ser feliz. Quanto ao segundo aspecto, também verdadeiro, é mais fácil de dizer que de fazer. Enquanto amamos alguém, mereça ou não, não conseguimos deixar de lhe dedicar o nosso tempo, ainda que sofrido e mesmo contra a nossa própria vontade. Como dizia a Amália, “coração independente, coração que não comando…”.

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