Todos os artigos de Fernando Moreno e Pedro Pinheiro

Janelas da memória: a queda da monarquia

Não se trata de discutir a questão do regime: monarquia ou república. À distância de mais de um século, não faz qualquer sentido. A república está estabelecida e, salvo em raros nostálgicos, o regresso ao passado não desperta sombra de entusiasmo. E, no entanto, vale a pena analisar o processo que conduziu ao regicídio e à queda da monarquia. É um paradigma da luta pelo Poder.

Ontem como hoje, seja qual for o regime, a política é feita vezes demais por gente medíocre que apenas aspira à promoção ou enriquecimento pessoal. A discussão das relações entre Ética e Política é, assim, tema de todas as épocas.

O homem político luta por atingir o topo do Poder. Os princípios apregoados são ignorados à conta das ambições pessoais ou dos interesses do partido. O homem político não é, de uma maneira geral, eticamente recomendável. A dignidade é rara, o oportunismo campeia. O indivíduo afável, solidário, generoso pode transformar-se num político hipócrita, vaidoso, sem escrúpulos.

É inevitável esta dicotomia? Não. Há políticos com grandeza que em momentos críticos corajosamente se levantam, mostram o caminho e são a voz das aspirações e da esperança dos cidadãos. E outros que, vítimas de calúnias, se afastam aguardando que a verdade seja reposta. A política para eles é um serviço à comunidade. Como devia ser para todos.

No final do séc. XIX, a onda nacionalista originada pela cedência de D. Carlos ao Ultimato britânico, foi um rastilho. E o que deveria o rei ter feito? Se tivesse poderes para isso, mandar zarpar a pindérica marinha portuguesa e travar batalha contra a frota inglesa que, perto da nossa costa, aguardava os acontecimentos? Vozes de republicanos e de alguns monárquicos aproveitaram-se para atiçar a agitação e criar tumultos. A ignorância e a miséria da população constituíram um terreno favorável.

O país, na sucessão de eleições incapazes de garantir estabilidade, estava ingovernável. Uma solução de ditadura tinha defensores em todos os quadrantes políticos. E o rei acabou por ceder. Mas, as ditaduras, mesmo as que se proclamam defensoras dos interesses dos mais desfavorecidos, não se sabe como acabam. Muitas vezes, em tirania e tragédias horrendas.

Nos primeiros anos de séc. XX o ambiente que se vivia em Portugal era de pré-revolução. Ameaças de colapso financeiro agravaram a situação. Em causa estava a ruptura drástica com o regime monárquico e a instituição da república, que, dizia-se, resolveria todas as questões sociais, económicas e políticas. Seria “o bacalhau a pataco”. O apoio popular foi crescendo, à medida que os factos políticos e a incompetência governativa se sucediam e a demagogia convencia os espíritos mais cândidos.

Mas, podia falar-se em limitação das liberdades, nomeadamente da imprensa? Desde a Convenção de Évora-Monte (1834) que ela estava garantida. E, apesar de alguns períodos em que se procuraram amordaçar as vozes discordantes, caso da célebre “Lei das Rolhas” (1850), as caricaturas e a sátira circulavam livremente. Os jornais, pese a reduzida tiragem, estavam subordinados a interesses e grupos políticos antagónicos e faziam críticas contundentes. Porém, mesmo demagógicos e por vezes caluniosos, eram publicados. Só quando João Franco governou em regime de ditadura, a liberdade de imprensa foi, de facto, estrangulada com a proibição por decreto daquilo que fosse atentatório “da ordem e segurança pública” e a tomada de medidas repressivas severas (multas, suspensão e encerramento de jornais, perseguições a jornalistas, julgamentos arbitrários).

 Era uma época em que os assassínios políticos estavam na moda e o ideal republicano para alguns radicais uma razão mais importante que a própria vida. Tomava corpo a ideia de um atentado que eliminasse o ditador João Franco e erradicasse de vez a monarquia. Em células da Carbonária e em lojas maçónicas o tema foi discutido e numa delas organizado. Só João Franco ou a família real também? João Franco haveria de escapar.

Os regicidas tinham consciência do seu muito provável desaparecimento. Meticulosamente, prepararam-se para o sacrifício e emboscaram a família real. Não parece que fosse revolta que estivesse na base da sua decisão, nem tão-pouco fanatismo ou perturbação psicológica grave. Ambos exerciam profissões e Buiça cumpriu o seu programa de professor até à hora conveniente. Seria mais a “consciência política”.

De regresso de Vila Viçosa, à saída do Terreiro do Paço, a família real sofreu o atentado. O Governo não tinha tomado quaisquer medidas de segurança suplementares, apesar da atmosfera que se vivia. O rei sabia do risco que corria, mas assumiu-o e viajou de carruagem aberta. Terá tido morte instantânea.

Dois anos depois do regicídio, seria implantada a república. As perseguições religiosas explodiram, a violência nas ruas atingiu proporções sem precedentes com milhares de mortos e feridos. Detenção e prisão também de milhares de cidadãos. Os Governos eram constantemente substituídos. Em 16 anos, Portugal teve 8 Presidentes da República e 45 Governos. Registaram-se, é certo, progressos na alfabetização e foram promovidas reformas visando a melhoria da política fiscal, dos salários e condições de trabalho, mas a mobilização para a guerra na Flandres e em Moçambique, associada à instabilidade política e à catastrófica dívida do Estado, tornaram-nas frustrantes. Resultado: um golpe militar e uma longa ditadura.

São muitas as questões que o assassínio de D. Carlos e do príncipe herdeiro levantam. Deve o rei ser reconhecido como amante dos prazeres da mesa, da caça, do ténis em contraste com a indigência dos cidadãos, sendo embora um homem simpático, culto, simultâneamente pintor e cientista, um verdadeiro príncipe da Renascença? Pode o rei dar-se à “excentricidade” de realizar explorações oceanográficas, de receber e visitar de forma pomposa Chefes de Estado de outros países, mesmo que o estreitamento de relações sirva o interesse nacional e o fausto das cerimónias atenue a imagem de país miserável, a mendigar empréstimos?

Finalmente, como menosprezar o papel das crises económicas e da demagogia de alguns políticos? Como não temer que, hoje, um golpe antidemocrático venha ameaçar as liberdades, se se perder a coesão do espaço europeu? São janelas da memória para olhar o presente sem ignorar as lições do passado.      

FM

 

A Ericeira está associada ao final da Monarquia. A 5 de Outubro, a Família Real embarcava em duas barcas para o iate Amélia que a levaria para Gibraltar. Depois seria o exílio em Inglaterra. O iate fora o último comprado no tempo de D. Carlos. Mas naquele dia de 1910, depois da República ser implantada em Lisboa, o Rei D. Manuel, que se refugiara em Mafra, teve de partir. A ideia de ir para o Porto chefiar uma eventual resistência fora abandonada. As forças que julgava fieis e cujos chefes uma semana antes, no Buçaco, lhe tinham apregoado lealdade, haviam-se passado para o outro lado.

A comitiva chegou por volta das 15 horas. A viagem de carro de Mafra à Ericeira foi feita com pequena escolta a cavalo. A entrada fez-se pelo Norte, de modo a evitar a travessia da vila. À chegada à praia do peixe, onde se fez o embarque, muitos populares apinhavam-se, sobretudo nas Ribas, para ver o Rei, a Rainha D. Amélia e D. Maria Pia da Sabóia, mãe de D. Carlos. O infante D. Afonso já se encontrava a bordo do iate.

Na praia muitas mulheres prostraram-se para o beija-mão e os pescadores, que à época envergavam um barrete preto, descobriram-se. Era o seu rei e a sua rainha. Mesmo aqueles que eram simpatizantes republicanos respeitaram o momento. Apenas o filho dum médico republicano da Ericeira, terá erguido uma bandeira verde-rubra.

O mar nessa tarde estava bravo. D. Manuel tomou lugar na primeira barca, acompanhado por membros do seu séquito. Conta-se que o rei se conservou de pé na barca e que houve a sorte de rapidamente sair da zona de rebentação. Menos sorte tiveram os passageiros da outra barca onde se encontravam as rainhas que se deslocaram sempre sentadas no fundo da embarcação, depois dela se ter levantado a grande altura na zona de rebentação das ondas. A atracação das barcas ao iate real foi difícil e o desembarque dos passageiros e das bagagens perigoso, o mar piorava.

Tinham apenas passado dois anos desde que D. Manuel II, na altura com 18 anos, fora aclamado rei, na sequência do Regicídio que matara também seu irmão mais velho e herdeiro da Coroa. Aspirante Naval regressara mais cedo a Lisboa por causa dos estudos, aguardou a família na estação fluvial e acompanhou-a na mesma carruagem. Foi ferido num braço. D. Carlos terá tido morte instantânea mas o irmão, ferido, ainda atingiu um dos regicidas. D. Luis Filipe morreria pouco depois.

Além da lápide que foi afixada nos anos 60 por um particular na capela próxima da praia dos pescadores, nada mais existe na Ericeira que assinale o facto histórico, o que é lamentável.

Seria a Ericeira uma vila simpatizante da monarquia? Haveria de tudo. A maioria era gente humilde, analfabeta, como todo o país, e que estava habituada a respeitar o rei e os senhores das terras. Desde o dia 4 de Outubro que circulava a informação de ter rebentado uma revolução em Lisboa. Mas as comunicações eram difíceis e os passageiros das camionetas que vinham de Sintra nada sabiam de concreto. Pelas 10 horas da manhã de 5 o iate real Amélia fundeou ao largo, o que aumentou a expectativa. O corrupio entre o Jogo da Bola e as Ribas era grande.

A Ericeira era uma vila pacata, pintada de branco e a sua população constituída principalmente por pescadores. Apenas no Verão essa tranquilidade era perturbada pela vinda de Lisboa dos “senhoritos”, que procuravam a praia e alugavam as casas dos pescadores. Foi um hábito de que Ramalho Ortigão deu conta, considerando a Ericeira uma das melhores praias de Portugal. No mês de Setembro de 1910 eram muitos os veraneantes.

No Jogo da Bola, no café Arcádia, no local onde hoje funciona a Junta de Turismo, reuniam-se os republicanos. E o rei D. Carlos já antes enfrentara uma pequena manifestação hostil durante um cortejo desde aí até à capela de S. Sebastião. Esta praça, um dos ex-libris da Ericeira e que desde o casamento de D. Carlos se chamava Largo Princesa D. Amélia, foi batizada depois, como Praça da República, topónimo que ainda hoje conserva. Mas é o Jogo da Bola, como toda a gente a conhece.

Este edifício arte-nova é outro ex-libris da Ericeira. Inaugurado em 1861 como Clube Recreativo Ericeirense, funcionava apenas na época balnear com saraus musicais de grande qualidade que atraiam a aristocracia e a alta classe media. Mais tarde seria remodelado e ampliado e deu origem ao Casino, depois a um Cine-casino. Presentemente, é a Casa da Cultura Jaime Lobo e Silva. Aqui teria estado a Família Real quando das suas permanências no Palácio de Mafra.

Esta é a rua Prudêncio Franco da Trindade, em 1910 chamada Calçada Real. Até há poucos anos ainda existia um pequeno bar perto do Jogo da Bola – o “Coroa Bar”, do Sr. Madeira. Nas paredes viam-se reproduções alusivas ao reinado de D. Carlos. Foi pena aquele espaço não ter sido melhorado e transformado num ambiente que evocasse a Ericeira do princípio do séc. XX.

Hoje já nem o bar existe. Só a memória dele e do trato afável do Sr. Madeira.

Entre Mafra, onde D. Manuel se refugiou e que seu pai elegera como uma das suas tapadas preferidas, e a Ericeira, donde a Família Real partiu em 1910 para o exílio, são muitos os locais e os factos marcantes. Façamos uma retrospetiva dos acontecimentos políticos vividos em Portugal no final do Séc. XIX e princípio do XX, centrada em lugares da Ericeira e da Tapada de Mafra: as janelas da memória.

O rei D. Carlos (Carlos Fernando Luís Maria Vítor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão de Bragança Sabóia Bourbon Saxe-Coburgo-Gotha) foi o penúltimo rei de Portugal. Nasceu em 1863, filho de D. Luis e de D. Maria Pia de Sabóia e ascendeu ao trono em 1889, no mesmo ano da Exposição Internacional de Paris e da inauguração da Torre Eifell. Tinha um irmão mais novo, o Infante D. Afonso, Duque do Porto, com quem sempre manteve laços estreitos.

Como sucessor da Coroa, teve uma educação cuidada. Viajou por diversos países e  numa das viagens conheceu a princesa Amélia de Orleães. Parece que os jovens se teriam apaixonado. Não foi, pois, um casamento de conveniência. Desde criança D. Carlos mostrou grande vocação para o desenho e pintura. A sua subida ao trono foi recebida por muitos intelectuais com a esperança de renovação cultural, como sucedeu com os “Vencidos da Vida”, entre os quais se contavam Eça, Ramalho, Oliveira Martins, António Cândido e Guerra Junqueiro. Porém, o seu trono foi envenenado por importantes acontecimentos políticos que culminariam em tragédia. As ideias republicanas iam ganhando adeptos e aproveitando-se das dificuldades.

Os “Vencidos da Vida” (que eram tudo menos isso). Diziam-se um grupo de “jantantes” e, com isso, Eça de Queirós respondia às insinuações de certa imprensa que os apresentava como conspiradores políticos. Reuniam-se no Tavares e no Hotel Bragança. Do grupo faziam também parte os Condes de Arnoso e de Sabugosa, personalidades próximas da Família Real.

O casamento do então Príncipe Real D. Carlos foi, pois uma sua escolha afetiva. Apesar de celebrado nas ruas foi alvo de críticas. Os fidalgos miguelistas receavam que a futura rainha fosse demasiado liberal, os liberais demasiado tradicionalista. Quanto a D. Amélia de Orleães, o seu casamento com D. Carlos poderia levantar obstáculos por parte da República Francesa.

D. Amélia haveria de revelar-se uma mulher culta que terá tentado elevar a corte portuguesa. Teve três filhos: D. Luis Filipe, a Infanta D. Maria Ana de Bragança (que não sobreviveu a parto prematuro) e D. Manuel. A educação dos filhos foi cuidadosa, com especial atenção para o Príncipe da Beira, D. Luis Filipe, putativo sucessor da coroa. À intervenção e empenho de D. Amélia são atribuídos o Instituto de Socorros a Náufragos, Museu dos Coches Reais, Instituto Pasteur em Portugal (Instituto Câmara Pestana) e Assistência Nacional aos Tuberculosos.

Já no final da vida, Aquilino Ribeiro (que haveria de participar em atividades conspirativas) escreveu em Um escritor confessa-se: “No domínio da política internacional, o consórcio Bragança-Orleães foi um lamentável desvio. Sob o ponto de vista de política interna, teve também a sua repercussão perniciosa, se não tão sensível, não menos eficiente. D. Carlos, posto não fosse um liberal determinado, também não vergava aos preconceitos religiosos dos avós. Não era papa-hóstias como a caterva de D. Joões, nem um timorato perante os juízos de Deus como D. Pedro… Às cerimónias religiosas concorria como rei, por obrigação. Escreveu Guerra Junqueiro, não sei com que fundamento, que, “enquanto se celebravam exéquias pela alma do pai, D. Carlos caçava

Para se entenderem muitos dos acontecimentos que conduziram à queda da Monarquia Constitucional, é preciso conhecer o Portugal do fim do séc. XIX: “…falido, caótico, grosseiro, um mono insaciável sem ideia de futuro, que teimava em ficar num tempo perdido e não saberia já como pegar no talher à mesa da nova economia mundial”, assim o descreve Jorge Morais. Mas também rural, ignorante e analfabeto (mesmo no Censo de 1911, cerca de 75% da população era analfabeta).

Em 1871, escreveu Eça: “Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade. /Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.”

O rei era uma figura simpática. Bonacheirão, bom conversador, tratava toda a gente por tu. À medida que os anos iam passando ia ficando obeso. Loiro, de bigodes retorcidos, com papada, evidenciava ainda, antes de ser morto, certa agilidade. Falava várias línguas e sentia-se à vontade em todos os ambientes. Parece que detestava a “meia tijela”. Era um homem de hábitos simples, bem-humorado, com fama (real ou inventada) de mulherengo.

A Família Real, à exceção da Rainha-Mãe, D. Maria Pia de Saboia, que habitava no seu chalet particular no Monte Estoril, vivia no Palácio das Necessidades. O Príncipe D. Afonso, irmão de D. Carlos, era solteiro e não tinha residência fixa, mas tinha aposentos no chalet da mãe. O Palácio da Ajuda servia quase só para cerimónias oficiais.

No verão a Família Real transferia-se para Sintra no Castelo da Pena (ou no palácio da Vila, para tratar de assuntos de Estado).

Depois,  a Família Real deslocava-se para a Cidadela de Cascais, até Outubro, na altura da abertura da Ópera. Era naquela fortificação sobre a baía, que D. Carlos, desde criança, gostava de passar a época balnear.

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Mas, era em Vila Viçosa, onde os Bragança tinham um palácio, que D. Carlos mais apreciava estar.

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Aí seguia a atividade agrícola das suas propriedades, os príncipes D. Luis Filipe e D. Manuel recebiam as suas lições e passeavam. Era um ambiente descontraído, de proprietários ricos. A rainha entregava-se a visitas a asilos e igrejas. As saídas de qualquer deles não se acompanhavam de quaisquer formalidades ou medidas de segurança.

E, na tapada, dedicava-se ao seu desporto favorito – a caça. Organizavam-se batidas e montarias e a sua pontaria considerada temível. As peças abatidas eram divididas entre as cozinhas do Paço e os pobres da terra. Em Vila Viçosa, D. Carlos envergava capote e botas altas como qualquer lavrador abastado. Gostava de comer sem cerimónias debaixo de um chaparro, como num vulgar pic-nic.

Mas também caçava em Mafra. A Real Tapada, como era na época denominada, é rodeada por um muro com um perímetro de 16Km. Está dividida em três partes, que albergam espécies diferentes. Estão conservados o pavilhão de caça, o chalet real e dos hóspedes. Coelhos, perdizes, galinholas, veados, gamos eram a caça mais frequente. Calcorrear hoje aqueles caminhos de terra batida, descobrir recantos lindíssimos com fios de água, vegetação luxuriante e por vezes ainda marcas de incêndio restante é uma experiência única e que nos evoca aquela época.

Lavrador abastado que apenas fumava os seus próprios charutos. Recusava quaisquer outros, mesmo em cerimónias oficiais. Fotografia aos 44 anos, poucas semanas antes de ser assassinado.

Eis o chalet de D. Carlos na Tapada de Mafra . Mas, quais eram as funções que lhe estavam cometidas, enquanto monarca constitucional? Quase só protocolares: inaugurações, passar revista às tropas, presidir a cerimónias, visitar o país. Mas competia-lhe empossar o governo, dissolver o parlamento e convocar eleições. Podia, é claro dissolver o parlamento, manter o governo e adiar as eleições. Era a “ditadura” que durante muito tempo repugnou a D. Carlos. E quem eram os políticos da época?

Hintze Ribeiro (1849-1907), líder do Partido Regenerador, por três vezes assumiu o cargo de Presidente do Conselho. Foi ainda Procurador-geral da Coroa, ministro das Obras Públicas, da Fazenda e dos Negócios Estrangeiros. A ele se devem importantes reformas, tal como a das autonomias insulares (1895).

José Luciano de Castro (1834-1914), um dos fundadores do Partido Progressista, ao qual presidiu a partir de 1885. Foi Presidente do Conselho por três ocasiões. Além disso, exerceu as funções de Ministro da Justiça e Cultos e de Ministro do Reino. Foi um dos primeiros políticos a defender o rotativismo e a necessidade de consolidar o sistema partidário.

João Franco (1855-1929) militou no partido Regenerador até 1901, altura em que se afastou de Hintze Ribeiro e formou o seu Partido “Regenerador Liberal”. Desempenhou inúmeros cargos políticos e produziu extensa obra legislativa. Foi ministro da Fazenda, das Obras Públicas, da Instrução Pública e Belas Artes e do Reino até chegar a Presidente do Conselho (entre 1906-1908). Produziu reformas da instrução secundária, do Código Administrativo, da Lei Eleitoral, dos regulamentos de sanidade marítima, da contabilidade pública, da responsabilidade ministerial e da liberdade de imprensa. Foi da sua autoria a lei que previa a deportação de agitadores e anarquistas para África e Timor, batizada “lei celerada” pelos republicanos (1896) e, em vésperas do regicídio, uma lei ainda mais severa que previa o degredo para quem atentasse contra a segurança do Estado…

E como era o sistema político português? O chamado rotativismo, como foi batizado por João Franco, caracterizava-se pela alternância no poder dos dois grandes partidos políticos da época, Partido Regenerador (de Hintze Ribeiro) e Partido Progressista (de José Luciano de Castro). Com pequenas interrupções, estendeu-se até 1906, ano em que o sistema colapsou por esgotamento de soluções. “Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar. (Guerra Junqueiro, in Pátria, 1896)” (Caricatura de Bordalo Pinheiro)

Caricatura de Leal da Câmara, satirizando os partidos vigentes na época e que supostamente davam suporte ao rei. Mas, afinal, os partidos monárquicos não o ajudaram: contribuíram pela sua inépcia para a degradação da imagem de D. Carlos. Saliente-se a importância que a caricatura teve na época como instrumento de crítica política. Nomes como Rafael Bordalo Pinheiro, Alfredo Cândido e Leal da Câmara são incontornáveis.

E o que se passava pelo lado dos republicanos? A sua fonte inspiradora era a Revolução Francesa, mas à medida que o tempo passava, a deriva jacobina foi sendo mais importante. Havia várias fações, umas mais moderadas que outras. Até ao princípio do Séc. XX, não conseguiram grande implantação. “Um partido republicano, quase circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, amanhã exaurido e letárgico “/Guerra Junqueiro, escreveu. A suspeita de implicação na tentativa revolucionária de 31 de Janeiro de 1891, fragilizou-os bastante. O seu objetivo era criar um regime que vencesse o imobilismo e a teia de interesses em que a Monarquia Constitucional – e os seus políticos, se deixara enredar. Mas, entre liberais e republicanos moderados não havia diferenças de vulto.

A ideologia republicana assentava no anticlericalismo e anti jesuitismo ferozes, que viriam acentuar-se depois do 5 de Outubro de 1910. A igreja contribuiria para o atraso científico e a ignorância das populações, sobretudo as mulheres. Outras ideias-chave eram o apelo nacionalista e a defesa das colónias. Tinham sido os partidos monárquicos e o rei os responsáveis pela cedência perante o do Ultimato e pela humilhação que indignava o país. A estátua de Camões foi envolta em vestes de luto nas comemorações do tricentenário da sua morte. Mesmo que a maioria dos seus simpatizantes ignorasse as propostas políticas do partido republicano, eram contra a monarquia, porque era nela que estava a origem de todos os males do país.

Apesar da lei eleitoral que os prejudicava e do caciquismo da província que influenciava o sentido do voto, os republicanos conseguiram eleger alguns deputados desde 1900. Porém, o seu número não traduzia a verdadeira implantação republicana, sobretudo nas cidades de Lisboa e Porto, e nomeadamente em 1910, onde constituíam apenas 10% dos deputados eleitos. Quem foram os principais dirigentes republicanos?

Afonso Costa (1871-1937) advogado, professor universitário. Eleito deputado republicano em 1889. Orador fluente, de temperamento violento, as suas intervenções parlamentares foram das mais críticas à monarquia. Depois da instauração da República, Primeiro-Ministro por três vezes, cargo que acumulou com as Finanças. Era conhecido pela alcunha de “mata-frades” pela legislação anticlerical que mandou publicar. Defensor da participação portuguesa na 1ª Guerra. Com o golpe de Estado de 28 de Maio (1926), exilou-se em Paris.

António José de Almeida (1866-1929). Era um dos mais eloquentes tribunos republicanos. Depois de 1910,  ministro do Interior, das Finanças, das Colónias e Primeiro-Ministro. Um dos fundadores do Partido Evolucionista e, posteriormente, do Partido Republicano Liberal. Adversário político de Afonso Costa, este mais radical. Foi o sexto Presidente da República entre 1919-23, numa época de grande agitação.

Bernardino Machado (1851-1944). Durante a monarquia, foi deputado pelo Partido Regenerador, Par do Reino e ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria. Aderiu ao Partido Republicano em 1903. Com o advento da República, ministro dos Negócios Estrangeiros, embaixador de Portugal no Brasil. Por duas vezes Primeiro-Ministro e presidente da República Portuguesa, também por duas vezes. Teve importante percurso como dirigente da Maçonaria, sendo à época da morte, 23.º Soberano Grande Comendador do Supremo Conselho afeto ao Grande Oriente Lusitano.

Chegara-se a uma situação de bloqueio institucional. Os governos sucediam-se, os partidos monárquicos alternavam, os acordos pré-eleitorais a nada conduziam. Última tentativa: um governo que não ficasse sujeito a constrangimentos parlamentares. João Franco era considerado político honesto e competente. D. Carlos pensou que seria a individualidade certa. Mas a ditadura, a agitação social agravada pela inabilidade (ou astúcia?) de João Franco só favoreceram a propaganda republicana, os revolucionários e os anarquistas. Era um buraco.

Eis como Aquilino descreve D. Carlos: “Era um Bragança na acepção pejorativa do termo. O seu gosto primava na guitarra, nos touros, na caça, tudo geórgica e santo ripanço…Em D. Carlos, a matéria vibrátil – afabilidade inata, gosto de comodismo, perspicácia que não inteligência, bonomia pachorrenta e passa-culpas, o não te rales para tudo o que estivesse fora da sua esfera particular, pois aí a sua actividade, desde que se lhe não antepusesse arregimentada a usos e preceitos, mostrava-se viva e expedita – era de todo Bragança. Também deviam ser da mesma fábrica sensibilidade e carácter. Dos Cosburgos só teria o físico. Onde se vira na família lusa aquele demonhão de homem, com trufa a puxar para o encaracolado, rosado, com uma rede vascular quase à superfície da pele de loiro?

Mas as considerações de Aquilino são sectárias. Dos Cosburgos, como escreve, referia-se a seu avô, o Príncipe consorte D. Fernando II, marido da rainha D. Maria II. Este era homem de grande cultura, que reuniu importante coleção de obras de arte, transformando as Necessidades e a Pena em verdadeiros museus. E não era só pela sua estatura física, mas pelas aptidões artísticas que D. Carlos se assemelhava ao avô. Aliás, este tê-lo-ia incentivado oferecendo-lhe materiais de pintura. Durante a juventude,  D. Carlos teve vários mestres na sua formação artística e diz-se que pintava compulsivamente. (Praia de Cascais 1906, aguarela, Casa-Museu Anastácio Gonçalves, Lisboa).

O mar foi um dos temas prediletos na pintura do rei. O pastel e as aguarelas, as técnicas mais utilizadas. Participou em várias Exposições, dentro e fora do país, embora se escreva que a sua obra é desigual. O adensamento do ambiente político não favorecia a criação artística do rei. Mas o reconhecimento do seu talento foi internacional.

A sua característica de pintor figurativo deve estar associada ao aparecimento das primeiras máquinas fotográficas. E as fotografias foram outro hobby do rei, que chegou a utilizá-las para base de alguns dos seus quadros. Deve-se também à difusão das Kodak a abundante iconografia existente da época.

O mar e os navios foram outra paixão de D. Carlos. Na época iniciava-se o estudo do fundo do mar e surgiam as expedições oceanográficas. O príncipe Alberto de Mónaco foi um dos pioneiros. D. Carlos no primeiro iate real realizou as suas primeiras pesquisas. Mas o navio comportava-se mal no alto-mar, o que dificultava a atividade científica. Assim, foi sucessivamente trocando de navio, o que lhe permitia, além de realizar cruzeiros e receber viajantes ilustres, intensificar as expedições oceanográficas. O objetivo  era procurar conhecer melhor a costa portuguesa, a sua topografia, as correntes e, deste modo, explorar mais racionalmente os seus recursos. A essas expedições se ficou a saber da existência de vales submarinos na região de Cabo Espichel. Os 4 iates que foi sucessivamente possuindo, sempre tiveram o nome de Amélia.

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Foram, portanto, frequentes as viagens do Rei, como, aqui, na Ilha da Madeira (1901). No entanto, esta viagem longamente preparada e que suscitou sentimentos opostos, mesmo entre os monárquicos como Hintze Ribeiro e João Franco, se por um lado se revestia de enorme carga histórica e de construção do espírito de coesão nacional, serviu de propaganda para republicanos e outros adversários do regime, que a consideravam um dispêndio inaceitável numa altura de enorme dificuldade financeira. Mas foi a primeira deslocação dum Rei às Ilhas Adjacentes.

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Da Madeira partiu para os Açores, onde visitou a Terceira, Faial e S. Miguel, no meio de enorme entusiasmo popular. Na gravura, o busto de D. Carlos no Jardim José do Canto em Ponta Delgada (um dos jardins botânicos mais importantes da Europa) evoca a viagem.

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Também esta paisagem deslumbrante assinala a visita régia à Lagoa das Sete Cidades (S. Miguel), num local que ficou conhecido como Vista do Rei.

Quanto aos estudos oceanográficos, no princípio, as espécies marinhas capturadas eram estudadas no laboratório que construíra na Fortaleza da Cidadela, mas a necessidade de aprofundar os estudos exigia mais espaço a bordo para instalação de laboratórios. Era o próprio rei quem dirigia os trabalhos. As amostras eram depois transferidas para laboratórios mais amplos, o mais importante de todos veio a ser instalado no Palácio das Necessidades. Os resultados destas pesquisas foram apresentados em reuniões internacionais e alguns trabalhos publicados, como as monografias sobre a pesca do atum no Algarve e sobre os esqualos na costa portuguesa. No total, realizou 12 expedições oceanográficas.

Outra das suas preocupações neste domínio foi avaliar o papel que os arrastões a vapor poderiam desempenhar no esgotamento do peixe. As suas opiniões foram publicadas por jornais estrangeiros, como quando ocorreu uma diminuição dos cardumes de sardinha nas costas de França. O que resta da sua coleção oceanográfica está hoje no Aquário Vasco da Gama. “Monarca sábio” foi assim que lhe chamou o Príncipe do Mónaco.

Foi a questão africana que agudizou a crise do regime. O expansionismo britânico, a pobreza de recursos portugueses e a incapacidade de lhe fazer frente estiveram na origem do que ocorreria nas 2 décadas seguintes. Para além disto, a decrepitude do sistema político e a incompetência governativa, aproveitadas pela emergente utopia republicana e pelo radicalismo revolucionário.

O Ultimato britânico de 1890 ocorreu como resposta à pretensão portuguesa de ver reconhecido o “Mapa Cor-de-rosa”, que correspondia à faixa de território que vai de Angola a Moçambique, naquilo que hoje constitui Malawi, Zâmbia e Zimbabué. A Europa que ignorara África até meados do séc. XIX, acordava. Inglaterra, França, Alemanha e Bélgica eram importantes concorrentes. Realiza-se a Conferência de Berlim (1884-1885), para regular os interesses das potências coloniais. Nela ficou estabelecido que aos direitos históricos se sobrepunha a demonstração de efectiva ocupação do território. Aos portugueses foi retirado o controlo da foz do Congo.

Porém, desde 1877, os portugueses vinham realizando explorações científico-geográficas e promoviam a presença militar possível. Andrade Corvo, que foi um ministro competente e de visão, de Fontes Pereira de Melo, entendia não compensar definir grandes áreas “exclusivas” no papel, que depois não se conseguiam ocupar. Todavia, as vozes do sonho imperial de costa a costa prevaleceriam, mesmo não tendo o país recursos para tal ambição.

E que interesses advinham das colónias, cuja cobiça alheia tanta indignação causou? “As relações de Portugal com as suas colónias são originais. Elas não nos dão rendimento algum: nós não lhes damos um único melhoramento: é uma sublime luta – de abstenção! /– Não – exclamam elas com o olhar voltado de revés para a Metrópole – mais rendimento que o deste ano, que é nenhum, não és tu capaz de nos pilhar, malvada! /– Também – responde obliquamente a Metrópole – em maior desprezo não sois vós capazes de estar! /Quando muito, às vezes, a Metrópole remete às colónias um governador: agradecidas, as colónias mandam à mãe-pátria – uma banana. E perante este grande movimento de interesses /e de trocas, Lisboa exclama: /– Que riqueza a das nossas colónias! Positivamente, somos um povo de navegadores! (Eça de Queiroz in Uma Campanha Alegre).

 Entre numerosos atos de insubordinação desencadeados pelo Ultimato teve particular importância a “Revolta do Porto”. Esta iniciou-se na madrugada do dia 31 de Janeiro e envolveu alguns batalhões, não enquadrados por oficiais superiores. Na Praça de D. Pedro, (hoje, Praça da Liberdade), foi proclamada a Implantação da República. Com fanfarra, foguetes e vivas, a multidão dirige-se para a Praça da Batalha. No entanto, o cortejo é travado por um dispositivo da Guarda Municipal. Cerrada fuzilaria vitima militares revoltosos e simpatizantes civis. A multidão foge. Alguns resistem, barricam-se na Câmara Municipal, mas por fim, a Guarda força-os à rendição. 12 mortos e 40 feridos foi o número de vítimas.

Outro facto agravaria o ambiente político e social: as provas de doutoramento de um filho de um antigo primeiro-ministro (Dias Ferreira). Apesar do prestígio de que desfrutava, foi reprovado por unanimidade, ao que se dizia por causa dos seus ideais republicanos. Enorme tumulto, reprimido como mero caso de polícia.

No Parlamento e na Imprensa crescem as críticas. A crise estende-se, como o âmbito das exigências académicas e a repercussão política. Organizam-se comícios. João Franco manda fechar todos os estabelecimentos de ensino que se mantinham amotinados. Até que ao fim de três meses cede e concede um indulto geral. Um tiro no pé.

A Questão dos Adiantamentos foi outra polémica que envolveu a Família Real e, cujo aproveitamento muito contribuiu para o desgaste das instituições. Desde D. João VI, a verba atribuída às despesas da Casa Real não era alterada. Nessas despesas incluíam-se a conservação de palácios, despesas de representação relativas aos chefes de estado estrangeiros que se deslocavam oficialmente a Portugal, o iate real e outras propriedades. Para resolver a questão os vários ministros da Fazenda foram, ao longo dos anos, concedendo adiantamentos e abonos em dinheiro que, à margem da lei e do Parlamento, iam cobrindo os gastos reais. No tempo de D. Carlos, as dívidas ao Estado eram enormes.

Na Câmara dos Pares um deputado desafia João Franco a confirmar os “adiantamentos irregulares”, que tinham sido negados pelos governos anteriores. Este reconhece-os e defende que a solução tem de ser encontrada no Parlamento. Afonso Costa exige a hipoteca da Casa de Bragança e que o Rei se demita para não ser preso como criminoso vulgar. “Por menos do que fez o Sr. D. Carlos, rolou no cadafalso a cabeça de Luis XVI!”. Profético.

É um enorme tumulto na Câmara e na rua, que iria prolongar-se. A crescente contestação ao governo levou o rei a dissolver o parlamento. O Primeiro-Ministro tentou resolver a questão fazendo sair um decreto que anulava as dívidas da Casa Real, através de um encontro de contas.

Grosso modo, o rei entregava propriedades suas e o iate; por outro lado o Estado consideraria saldados os adiantamentos e passava a responsabilizar-se pela manutenção de palácios e museus. Mas sem o parlamento funcionar, as críticas de falta de transparênciaaumentaram. E o país com uma dívida externa monstruosa, resultante sobretudo da política de obras públicas de Fontes Pereira de Melo, sem o ouro e as remessas dos emigrantes do Brasil e sem crédito, estava à beira da bancarrota.

A agitação e propaganda republicana aumentavam. Em que consistia o “republicanismo”, e no que o distinguia da Monarquia Constitucional? Ser-se republicano nessa época era ser-se contra a monarquia, a Igreja, a corrupção e os partidos monárquicos. Segundo Oliveira Marques, “era algo carismático e mítico e para acreditar que bastaria a sua proclamação para libertar o País de toda a injustiça e de todos os males”. Quanto ao resto, a diferença era a figura do rei que desempenhava um papel fundamentalmente representativo, que devia “reinar” e deixar o governo governar”. Mas os governos deveriam saír de eleições. Só que o partido do governo que se demitia tinha infiltrado os lugares de influência com gente da sua confiança e nas eleições seguintes, ganhava-as. Restava ao rei convidar para presidente do Governo o chefe do outro partido. O clientelismo, as “chapeladas”, a corrupção – era o rotativismo.

O papel de um rei constitucional limitava-se, assim, a ser o árbitro da disputa partidária. Marcar eleições, acatar os seus resultados. Mesmo o “Discurso do Reino” era escrito pelo Presidente do Conselho do momento. As ideias expostas não eram da autoria  do rei. Na caricatura de Leal da Câmara, o rei lê-o com Luciano de Castro a dar à manivela.

A  República seria para os seus prosélitos o regime perfeito, do “povo para o povo”, e que traria justiça democrática. Mas poucas diferenças havia em relação ao da Carta de 1820, em que a Monarquia Constitucional se baseava. Haveria era gente nova, aliados a transfugas monárquicos, que pretendiam vencer o imobilismo  e a decrepitude da vida política portuguesa.

E o que se passava na área governativa? Qual a responsabilidade  de João Franco no agravamento da crise e na tragédia que acabou por acontecer? Como se chegou à Ditadura? O regime republicano seria muito diferente da monarquia constitucional?

João Franco chegara ao Governo em coligação com o Partido Progressista de Hintze Ribeiro. Alterações introduzidas à Lei eleitoral limitaram significativamente o poder da Câmara de Pares e a legitimidade parlamentar. O rei passou a ter um poder reforçado e ser árbitro dos partidos. Em 1897, o governo pede a demissão a pretexto de discordâncias de nomeações de Pares dos Reino. Sucedem-se vários governos do rotativismo. Até que, em 1906, João Franco é finalmente Presidente do Conselho.

As suas primeiras declarações são pacificadoras, mas as crises sucedem-se. A revolta do Porto, a greve académica de 1907 e a crescente agitação social, fez-lhe perder o apoio parlamentar. O Parlamento é encerrado e surge o primeiro governo de João Franco em ditadura administrativa ou seja sem fiscalização do Parlamento. A necessidade de um governo forte, que fora antes advogada por individualidades de todos os quadrantes políticos, concretizava-se. João Franco seria um messias, mas inábil e/ou demasiado ambicioso.

João Franco batera-se anteriormente por uma governação clara, sem escândalos escondidos e entendeu reconhecer os Adiantamentos feitos a D. Carlos e realizar a sua liquidação. Mas, como não havia Parlamento, o reconhecimento desses Adiantamentos na ausência de controlo no seu cumprimento, levou a violentas críticas, acusações de fraude nos jornais e nos comícios.

A Guarda Municipal reprime com violência e ocorrem prisões arbitrárias. Por essa altura, os grupos radicais fazem reuniões conspirativas. Compram armas de guerra, munições e a fabricam bombas artesanais. Teria João Franco, ao reconhecer os Adiantamentos naquelas condições, pretendido “manietar” o rei (que, aliás, se mostrou crítico em relação ao timing do reconhecimento”não se apaga fogo lançando-lhe lenha.”)? Mas, João Franco conseguiu seguramente ampliar o descontentamento sobre si próprio e tornar-se um alvo a abater.

D. Carlos não permitira antes que Hintze Ribeiro governasse em ditadura, como este desejou. Agora, perante a proposta de João Franco mudou de atitude. Escreveu-lhe …” Mas a minha carta ao Hintze não condemna em absoluto as dictaduras. Dizia que n’aquelle momento as não achava convenientes, o que não queria dizer que n’outros, e este é um d’elles, eu não as acceite e, o que é mais, até as ache convenientes e necessarias. E ainda que eu tivesse declarado absolutamente o contrario, diria que não é homem de Estado, nem sabe servir o seu Paiz aquelle que julgando ter affirmado um erro, se não penitenceie d’elle e não esteja prompto, reconhecendo-o, a seguir caminho diverso que julgue mais opportuno e conveniente.” Seriam a ingovernabilidade e o ambiente político-social que o teriam feito mudar, mesmo contra a opinião da restante Família Real. E escreve ainda: “N’este caminho encontrarás tu e os teus collegas todo o meu appoio o mais rasgado e o mais franco, porque considero que só assim, dadas as circumstancias em que nos encontramos, poderemos fazer alguma cousa boa e util para o nosso Paiz.”

A experiência de uma ditadura administrativa foi, pois, apoiada e aceite pelo rei. Porém, as prisões de dirigentes republicanos ou de intelectuais por delitos de opinião ou injúrias ao rei (caso de Guerra Junqueiro) e o encerramento, suspensão e coimas aos jornais, adensaram o mal-estar. Os tumultos sucedem-se. A repressão aumenta.

Constitucionalmente limitado em política interna, o rei virara-se para a atividade diplomática. Servindo-se dos laços familiares e do prestígio da sua própria figura nas monarquias europeias, procurou transmitir uma noção de grandeza, que não estava de acordo com o miserabilismo nacional. Foram frequentes as visitas de altos dignitários e as viagens de D. Carlos. Não parece haver dúvidas também sobre os objetivos políticos, nomeadamente África e a sobrevivência do regime. Porém, a situação mundial não era favorável à monarquia portuguesa.

Na época, a maior potência era a Inglaterra, o nosso mais velho “aliado”, que anos antes tinha imposto o Ultimato, por entender que a sua ambição (através, sobretudo, de Cecil Rhodes) de uma África do “Cabo ao Cairo” estaria ameaçada com o mapa cor-de-rosa.

Estreitar relações com o rei Eduardo VII, sucessor da Rainha Vitória e seu parente e amigo, parecia servir os interesses nacionais. Porém, o novo rei (filho da Rainha Vitoria e já com 60 anos de idade) tinha um papel meramente decorativo, diante dos partidos e das suas políticas em África. E a importância de Portugal, como potência colonial, era desprezível. A Inglaterra estava endividada com a construção do Canal do Suez e Portugal servia quase só para pedinchar empréstimos. Talvez um novo regime republicano, melhorasse a situação…

Os republicanos portugueses aperceberam-se da postura inglesa. Os políticos e os gestores coloniais veriam com bons olhos uma mudança. Se não houvesse derramamento de sangue, se não existissem atrocidades excessivas, o pacto (a “aliança”) era com o governo, não com o regime. O Gabinete inglês reconheceria a república e impediria a interferência de terceiros na questão portuguesa. Entretanto, as visitas de membros das duas Casas Reais repetiram-se. Aqui, a Rainha Alexandra, esposa de Eduardo VII, de visita a Portugal. O rei D. Carlos seria cognominado “O Diplomata”.

Para os republicanos uma eventual intervenção estrangeira para travar a implantação da República, só poderia provir da Monarquia espanhola, que não via com bons olhos uma República em Portugal, com medo do contágio… Os laços de D. Carlos com Afonso XIII estreitaram-se. Em 1903, o jovem rei espanhol visitou Portugal pela primeira vez, e foi recebido com cerimónias de grande rigor protocolar. O objetivo era (pelo menos) fomentar a aproximação ao vizinho ibérico, que nos aliviasse da “proteção” inglesa…

Porém, Afonso XIII, como D. Carlos, teve um reinado atribulado. Coroado aos 16 anos (1902), desde logo teve defrontar inúmeras dificuldades como levantamentos populares, a perda de Cuba e a guerra de Marrocos. Na tentativa de ultrapassar os problemas, nomeou Primo de Rivera para chefiar o governo, em regime de ditadura. O descontentamento foi crescente e o rei acabaria por sair voluntariamente de Espanha (1931). Para Portugal era crítico procurar o apoio da monarquia espanhola e daí as visitas recíprocas que foram feitas. Mas cada vez mais eram os interesses do Império Britânico a dominar. E nem Espanha, nem França, nem Alemanha se iriam opor.

Até o Presidente Loubet da França, veio a Portugal. A sua presidência (1899 a 1906) ficou assinalada pela separação da Igreja e do Estado e pela resolução do caso Dreyfus, que agitou a opinião pública francesa. No plano internacional desenvolveu intensa atividade diplomática entre dois polos opostos: Rússia e Reino Unido. O expansionismo britânico com a eclosão das guerras dos bóeres motivara a desconfiança dos franceses. O conflito africano opôs descendentes de holandeses e franceses, que se levantaram contra as pretensões inglesas, depois da descoberta de ouro e diamantes, naquilo que hoje é a República da África do Sul. No final prevaleceria a aproximação da França ao Reino Unido (a Entente Cordiale). Não é de estranhar que D. Carlos procurasse uma aproximação e Loubet viesse a Portugal (1905). A visita foi aproveitada para manifestações de ativistas republicanos.

Visita do Kaiser Guilherme II. Este seria o último imperador alemão e o último Rei da Prússia. Desde a Guerra dos Bóeres que o Kaiser vinha suscitando a desconfiança dos Ingleses, que mais se acentuou com a sua política de nacionalismo e de reforço das forças armadas, que culminaria com a Primeira Guerra Mundial. Era, na época de D. Carlos, um rival dos interesses ingleses em África.

Album de família

As colónias africanas foram, pois, uma prioridade do rei. A presença portuguesa era quase simbólica. Donos históricos de territórios  que não ocupávamos nem explorávamos. Apenas, a partir do final dos anos de 1870 começaram a estudar-se as bacias hidrográficas dos principais rios. A expedição de Capelo e Ivens, atravessou África, com partida do sul de Angola e chegada a Quelimane (1884-1885). Mouzinho de Albuquerque obteve a subjugação das populações do sul de Moçambique à administração colonial (1894-95). Mas todas as atividades económicas estavam nas mãos inglesas. Em S. Tomé, apesar de D. Luís ter abolido a escravatura, ela persistia de modo encapotado.

É à luz destas realidades que se deve entender a viagem do Princípe Luis Filipe, Herdeiro da Coroa, às colónias africanas em 1907, a qual teve grande impacto na época. (na foto, o Príncipe na cerimónia de lançamento da primeira pedra da primeira Câmara Municipal de Lourenço Marques).

Mas, desde 1840, vinham-se conhecendo as viagens do missionário inglês David Livingstone, que fizera o reconhecimento do rio Zambeze, do lago Niassa, dos territórios do Tanganica e que se abalançara a procurar as nascentes do Congo. E, em 1867, a informação da descoberta de imensas jazidas diamantíferas na região de Kimberley, desencadeou uma corrida a África, que Portugal não acompanhou, – a emigração que se fazia era para o Brasil. Em 1879, foi celebrado o tratado de Lourenço Marques que previa, entre outras medidas, a construção de um caminho-de-ferro para ligar Lourenço Marques ao Traansval, admitindo-se o desembarque de tropas britânicas naquele porto, e o patrulhamento das costas da colónia por navios britânicos. A ratificação em Portugal do acordo foi tumultuosa, e a Guerra entre os Boers e os Ingleses, naquilo que hoje é a África do Sul, veio mostrar a importância daquele porto para os interesses ingleses. E os portugueses, mais uma vez muito tarde, começaram a acordar. (na foto, o Príncipe Luis Filipe, na residência do Governador-Geral na Ponta Vermelha em Lourenço Marques).

Viagem a Macequece, perto do que hoje é o Zimbabué. A Companhia de Moçambique (inglesa) que administrava aquela parte do território, prodigalizou uma recepção grandiosa que incluiu uma emissão de selos alusiva. Em Moçambique as companhias de navegação, transporte ferroviário, cabo submarino, cultura de açúcar e algodão, exploração mineira, portos e estiva, abastecimento de água e luz (em Lourenço Marques) estavam em mãos inglesas. A maior do comércio do Transval fazia-se pelo porto de Lourenço Marques. Mas outros aspectos demonstram a importância desta visita: a cidade da Beira deve o seu nome à visita de Luís Filipe, Príncipe da Beira e Pemba passou a chamar-se Porto Amélia, em homenagem à Rainha.

Contudo, a importância destes passos diplomáticos passavam despercebidos na convulsão político-social que ia em crescendo no país.

Outro facto político que denegriu a imagem de D. Carlos foi a publicação em 1908 de “O Marquês da Bacalhoa”, de um António Albuquerque, aristocrata anarquista que vivera em Paris e perfilhava o ideário republicano. O livro pretendia fazer um retrato dos membros da Família Real. O rei (O marquês), a Rainha, uma hipotética relação lésbica e Mouzinho de Albuquerque que nutriria uma paixão não correspondida pela rainha, o que o teria conduzido ao suicídio. O livro, não pelo valor literário, mas pela intriga caluniosa, foi vendido clandestinamente e serviu a propaganda republicana. Os leitores encontravam ali um enredo que saciava a sua curiosidade mórbida e confirmava boatos postos a correr. Antes de morrer, o autor pediu perdão à rainha pelo conteúdo do romance.

Os revolucionários propunham várias coisas: uns diziam querer fazer abdicar D. Carlos para lhe suceder D. Luis Filipe (o que parecia pouco provável); liquidar João Franco; matar o rei e a família. O objetivo, de facto, era abolir a monarquia. Os métodos é que não eram coincidentes. Aos republicanos “de cartola”, os vultos, os caudilhos do Partido republicano, não interessava a violência sobre o rei, que era uma figura com boa imagem internacional, violência que poderia ser prejudicial a um novo regime. Para os mais radicais, um atentado a João Franco era indispensável. Mas, eliminar o rei e a família era uma possibilidade e terá sido ai discutida em reuniões conspiratórias.

Os mais radicais estavam filiados na Carbonária Lusitana, mas alguns pertenciam também a Lojas Maçónicas, nomeadamente a Coruja. Na sombra conspiram anarquistas, maçons, carbonários.  A revolução estava em marcha. O decreto, que punia os culpados de crimes contra a segurança do Estado com o degredo, e foi assinado por D. Carlos em vésperas de regressar a Lisboa e ser assassinado, foi catastrófico.

Guerra Junqueiro (1850-1923) foi dos mais importantes poetas da sua geração. O ultimatum inglês impressionou-o profundamente. Muitas das suas obras (como Finis Patriae, Canção do Ódio e Pátria), tiveram um cunho nacionalista e serviram a propaganda republicana. “Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente, /Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão? /Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente, /Repartindo por todo o escuro continente   /A mortalha de Cristo em tangas d’algodão. (in Finis Patriae)”. Sobre o príncipe Simão (um dos apelidos de D. Carlos), na altura da morte do pai, D. Luis, profetizou “…A Pátria é morta! a Liberdade é morta! /Noite negra sem astros, sem faróis! Ri o estrangeiro odioso à nossa porta, /Guarda a Infâmia os sepulcros dos Heróis! //Papagaio real, diz-me, quem passa? /- É o príncipe Simão que vai à caça. //Tiros ao longe numa luta acesa! /Rola indomitamente a multidão… /Tocam clarins de guerra a Marselhesa… /Desaba um trono em súbita explosão!… //Papagaio real, diz-me, quem passa? /- É alguém, é alguém que foi à caça. /Do caçador Simão!…“

Ou ainda: “O estado é o rei. Cidadão há um único: D. Carlos. Os deveres são nossos, os direitos, dele. Estrangula-me as ideias, arromba-me a gaveta, ou corta-me o pescoço, conforme o queira. A justiça é um relógio que ele atrasa, adianta ou faz parar, segundo lhe dá na vontade. Decreta a lei e nomeia o juiz. O parlamento é o seu capricho”  (Guerra Junqueiro). Este rei não era D. Carlos, bisneto de D. Pedro de Alcântara. Este seria um retrato de um rei absolutista , não de D. Carlos, um rei saído do liberalismo. Mas a propaganda desacreditava a monarquia.

A 28 de Janeiro estala uma revolta que visa liquidar João Franco e proclamar a república, mas o ditador ludibria os conjurados e os principais responsáveis republicanos são presos no Elevador da Biblioteca em Lisboa. Há escaramuças em várias zonas da cidade e o regime sobrevive. Inevitavelmente são poucos os testemunhos sobre a preparação do regicídio. Segundo Jorge Morais, apenas Aquilino o considera “resultado de uma decisão inesperada, tomada sobre a hora, no Terreiro do Paço”, depois de se ter malogrado mais uma tentativa de assassinar João Franco. Porém, outros implicados e regicidas atestaram a existência de um plano prévio, descreveram-no em pormenor, bem como as reuniões preparatórias. (quadro de Paula Rego)

O assassinato foi cometido quando a Família Real, regressada de Vila Viçosa, passava de carruagem pelo Terreiro do Paço, à esquina da Rua do Arsenal. Eram quase cinco da tarde do dia 1 de Fevereiro de 1908. Ao tentar defender a sua família D. Luís Filipe conseguiu ainda atingir um dos assassinos, sendo no entanto ferido mortalmente a tiro, sobrevivendo a seu pai muito pouco tempo. Apenas saiu ilesa ao atentado a rainha D. Amélia. O infante D. Manuel, embora ferido num braço, também escapou. Subiria ao trono como D. Manuel II.

Estas são fotografias dos regicidas. Manuel Buíça, homem de carácter expansivo e exaltado, frequentava com Alfredo Costa e Aquilino Ribeiro, o Café Gelo, no Rossio. Na altura do atentado, era professor, após passagem atribulada pelo exército. Alfredo Costa, homem rígido, empregado do comércio e caixeiro-viajante; anteriormente fora jornalista e fundara uma pequena empresa de livraria. Ambos pertenciam à Carbonária. Houve mais implicados no regícidio, mas só estes foram os autores dos disparos e acabaram abatidos pela Guarda Municipal.

Os assassinos seriam considerados nos comícios republicanos como mártires, “beneméritos da Pátria”, e houve lugar a romagens e cortejos às suas campas, onde as pessoas desfolhavam flores. Muita gente andava de luto pelos carrascos. Os seus retratos estavam colados nas lojas, e em miniaturas nas correntes dos relógios e medalhas.

As sociedades secretas tiveram papel decisivo no derrube da monarquia. O recrutamento dos seus filiados era classista: enquanto nas várias Lojas maçónicas predominavam os burgueses, frequentemente dirigentes políticos, até com assento no Parlamento, a Carbonária implantou-se nas classes populares – operários, soldados, marinheiros, artesãos. Porém, muitos dos seus responsáveis estavam também ligados às Lojas maçónicas, nomeadamente as que defendiam atividade mais radical, ou delas tinham provindo. O que se verificava na época entre a Revolta do Porto e o 5 de Outubro, era o florescimento de estruturas clandestinas sujeitas a obediência rigorosa, mais ou menos radicais, onde convergiam anarquistas, bombistas e republicanos dispostos à acção que destruísse a Monarquia (ou os “Braganças”) e o primeiro alvo a abater seria João Franco.

Enfatiza-se o envolvimento de membros da aristocracia, entre eles José de Alpoim (antigo ministro “Progressista” e, depois, convertido à República) e o Visconde de Ribeira Brava . Sobre o carácter de Alpoim, depoimento de Miguel de Unamuno: “Encontrávamo-nos juntos, Alpoim e eu, na monumental Plaza Mayor desta cidade de Salamanca, quando nos deram a notícia da morte do Rei de Portugal. Não me pareceu surpreendido, nem me parece que lhe tivesse feito grande impressão, ainda que, a que ele esperava, era a de João Franco,pelas conhecidas razões de Estado. Daí a pouco cruzámo-nos com outro português, a quem Alpoim disse: “Olha, já morreu o canalha!”. E era seu ex-ministro! Fiquei gelado. Avistando-se ambos, pouco mais tarde nesse dia, com Guerra Junqueiro, que também se encontrava em Salamanca, de repente Alpoim parou e disse: “Sabem? Vou mandar um telegrama de pêsames e condolências à Rainha”. Os olhos do poeta,olhos de águia, chisparam. E disse ”Não, não faça tal. Não pode fazê-lo, não deve fazê-lo! Nem que deveras sinta a morte do que foi seu Rei e seu Amo. Não, não faça tal!” Alpoim vacilou um momento; até que,murmurando qualquer coisa em português saiu a pôr o telegrama. E ao sair Alpoim, o político, Guerra, o poeta, indicando-o com o dedo, disse-me, ou melhor silvou: “Vê-o ali? Político…Bandido!” E acrescentou: “Quando voltar a Lisboa, verá que a primeira coisa que faz é ir ver a Rainha” E assim foi.”

Café Gelo no princípio do séc. passado. A fachada atual nada tem a ver com a primitiva. Foi um dos tradicionais cafés do Rossio e ponto de encontro de republicanos, maçons, socialistas, anarquistas e carbonários. Aquilino Ribeiro chamou-lhe a sede informal da ala radical da carbonária e da maçonaria. Foi lá que o atentado no Terreiro do Paço foi combinado e de lá que saíram os regicidas.

Quando ocorreu o Regicídio, Eça já tinha falecido, mas não Ramalho Ortigão. Após a implantação da República, iria requerer a Teófilo Braga a demissão do cargo na Biblioteca da Ajuda, dizendo explicitamente que se recusava a aderir ao novo regime, para não ir engrossar «o abjecto número de percevejos que de um buraco estou vendo nojosamente cobrir o leito da governação».

Aquilino Ribeiro (1885-1963) e a Seara Nova. Aquilino pertenceu na juventude ao grupo carbonário, chefiado por Alfredo Costa, um dos regicidas. Autor, entre outros romances, de Andam Faunos pelos Bosque, A Casa Grande de Romarigães, O Malhadinhas e Quando os Lobos Uivam. Foi proposto para o Nobel da Literatura. Na sua obra é evidente a crítica à opressão política. Na juventude foi militante anti-monárquico, tendo feito parte duma célula da Carbonária. Desse período há a registar intensa propaganda republicana em jornais. O rebentamento acidental duma bomba, que estava a ser manufaturada em sua casa, causou a morte de dois correligionários e a sua própria prisão (1907). Conseguiu evadir-se e exilar-se em França, regressando a Portugal com a eclosão da Grande Guerra. São da sua autoria os principais relatos conhecidos do período revolucionário que conduziria ao Regicídio.

O Rei inesperado, assumiu as primeiras resoluções: demissão de João Franco e criação de um governo de “acalmação nacional”, chefiado por uma personalidade independente. Mas, a demissão de Franco vinha legitimar os revolucionários. Sucederam-se novos governos, minados por intrigas e quezílias. A pobreza do país era grande, bem como o descontentamento do pequeno proletariado urbano.

D. Manuel II aproxima-se do partido socialista que, embora sem representação parlamentar, tinha implantação junto dos operários e não exigia a mudança de regime. Procurava maior justiça social e, deste modo, retirar base de apoio aos republicanos. Mas já não teve tempo. A revolução saiu à rua.

«A proclamação da Republica foi feita no edificio da Camara Municipal ás 9 horas da manhã; fóra, no largo do municipio aglomerava-se uma multidão enorme./ O sr. Dr. Eusebio Leão, membro do Directorio, abeirou-se da varanda dos Paços do concelho, e falando enthusiasticamente ao povo, declarou que a Republica acabava de substituir o regimen monarchico no governo da nação./ …

…A seguir, e no meio de uma ovação doida, o sr. Dr. Eusebio Leão accrescenta que sendo o povo portuguez um povo respeitador da liberdade, desnecessário lhe seria recommendar a maior prudência e o maior socego./ A ordem está restabelecida, diz o ilustre membro do directorio , e no regimen republicano cabem todas as aspirações, todas as vontades generosas./ A republica é um regimen de perfeita liberdade./ Comportem-se, pois, todos, dentro da maxima tranquilidade./ Concluida esta fala, o sr Innocencio Camacho, outro membro do Directorio lê ao povo os nomes das pessoas que constituem o novo governo provisorio, que atraz publicamos, nomeado pouco antes.» in Diario de Noticias, quinta feira, 6 de Outubro de 1910.

“Nesta casa, a Rainha D. Amélia tomou uma refeição antes do seu embarque para o exílio em 5 de Outubro de 1910”, Liga dos Amigos da Ericeira/ 5 de Outubro de 1990

Leituras aconselhadas: Onde a monarquia acaba e a república começa. Ericeira, 5 de Outubro de 1910, Mar de Letras Editora; Aclarando a verdade, João Jorge Moreira de Sá, Mar de Letras Editora; Rei D. Carlos, Margarida Magalhães Ramalho, Círculo de Leitores; Os últimos dias da monarquia, Jorge Morais, Zéfiro; Regicídio: a contagem decrescente, Jorge Morais, Zéfiro;

Ericeira Um lugar na literatura, Sebastião Diniz, Mar de Letras Editora; D. Carlos I Rei de Portugal, Jean Pailler; Um escritor confessa-se, Aquilino Ribeiro, Bertrand Editora; El Rei D. Carlos, o Martirizado, Ramalho Ortigão, 1908; História de Portugal, dirigida por João Medina, Vol XI a XIII; História de Portugal, direcção de José Mattoso.

Agradecimentos a Pedro F. Pinheiro, Luisa Rocha e Diamantina Madeira

Veja o vídeo:

Sophia e o espírito do mar

É um vulto feminino envergando uma túnica branca, os pés descalços na areia molhada. É o extenso areal da Meia-Praia. Antigamente, mesmo em setembro, as dunas estavam desertas e no ligeiro declive mais atrás havia, aqui e ali, alfarrobeiras que deixavam um odor intenso. Via-se a escola, o recorte da baía e a linha férrea onde, de tempos a tempos, passava um comboio vagaroso que anunciava aos silvos a sua aproximação.
Mas também em Cacela, o mesmo vulto se vislumbra. A língua de areia separa a vila do oceano. Ao entardecer daquele pequeno largo junto à Fortaleza vêm-se pessoas à procura de lingueirões e conquilhas, na ria estão demarcados os viveiros de ostras. O mar é azul, desfaz-se em espuma branca. Os pés imprimem marcas, há gaivotas planando. De pequenos orifícios na areia emergem caranguejos. Adiante jaz uma alforreca esponjosa trazida pela maré cheia. Fitas de algas, conchas, búzios e, mesmo junto à linha de água, calhaus rolados. E um solo lodoso.
É dessas praias, das falésias e rochas, desse mar, às vezes verde, outras, azul, às vezes sereno outras vezes bravio, dessa luz, do rebentar das suas vagas, dos odores, da magia, – que a poesia parte e regressa, descobre, inventa e justifica. Mar de pescadores e marinheiros, das viagens, das ilhas, dos naufrágios e das descobertas. O mar – para quem tem o privilégio de o desfrutar, espaço de apaziguamento, gestor do equilíbrio cósmico. Pelo mar, reconciliamo-nos com a vida e percebemos de modo agudo o sentido da Verdade e da Justiça.
O vulto é o espírito do mar. Nele habitam seres assombrosos – os deuses fantásticos que representam o destino, os conflitos, os medos, os desafios e a morte. Nesse espírito transparece o fascínio pelas grutas, amostras do fundo do mar. Este é límpido e transparente, milagre de cores e formas, carregadas de símbolos. A medusa e a inevitabilidade do desconhecido. Os cascos de velhos veleiros de mastros partidos cobertos por limos, como farrapos da nossa memória. As ilhas, expressão da alegria de estar vivo e no fulgor da vida, mito do eterno retorno, como de Ulisses a Ítaca, para a sua renovação ou ressurreição. Mas também a solidão e a saudade dos que, como Penélope, aguardavam o seu regresso. E, sempre o mar.
É o espírito do mar, que transparece da poesia de Sophia de Melo Breyner Andresen. Com ele, tudo começou.
O vulto que deambula pela praia, transporta a simplicidade essencial coexistindo com a erudição e a paixão pela cultura grega. Mas, também nela se encontra inscrito o amor. Eros, Apolo, Teseu são deuses belos, irresistíveis e cúmplices das paixões humanas. Como não levantar os olhos para a majestade de uma estátua e de não projetar nela a admiração pela grandeza de quem se ama?
O mergulho metafórico no mar leva Sophia ao encontro de tudo aquilo que é ancestral na cultura greco-romana – das tradições, lendas e mitos, patentes nas tragédias e poesia clássicas. Quem foi o deus, diante de cujos cânticos as folhas se curvavam para melhor escutar? Quem, generoso e forte, teve coragem de desafiar a bestialidade e a opressão? Quem, depois de grave perda, cometeu o erro de olhar para trás e não perceber que algo que já foi, jamais regressa? Quem sonhou os maiores cometimentos, mas não teve a sensatez de medir as dificuldades, os riscos de queda e ao soçobrar, mudar para sempre o curso da sua vida? Quem eram as divindades que personificavam o rancor, a cobiça, o ciúme e a inveja? Como sair de um labirinto, construído para nos desorientar e perder? Onde encontrar o fio de Ariadne que nos auxilie nos labirintos da vida?

Deuses pagãos ou o mesmo único Deus, telúrico, cristão, eis uma questão em aberto. Mas talvez a resposta esteja na procura do cristianismo através da limpidez das águas, do encantamento das praias, dos símbolos das lendas antigas. Mas também, no louvor da coragem e generosidade dos que nada para si quiseram, quando tudo podiam ter exigido. Dos heróis modestos que se levantaram quando era preciso, mas que se desvaneceram ao entender que o seu papel estava cumprido. Daqueles, cujo sofrimento exige reparação, para que os justos prevaleçam, pelo menos para que se faça justiça à sua memória. É uma liturgia feita de palavras solares, luminosas segundo os princípios da Liberdade.

Na obra de Sophia têm papel incontornável os contos infantis. Fantasias maravilhosas protagonizadas por crianças em ambientes mágicos. Sempre o mar e a praia, mas também a floresta e animais, e com a presença de fadas, anões, animais humanizados, sempre numa perspetiva ética, no seu apelo à Harmonia e Natureza. Como esquecer A Menina do Mar e dos seus amigos caranguejo, polvo e peixe…

Folhear Uma vida de poeta, além de manuscritos, alguns inéditos, é descobrir reflexões, desenhos, postais, fac-simile da capa dos seus livros, vê-la com o marido Francisco Sousa Tavares e os filhos, e no meio de amigos. De repente, recordar, também, Eugénio de Andrade, Agustina, Jorge de Sena, João Gaspar Simões, Graça Morais, Miguel Torga, José Régio, José Cardoso Pires, João Bénard da Costa, Ruben A., Luis Lindley Cintra e tantos outros. Causa um frémito esta amostra do espólio de Sophia.
Em Lisboa, no bairro da Graça, onde Sophia morou, é possível ver o Tejo, como também o Castelo de S. Jorge. Da sua janela talvez tivesse imaginado as viagens antigas e as descobertas, como o Cabo Bojador e Gil Eanes, que ao dobrá-lo derrotou o medo e os preconceitos antigos. Mas não só no Tejo, nem nas navegações henriquinas. Desde criança, muitos momentos felizes passaram-se na Praia da Granja (Gaia), de que faz relatos das dunas e da Casa da Praia. Aliás, as Casas, como a de Campo Alegre, grandes ou pequenas, têm descrições vivas por toda a sua obra. Fala dos jardins, dos quartos, dos objetos que neles havia, na tentativa de materializar a memória deles. As Casas, local de refúgio e de segurança, em contraponto à Cidade, hostil e desumanizada.
O espírito do mar adensou-se na descoberta do Algarve, nas suas viagens às ilhas gregas e dos Açores, como nas viagens a Macau e Timor, nas leituras dos clássicos, talvez trazido por um seu bisavô que, de uma ilha da Dinamarca, embarcou à aventura e arribou ao Porto. A ele se atribui a frase que tão próxima é de si. “O mar é o caminho para minha casa”. O espírito do mar em Sophia.

FM

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen (1912-2004), natural do Porto, proveio de uma família tradicional e aristocrática. Quando nasceu, seu avô recebeu um cartão da rainha D. Amélia felicitando-o pelo nascimento da sua neta Andresen (o pai de Sophia era dinamarquês). Viveu uma infância feliz e dessa época – dos jardins da casa de família, das férias passadas na praia da Granja, veio material que aparece projectado nos seus contos infantis. Aos 10 anos foi viver para Lisboa e, depois, durante a frequência do Curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras, nasceu a paixão pela mitologia grega. (Desenho de Arpad Szenes)

Na sua poesia está patente o ideal de beleza das esculturas e cerâmica clássicas como dos mitos, relatos e suas interpretações, feitos ao longo de toda a Antiguidade na poesia ou no teatro. Mas também o mar, o sol, não só das ilhas gregas como do Algarve de Lagos. E a luta pela Liberdade e pela Justiça.

Casou-se com Francisco Sousa Tavares, que foi dos principais oposicionistas do regime de Salazar, como também durante o PREC, senhor de uma escrita vigorosa, galvanizou a maioria do povo, atordoada pela nova tentativa totalitária. Ao lado do marido, Sophia teve uma militância política ativa. Integrou a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos, subscreveu o “Manifesto dos 101”, um documento com críticas desassombradas ao salazarismo. Já depois do 25 de Abril, foi eleita deputada à Assembleia Constituinte, nas listas do Partido Socialista (fotografia de João Cutileiro)

“Lagos onde reenventei o mundo num verão ido/ Lagos onde encontrei/ Uma nova forma do visível sem memória/ Clara como a cal concreta como a cal/ Lagos onde aprendi a viver rente/ Ao instante mais nítido e recente// Lagos que digo como passado agora/ Como verão ido absurdamente ausente//Quase estranho a mim e nunca tido”

“Foi um país que encontrei de frente/ Desde sempre esperado e prometido/ O puro dom de ter nascido/ E o sol reinava em Lagos transparente”

“Lagos lição de lucidez e liso/ Onde estar vivo se torna mais completo/ – Como pode meu ser ser distraído/ De sua luz de prumo e de projecto?”

“Ou poderemos Abril ter perdido/ O dia inicial inteiro e limpo/ Que habitou nosso tempo mais concreto?/ Será que vamos paralelamente/ Relembrar e chorar como um verão ido/ O país linear e transparente//E sua luz de prumo e de projecto

“Em Lagos/ Virada para o mar como a outra Lagos/ Muitas vezes penso em Leopoldo Sedar Senghor:/ A precisa limpidez de Lagos onde a limpeza/ É uma arte poética e uma forma de honestidade/ Acorda em mim a nostalgia de um projecto/ Racional limpo e poético// Os ditadores – é sabido – não olham para os mapas/ Suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões/ O seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos/ Jovens corpos mortos ao longo das extensões/ Na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil/ Aceitar o confuso o disforme a ocultação//…

…Na nitidez de Lagos onde o visível/ Tem recorte simples e claro de um prjecto/ O meu amor da geometria e do concreto/ Rejeita o balofo oco da degradação// Na luz de Lagos matinal e aberta/ Na praça qudrada tão concisa e grega/ Na brancura da cal tão veemente e directa/ O meu país se invoca e projecta.”

A CONQUISTA DE CACELA: As praças fortes foram conquistadas /Por seu poder e foram sitiadas/ As cidades do mar pela riqueza //Porém Cacela /Foi desejada só pela beleza

PRAIA: “Os pinheiros gemem quando passa o vento/ O sol bate no chão e as pedras ardem./ Longe caminham os deuses fantásticos do mar/ Brancos de sal e brilhantes como peixes.// Pássaros selvagens de repente,/ Atirados contra a luz como pedradas,/ Sobem e morrem no céu verticalmente/ E o seu corpo é tomado nos espaços./ As ondas marram quebrando contra a luz/ A sua fronte ornada de colunas.// E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro/ Baloiça nos pinheiros.”

“Reino de medusas e água lisa/ Reino de silêncio luz e pedra/ Habitação das formas espantosas/ Coluna de sal e círculo de luz/ Medida da Balança misteriosa”

A ANÉMONA DOS DIAS: Aquele que profanou o mar / E que traiu o arco azul do tempo / Falou da sua vitória // Disse que tinha ultrapassado a lei / Falou da sua liberdade / Falou de si próprio como de um Messias// Porém eu vi no chão suja e calcada / transparente anémona dos dias.

“Para atravessar contigo o deserto do mundo/ Para enfrentarmos juntos o terror da morte/ Para ver a verdade, para perder o medo/ Ao lado dos teus passos caminhei// Por ti deixei meu reino meu segredo/ Minha rápida noite meu silêncio/ Minha pérola redonda e seu oriente/ Meu espelho minha vida minha imagem/ E abandonei os jardins do parais// Cá fora à luz sem véu do dia duro/ Sem os espelhos vi que estava nua/ E ao descampado se chamava tempo// Por isso com teus gestos me vestiste/ E aprendi a viver em pleno vento.”

“Bebido o luar, ébrios de horizontes,/ Julgamos que viver era abraçar/ O rumor dos pinhais, o azul dos montes/ E todos os jardins verdes do mar.// Mas solitários somos e passamos,/ Não são nossos os frutos nem as flores,/ O céu e o mar apagam-se exteriores/ E tornam-se os fantasmas que sonhamos.// Por que jardins que nós não colheremos,/ Límpidos nas auroras a nascer,/ Por que o céu e o mar se não seremos/ Nunca os deuses capazes de os viver”

UM DIA: Um dia, gastos, voltaremos/ A viver livres como os animais/ E mesmo tão cansados floriremos/ Irmãos vivos do mar e dos pinhais.//O vento levará os mil cansaços/ Dos gestos agitados irreais/ E há-de voltar aos nosso membros lassos/A leve rapidez dos animais.//Só então poderemos caminhar/ Através do mistério que se embala/ No verde dos pinhais na voz do mar/ E em nós germinará a sua fala.

“Se todo o ser ao vento abandonamos/ E sem medo nem dó nos destruímos,/ Se morremos em tudo o que sentimos/ E podemos cantar, é porque estamos/ Nus em sangue, embalando a própria dor/ Em frente às madrugadas do amor./ Quando a manhã brilhar refloriremos/ E a alma possuirá esse esplendor/ Prometido nas formas que perdemos.”

DE UM AMOR MORTO: “De um amor morto fica/ Um pesado tempo quotidiano/ Onde os gestos se esbarram/ Ao longo do ano// De um amor morto não fica/ Nenhuma memória/ O passado se rende/ O presente o devora/ E os navios do tempo/ Agudos e lentos/ O levam embora// Pois um amor morto não deixa/ Em nós seu retrato/ De infinita demora/ É apenas um facto/ Que a eternidade ignora”

AS PESSOAS SENSIVEIS: “As pessoas sensíveis não são capazes/ De matar galinhas/ Porém são capazes/ De comer galinhas// O dinheiro cheira a pobre e cheira/ À roupa do seu corpo/ Aquela roupa/ Que depois da chuva secou sobre o corpo/ Porque não tinham outra/ O dinheiro cheira a pobre e cheira/ A roupa/ Que depois do suor não foi lavada/ Porque não tinham outra// “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”/ Assim nos foi imposto/ E não:/ “Com o suor dos outros ganharás o pão.”// Ó vendilhões do templo/ Ó constructores/ Das grandes estátuas balofas e pesadas/ Ó cheios de devoção e de proveito// Perdoai-lhes Senhor/ Porque eles sabem o que fazem.”

“Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo//Mal de te amar/ neste lugar de imperfeição/ Onde tudo nos quebra e emudece/ Onde tudo nos mente e nos separa”

“A hora da partida soa quando / Escurece o jardim e o vento passa, // Estala o chão e as portas batem, quando / A noite cada nó em si deslaça. //A hora da partida soa quando / as árvores parecem inspiradas / Como se tudo nelas germinasse. //Soa quando no fundo dos espelhos / Me é estranha e longínqua a minha face / E de mim se desprende a minha vida.”

Fortaleza de Sagres

IMPROVISO QUASE RELIGIOSO… Discordarei do mar/ enquanto a terra me for tão próxima/ tenho saudades de ondas/ que façam parte de nós/ e nos prolonguem/ já nos vimos tão perto/ de todos os cais/ já tivemos um pé/ em todos os barcos/ já fomos livres/ de nos prendermos/ talvez nos falte apenas a sabedoria /do amanhecer ou do pôr-do-sol/ uma espécie de livro sagrado/ antes da sagração de todos os deuses.”

O POEMA: “O poema me levará no tempo/ Quando eu já não for eu/ E passarei sozinha/ Entre as mãos de quem lê// O poema alguém o dirá/ Às searas// Sua passagem se confundirá/ Como rumor do mar com o passar do vento// O poema habitará/ O espaço mais concreto e mais atento/ No ar claro nas tardes transparentes/ Suas sílabas redondas// (Ó antigas ó longas/ Eternas tardes lisas)//Mesmo que eu morra o poema encontrará/ Uma praia onde quebrar as suas ondas// E entre quatro paredes densas/ De funda e devorada solidão/ Alguém seu próprio ser confundirá/ Com o poema no tempo/”

O mar azul e branco e as luzidias/ Pedras – O arfado espaço/ Onde o que está lavado se relava/ Para o rito do espanto e do começo/ Onde sou a mim mesma devolvida/ Em sal espuma e concha regressada/ À praia inicial da minha vida.

Aqui nesta praia onde/ Não há nenhum vestígio de impureza/ Aqui onde há somente/ Ondas tombando/ininterruptamente. /Puro espaço e lúcida unidade.

Na luz oscilam os múltiplos navios/ Caminho ao longo dos oceanos frios// As ondas desenrolam os seus braços/ E brancas tombam de bruços// A praia é lis e longa sob o vento/ Saturada de espaços e maresia// E para trás fica o murmúrio//Das ondas enroladas como búzios.

AÇORES: “Há um intenso orgulho/Na palavra Açor /E em redor das ilhas/O mar é maior/ Como num convés/ Respiro amplidão/ No ar brilha a luz/ Da navegação//Mas este convés é de terra escura de lés a lés/ Prado agricultura/ É uma terra lavrada /Por navegadores/ E os que no mar pescam/ São agricultores//Por isso há nos homens /Aprumo de proa/ E não sei que sonho/ Em cada pessoa /As casas são brancas/ Em luz de pintor /Quem pintou as barras/ Afinou a cor//Aqui o antigo/Tem o limpo do novo./É o mar que traz/ Do largo o renovo//…

…E como num convés /De intensa limpeza /Há no ar um brilho/ De bruma e clareza//É convés/ lavrado/ Em plena amplidão/ É o mar que traz/ As ilhas na mão//Buscámos no mundo/ Mar e maravilhas/ Deslumbradamente/ Surgiram nove ilhas//E foi na Terceira/ Com o mar à proa/ Que nasceu a mãe/ Do poeta Pessoa//Era cujo poema/ Respiro amplidão/ E me cerca a luz/ Da navegação//Em cujo poema/ Como num convés/ A limpeza extrema/Luz de lés a lés//Poema onde está/A palavra pura/De um povo cindido /Por tanta aventura.”

GRUTA DE CAMÕES: “Dentro de mim sobe a imagem dessa gruta/ Cujo silêncio ainda escuta/ Os teus gestos e os teus passos.// Aí, diante do mar como tu transbordante/ De confissão e segredo,/ Choraste a face pura/ Das brancas amadas/ Mortas tão cedo.”

Heraclito de Epheso diz: “O pior de todos os males seria/ a morte da palavra”// Diz o provérbio do Malinké: “Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento/ Mas não pode/ Enganar-se na sua parte de palavra”

PORQUE: “Porque os outros se mascaram mas tu não/ Porque os outros usam a virtude/ Para comprar o que não tem perdão/ Porque os outros têm medo mas tu não//Porque os outros são os túmulos caiados/ Onde germina calada a podridão./ Porque os outros se calam mas tu não.//Porque os outros se compram e se vendem/ E os seus gestos dão sempre dividendo./ Porque os outros são hábeis mas tu não.//Porque os outros vão à sombra dos abrigos/ E tu vais de mãos dadas com os perigos./ Porque os outros calculam mas tu não”. (Apolo)

Chimera Apulia Louvre

“As três Parcas que tecem os errados/ Caminhos onde a rir atraiçoamos /O puro tempo onde jamais chegamos/ As três Parcas conhecem os maus fados//Por nós elas esperam nos trocados/ Caminhos onde cegos nos trocamos/ Por alguém que não somos nem amamos/ Mas que presos nos leva e dominados.//E nunca mais o doce vento aéreo/ Nos levará ao mundo desejado/ E nunca mais o rosto do mistério//Será o nosso rosto conquistado/ Nem nos darão os deuses o império/ Que à nossa espera tinham inventado.”

DIONYSOS: “Entre as árvores escuras e caladas/ O céu vermelho arde,/ E nascido da secreta cor da tarde/ Dionysos passa na poeira das estradas// A abundância dos frutos de Setembro/ Habita a sua face e cada membro/ Tem essa perfeição vermelha e plena,/ Essa glória ardente e serena/ Que distinguia os deuses dos mortais.”

ânfora

As aventuras de Teseu são referidas desde a Antiguidade na literatura e cerâmica, com diferentes interpretações e relatos. A sua origem é obscura – descende longinquamente de Zeus, e é filho de Posídon. No entanto, Egeu, rei de Atenas, julga-o seu filho. Quando Teseu nasce, Egeu já desesperava por descendência e temendo a cobiça dos seus sobrinhos, que ambicionavam a sucessão, deixou-o entregue à mãe e avô, recomendando que ele só viesse para Atenas quando fosse suficientemente forte. É na adolescência que Teseu parte, lutando e matando diversos monstros sanguinários.

O Minotauro nasceu da união contra-natura de Pasífae, esposa de Minos, com um toiro belíssimo, que Posídon fizera sair do mar, como prova do favor divino que fizera Minos reinar em Creta. Minos prometeu sacrificá-lo mas não cumpriu a promessa. Furioso, Posídon enlouqueceu o toiro que devastava toda a ilha e fez despertar uma paixão louca de Pasífae pelo animal. Dédalo, arquitecto ateniense exilado em Creta, a pedido de Pasífae, constrói uma vaca oca de madeira, dentro da qual a rainha se escondeu, enganando o toiro, e, assim, conseguir unir-se a ele.

O Minotauro tinha corpo de homem e cabeça de touro, era extremamente feroz e alimentava-se de carne humana. Minos, aterrado e envergonhado, mandou construir um intrincado labirinto, do qual ninguém conseguia sair, e prendeu o Minotauro no seu interior. Segundo a lenda, o Labirinto, foi também construído por Dédalo, que o fez cheio de desvios enganosos, sinuosidades, comunicações inumeráveis, como o rio Meandro. Quem entrasse, mal acabasse de sair, logo se introduzia noutro labirinto.

Como tributo de uma guerra travada contra Atenas, motivada pela morte de seu filho Androgeu, Minos exigiu que os atenienses mandassem anualmente a Creta sete rapazes e sete moças, que seriam oferecidos para alimento do Minotauro. Se o Minotauro morresse, o tributo cessaria. Teseu decide incorporar um desses grupos. É introduzido no Labirinto, liquida o monstro e consegue sair daquele dédalo, graças à ajuda de Ariane, filha de Minos, que por ele se apaixonara. Ariane entregou-lhe um novelo de fio que Teseu deveria ir desenrolando quando entrasse no Labirinto, o qual lhe indicaria o caminho de regresso. O Fio de Ariane.

Eliminado o monstro, Teseu parte de Creta com Ariadne que depois abandona na ilha de Naxos, onde Dioniso a encontra, desposa e leva para o Olimpo. Toda a vida de Teseu é repleta de aventuras.

Labirinto de Cnossos – As ruínas que hoje perduram em Cnossos são as do edifício destruído no século XIV AC, mas a sua estrutura não deve ser muito diferente do que o antecedeu. Era um edifício quase quadrado, de cerca de cento e cinquenta metros de lado, com um amplo espaço aberto ao centro, de forma rectangular. Para José Ribeiro Ferreira, o Labirinto simboliza a complexidade e insolubilidade da vida actual e Minotauro, algo de monstruoso que nasce do homem e que cada um arrasta consigo – tempo que tudo devora, paixões e desejos, poder económico.

TESEU E MINOTAURO “Assim o “Minotauro longo tempo latente/ De repente salta sobre a nossa vida /Com veemência vital de monstro insaciado”

O MINOTAURO: “Em Creta/ Onde o Minotauro reina/ Banhei-me no mar// Há uma rápida dança em frente de um toiro/ Na antiquíssima juventude do dia// Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu/ Só bebi retsina tendo derramado na terra a parte que pertence aos deuses// De Creta Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas/ Para inteiramente acordada comungar a terra/ De Creta/ Beijei o chão como Ulisses/ Caminhei na luz nua// Devastada era eu própria como a cidade em ruína/ Que ninguém reconstruiu/ Mas o sol dos meus pátios vazios/ A fúria reina intacta/ E penetra comigo no interior do mar/ Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos/ E reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor/ E o mar de Creta por dentro é todo azul/ Oferenda incrível de primordial alegria/ Onde o sombrio Minotauro navega/ Pinturas ondas colunas e planícies/…

…Em Creta/ Inteiramente acordada atravessei o dia/ E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos/ Palácios sucessivos e roucos/ Onde se ergue o respirar de sussurrada treva/ E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e terror/ Imanentes ao dia -/ Caminhei no palácio dual de combate e confronto/ Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais// Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu/ O Dionysinos que dança comigo na vaga não se vende em nenhuma mercado negro/ Mas cresce como flor daqueles cujo ser/ Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne/ E esta é a dança do ser//

..Em Creta/ Os muros de tijolo da cidade minóica/ São feitos de barro amassado com algas/ E quando me virei para trás da minha sombra/ Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro//Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga/ De olhos abertos inteiramente acordada/ Sem drogas e sem filtro/ Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas -/ Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto/ Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.”

LABIRINTO: “Sózinha caminhei no labirinto/ Aproximei meu rosto do silêncio e da treva/ Para buscar a luz dum dia limpo.”

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA OU O ITINERÁRIO INELUTÁVEL: “Minúcia é o labirinto muro por muro/ Pedra contra pedra livro sobre livro/ Rua após rua escada após escada/ Se faz e se desfaz o labirinto/ Palácio é o labirinto e nele/ Se multiplicam as Salas e cintilam/ Os quartos de Babel roucos e vermelhos/ Passado é o labirinto: seus jardins afloram/ E do fundo da memória sobem as escadas/ Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta/ Biblioteca rede inventário colmeia-/Itinerario é o labirinto/ Como o subir dum astro inelutável-/ Mas aquele que o percorre não encontra/ Toiro nenhum solar nem sol nem lua/ Mas só o vidro sucessivo do vazio/ E um brilho de azulejos íman frio/ Onde os espelhos devoram as imagens/ Exauridos pelo labirinto caminhamos/ Na minúcia da busca na atenção da busca/ Na luz mutavel: de quadrado em quadrado/ Encontramos desvios redes e castelos/ Torres de vidro corredores de espanto// Mas um dia emergiremos e as cidades/ Da equidade mostrarão sen branco/ Sua cal sua aurora seu prodígio”

A amizade entre Sophia e Maria Helena Vieira da Silva é comprovada em numerosa correspondência. Uma estreita relação de cumplicidades pessoais, não só na vida como na arte, ou seja entre e a pintura e a poesia. Maria Helena ilustrou poemas de Sophia, como esta utilizou títulos de quadros e elementos da obra da pintora na sua poesia. Há menção a bibliotecas, ruas, cidades, quartos, ateliers de Vieira da Silva. O labirinto dos elementos da pintura como as linhas, cores, formas geométricas, com paredes que se movem e espelhos, todos contribuindo para a desorientação, é percorrido pela voz poética de Sophia que nos sugere espaços reconhecíveis mas intermináveis. Noutro poema é a atenção do olhar como condição prévia à escrita (Vieira da Silva: Atenta antena/Athena) . Noutro ainda, estar dentro do quadro e pintar o quadro, num tríptico sobre Maria Helena, Arpad e a pintura.

VIEIRA DA SILVA: “Atenta antena/ Athena/ De olhos de coruja/ Na obscura noite lúcida”

TRÍPTICO OU MARIA HELENA, ARPAD E A PINTURA: Eles não pintam o quadro: estão dentro do quadro//II Eles não pintam o quadro: julgam que estão dentro do quadro// III Eles sabem que não estão dentro do quadro: pintam o quadro

TÚMULO DE LORCA: “Em ti choramos os outros mortos todos/ Os que foram fuzilados em vigílias sem data/ Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias/ Tão ignorados que nem sequer podemos/ Perguntar por eles imaginar seu rosto/ Choramos sem consolação aqueles que sucumbem/ Entre os cornos da raiva sob o peso da força// Não podemos aceitar. O teu sangue não seca/ Não repousamos em paz na tua morte/ A hora da tua morte continua próxima e veemente/ E a terra onde abriram a tua sepultura/ É semelhante à ferida que não fecha// O teu sangue não encontrou nem foz nem saída/ De Norte a Sul de leste a Oeste/ Estamos vivendo afogados no teu sangue/ A lisa cal de cada muro branco/ Escreve que tu foste assassinado// Não podemos aceitar. O processo não cessa/ Pois nem tu foste poupado à patada da besta/ A noite não pode beber nossa tristeza/ E por mais que te escondam não ficas sepultado.”

SALGUEIRO MAIA: “Aquele que na hora da vitória/ Respeitou o vencido// Aquele que deu tudo e não pediu a paga// Aquele que na hora da ganância/ Perdeu o apetite// Aquele que amou os outros e por isso/ Não colaborou com sua ignorância ou vicio.// Aquele que foi «Fiel a palavra dada à ideia tida»/ Como antes dele mas também por ele/ Pessoa disse”

25 DE ABRIL: “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”

Na mitologia grega, Orpheu era o poeta mais talentoso que alguma vez existira. Diante da beleza do seu canto, os pássaros deixavam de voar para escutá-lo, os animais selvagens perdiam o medo, as sereias responsáveis pelos naufrágios ficavam silenciosas e os monstros encantavam-se.

“Orpheu/ seu canto alto e grave/ O canto de oiro o êxtase da lira/ Orpheu/ A palidez sagrada de seu rosto/ Que de clarões e sombras se ilumina/ Ante seus pés se deitam mansas feras/ Vencidas pela música divina” (Orfeu rodeado de animais, Museu Cristão-Bizantino, Atenas)

Orpheu apaixonou-se pela bela ninfa dos arvoredos, Eurídice, e casou com ela. Porém, Eurídice é mordida por uma serpente e morre. Transtornado, Orpheu vai ao Mundo dos Mortos, tentar resgatá-la. Lá, o Rei dos Mortos comoveu-se com a tristeza da música de Orpheu e permitiu que ele a trouxesse de volta, mas, com uma condição: que não olhasse para ela, até que Eurídice, de novo, estivesse à luz do sol.

No regresso, Orpheu tocava músicas de alegria e celebração que guiavam a sombra de Eurídice. Porém, ao chegar à luz do sol, Orpheu virou-se para se certificar de que ela o seguia. Ainda a viu, mas Eurídice transformou-se de novo em fantasma. Perdera-a para sempre. A mágoa deixou-o amargo, recusando-se a olhar para qualquer outra mulher. Até ser morto, errou por terras da Grécia. Foram musas chorosas que o enterraram no Olimpo. Dizem que, desde então, os rouxinóis das proximidades cantam mais docemente que os outros.

ELEGIA: Aprende/ A não esperar por ti pois não te encontrarás// No instante de dizer sim ao destino/ Incerta paraste emudecida/ ? os oceanos depois devagar te rodearam// A isso chamaste Orpheu Eurydice —/ Incessante intensa lira vibrava ao lado/ Do desfilar real dos teus dias / Nunca se distingue bem o vivido do não vivido/ O encontro do fracasso —./ Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta/ Quando se ergue o canto/ Por isso a memória sequiosa quer vir à tona/ Em procura da parte que não deste/ No rouco instante da noite mais calada/ Ou no secreto jardim à beira rio/ Em Junho

“Eurydice perdida que no cheiro /E nas vozes do mar procura Orpheu:/ Ausência que povoa terra e céu/ E cobre de silêncio o mundo inteiro.//Assim bebi manhãs de nevoeiro/E deixei de estar viva e de ser eu/Em procura de um rosto que era o meu/ O meu rosto secreto e verdadeiro.//Porém nem nas marés nem na miragem/ Eu te encontrei. Erguia-se somente/ O rosto liso e puro da paisagem.//E devagar tornei-me transparente/ Como morta nascida à tua imagem/ E no mundo perdida esterilmente.”

FÚRIAS: “Escorraçadas do pecado e do sagrado/ Habitam agora a mais íntima humildade/ Do quotidiano. São/ Torneira que se estraga atraso de autocarro/ Sopa que transborda na panela /Caneta que se perde aspirador que não aspira/ Táxi que não há recibo extraviado/ Empurrão cotovelada espera/ Burocrático desvario// Sem clamor sem olhar/ Sem cabelos eriçados de serpentes/ Com as meticulosas mãos do dia-a-dia/ Elas nos desfiam// Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno/ Sem rosto e sem máscara/ Sem nome e sem sopro/ São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria// Já não perseguem sacrílegos e parricidas/ Preferem vítimas inocentes/ Que de forma nenhuma as provocaram/ Por elas o dia perde seus longos planos lisos/ Seu sumo defruta/ Sua fragrância de flor/ Seu marinho alvoroço/ E o tempo é transformado/ Em tarefa e pressa/ A contra tempo.”

PÁTRIA: “Por um país de pedra e vento duro/ Por um país de luz perfeita e clara/Pelo negro da terra e pelo branco do muro//Pelos rostos de silêncio e de paciência/ Que a miséria longamente desenhou/ Rente aos ossos com toda a exactidão/ Dum longo relatório irrecusável// E pelos rostos iguais ao sol e ao vento// E pela limpidez das tão amadas/ Palavras sempre ditas com paixão/ Pela cor e pelo peso das palavras/ Pelo concreto silêncio limpo das palavras/ Donde se erguem as coisas nomeadas/ Pela nudez das palavras deslumbradas//— Pedra rio vento casa/ Pranto dia canto alento / Espaço raiz e água / Ó minha pátria e meu centro/ /Me dói a lua me soluça o mar/ E o exílio se inscreve em pleno tempo” (Vieira da Silva/ Naufrágio)

Fernando Pessoa exerceu enorme fascínio sobre Sophia: ”…Eu pertenço a uma geração que vem depois do Fernando Pessoa e que de uma certa forma não aceita essa teologia do nada, e há uma tentativa de um certo regresso à inteireza. Eu escrevi muito sobre o Fernando Pessoa porque justamente essa capacidade de não ser ninguém me faz uma certa angústia. Porque a morte não é só decomposição… também pode ser perda de identidade. Fernando Pessoa perdeu a identidade em vida, vive uma perda de identidade. Ele vive com isso percebe? É como se a vida fosse qualquer coisa que existe, mas era para ser dele, percebe?”(entrevista em 1982)

FERNANDO PESSOA: “Teu canto justo que desdenha as sombras/ Limpo de vida viúvo de pessoa/ Teu corajoso ousar não ser ninguém/ Tua navegação com bússola e sem astros/ No mar indefinido/ Teu exacto conhecimento impossessivo// Criaram teu poema arquitectura/ E és semelhante a um deus de quatro rostos/ E és semelhante a um deus de muitos nomes/ Cariátide de ausência isento de destinos/ Invocando a presença já perdida/ E dizendo sobre a fuga dos caminhos/ Que foste como as ervas não colhidas”

HOMENAGEM A RICARDO REIS: “Não creias Lídia, que nenhum estio/ Por nós perdido possa regressar/ Oferecendo a flor/ Que adiámos colher// Cada dia te é dado uma só vez/ E no redondo circulo da noite/ Não existe piedade/ Para aquele que hesita// Mais tarde será tarde e já é tarde/ O tempo apaga tudo menos esse/ Longo indelével rasto/ Que o não.vivido deixa// Não creias na demora em que te medes./ Jamais se detem Kronos cujo passo/ Vai sempre mais à frente/ Do que o teu próprio passo.”

CIDADE: “Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,/ Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,/ Saber que existe o mar e as praias nuas,/ Montanhas sem nome e planícies mais vastas/ Que o mais vasto desejo,/ E eu estou em ti fechada e apenas vejo/ Os muros e as paredes, e não vejo/ Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.// Saber que tomas em ti a minha vida/ E que arrastas pela sombra das paredes/ A minha alma que fora prometida/ Às ondas brancas e às florestas verdes.”

Vista de Lisboa do Miradouro da Senhora da Graça

Rodhes. “Desde a orla do mar/ Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim/ Desde a orla do mar/ Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas/ Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo/ Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas/ Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas/ E nadei de olhos abertos na transparência das águas/ Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa/ Para fundar no sal e na pedra o eixo recto/ Da construção possível//…

Delphos …Desde a sombra do bosque/ Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite/ E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla.// Desde a sombra do bosque desde a orla do mar//…

… Caminhei para Delphos/ Porque acreditei que o mundo era sagrado/ E tinha um centro/ Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado// Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e destruído/ As águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga/ A língua torceu-se na boca de Sibila/ A água que primeiro eu escutei já não se ouvia//…

…Só Antinoos mostrou o seu corpo assombrado/ Seu nocturno meio-dia.”

COM FÚRIA E RAIVA: “Com fúria e raiva acuso o demagogo/ E o seu capitalismo das palavras / Pois é preciso saber que a palavra é sagrada/ Que de longe muito longe um povo a trouxe/ E nela pôs sua alma confiada// De longe muito longe desde o início/ O homem soube de si pela palavra/ E nomeou a pedra a flor a água/ E tudo emergiu porque ele disse/ Com fúria e raiva acuso o demagogo/ Que se promove à sombra da palavra/ E da palavra faz poder e jogo/ E transforma as palavras em moeda/ Como se fez com o trigo e com a terra” (Casa das Atridas)

O REI DA ÍTACA: “A civilização em que estamos é tão errada que/ Nela o pensamento se desligou da mão/ Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco/ E gabava-se também de saber conduzir/ Num campo a direito o sulco do arado”

PENÉLOPE: “Desfaço durante noite o meu caminho./ Tudo quanto teci não é verdade,/ Mas tempo, para ocupar o tempo morto,/ ? cada dia me afasto a cada noite me aproximo.”

Miradouro da Senhora do Monte, Graça

O ANJO DE TIMOR: “Há muitos, muitos anos, em Timor, vivia um liurai muito poderoso e muito bom. Na sua juventude resolveu ir correr mundo, para se tornar mais sábio. /Foi viajando de barco, de ilha em ilha, até chegar a uma terra muito distante. /Ali, um dia, conheceu um mercador vindo de muito longe, dos países do lado do Poente e que, também ele, andava há longos anos no caminho./Esse mercador disse-lhe que, numa das suas viagens, tinha ouvido contar que, ainda muito mais longe, para além de montanhas, oceanos e dos imensos desertos de areia, vivia um povo que adorava um Deus único e todo-poderoso, criador do Universo e de todas as suas criaturas. E esse povo acreditava que o seu Deus, um dia, desceria à terra para salvar todos os homens. – Quero ir ao país onde mora esse povo, disse o timorense./ Quero ouvir mais notícias do Deus que um dia viverá entre nós./ – Ai, é impossível, respondeu o mercador. Esse país fica tão longe que mesmo se viajasses a tua vida inteira não conseguirias lá chegar…

…- Já vi tantos lugares e tantos povos, mas não posso encontrar o povo que adora o Deus único, porque mesmo que viajasse a vida inteira não conseguiria lá chegar. Por isso, de que me serve viajar mais?/ E voltou para a sua terra./ E enquanto dormia, ouviu em sonhos uma voz que lhe disse que esperasse, esperasse sempre, pois um dia, a meio da noite, Deus lhe mandaria um sinal….//… Daí em diante, foi sempre assim. … quando todos tinham adormecido, sentava-se de novo sozinho, à porta da sua casa, à espera de um sinal de Deus. … ia envelhecendo, mas todas as noites se sentava à entrada da sua casa, à espera do sinal de Deus. Poisava sempre ao seu lado a pequena caixa de sândalo onde estavam guardadas as pedrinhas com as quais na sua infância jogava o hanacaleic…//… E o jovem disse: /- Sou o Anjo de Timor. Alegra-te, liurai, porque o Deus que tanto tens esperado se fez homem e desceu hoje à terra. … Gaspar traz uma caixa com oiro. Melchior uma caixa com mirra e Baltasar uma caixa com incenso…

…- Quero ir com eles, exclamou o chefe timorense./- É impossível. Belém fica tão longe que nem que caminhasses a tua vida inteira lá chegarias./ – Então, Anjo, tu que és mais rápido que o pensamento, leva o meu presente ao Menino. É uma caixa de sândalo que tem lá dentro as pedras com que eu brincava ao caleic quando era pequeno. O Anjo tomou a caixa nas mãos e disse:/ – Ainda bem que te lembraste de Lhe mandar um brinquedo…//… Este Natal, de novo, o Anjo de Timor se ajoelhou e ofereceu uma vez mais a caixa de sândalo e as pedras do caleic:/ – Menino Deus, Príncipe da Paz, Deus todo Poderoso, lembra-Te do povo de Timor que por Ti foi confiado à minha guarda. Vê como não cessam de Te invocar, mesmo no meio do massacre. Senhor, libertai-os do seu cativeiro, dai-lhes a paz, a justiça, a liberdade. Dai-lhes a plenitude da Vossa graça./ Glória a Ti, Senhor!”

PARA RUY CINATTI AUSENTE EM TIMOR E ALGURES: “Aquele que partiu/ precedendo os próprios passos como um jovem morto/ deixou-nos a esperança.// Ele não ficou para connosco/ destruir com amargas mãos seu próprio rosto. Intacta é a sua ausência/ como a estátua de um deus/ poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas./ Ele não ficou para assistir/ à morte da verdade e à vitória do tempo./Que ao longe, na mais longínqua praia,/ onde só haja espuma, sal e vento,/ ele se perca, tendo-se cumprido segundo a lei do seu próprio pensamento.// E que ninguém repita o seu nome proibido.”

O poeta Ruy Cinatti esteve profundamente ligado a Timor onde viveu por várias ocasiões. Entre outras funções profissionais foi chefe dos Serviços de Agricultura. Em 1975 dirigiu uma carta ao Diário de Notícias, prevenindo o país do perigo que Timor corria, carta nunca publicada. A invasão indonésia foi para ele um golpe rude. Esta foi mais uma razão da sua proximidade com Sophia.

Sophia de Mello Breyner Andresen deixou uma obra vastíssima, principalmente na poesia. Relevo para “Dia do Mar” (1947), “Mar Novo” (1958), “O Cristo Cigano” (1961), “Livro Sexto” (1962), “O Nome das Coisas” (1977), “Ilhas” (1989), “O Buzio de Coz” (1997), Orpheu e Eurydice (2001). Na ficção, contos para crianças como “A Menina do Mar” (1958), “A Floresta” (1968) ou “Noite de Natal” (1960), contos para adultos “Contos Exemplares” (1962) e “Histórias da Terra e do Mar” (1984). Escreveu também teatro e ensaio e traduziu diversos clássicos como “O Purgatório” (Dante), “Medeia” (Eurípedes) ou “Hamlet “(Shakespeare). A Editorial Caminho reuniu num único volume a obra poética de Sophia, cuja 2ª edição apareceu em 2011.

Entre os numerosos prémios e distinções que recebeu, destaque para o Prémio Camões (1999) e Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana (2003)

Consultados: A Aliança com as Coisas. O mito de Orfeu em Sophia de Mello Breyner Andresen, Ewa Lukaszyk http://publib.upol.cz/~obd/fulltext/Romanica7/Romanica7-07.pdf / Mar Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: Poética do Espaço e da Viagem, Helena Conceição Langrouva, http://triplov.com/sophia/helena.html /O mar na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, Klára Šime?ková, http://is.muni.cz/th/75309/ff_m/O_mar_na_obra_de_Sophia_de_Mello_Breyner_Andersen.pdf / Labirinto e Minotauro Mito de ontem e de Hoje, , José Ribeiro Ferreira, http://www.fluirperene.com/livros/labirinto_e_minotauro.pdf / O tema de Orfeu em Musa em Sophia de Mello Breyner Andresen, José Ribeiro Ferreira, http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas50/55.2_Ribeiro_Ferreira.pdf/ Sophia de Mello Breyner Andresen: Mitos gregos e encontros com o Real, Antonio Manuel dos Santos Cunha, http://www.incm.pt/site/anexos/10044320090319170206876.pdf

A paisagem “de quadrado em quadrado”: a pintura de Vieira de Silva na poesia de Sophia Andresen, Virgínia Bazzetti Boechat, http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/039/VIRGINIA_BOECHAT.pdf

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

 

Ouça o conto:

A Menina do Mar

A menina do Mar

      Menina_do_Mar

As Linhas de Torres e as encruzilhadas da História

Quando Luis XVI foi guilhotinado (1793), as monarquias europeias sentiram-se seriamente ameaçadas. Já não bastava a supressão da nobreza e dos direitos da Igreja – que viram ambas os seus bens confiscados. Agora, a revolução radicalizava-se. Ia entrar-se no período do Terror, protagonizado principalmente por Robespierre.

Espanha e Inglaterra decidem agir e Portugal vai a reboque. Envia uma força de 5400 homens para a Catalunha, que reforça o exército espanhol. As operações militares são um malogro para a coligação. É a Campanha do Rossilhão que termina com uma paz assinada apenas por representantes da Espanha e Inglaterra (1795).

Em Portugal reina D. Maria I. A política externa tinha-se pautado pela tentativa de Portugal se conservar neutral entre as duas principais potências europeias da época – Inglaterra e França, o que garantia o comércio com ambos os lados. Napoleão, entretanto, chegara ao Poder (1799). Espanhóis e franceses assinam uma convenção (1801), e onde firmam a paz e intimam Portugal a fechar os portos aos navios ingleses, a declarar guerra a Inglaterra e a sequestrar bens e prender os súbditos ingleses residentes. Apesar de ainda decorrerem negociações diplomáticas, o exército espanhol invade o Alentejo e em 18 dias fica senhor do Alto-Alentejo. O exército português era composto por 18000 homens que se opuseram a 30000 invasores. Foi a chamada Guerra das Laranjas.

Este conflito antecedeu o Bloqueio Continental, através do qual os franceses, depois de terem visto a sua armada destruída em Trafalgar (1805), pretendiam impedir o comércio inglês.

Portugal, dada a sua Aliança com Inglaterra, era uma falha no bloqueio aos navios e comércio ingleses. Napoleão decide invadir Portugal. Espanhóis e franceses estabelecem um Tratado (Fontainebleu, 1807), pelo qual se acorda a passagem de tropas franceses e a invasão militar franco-espanhola de Portugal. O país seria retalhado em três partes, das quais uma para espanhóis, e outra para franceses.

O rei Carlos IV de Espanha recebe os franceses como aliados. É o General Junot a comandar a 1ª Invasão. Mas, a pretexto de reforçar as suas forças em Portugal, os franceses tomam várias cidades de Espanha e cerca de 100.000 homens chegam também a Madrid. Entretanto, o rei Carlos IV era deposto (1808) por seu filho (futuro Fernando VII). Para resolver o conflito sucessório é pedida a intervenção de Napoleão, a quem ambos afirmavam fidelidade. O Imperador atrai-os a uma cilada palaciana em Bayonne e proclama rei seu irmão, José Bonaparte. Era a eliminação da dinastia dos Borbons. Mas, patriotas espanhóis revoltam-se. A repressão é feroz. Eclodem insurreições por toda a Espanha. As implicações destes levantamentos em Espanha seriam enormes e estão na origem na Constituição de Cadiz de 1812 (primeiro documento constitucional aprovado na Península Ibérica) e na instauração dum modelo liberal.

Quando a corte de Portugal se transfere para o Brasil (1807), na véspera da chegada de Junot a Lisboa, é sobre o Príncipe Regente, que recaem decisões críticas. A Rainha sofre de distúrbios psiquiátricos e está incapacitada. O governo é entregue a um Conselho de Regência, que será rapidamente demitido por Junot, considerando banida a Casa de Bragança. Os invasores entram sem oposição. O Príncipe Regente dera instruções para que não houvesse resistência. Porém, gradualmente, aqui e ali, estalam revoltas, actos sediciosos quase sempre praticados por populares contra os “colaboracionistas” , principalmente padres, magistrados e senhores das terras e, evidentemente, contra os soldados franceses. É uma insubordinação de cariz nacionalista, politicamente mal enquadrada e sem um exército organizado.

O Exército de Linha português, mesmo com as reformas introduzidas, anos antes, pelo conde de Lippe – convidado pelo Marquês de Pombal, estava em estado calamitoso – dividido entre o entusiasmo de alguns generais pelas conquistas napoleónicas e o patriotismo de outros, descaracterizado pela introdução de oficiais estrangeiros, e sem armas nem organização. Depois das derrotas do Rossilhão e da Guerra das Laranjas e da retirada da maioria dos oficiais portugueses (que eram fidalgos) para o Brasil, os efectivos eram reduzidos e o pouco armamento, arcaico. Junot desarmara a maior parte das forças, e muito do Exército de Linha (o equivalente ao Quadro Permanente), fora integrado nas forças napoleónicas (a “Legião Portuguesa”, a qual veio a lutar contra o exército anglo-luso). As forças militares portuguesas restantes eram provenientes do Serviço Militar obrigatório: as ordenanças – tropa irregular destinada a operações de guerra local e circunscrita, e a funcionar como depósito de recrutamento; e as milícias – cuja missão era acudir às fronteiras em situações de guerra, as quais tinham sido também desarmadas.

Porém, os ingleses, depois de muitas hesitações, tinham enviado um contingente, comandado pelo Marechal Beresford, onde se incluía Arthur Wellesley, mais tarde duque de Wellington. Os franceses são expulsos pelo exército anglo- luso.

Depois de Junot, foi Soult, que não passou do Porto. E, finalmente, o Marechal André Masséna, l’Enfant chéri de la Victoire, tornado Príncipe d’ Essling, por feitos nas Campanhas de Itália. Para Napoleão, o objectivo, agora, não era só o bloqueio dos portos aos ingleses, era também a pacificação de Espanha, em ebulição.

O tema que aqui se trata são as Linhas de Torres, complementado por excertos de ficções sobre a ocupação de Portugal pelas tropas de Junot e Soult e que ajudam a explicar a abnegação das populações aos sacrifícios que lhes foram impostos.

A ambição sem escrúpulos de Napoleão teve implicações drásticas – estendeu o conflito a toda a Península Ibérica. As invasões francesas a Portugal passaram, assim, a fazer parte da Guerra de Espanha, como os franceses a denominam, mesmo que de início o não fosse. Mas, também, facilitaram as ideias liberais e, a médio prazo, deram origem à independência do Brasil e das colónias espanholas da América.

A Guerra Peninsular continuou muito para lá da expulsão de Masséna e, nos seus desenvolvimentos vamos encontrar Wellington, como na importante batalha de Vitoria (1813) – que envolveu também forças portuguesas, e na perseguição aos franceses, até 1814.

Wellington desempenhou um papel militarmente excepcional. Só travou batalhas em locais e em condições que lhe pareceram propícias. As tácticas revolucionárias das tropas napoleónicas, que estiveram na origem do Imperio francês, não foram suficientes.

Wellington mostrou-se desdenhoso acerca da competência das tropas portuguesas. Porém, o seu êxito deveu-se também à erosão que as guerrilhas populares causaram nos invasores e ao sacrifício das populações civis portuguesas. O país ficou arrasado. O prestígio de Wellington estava feito e consagrou-se ao infligir a derrota final de Napoleão, em Waterloo (1815). Mas o Imperador começou a ser derrotado na Península Ibérica e, mais precisamente, nas Linhas de Torres, sempre com Wellington como instrumento.

 

Os traumas causados nas populações pela política de “terra queimada” deverão ter sido um dos factores que estiveram na origem da reserva em relação a todos os “estrangeirismos”. Quando D. Pedro, já em 1832, desembarcou no Mindelo à frente de um exército maioritariamente inglês para combater as forças absolutistas, comandadas por seu irmão Miguel, as populações tinham motivos para estar desconfiadas. E o poder dos senhores das terras e do clero, apesar dos jogos de cintura entre Junot e o Príncipe Regente – que muitos praticaram, não sofrera alteração…O liberalismo teve de lutar arduamente.

FM

A astúcia de Napoleão, antes da embriaguês do consulado vitalício e da coroação em Notre-Dame, mantivera o verniz dos ideais da Revolução que ainda se ouviam nas canções dos soldados, nas arengas dos oficiais e no tratamento de citoyen. Mas, se eles ainda cantavam “les moles aristocrates à la lanterne», os lampiões haviam voltado à sua função exclusiva de iluminar as ruas das cidades que viam crescer a nova aristocracia, pouco a pouco criada por um corso filho da Revolução que, sob a bandeira da Liberdade-Igualdade-Fratemidade, abalava o fantasmagórico entorpecimento das velhas sociedades, mas usurpava a soberania das nações e restaurava o poder do Estado à escala da Europa.” in Razões do coração/Álvaro Guerra

Quando Masséna, em Setembro de 1810 invadiu Portugal, terá talvez julgado que não encontraria obstáculos de monta no seu caminho para Lisboa, tanto mais que a vila de Almeida onde os portugueses esperavam poder retardar o exército invasor, caíra fácilmente, após uma explosão num paiol que matou soldados e muitos civis que ali se tinham refugiado.

Convicção reforçada quando, após a batalha do Buçaco, mesmo após uma derrota no terreno, a vantagem não foi convenientemente explorada pelo exército anglo-luso, e os franceses puderam reagrupar-se e prosseguir o seu avanço. Aliás, era também convicção de Napoleão que Masséna tomaria Lisboa. E, para este, a conquista de Portugal levaria à expulsão dos ingleses, à submissão dos espanhóis e, logo, à paz na Península.

As condições metereológicas, excelentes desde a saída de Almeida, alteraram-se no final de Setembro. Napoleão recomendara que evitassem o sol quente que tornava penosa a deslocação e que Masséna não tivesse pressa. Mas, a chuva copiosa tornou os caminhos impraticáveis. As estradas estavam em mau estado – a maior parte intransitáveis, escarpadas, mal desenhadas, cheias de pedras, apertadas. Nas aldeias, eram ladeadas por pequenos muros e casas, o que as estreitavam ainda mais.

Os veículos franceses não estavam preparados para aqueles caminhos: puxados por 3 parelhas de cavalos, eram largos, avariavam-se e não podiam ser reparados. As munições estragavam-se os víveres perdiam-se.

O acesso a Lisboa estava bloqueado: nos primeiros dias de Outubro, Masséna é avisado da existência de uma série de fortificações, constituindo uma muralha cujo franqueamento se presumia difícil. Ele mesmo se dá conta disso e se surpreende. Colinas escarpadas, ravinas profundas, desfiladeiros e muralhas de rochedos fortificados e dispondo de poderosa artilharia. Era um dispositivo que ficou conhecido por Linhas de Torres (Vedras).

Travam-se combates no Sobral de Monte Agraço. Os franceses desalojam postos avançados aliados e entram na povoação, onde se luta casa a casa, com vantagem para os franceses. As perdas são estimadas em cerca de centena e meia de homens para cada lado.

Sobral de Monte Agraço – Nos dias seguintes novos combates. Dois Portos, Caixaria e Seramena.

Sobral – Bombardeamentos, lutas nas barricadas. O exército anglo-luso consegue travar o avanço francês, que suspende os ataques

Também em Alhandra se combate. A vila estava barricada e a estrada bloqueada. As tropas francesas procuram forçar a passagem, mas são derrotadas.

Alhandra – Monumento às linhas de Torres, erguido em 1883, no local onde existiu o Reduto n.º 3, designado por Reduto da Boa Vista.

Sobral

Sobral – Os invasores contavam conseguir géneros durante a sua progressão. Porém, Wellington (comandante em chefe do exército anglo-luso) dera instruções para que as populações não só abandonassem as suas casas como destruíssem o que pudesse der útil aos franceses. E, apesar de muitos portugueses, não terem respeitado essas ordens e parte dos cereais não ter sido destruída, rapidamente eles se esgotaram. Aliás, muitas das colheitas não tinham sido ainda realizadas naquele ano.

As populações fogem em massa. Arrastam à passagem das Linhas os operários que as constroem. Trazem animais – mulas, burros, bois, com tudo o que podem transportar. É um cortejo de refugiados exaustos, doentes, desesperados. Direcção: Lisboa. Tudo parece perdido.

Gradil – A fuga das populações impressiona os franceses. Parte daquela gente destruíra os próprios meios de subsistência. Nunca antes tinham deparado com situação idêntica.

Masséna apelara junto das suas tropas para que respeitassem as populações e os seus bens, de modo a não criarem hostilidade e fizera uma proclamação, argumentado que os portugueses se encontravam numa guerra que não era a deles e que os ingleses queriam explorar e destruir o país…Mas os portugueses tinham já a experiência das tropas de Junot, que por ali tinham estado.

Inicia-se então o cerco das Linhas de Torres Vedras, uma longa espera, entrecortada por pequenas escaramuças, sobretudo nas missões de reconhecimento.

Forte do Arpim/ Bucelas – Masséna comandava um exército de 36.000 homens. Um ataque contra as Linhas infligiria pesadas baixas naquelas forças já enfraquecidas. Masséna pede reforços a Napoleão.

Forte de Alhandra – Contra a opinião de alguns dos seus generais, que entendiam não serem as Linhas suficientemente fortes para impedir o avanço, Masséna opta por estacionar em observação, esperando a chegada de reforços ou que Wellington se decida a sair das fortificações e a travar batalha. Este, entretanto, aproveita a mão-de-obra suplementar que representam os refugiados para concluir algumas fortificações e construir novas.

Castelo de Torres Vedras – Assim entre 15 e 18 de Novembro, o exército francês retira-se das Linhas de Torres Vedras, agrupando-se à volta de Santarém, onde Masséna pensa encontrar provisões que permitam subsistir em território inimigo. Pouco mais de um mês durara a sua permanência diante das Linhas.

Mas os reforços que chegam serão cerca de seis mil homens, enviados com a missão de restabelecer as ligações com Espanha, que estavam interrompidas desde a partida de Coimbra, o que não conseguirão. A posição de Masséna é cada vez mais delicada.

Desde a chegada do «Exército de Portugal» às Linhas, o problema dos abastecimentos torna-se prioritário. Masséna partira de Almeida levando uma reserva para apenas quinze dias, o tempo que estimara necessário para chegar até Lisboa. Para além deste período, o exército deveria viver dos recursos da região.

Sobral – Para procurar aprovisionamentos, os soldados afastam-se das colunas militares, pilhando as aldeias que encontram, regressando com grandes quantidades de vinho e peças de mobiliário. As casas abandonadas foram vandalizadas. Tetos, madeiras, recheios serviram para os invasores construírem os seus abrigos. Não raras vezes ocorreram violações e assassinatos. Os oficiais perdiam o controlo dos soldados. A disciplina do “Exército de Portugal” esfumava-se.

Forte do Zambujal/Carvoeira – As dificuldades dos franceses eram grandes. Durante o período passado diante das Linhas e depois nas posições na retaguarda, as tropas viveram em condições de grande adversidade. Fardas rotas, meio descalços, sacrificando os próprios animais de transporte. Nos últimos dias, os soldados alimentavam-se apenas com um pouco de papas de milho.

Em Fevereiro de 1811, Masséna decide retirar-se para o Mondego. Tentava uma última manobra que permitisse a manutenção das suas forças em Portugal. No entanto, o exército anglo-luso sai-lhes ao encalço e ocorrem combates. Retiram. A 21 de Março as tropas francesas encontram-se perto da fronteira com a Espanha. Era o ocaso de Masséna e o princípio do fim de Napoleão. Este aguardaria por Waterloo. Seria daí a 4 anos.

As chamadas Linhas de Torres Vedras foram um sistema de defesa que procurava impedir o acesso a Lisboa ou no caso de derrota, permitir a retirada dos ingleses em segurança. Estendia-se ao longo de mais de 88Km, e foi mandado construir por Wellington. Este participara já em 1808 nos combates que tinham expulso Junot do país e era, agora, comandante em chefe.

Para ele, a defesa da fronteira, vasta e aberta como a portuguesa, não era possível com os efectivos de que dispunha e o objectivo dos invasores, fosse qual fosse o itinerário escolhido, seria Lisboa. Por estas razões, optou pela fortificação do relevo acidentado à volta da capital, que protegia as suas tropas e dificultava a progressão do inimigo, expondo-o aos fusis e canhões anglo-lusos, bem como aos obstáculos que tinham sido levantados ou melhorados.

Além da restauração de fortificações já existentes, como o Castelo de Torres Vedras, foram construídos redutos em cumeadas de cabeços escarpados, que fechavam desfiladeiros.

A primeira linha defensiva ligava Alhandra (na imagem) à foz do rio Sizandro (em Torres Vedras), com 46 km de extensão. Aproveitava o perfil escarpado da serra de Montejunto, que constituía um obstáculo à artilharia francesa.

As posições avançadas de Torres Vedras e de Monte Agraço, destinavam-se, quando ocorresse a invasão, a proteger a retirada das tropas e a dar tempo para ocuparem a posição que lhes tivesse sido destinada.

Rio Sisandro

S. Lourenço – A segunda linha, construída a cerca de 13 Km a Sul da primeira, tinha uma extensão de 39 Km e ligava o Forte da Casa (Póvoa de Santa Iria) a Ribamar.

Forte da Casa – Compunham-na uma série de redutos, uns destinados a interceptar as estradas, outros a ligar as posições principais entre si, de modo a que o inimigo não pudesse passar pelos intervalos.

A terceira linha consistia no perímetro defensivo da praia de embarque (S. Julião da Barra), a cerca de 40 Km a Sul da segunda linha. Tinha uma extensão de 3 Km e ligava Paço de Arcos à Torre da Junqueira.

Forte de S. Julião – Até na cidade de Lisboa se repararam antigas fortificações e se ampliaram redutos e baterias.

Estas fortificações serviam também de refúgio para a população, obrigada a abandonar as terras. Quando acontecesse a invasão, o exército anglo-luso retirava para as linhas, onde se entrincheirava. Se os invasores as conseguissem romper, os ingleses retiravam por mar. Se o não conseguissem, a falta de reabastecimentos acabaria por obrigar os franceses a retirar.

Montachique – Ao mesmo tempo uma força móvel actuaria na retaguarda dos invasores procurando retardá-los e desmoralizá-los. Nestas missões desempenhariam importante papel as milícias e ordenanças em actos de guerrilha contra os soldados franceses, nomeadamente quando estes procuravam géneros de subsistência.

Senhora do Ó – Outro ponto-chave da estratégia de Wellington: ser capaz de obrigar as populações a destruir culturas, géneros alimentares e deixar muitos dos seus haveres, tudo o que pudesse aproveitar o inimigo!

Enquanto a nós – continuou Fernão Silvestre – pôr-nos-emos à frente dessa brava companhia de velhos camaradas das nossas companhas, que me seguem e que eu há tanto tempo centralizo com todas as forças da velha disciplina. O nosso quartel general será ali, no alto da planura do Airó.”…

Mafra…”De lá nos arrojaremos ao inimigo quando nos convier; de lá lhe faremos guerra de guerrilhas, mas guerrilhas que sabem o que é guerra, já que não lhe podemos fazer mais do que isto. Assim viveremos até que as coisas mudem, porque hão de mudar, espero-o em Deus, porque, como diz o poeta: Assi vai alternando o tempo iroso /O bem co’o mal, o gosto co’a tristeza. Todos os dias iremos tendo mais gente, João Peres e tendo, portanto, maiores meios de fazer aqui a guerra aos inimigos da nossa pátria.”in O Sargento-Mor de Vilar/Arnaldo Gama

Como fora possível construir um dispositivo defensivo desta envergadura sem que os espiões franceses dele se tivessem dado conta, ou, no mínimo, que eventuais informações não tivessem sido tomadas em conta?

Aliás, já durante a 1ª Invasão, a topografia da região circundante a Lisboa e as suas vantagens defensivas tinham sido reportadas por um Oficial Francês. Quando Wellington urdiu o seu plano de defesa, foi coadjuvado pelo Eng. português Neves Costa, que colaborara anteriormente com os franceses.

Forte de S. Vicente – Wellington foi capaz de mandar executar estas obras no maior segredo. Nem o próprio Conselho de Regência delas teve conhecimento. O Parlamento britânico ignorava-as. Os operários eram na maioria refugiados que se tinham deslocado para sul na iminência da invasão. Ainda durante o cerco se concluíram obras.

O sucesso militar de Wellington ter-se-á devido muito ao carisma disciplinador e autoritário. Durante as três invasões sempre teve papel relevante.

Caricatura de Wellington

Forte do Zambujal – As fortificações dispunham de guarnição própria, composta por corpos de milícia e ordenanças e por artilheiros, enquadrados por oficiais ingleses.

Forte da Malveira – Quando completadas as três linhas dispunham de 152 obras militares, armadas com mais de 1 000 peças de artilharia e guarnecidas por mais de 68 000 homens.

Forte de Olheiros – De qualquer reduto podiam observar-se os mais próximos situados de um lado e outro.

Forte do Zambujal – Cada um deles era protegido por cortinas de lanças, colocadas trinta metros adiante e enterradas no solo. Dispunha de fossos protegidos por paliçadas de estacas.

Forte do Zambujal – Instalaram-se plataformas sobre as quais se dispôs a artilharia. Havia peças de artilharia, obuses e morteiros, cujo número variava consoante a importância da fortificação.

Forte de S. Vicente – Era o mais poderoso forte das linhas, pois defendia a estrada principal de Coimbra a Lisboa. Era formado por um conjunto de 3 redutos, rodeados por um muro perimétrico com cerca de 1.500 m.

Forte de S. Vicente – Contava com um conjunto de fossos, trincheiras, traveses e de um posto de transmissoes, que era novidade na época

Forte de S. Vicente – Comportava uma guarnição que podia atingir os 4000 homens e 39 peças de artilharia.

Aqui se observa como moinhos foram adaptados a estruturas militares

Torres Vedras: Castelo visto do Forte de S. Vicente

A data da construção do castelo é difícil de estabelecer. Julga-se que a primeira fortificação terá sido levantada pelos muçulmanos, sofrendo várias transformações até aos dias de hoje

Pormenor da cintura de muralhas

Castelo de Torres Vedras

Castelo de Torres Vedras: vista interior junto ao portão de armas

Forte de S. Vicente – Foi, assim, criado um dispositivo entre Peniche e o Tejo para impedir a passagem do exército invasor e, mesmo que este conseguisse romper as linhas em qualquer local, as forças defensivas poderiam ainda neutralizá-lo.

Forte de Alhandra – A instrução militar foi intensificada e os soldados das milícias e ordenanças repartiram-na com a construção das fortificações. Os ingleses desconfiavam da disciplina e da competência dos portugueses.

Forte da Malveira – E, de facto, o estado do exército era deplorável.

Era ridículo e muito ridículo o aspecto daquele exército de aldeões vestidos de rabonas e de carapuças ou enormes chapéus de Braga na cabeça, aprumados desjeitosamente e tendo cada um ao ombro uma espingarda de caça, um mangual ou uma foice roçadoira; mas o entusiasmo que animava aquela multidão indisciplinada manifestava bem ao vivo que, arregimentados militarmente, os homens semi-selvagens das margens do Cávado e das fraldas da serra do Aixó seriam muralha inexpugnável, de encontro à qual era mais que provável que se esmagassem inutilmente os soldados aguerridos de Soult. Milhares de desesperos e de raivas custara, porém, ao bom do Sargento-mor a meter aquela populaça em linha. Se assim como durou trinta, durasse trinta e um minutos, aquela empresa quase impossível dava decerto com João Peres doido varrido. -Ah! bruto, não ouves? Chega mais atrás – bradava esbaforido.”…

…”E logo um encontrão num selvagem que, por mais que ele lhe tinha gritado, não atinara a pôr-se ombro a ombro com o camarada. – ó Zé da Cancela, põe essa perna unida à outra, alma de cântaro! Ó Tadeu Capote, dá aí um cachação nesse bruto que tens à esquerda! Isso, homem; mais rijo, entendes? Meter em linha, lá os da direita. Ai que eu arrebento, ladrões dos meus pecados! – E nisto era alabardada que te parto num renque de alarves, que não acertavam a pôr-se ora de um lado ora do outro, e alguns até de costas, às vozes do sargento-mor. – ó Zé do Nuno, põe essa espingarda ao ombro, ladrão: olha que te racho, entendes? Assim. Um, dois… Sentido! Um passo em frente. Ai, que alarves estes! Lá se vai com seiscentos diabos a forma!” in O Sargento-Mor de Vilar/Arnaldo Gama

Forte da Casa – No princípio de Outubro de 1810 nem todas as fortificações estavam concluídas.

À medida que o tempo passava e era iminente a invasão, Wellington requisitou toda a gente – mulheres e crianças, membros do clero, da Jurisdição Civil, das oligarquias locais… Levantaram-se coros de protestos que, em alguns casos, roçaram a insubordinação. Um sentimento anti-inglês foi-se instalando, ao mesmo tempo que crescia a consciência nacional.

Forte da Carvalha/Arruda dos Vinhos – Em resumo, o plano de defesa de Wellington assentava numa linha fortificada que defendia os acessos a Lisboa, atrás da qual se dispunham as forças anglo-lusas, preparadas para combater nas melhores condições possíveis. As populações civis eram obrigadas a abandonar as suas terras e a refugiar-se sobretudo na capital.

Forte da Malveira – Mais, eram obrigadas a destruir tudo o que pudesse abastecer o exército invasor, sobretudo na região da Estremadura e Beiras, das regiões mais ricas do país.

Ribeira d’Ilhas

Foz do Lizandro – Wellington sentia-se com uma espada sobre a cabeça. De Inglaterra sabia que a opinião pública e a situação política não admitiam qualquer desaire. Em Portugal, o Conselho de Regência (ou parte dele) defendia que a luta se devia travar nas fronteiras naturais e poupar o aparelho produtivo. Mas, Wellington entendia que, com as forças de que dispunha, não poderia travar os franceses naquelas condições.

Alhandra – Conseguir que grande parte das populações abandonasse os seus haveres e ainda destruísse parte deles, é motivo de admiração. Em muitas aldeias apenas ficaram velhos e doentes. Mais do que qualquer noção de patriotismo, terão sido provavelmente os excessos, crimes e desrespeitos de toda a ordem ocorridos nas duas anteriores invasões, que o determinaram.

Forte do Milreu/Ericeira “Vai um reboliço na alfândega da Ericeira.Três rascas balouçando nas ondas esperam para carregar as barricas de vinho alinhadas na praia, entre molhos de hortaliça, sacos de farinha, de castanhas, de nozes, no meio de uma quantidade de botes de pesca varados no areal. É que o estômago de Lisboa não passa sem as hortas dos saloios e o mar é a melhor estrada. Camponeses misturam-se com pescadores, sob o olhar de dois pelotões da infantaria de Loison, de equipamento de campanha e fuzis aperrados. O exercício costumeiro destes embarques, que se o mar o não impede, garante boa parte da comida e bebida da capital do reino, não é hoje uma rotina. Há tensão no ar, palavras desabridas, maus modos, queixas. Querem roubar o nosso pão —, diz, comum suspiro, uma mulher de tamancos, vestida de preto.”…

…”Chegam o tenente que comanda a tropa e o meirinho sobraçando uma pasta com papéis. No meio de um círculo de soldados empunhando as espingardas de baioneta calada, o meirinho sobe a um caixote, auxiliado pelo tenente. Começa a arengar, dirigindo-se ao «bom povo». Que vieram ordens de Lisboa, do senhor general Junot, a dar regulamentos à navegação das embarcações de pescadores. Doravante, — esganiça-se o meirinho — todos os barcos têm que ter pintados a branco, à proa e à popa, uma letra e um número, que constarão de um lista que será entregue a cada patrão de barca com o seu nome e o de todos os pescadores da companha.”…

S. Lourenço …”Mais: que toda a embarcação de pescaria que não esteja numerada e não traga esse documento de passaporte, cinco dias depois desta proclamação, será apresada; que toda a embarcação que tiver comunicado com a esquadra inglesa será apresada; que toda a embarcação deverá regressar à praia antes do Sol posto, sob pena de pagar, pela primeira vez, quarenta francos, pela segunda, cento e vinte, e confisco da embarcação e pena corporal, pela terceira.”...

S. Lourenço …”É quanto decretou o comandante-em-chefe do exército francês, senhor general Junot, no Quartel General de Lisboa, aos cinco de Janeiro de 1808. E estas disposições — conclui o meirinho, no seu pedestal de tábuas, vigiado pelo tenente do 22 Ligeiro — aplicam-se também às embarcações da Carvoeira e S. Lourenço.”

Os ingleses eram tidos como defensores das liberdades e protectores das monarquias em perigo. Mas, ao longo do tempo, surgiram actos de rebelião e resistência anti-inglesa, como quando foi determinado o trabalho compulsivo na construção das fortificações ou por actos de pilhagem também praticados por militares ingleses.

Ribeira d’Ilhas

Mafra – “Veio um almocreve do Norte e pôs-se a tartamudearem voz baixa um conto atrapalhado sobre a desgraça que o Maneta Loison levou às Caldas da Rainha. Que arcabuzaram nove soldados portugueses do Regimento do Porto lá aquartelados, por uma zaragata de vintém, começada com um beijo roubado por um francês bexigoso à mulher de um tambor carrapato e zangaralhão, mas fortalhaço e sanguinho, que saltara à bordoada ao bexigoso.”...

Mafra – …”Vieram companheiros e vá de malhar nos de França, que todos vinham com moléstias de pele, sarnas e borbulhas, a abeberarem-se nas águas santas. Pior que feira varrida à paulada, quando os franceses responderam e se zangou um cadete de Gaia que parecia um touro de cajado nas unhas, que até nem se entende como não houve morte de homem.”…

Mafra …”No dia seguinte, veio o Maneta coma sua tropa, cercou as Caldas e, pelas matinas do outro dia, prendeu os soldados portugueses todos, tirou-lhes a malhado, que eram todos inocentes de crimes graves, e mandou que os fuzilassem sem mais demoras. Eram nove e o tambor um deles, que os xingou de cabrões e outros nomes piores, e alguns choravam, e até um oficial português se pôs de joelhos a pedir clemência ao malvado do Maneta.”…

Gradil -… “Cai um silêncio tenebroso sobre os comensais da Estalagem. E nem a sombra de um riso altera a crispação daquelas caras rudes e mudas, quando o papagaio se põe a palrar vivó Jinot, vivó Jinot cabrão. ” in Razões do coração/Álvaro Guerra

Forte do Milreu/Ericeira

Sobral – De entre todas as fortificações da primeira linha, o Forte Grande ou do Alqueidão, como é hoje conhecido – assumiu uma importância militar estratégica de relevo, pois era aquele que tinha maior capacidade, quer em guarnição, quer em número de peças de artilharia.

Era neste Forte que se situava o posto de comando das Linhas. À sua frente abria-se um possível campo de batalha, situado no ponto de cota mais elevado de todo o sistema defensivo, o que que favorecia quem estava na defensiva

A suspeita de ser simpatizante dos “Jacobinos e Hereges” deu origem a perseguições, vinganças e linchamentos. O caso mais dramático teve como vítima Bernardim Freire de Andrade. Oficial prestigiado, participou na Campanha do Rossilhão, onde foi ferido, e, depois na Guerra das Laranjas, em teve papel de destaque.

Alhandra – Durante a invasão de Junot, já com a patente de marechal-de-campo, as suas topas, mal treinadas e equipadas, contribuíram para os sucessos das forças inglesas. Já durante a 2ª invasão, comandando um pequeno corpo de forças, com falta de armas e de instrução militar, impediu a travessia do Minho pelas tropas de Soult. As movimentações para procurar um local adequado para travar os franceses fez os populares acusarem-no de colaboracionismo. A indisciplina das suas tropas, levaram-nas a amotinarem-se e a prendê-lo. Foi ainda libertado, mas acabou por ser assassinado e depois reabilitado. A título póstumo, como a muitos.

Ten-Gen Bernardim Freire de Andrade

Houve generais franceses que participaram em todas as invasões. Em primeiro lugar, Junot. “Junot era homem pouco ilustrado, tinha um temperamento sanguíneo e facilmente irritável. Conservava por baixo da farda bordada do general e dos arminhos do duque uns restos da brutalidade da caserna; era um pouco tarimbão, segundo a frase entre nós adoptada. Loison também não primava pela delicadeza” in Os guerrilheiros da morte/Pinheiro Chagas

Restaurante à beira da estrada perto de Torres Vedras – Mas, de todos, o que piores recordações deixou foi Loison (o “maneta”). Para defrontar as guerrilhas que os emboscavam e flagelavam, sobretudo na invasão de Junot, passou a fazer uma repressão sanguinária sobre as populações civis indefesas. Velhos, mulheres, crianças, deficientes, todos os que não podiam fugir, eram passados pelas armas, com o intuito de atemorizar os sublevados. Foram dezenas de milhares de mortos. Como a História mostrou até hoje, a repressão brutal só engrossa os rebeldes. Foi já, assim, em Portugal do princípio do séc. XIX.

Estas atrocidades associadas a violações, pilhagens, incêndios e profanações de Igrejas constituiram importante factor de mobilização na resistência contra Masséna.

Sobral – “A soldadesca desenfreada, abandonada aos seus instintos ferozes por Loison, que jurara vingar-se na paisanada portuguesa da humilhação da Beira, enchia de horror a capital do Alentejo. A população refugiava-se nas igrejas. Ali a perseguia a turba guerreira. As praças eram lagos de sangue. As casas incendiadas rasgavam com a sua luz sinistra as trevas da noite que principiava. Abrigavam-se aos altares as mulheres, e dali eram arrancadas pelos soldados, ou ali as ultrajavam.” -Excerto de Os guerrilheiros da morte/Pinheiro Chagas.

Quando os franceses de Masséna retiraram, a devastação causada era tremenda. Casas arruinadas, sem janelas, tetos, móveis arrancados para servirem de lenha. Não havia cereais, nem sementes para os cultivar. Muito do gado, vacas, porcos, tinha sido dizimado. Os moinhos, muitos estavam destruídos. As epidemias resultado das péssimas condições sanitárias eclodiam, a mortalidade aumentava. As ajudas do Príncipe Regente e dos ingleses ficavam muito aquém do preciso. As medidas de emergência eram insuficientes. A fome e a especulação cresciam. Como o desespero.

Reduzir as Linhas de Torres a uma simples estratégia militar, por muito brilhante que tivesse sido, é redutor. Na invasão de Masséna, essa estratégia foi imposta por um General estrangeiro, mesmo aliado, arrogante, preocupado, sobretudo, em resguardar as costas do Atlântico do exército francês e, provavelmente, desprezando as consequências que daí adviriam para as populações e para Portugal.

Porque foi também o povo quem atacou os soldados franceses postados diante das Linhas e os desgastou, quando procuravam comida, se atrasavam nas colunas e lhes montou emboscadas. Não se tratava de uma guerra convencional, foi um levantamento nacional, de gente mal armada, iletrada, que defendia a sua terra, que tinha abandonado os haveres e que procurava derrotar o inimigo também pela fome. Sem essa obstinação e firmeza, digamos patriotismo, não teria sido possível expulsar os invasores e a estratégia de Wellington não teria vingado. Cometeram-se erros e crimes, como em todas as revoluções, é certo. Wellington venceu, como os portugueses conquistaram uma nova consciência dos seus direitos e questionaram a velha ordem social. Wellington venceu. Porém, Portugal passou a ser um protectorado inglês ainda por muitos anos. Essa é outra história.

Consultados: As Linhas de Torres Vedras Invasão e Resistência, Cristina Climaco. 2010/O Porto e as Invasões Francesas Vol I. Coordenação de Valente de Oliveira. 2009/Um país silencioso. Uma História das Linhas de Torres. Carlos Guardado da Silva e Daniel Silvestre da Silva, 2010/ As Linhas de Torres Vedras, Carlos Guardado da Silva, 2010 /Um país silencioso. Uma história das Linhas de Torres Vedras. Carlos Guardado da Silva, 2010/ Ir prò Maneta. Vasco Pulido Valente, 2007/ História de Portugal (Quinto Volume) Coordenação de José Mattoso / La España de Fernando VII. Miguel Artola, 2008 / Les hommes de Napoléon. Témoignages 1805-1815. Cristophe Bourachot, 2011

Veja o vídeo:

O Tejo, as fragatas e o meu avô

Desde Vila Velha de Ródão, o Tejo corre em terreno português. À medida que se aproxima da foz, o seu trajecto faz-se em terreno cada vez mais plano. A Lezíria é uma planície mítica. Em Santarém, nas Portas do Sol, ainda se desenham margens altas. Depois, aqui e ali, aparecem pequenas ilhas de areia e no estuário recortam-se canais, afunda-se o Mar da Palha. E vem a Ponte Vasco da Gama, na sua beleza suave, a passar sobre a Reserva Natural; e, finalmente, a imponência da estrutura metálica da outra ponte, com o Cristo-Rei adiante.

Quando eu era menino, ainda não havia estas pontes. Atravessava-se o Tejo de cacilheiro e era uma aventura. Para a Costa da Caparica apanhava-se uma camioneta em Cacilhas, onde as bagagens dos passageiros eram amarradas no tombadilho. Era uma excursão laboriosa. Mas ainda se viam barcos à vela que faziam fretes de carga. Hoje, desses navios existe uma ou outra carcaça e os raros que perduram, foram recuperados para fins turísticos.

Do elenco do estuário do Tejo fazem parte os barcos, os estaleiros, as secas de bacalhau, como pescadores, marinheiros, camponeses, carpinteiros e campinos. Pela mão do meu avô tive o primeiro contacto com eles. Diz-se que até aos 5 anos tudo se decide. Pela parte que me toca, a primeira abordagem foi a descoberta de um mundo que não deixou de me fascinar.

É curioso como existem tantos escritores que falaram do Douro e, comparativamente, sobre o Tejo, os textos são escassos. E, como nos mostram os romances de Alves Redol, as dificuldades, os conflitos e, o heroísmo como a cobardia, são os mesmos, só a geografia é diferente. No Ribatejo, as cheias transformavam o rio num enorme lago que arrastava barracas, gado morto, os pobres pertences daquela gente, escorada no seu desespero e firmeza. Hoje, as cheias estão domesticadas pelas barragens, mas o peixe escasseia.

Falo-vos, pois, do Tejo da minha infância e de outras experiências que a vida me foi trazendo. As leituras apenas encorparam as memórias e ajudaram a esclarecer as dúvidas.

Por altura de Salvaterra de Magos pesquei tainhas e lembro-me de como ao comê-las fritas me ocorria o pequeno combate que travavam e da sua astúcia em debicar o isco e ignorar o anzol. Cada peixe tinha uma história. E como passeávamos pelo rio e parávamos em qualquer ilhota de areia que a vazante descobrira, para um banho de sol.

E de como ao deambular pela zona ribeirinha da margem Sul à procura de vestígios dos barcos tradicionais, lembrar-me que Vasco e Paulo da Gama eram naturais do Seixal, como todos aquelas terras tinham antes pertencido a D. Nuno Álvares Pereira, e como estas figuras estão secundarizadas pela toponímia político-ideológica. Se nos descobrimentos as naus partiram de Belém, foi no estuário que elas foram construídas e abastecidas. O Tejo foi a rampa de lançamento das caravelas.

Da grandeza antiga talvez o sinal mais evidente seja a fragata D. Fernando II e Glória, o último navio à vela a fazer a carreira da Índia, e agora, depois de muitas vicissitudes e serventias, içado para visitas no cais de Cacilhas.

Há anos o Expresso publicou crónicas assinadas pelo Luis de Sttau Monteiro. Uma delas referia-se a um café na Calçada da Estrela, chamado “Brilhante” e que hoje ostenta o pouco recomendável nome de Bibi. Era um local que serviu de tertúlia a muita gente, que presumo interessante. Lembro-me de se descerem 3 ou 4 degraus e de ser um espaço um tanto exíguo. Aos 5 anos talvez eu comesse um Bolo de Arroz. Mais abaixo, na Calçada, ficava o “Parlamento” e nas traseiras, a casa de Salazar. O meu avô era um dos clientes habituais e morava a uns 100m, numa perpendicular à Calçada. Não faço a menor ideia do que conversariam, mas sei que ele me contava histórias, das mais fantásticas que ouvi na infância. Talvez de barcos de grandes velas enfunadas pelo voo das gaivotas, talvez do peixe que apanhava ao corico não o sável mas um verdadeiro espadarte imigrante desiludido do oceano; mas falava seguramente do rio,  das margens do sonho ao sabor das marés do acaso.

FM

 

Foi a 30 de Dezembro de 1951, a inauguração da ponte sobre o Tejo, em Vila Franca de Xira (VFX). Com pompa e circunstância, o Presidente Craveiro Lopes e Salazar (1º Ministro) foram os oficiantes. A ponte baptizada “Marechal Carmona”.

Este último havia morrido meses antes e a distinção representava o reconhecimento do regime, que sempre haveria de escolher, para a Presidência, militares considerados cordatos e decorativos.

Craveiro Lopes deposita uma coroa de flores na cerimónia fúnebre de Óscar Carmona

A nova ponte respondia à necessidade de transporte de pessoas e mercadorias entre as duas margens do Tejo, que, à época, apenas se fazia por barco. Sal, cortiça, cereais, vinho, produtos hortícolas eram assim transportados em todo o estuário do rio. Para a construção da ponte foi necessário abrir estradas, naquilo que hoje constitui a EN 10, e preparar novas docas para embarque e desembarque dos materiais.

A construção da ponte de VFX acelerou o declínio do transporte fluvial no Tejo e liquidou a navegação à vela.

Em fins de Dezembro de 1951, fazia um tempo quase primaveril, a ponte foi inaugurada sob um sol luminoso num céu sem nuvens”…

Ver Página

…”O novo Presidente da República, o Primeiro Ministro, o Cardeal Patriarca e a maioria do Governo foram recebidos por campinos a cavalo, desbarretados, os ferros das casas agrícolas bem areados brilhando nos coletes encarnados,”…

…”precedidos pelos lavradores montando ginetes ajaezados à andaluza ou à portuguesa, e pelas forças vivas do Concelho tendo à frente o presidente Arnaldo Moreira, os Lencastre, ainda enlutados pelo falecimento da rainha D. Amélia, os dirigentes da União Nacional e os das colectividades da região, o padre Carlos, os legionários, os meninos da Mocidade, os bombeiros, a banda da Filarmónica União e Progresso, todos de estandartes ao vento, e, diga-se em abono da verdade, muito povo” in Café Central/Álvaro Guerra.

O meu avô Fernando morrera de repente meses antes da inauguração da ponte. E, foi assim poupado à ruína anunciada do seu negócio de transporte fluvial. Do que me lembro, gostava de barcos. Assisti às reparações, nos estaleiros da Amora, da “Moreno”, a sua última fragata. Brinquei com bocados de madeira entre os carris por onde os barcos eram içados para as reparações no areal. E lembro-me vagamente dos estaleiros e de calafates, carpinteiros, arrais, mestres… Sempre barcos, o Tejo, até ao Rossio ao Sul do Tejo, onde o meu avô fora criado.

Como me lembro, muito criança, das Festas do Barrete Verde e da largada de toiros…

As fragatas, o estuário do Tejo e a sua gente estiveram, assim, sempre presentes no meu imaginário. Durante anos conservei uma miniatura de fragata com cerca de meio metro de comprimento, oferecida pelo meu avô, que ele próprio construira com um canivete. Linda, na sua profusão de cores, a boiar na banheira…

Até meados do séc. passado, era por via marítima que se fazia o transporte de pessoas e mercadorias no estuário do Tejo. Na época dos descobrimentos, as próprias caravelas eram abastecidas por barco.

Vista do Barreiro na primeira metade do século passado. Os cronistas referem a profusão de velas que se observava no rio.

A importância dos estaleiros, nomeadamente no Seixal, foi decisiva. A armada que fez a viagem à Índia foi construída nesses estaleiros, sob a supervisão de Paulo da Gama, irmão de Vasco.

Estaleiros da Amora

 

As embarcações do Tejo tinham formas, dimensões e cores muito variadas, de acordo com as funções a que se destinavam, a navegabilidade dos percursos que utilizavam e o gosto dos construtores.

Fragatas, varinos, faluas, muletas, barcos dos moinhos, botes, saveiros, canoas, caíques, são alguns dos barcos tradicionais, uns utilizados em transporte, outros na pesca.

A fragata é uma embarcação de porte bojudo e pesado, uma vela içada junto ao mastro com acentuada inclinação para a popa. Em períodos de calmaria, a fragata era puxada a remos por um pequeno bote que habitualmente levava a reboque. Deslocava de 10 a 100 toneladas, logo as suas dimensões eram variáveis. As poucas que ainda existem foram recuperadas para fins turísticos, graças à iniciativa das autarquias.

Carcaça de uma fragata encalhada no Seixal

Mouchão “Na rota contraditória das suas águas, o Tejo foi depondo e levando, levando e repondo areias junto do valado real da Lezíria Grande. Areias e terras doutras margens por onde passa. Quando o Tejo passa, algo acontece sempre, porque um rio tem as suas glórias e os seus dramas. Como os homens. Um rio vive, respira, trabalha, constrói e destrói. Também os homens. Mas os homens amam e apaixonam-se. Por belas coisas, às vezes; por coisas mesquinhas, outras tantas. A paixão é o tudo e o nada dos homens. Odienta ou amorosa, a paixão empolga-o, porque nem só o amor sublima o homem. Também na luta feroz ele se ultrapassa. A sobrevivência, por exemplo, é sempre uma luta feroz, mesmo em silêncio. Ou será ainda maior quando vive no silêncio…”

…”Um rio tem as suas glórias e os seus dramas, mas não se apaixona. 0 Tejo não pensa — age. Age ao sabor das circunstâncias. Age e constrói; age e destrói. Como o homem. Mas o homem pensa e conhece a dúvida.” in Avieiros/Alves Redol

O estuário do Tejo pode ser dividido em quatro zonas distintas: a zona mais a montante estende-se desde VFX até à linha de Alcochete/Sacavém, caracterizada por um sistema de mouchões, esteiros e grandes espraiados de maré;

Vista do Mar da Palha em Alcochete

Alcochete

Segue-se-lhe o Mar da Palha, que se estende até ao Cais do Sodré, mais profunda que a anterior, e constitui uma espécie de mar interior onde desaguam alguns rios e ribeiras. É nele que se fazem a maioria das travessias por barco entre as duas margens.

Cacilhas. A terceira zona do estuário tem a forma de um canal com uma profundidade que, em alguns pontos, chega a atingir perto de 40 metros. Nas suas margens situam-se Lisboa e Almada;

por fim, o estuário gradualmente dá lugar às águas marinhas. É a zona terminal que pode ser delimitada até à linha Bugio/S.Julião.

Lisboa vista de Cacilhas

A lezíria corresponde a antigas áreas de sapal que foram isoladas das marés e das cheias, através de um sistema de taludes e comportas. Os seus terrenos agrícolas são recortados por uma vasta rede de canais – as valas. Estas recolhem as águas, em excesso no Inverno, escoando-as pelas comportas para o estuário. No período de escassez, distribuem a água para rega, captada a montante no troço do rio onde as águas já são doces.

Os solos da Lezíria são pesados e pobres, de lavoura difícil. No Verão, gretam e ficam tão duros que as máquinas não os conseguem trabalhar. Após as primeiras chuvas, começam a encharcar devido à pouca permeabilidade da argila. As suas limitações agrícolas conduziram a uma utilização orientada para a produção de gado (touros e cavalos).

Os ambientes ecológicos encontrados no Estuário e, nomeadamente, na sua Reserva, são variados. Incluem uma zona permanentemente submersa, que, na maré vazia, funciona como local de refúgio e alimentação de pequenos peixes em crescimento e também de alimentação aves aquáticas, como as garças. A zona de maior profundidade é utilizada por peixes que entram no estuário para se alimentar.

O sapal é o grande produtor de matéria orgânica vegetal do estuário. Entre as espécies de animais de pequeno porte aqui existentes, relevo para as espécies protegidas, observdas com regularidade. Mais a montante, onde as águas são quase doces, o caniço domina a vegetação.

Sapal

Salinas do Samouco: as salinas resultam da transformação de antigas áreas de sapal, em tanques com diferentes alturas de água, concebidos para a obtenção de sal. A variedade de dimensões proporciona grande disponibilidade de alimento (peixes, camarões, pequenos crustáceos, larvas de insectos, etc.) para várias espécies de aves. Em todo o ano se podem observar espécies protegidas, funcionando no período estival como local privilegiado de nidificação.

Cais palafítico do Samouco com a ponte Vasco da Gama em fundo. Estes cais são construídos em estacas de madeira sobre águas pouco profundas.

Alcochete

A seca natural, após a salga, é um dos mais primitivos processos de preservação dos alimentos. Na região do Tejo, as secas do bacalhau estavam situadas próximo do Barreiro e Seixal, ou em Alcochete. A secagem natural envolve procedimentos simples e rotineiros, mas muito dependentes das condições climáticas. O peixe era exposto ao ar, depositado sobre o solo pedregoso ou sobre estendais de fio ou arame ou estacaria de madeira. Era levantado quando a temperatura era mais elevada.

Seca do bacalhau, Amora – Entre o levantar e o estender, os peixes eram empilhados, repetindo-se o procedimento tantas vezes quanto precisas até se obter o grau de cura pretendido. Nos tempos da frota pesqueira nacional, a fazer safras de bacalhau que duravam de cinco a seis meses, os navios chegavam aos respetivos portos e os peixes eram descarregados para as instalações de secagem. E, aí, se iniciava o processo descrito. Hoje, embora perdurem ruínas dessa época, é na região de Aveiro que, principalmente, se processa a comercialização do bacalhau.

Alhos Vedros – Foram construídos moinhos em quase todos os estuários dos rios portugueses, mas a região do Seixal, constituída por terrenos baixos e alagados, facilitava a sua edificação. Junto dos moinhos existiam docas, onde atracavam barcos que traziam farinhas e escoavam os produtos da região. Nos moinhos era preparada farinha de peixe e adubos e descascava-se o arroz.

O Moinho de Maré de Corroios, foi construído em 1403, por ordem de D. Nuno Álvares Pereira, proprietário de quase todos os terrenos banhados pelo braço do rio Tejo que entra no Seixal. O objetivo era aproveitar o fluxo e refluxo das marés para a geração de energia motriz. Muito danificado pelo terramoto de 1755, foi adquirido pela Câmara Municipal do Seixal (1980), que o restaurou.

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No início do século XX, a diminuição dos cardumes de sardinha fez sair os pescadores da Praia da Vieira, no concelho da Marinha Grande. A abundância de pesca no Tejo terá atraído muitos deles. Com o decorrer do tempo, esses pescadores, depois denominados avieiros, foram-se fixando em diferentes locais das margens do Tejo. Consoante a época, dedicavam-se à pesca ou vendiam melões e melancias.

À noite, a pesca era feita com as artes mais pequenas, mas nas companhas do sável, era à rede. Gente pobre, verdadeiros ciganos do rio, trabalhando até à exaustão, homens e mulheres, à procura do peixe que ia escasseando…Foi Alves Redol quem melhor no-los revelou.

Salvaterra de Magos “A meio da noite, o Tejo parecia aceso com o lume dos archotes. De pé, no bico da proa, os homens empunhavam os lumaréus para descobrirem as redes, enquanto as companheiras continuavam aos remos, atentas às ordens que eles lhes davam. Tinham antes passado pelo sono, logo a seguir à ceia; depois não havia tempo para as mulheres descansarem, se a sorte não os amadrastasse, porque a venda não esperava. Uma légua ou duas nas pernas era conta certa para todas elas.” in Os avieiros/Alves Redol.

Gaibéus é a designação atribuída aos trabalhadores rurais do Ribatejo ou da Beira Baixa que vão trabalhar na Lezíria durante as mondas. Deslocados, portanto. E “alugados”. Com aquele título, Alves Redol publicou em 1939 um romance, que retrata “um povo resignado que luta afincadamente durante o tempo quente, antes da chegada do Inverno, em condições extremas para fazer render os poucos cobres que lhes pagam por tamanha dureza…” /”…O sol fora de trovoada, sufocando os ceifeiros, como se trabalhassem na câmara de um alto forno, mas os trovões não acordaram o silêncio da Lezíria…”/ “…Eles não sabem se vem chuva, mas sabem que a malária, pelo menos, não falta. É tributo sagrado a pagar todos os anos à Lezíria. Quando pegam nas foices, têm de contar com as tremuras daquele frio nascido dentro deles e que os sacode, como nordeste a ramos de salgueiro….”

“…Agora o sol já abalou e a chuva ainda não veio. A ceia é menos amarga que o almoço e o jantar – a malta ganhara um dia inteiro sem descontos. Aquela certeza empresta-lhes coragem. /Não há ordem do patrão para armar «brincadeira» e os ceifeiros invadem o barracão, desenrolando as esteiras, onde estendem os corpos amolentados pela fadiga. Se o consentimento viesse, ainda lhe dariam um jeito, que a dança sempre esperta energias e adormece pensamentos. /Alguns a preferem ao vinho – mas o vinho também não entra naquela empossa. Mesmo se tirassem à tripa, ia de mal aquele que usasse da pinga. O patrão quer os alugados leves de mão e direitos de cabeça.” in Gaibéus/Alves Redol

Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, é outro romance neorrealista, com o Tejo em fundo. Denuncia as desumanas condições de vida de crianças nas margens dos esteiros, em Alhandra, obrigadas a trabalhar nos telhais para sobreviver. Retrata os “filhos dos homens que nunca foram meninos”, na sua luta contra a opressão e a miséria.

A caldeirada à fragateiro, à ribatejano ou à pescador é um prato típico da região ribeirinha do Tejo com pequenas variantes na sua preparação. Fataça, tainha e enguias são peixes obrigatórios, embora por vezes lhes acrescentem saboga, barbo, safio ou tamboril. Os fragateiros cozinhavam-nas nos próprios barcos.

Ensopado de enguias, açorda de sável e fataça frita são outros pratos típicos da região.

O campino é um ícone do Ribatejo, ligado à condução de gado, em especial, touros. Altivo sobre o seu cavalo, vestido de colete encarnado, faixa vermelha na cintura, calça azul, meias brancas até ao joelho, sapato preto com esporas, jaqueta de barrete verde com orla e barra em vermelho, camisa branca e empunhando um bastão.

“O Ribatejo deve ser visto das Portas do Sol de Santarém, num dia de cheia, ou das bancadas duma praça de toiros, numa tarde de verão. Num dia de cheia, porque o Tejo hipertrofiado marca-lhe exactamente a extensão e os contornos que a geografia nunca encontrou; numa tarde de toiros, porque é no redondel que se precisa a sua íntima significação. “in Portugal/Miguel Torga

“As grandes searas da campina, embora desafiem as alentejanas, não lhes levam a palma. Mas o toiro que irrompe do curro, negro e luzidio, e o cavalo que o espera, nédio e nervoso entre as esporas do cavaleiro, esses não temem confronto e são o produto específico da terra ribatejana. Só nela o puro-sangue pode encontrar o seu húmus, a virgindade dum solo que um deus ainda visita e fecunda. Ele e o homem que o domina, não em luta desigual e traiçoeira, mas saltando-lhe para o lombo indomado ou recebendo-lhe a marrada impetuosa e cega no peito. Na articulação dos três lados do triângulo – campino, cavalo e toiro -, conjugam-se as últimas forças viris que restam a Portugal dos tempos livres da Criação, das eras selvagens e testiculares que a civilização castrou.” in Portugal/Miguel Torga

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Vila Velha de Ródão

Portas do sol (Santarém)

Vista do Tejo das Portas do Sol

Vista do Tejo (Abrantes)

Vista do Tejo (Abrantes)

Vista do Tejo (Santarém)

Vista do Tejo (Portas do Sol/Santarém)

Rossio ao Sul do Tejo

Valada

“Um voo desferido é uma gaivota, /não é o voo da imaginação;/ gritos não são agoiros, são a lota…/ Vá, não faças batota,/ Deixa ficar as coisas onde estão…”Alexandre O’Neill

“Não, Tejo, não és tu que em mim te vês, – sou eu que em ti me vejo! ” Alexandre O’Neill

Consultados: Fernando Chagas Duarte – A indústria do bacalhau no início do século XXI. http://www.aldraba.org.pt/PDF/A%20ind%C3%BAstria%20do%20bacalhau%20secXXI.pdf; Antonio Nabais – Barcos do Tejo, http://www.altotejo.org/acafa/docsN2/Barcos_do_Tejo.pdf; Instituto da Conservação da Natureza – Reserva Natural do estuário do Tejo http://www.icn.pt/TurismoNatureza_anexos/RNET.pdf; Ricardo Neves . Os salgados portugueses no séx. XX. Que perspectivas para as salinas portuguesas no séc.XXI?. http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7975.pdf

Agradecimentos a Carlos Ribeiro Gomes e Francisco Vaz Garcia

Veja os vídeos:

Eugénio e a arquitetura das palavras

Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas portugueses do séc. XX e também dos mais populares. Essa popularidade devê-la-á muito à inclusão de poemas seus nos livros escolares, mesmo que, no final da vida, tivesse renegado alguns deles.

Os temas da poesia de Eugénio são poucos – o êxtase e a exaltação do corpo amado – feitos em versos eróticos, luminosos, dos mais belos da poesia portuguesa -, mas também o envelhecimento gradual e a velhice.
Desde o princípio (As mãos e os frutos, 1948), a sua poesia exala um lirismo contido e uma tristeza serena feita melancolia, que se vai adensando com a idade, quando o corpo começa a ser um despojo de si próprio, sente a sua precariedade (e a intuição da vivência irrepetível), e só lhe resta a resignação (e o recurso à memória) – “Estou de passagem: Amo o efémero”
Foi um poeta de exigência formal obsessiva, que o levou a modificar os versos até ao fim da vida. Versos que nunca seriam definitivos, decantados à cata de uma vírgula indevida, uma redundância, uma dissonância, exaustivamente em processo de purificação, rumo à limpidez verbal. Os poemas curtos, sempre mais curtos, veículam uma musicalidade rara feita de rumores, de sons de paisagens, da água ancestral. “Poesia do corpo a que se chega mediante uma depuração contínua”, eis como a considerou José Saramago.
Com um léxico de palavras claras, solares, essenciais, erigiu cada poema, como se de um edifício se tratasse, temperado por talvez volúpia talvez desencanto. Edifícios sobre a dialética da vida: água/fogo, silêncio/voz, êxtase/deceção… Como explicou Eduardo Lourenço, as palavras representariam, para Eugénio, a plenitude do mundo.
A semântica em Eugénio é a decifração de metáforas como as estações do ano, a sede, cavalos, pastores, amoras, aves, rosas, rios, fontes…e sempre o regresso à mãe – figura nuclear, de quem pai quase não teve. É este o seu material poético. O fulgor verbal e a emoção que os poemas suscitam, decorrem principalmente da conjugação inovadora das palavras, traduzindo dimensões distintas do tipo concreto/abstrato, objetivo/subjetivo. Já nos títulos dos livros esta técnica é evidente. Exemplos: Limiar dos Pássaros, Vertentes do Olhar, Os Afluentes do Silêncio, Os Lugares do Lume, O Peso da Sombra, O Sal da Língua, Coração do Dia, Véspera da Água, Escrita da Terra, Ofício de Paciência, Os Sulcos da Sede… Como refere Arnaldo Saraiva, o título nunca é “prosaico” ou simplesmente denotativo: é trabalhado não só “com” os versos mas também “como” os versos.
O corpo, como objecto amado ou ele próprio ao dar-se conta do seu declínio, é, assim, o elemento central da poesia de Eugénio. “Poeta do corpo, da sua glória, de um paganismo adolescente. Poeta de sexualidade explícita e abusiva”, como o definiu Pedro Mexia. O modelo do humano: “um rapaz/ desses do Pasolini esplendidamente /nu, plantado na terra.”

Além de versos, Eugénio escreveu poesia em prosa, na qual aborda as suas memórias da infância rural, a descoberta da poesia e da sexualidade. Mas também faz considerações sobre música, outros poetas (como Pessoa ou Botto), pintura (Júlio Resende ou van Gogh). Traduziu Garcia Lorca, Jorge Luis Borges, entre muitos. Escreveu sobre cinema (“O Inocente/Intruso” de Visconti, p.ex.), sobre fotografia – e, como em relação à pintura, escultura ou arquitetura, serviu-se de imagens visuais para as descrever com palavras, as “suas” palavras (sobre um retrato de Gageiro disse “Ele é na sua transparência vegetal /o rosto limpo da manhã, o terreiro varrido pela luz /verde e ondulada do trigo, /a beleza concreta rente ao chão:/a infindável extensão da cal, /a lenta aproximação de um rio”)
Na prosa procurou resguardar-se de exposição íntima. Nos períodos de mudez poética dedicava-se à prosa. “A mim, a mudança de clave…permitiu-me uma respiração mais ampla, um ritmo mais próximo do falar materno…”.
Sabermos como as artes visuais e a música estão presentes na obra de Eugénio, leva-nos a associá-lo também à arquitetura de Oscar Niemeyer e Siza Vieira. No primeiro, as curvas assumem muitas vezes manifesta sensualidade. Com Álvaro Siza houve proximidade geográfica, criaram-se laços afetivos e reconheceram-se afinidades ideológicas e de personalidade. Dele, escreveu Eugénio: “A musical ordem do espaço, /a manifesta verdade da pedra, /a concreta beleza /do chão subindo os últimos degraus.” Seja-nos, então, permitido usar imagens de maquetes de edifícios, objetos, rascunhos, dos próprios edifícios, como ilustrações para poemas de Eugénio. A arquitetura-do-real feita em palavras de cristal como em cimento com acabamentos, rebocos e pinturas de maravilha.
A maioria dos livros de Eugénio, bem como a extensa obra ensaística existente sobre ele, não estão disponíveis no mercado. Apesar do propósito de reedições ter sido anunciado, é preciso que, de facto, elas se concretizem.
A seleção de poemas que aqui fica é uma amostra (como outra qualquer, subjetiva) duma voz singular, excecionalmente luminosa e despojada. Dum poeta que, como poucos, exprimiu também esse sentimento difuso tão português – a nostalgia.

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“O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem…(ilustração de Botelho)

“…Na verdade ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.” (ilustração de Siza)

“…Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho – e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma – é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado…(ilustração de Alberto Péssimo)

“O futuro do homem é o homem”, estamos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, cujas possibilidades estamos longe de conhecer, é o fruto de uma desfiguração – acção de uma cultura mais interressada em ocultar ao homem o seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa “cantar no suplício” é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. (Ilustração de Emerenciano)

“…Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.”

“São como um cristal, /as palavras. /Algumas, um punhal, /um incêndio.Outras, /orvalho apenas. //Secretas vêm, cheias de memória. /Inseguras navegam: /barcos ou beijos, /as águas estremecem. //Desamparadas, /inocentes, /leves. /Tecidas são de luz /e são a noite. /E mesmo pálidas /verdes paraísos lembram ainda. //Quem as escuta? Quem /as recolhe, assim, /cruéis, desfeitas, /nas suas conchas puras?”

“Toda a manhã procurei uma sílaba. /É pouca coisa, é certo: uma vogal, /uma consoante, quase nada. /Mas faz-me falta. Só eu sei /a falta que me faz. /Por isso a procurava com obstinação. /Só ela me podia defender /do frio de janeiro, /da estiagem do verão. Uma sílaba. /Uma única sílaba. /A salvação.”

“No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos /é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima, /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. /Ilumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /toda a música é minha” (Sede da Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil /Siza Vieira)

“É urgente o amor. /É urgente um barco no mar.//É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade /alguns lamentos,/ muitas espadas.//É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, /é urgente descobrir rosas e rios /e manhãs claras. //Cai o silêncio nos ombros e a luz /impura, até doer. /É urgente o amor, /é urgente permanecer.”

 “Sempre a água me cantou nas telhas./ Habito onde as suas bicas,/ as suas bocas jorram./ As palavras que no cântaro/ a noite recolhe e bebe/ com agrado/ sabem a terra por serem minhas./ Não sou daqui e não vos devo/ nada, ninguém/ poderá negar a evidência/ de ser chama ou água, /fluir em lugar de ser pedra./ Perdoai-me a transparência.” (Sempre a água)

“Um corpo. Um corpo vertical ou estendido é sempre uma chama: aquece e ilumina. Um corpo respira, abre-se ao sol, floresce na noite. Em silêncio, é pura veemência; quando fala, queixa-se de ser tão frágil e tão só. Mais raramente, diz uma palavra de alegria. Exalta-se: fatiga-se; exaspera-se. A sua voz é a da terra – dali parte, ali regressa. É breve a sua duração, muito breve – quase só o tempo de um suspiro. Mas é belo aquele esplendor. Não há quase nada mais belo. Da sua existência, deixa às vezes uns sinais. De inquietude; de plenitude. O mais efémero dos seres tem sede de eternidade, quero eu dizer: doutro corpo. Então balbucia, beija, ama, dá um subtil nome às coisas, e das dissonâncias da carne ergue-se à exacta medida do canto, ou de qualquer outra música. A luz chama-se fulguração. Toda a eternidade é isso – e não há outra.” (Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer, Aviles/Asturias, maqueta proyecto/Niemeyer)

“Foi no verão que a aprendeste, com dedos afeiçoados aos instrumentos da paciência, a entrar na noite. Medias então os dias com rigor de lábios, declinando o mel e a sua sabedoria. Sempre partilhaste a casa, meu perdulário, na confluência das águas e da sede. E enquanto aguardavas a violência do silêncio, passavam as aves.” (Niemeyer)

 “Levar-te à boca,/ beber a água/ mais funda do teu ser -// se a luz é tanta,/ como se pode morrer?”

“Tu já tinhas um nome, e eu não sei /se eras fonte ou brisa ou mar ou flor. /Nos meus versos chamar-te-ei amor.” (reprodução de Klimt)

Niemeyer

“Tudo me prende à terra onde me dei: /o rio subitamente adolescente, /a luz tropeçando nas esquinas, /as areias onde ardi impaciente //Tudo me prende do mesmo triste amor /que há em saber que a vida pouco dura, /e nela ponho a esperança e o calor /de uns dedos com restos de ternura. //Dizem que há outros céus e outras luas /e outros olhos densos de alegria, /mas eu sou destas casas, destas ruas, /deste amor a escorrer melancolia.”(reprodução de Munch)

Complexo Desportivo Ribera Serrallo, em Cornella de Llobregat, Barcelona (Siza Vieira)

“No mais fundo de ti, /eu sei que traí, mãe! //Tudo porque já não sou /o retrato adormecido /no fundo dos teus olhos! //Tudo porque tu ignoras /que há leitos onde o frio não se demora /e noites rumorosas de águas matinais! //Por isso, às vezes, as palavras que te digo /são duras, mãe, /e o nosso amor é infeliz. //Tudo porque perdi as rosas brancas /que apertava junto ao coração /no retrato da moldura! //Se soubesses como ainda amo as rosas, /talvez não enchesses as horas de pesadelos… //Mas tu esqueceste muita coisa! /Esqueceste que as minhas pernas cresceram, /que todo o meu corpo cresceu, /e até o meu coração /ficou enorme, mãe! (reprodução de Julio Resende)

…//Olha – queres ouvir-me? -, /às vezes ainda sou o menino /que adormeceu nos teus olhos; //ainda aperto contra o coração /rosas tão brancas /como as que tens na moldura; //ainda oiço a tua voz: /”Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal…” /Mas – tu sabes! – a noite é enorme /e todo o meu corpo cresceu… //Eu saí da moldura, /dei às aves os meus olhos a beber. //Não me esqueci de nada, mãe. /Guardo a tua voz dentro de mim. /E deixo-te as rosas…”

“Está desse lado do verão / onde manhã cedo/ passam barcos, cercada pela cal./  Das dunas desertas tem a perfeição,/ dos pombos o rumor,/ da luz a difícil transparência/ e o rigor.“(Cacela Velha)

“Não é o mar, não é o vento, é o sol/ que me dói da cintura aos sapatos. / Sol de fins de julho,/ ou de agosto a prumo: finas/ agulhas de aço./ É o sol destes dias, aceso/ na folhagem./ Bebendo a minha água./ Colado à minha pele./ É doutro território, doutro areal./ Tem outros ritmos, outros modos,/ outros vagares para roer/ a cal, morder-me os olhos./ Até quando cega canta ao arder.”

“vê como o verão/ subitamente/ se faz água no teu peito,/ e a noite se faz barco,/ e a minha mão marinheiro.”

“Escalar-te lábio a lábio, /percorrer-te: eis a cintura/o lume breve entre as nádegas/e o ventre, o peito, o dorso/descer aos flancos, enterrar//os olhos na pedra fresca/dos teus olhos, /entregar-me poro a poro/ao furor da tua boca,/esquecer a mão errante/na festa ou na fresta//aberta à doce penetração/das águas duras,/respirar como quem tropeça/no escuro, gritar/às portas da alegria,/da solidão.//porque é terrível/subir assim às hastes da loucura/do fogo descer à neve.//abandonar-me agora/nas ervas ao orvalho/a glande leve.”

“Fogem agora, os olhos; fogem /da luz latindo. /Estão doentes, ou velhos, coitados, /defendem-se do que mais amam. /Tenho tanto que lhes agradecer: /as nuvens, as areias, as gaivotas, /a cor pueril dos pêssegos, /o peito espreitando entre o linho /da camisa, a friorenta /claridade de abril, o silêncio branco sem costura, as pequenas /maçãs verdes de Cézanne, o mar. /Olhos onde a luz tinha morada,/agora inseguros, tropeçando /no próprio ar.” (reprodução de Cézanne)

“O meu país sabe às amoras bravas /no verão /Ninguém ignora que não é grande, /nem inteligente; nem elegante o meu país, /mas tem esta voz doce /de quem acorda cedo para cantar nas silvas. /Raramente falei do meu país, talvez /nem goste dele, mas quando um amigo /me traz amoras bravas /os seus muros parecem-me brancos, /reparo que também no meu país o céu é azul.”

Fotografia de Eduardo Gageiro

“Nem as cigarras nem os flancos /acesos das searas /nem a pensativa cor dos lírios /ou mesmo a bárbara /luz do sul têm agora /morada no seu coração; /como falcão ferido /a orelha não pára de sangrar; /sangra de amor do negro e tresloucado /e transbordante amor do mundo, /e desprevenido e magoado” (reprodução de Van Gogh)

“Amar-te assim desvelado /entre barro fresco e ardor. /Sorver o rumor das luzes /entre os teus lábios fendidos. //Deslizar pela vertente /da garganta, ser música /onde o silêncio aflui /e se concentra. //Irreprimível queimadura /ou vertigem desdobrada /beijo a beijo, /brancura dilacerada //Penetrar na doçura da areia /ou do lume, /na luz queimada /da pupila mais azul, //no oiro anoitecido /entre pétalas cerradas, /no alto e navegável /golfo do desejo, //onde o furor habita /crispado de agulhas, /onde faça sangrar /as tuas águas nuas.” (reprodução de klimt)

“Entre a folha branca e o gume do olhar /a boca envelhece //Sobre a palavraa noite aproxima-se da chama //Assim se morre dizias tu /Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura //Na porosa fronteira do silêncio /a mão ilumina a terra inacabada //Interminavelmente” (reprodução de Klimt)

“Os navios existem, e existe o teu rosto /encostado ao rosto dos navios. /Sem nenhum destino flutuam nas cidades, //partem no vento, regressam nos rios. //Na areia branca, onde o tempo começa, /uma criança passa de costas para o mar. /Anoitece. Não há dúvida, anoitece. /É preciso partir, é preciso ficar. //Os hospitais cobrem-se de cinza. /Ondas de sombra quebram nas esquinas. /Amo-te… E entram pela janela /as primeiras luzes das colinas. //As palavras que te envio são interditas /até, meu amor, pelo halo das searas; /se alguma regressasse, nem já reconhecia /o teu nome nas suas curvas claras. //Dói-me esta água, este ar que se respira, /dói-me esta solidão de pedra escura, /estas mãos nocturnas onde aperto /os meus dias quebrados na cintura. //E a noite cresce apaixonadamente. /Nas suas margens nuas, desoladas, /cada homem tem apenas para dar /um horizonte de cidades bombardeadas.” (reprodução de Klee)

“O outono /por assim dizer /pois era verão /forrado de agulhas /a cal /rumorosa /do sol dos cardos /sem outras mãos que lentas barcas /vai-se aproximando a água //a nudez do vidro/a luz /a prumo dos mastros //os prados matinais /os pés /verdes quase //o brilho /das magnólias /apertado nos dentes //uma espécie de tumulto /as unhas /tão fatigadas dos dedos //o bosque abre-se beijo a beijo /e é branco” (reprodução de Klee)

“Não canto porque sonho. /Canto porque és real. /Canto o teu olhar maduro, /O teu sorriso puro, /A tua graça animal. /Canto porque sou homem. /Se não cantasse seria /somente um bicho sadio /embriagado na alegria /da tua vinha sem vinha. /Canto porque o amor /apetece. /Porque o feno amadurece /nos teus braços deslumbrados. /Porque o meu corpo estremece /Por vê-los nus e suados.” (reprodução de Millares)

“Aprendo uma gramática de exílio, nas vertentes do silêncio. É uma aprendizagem que requer pernas rijas e mão segura, coisas de que já não me posso gabar, mas embora precárias, sempre as minhas mãos foram animais de paciência, e as pernas, essas ainda vão trepando pelos dias sem ajuda de ninguém. Sem o desembaraço de muitos, mas tirando partido dos variados acidentes da pedra, que conheço bem, lá vou pondo sílaba sobre sílaba. Do nascer ao pôr do sol.” (reprodução de Millares)

“No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos /é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima, /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. Iumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /toda a música é minha.”

Picasso

“Entre os teus lábios /é que a loucura acode, /desce à garganta, /invade a água. //No teu peito /é que o pólen do fogo /se junta à nascente, /alastra na sombra. //Nos teus flancos é que a fonte começa /a ser rio de abelhas, /rumor de tigre. //Da cintura aos joelhos /é que a areia queima /o sol é secreto, /cego o silêncio. //Deita-te comigo. //Ilumina meus vidros. /Entre lábios e lábios /Toda a música é minha.”

Julio Resende

“Não voltarei à fonte dos teus flancos /ao fogo espesso do verão /a escorrer infatigável /dos espelhos, não voltarei. //Não voltarei ao leito breve /onde quebrámos uma a uma /todas as frágeis /hastes do amor. //Eis o outono: cresce a prumo. /Anoitecidas águas /em febre em fúria em fogo /arrastam-me para o fundo.” (Gustav Vigeland)

“Morrer e não morrer sobre os teus rins/uma árvore de pássaros ardia/era o verão escuta os seus cavalos/à roda da cintura//O cálido esperma das palavras/no interior do cabelo derramado um sol de palha fresca a boca/ de que rio regressa?” (reprodução de Klimt)

“”Do que vês não sou o que pareço. /Se atentares nas vagas deste mar /de dunas e alma e mãos desatadas /boca desejo de ausente sentimento /e um rio que só renasce ao desaguar /bastam-te cegos os olhos em silencio /na miragem da sombra deste /avesso. /Do que reconheço sou o que mereço.”

“O teu rosto inclinado pelo vento; /a feroz brancura dos teus dentes; /as mãos, de certo modo, irresponsáveis, /e contudo sombrias, e contudo transparentes; //o triunfo cruel das tuas pernas, /colunas em repouso se anoitece; /o peito raso, claro, feito de água; /a boca sossegada onde apetece //navegar ou cantar, ou simplesmente ser /a cor dum fruto, o peso duma flor; /as palavras mordendo a solidão, /atravessadas de alegria e de terror, //são a grande razão, a única razão.”

“Surdo, subterrâneo rio de palavras /me corre lento pelo corpo todo; /amor sem margens onde a lua rompe /e nimba de luar o próprio lodo. //Correr do tempo ou só rumor do frio /onde o amor se perde e a razão de amar //— surdo, subterrâneo, impiedoso rio, /para onde vais, sem eu poder ficar?”

“As palavras que te envio são interditas//As palavras que te envio são interditas /até, meu amor, pelo halo das searas; /se alguma regressasse, nem já reconhecia //Dói-me esta água, este ar que se respira, /dói-me esta solidão de pedra escura, /estas mãos nocturnas onde aperto /os meus dias quebrados na cintura. //E a noite cresce apaixonadamente. /Nas suas margens nuas, desoladas, /cada homem tem apenas para dar /um horizonte de cidades bombardeadas.”

Niemeyer (Palácio da Alvorada/Brasilia)

“Quando a ternura /parece já do seu ofício fatigada, //e o sono, a mais incerta barca, inda demora, //quando azuis irrompem //os teus olhos //e procuram /nos meus navegação segura, //é que eu te falo das palavras /desamparadas e desertas, //pelo silêncio fascinadas. ” (esboço de Niemeyer)

“Húmido de beijos e de lágrimas, /ardor da terra com sabor a mar, /o teu corpo perdia-se no meu.//(Vontade de ser barco ou de cantar.)” (Esboço de Niemeyer)

Niemeyer

“Devias estar aqui rente aos meus lábios /para dividir contigo esta amargura /dos meus dias partidos um a um //- Eu vi a terra limpa no teu rosto, /Só no teu rosto e nunca em mais nenhum” (esboço de Niemeyer)

Museu de Arte Contemporânea do Porto (Fundação Serralves)/Siza Vieira.

“Como se houvesse uma tempestade /escurecendo os teus cabelos, /ou, se preferes, minha boca nos teus olhos /carregada de flor e dos teus dedos; //como se houvesse uma criança cega /aos tropeções dentro de ti, /eu falei em neve – e tu calavas /a voz onde contigo me perdi. //Como se a noite se viesse e te levasse, /eu era só fome o que sentia; /Digo-te adeus, como se não voltasse ao país onde teu corpo principia. //Como se houvesse nuvens sobre nuvens e sobre as nuvens mar perfeito, /ou, se preferes, a tua boca clara /singrando largamente no meu peito.” (reprodução de Picasso)

Fundação Oscar Niemeyer em Niteroy/ Rio de Janeiro

“Começo a dar-me conta: a mão /que escreve os versos /envelheceu. Deixou de amar as areias /das dunas, as tardes de chuva /miúda, o orvalho matinal /dos cardos. Prefere agora as sílabas /da sua aflição. /Sempre trabalhou mais que sua irmã, /um pouco mimada, um pouco /preguiçosa, mais bonita. /A si coube sempre /a tarefa mais dura: semear, colher, /coser, esfregar. Mas também /acariciar, é certo. A exigência, /o rigor, acabaram por fatigá-la. /O fim não pode tardar: oxalá /tenha em conta a sua nobreza.”

“Enquanto /um calor mole nos tira a roupa /e mesmo nus sobre a cama /os corpos continuam a pedir água /em vez de outro corpo, /penso no tempo em que o suor /e a saliva e o odor e o esperma /faziam dessa agonia /a alegria /a que chamávamos amor.”

“Vêm da infância, essas mulheres. /Caladas, discretas, sem pressa /de existir. Esplêndidas mulheres essas, /penteadas com a risca ao meio, /as orelhas descobertas pelo cabelo /de sombra clara. /No seu coração o mundo /não era tão pequeno e o que faziam /não lhes parecia humilhação. /Sabiam envelhecer com a vagarosa /luz das crianças /e dos animais da casa. /A par da rosa.”

“Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos. Era no tempo em que o teu corpo era um aquário. Era no tempo em que os meus olhos eram os tais peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade: uns olhos como todos os outros. Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor…, já não se passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração. Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus”

“Escuta, escuta: tenho ainda /uma coisa a dizer. /Não é importante, eu sei, não vai /salvar o mundo, não mudará /a vida de ninguém – mas quem /é hoje capaz de salvar o mundo /ou apenas mudar o sentido /da vida de alguém? /Escuta-me, não te demoro. /É coisa pouca, como a chuvinha /que vem vindo devagar. /São três, quatro palavras, pouco /mais. Palavras que te quero confiar, /para que não se extinga o seu lume, /o seu lume breve.”

Casa de Álvaro Siza na Boa Nova “A musical ordem do espaço, /a manifesta verdade da pedra, /a concreta beleza /do chão subindo os últimos degraus, //a luminosa contenção da cal, /o muro compacto /e certo /contra toda a ostentação, /a refreada /e contínua e serena linha /abraçando o ritmo do ar, /a branca arquitectura /nua /até aos ossos. Por onde entrava o mar.”

Oscar Niemeyer (nascido no Rio de Janeiro em 1907) “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.”/”Não há nada mais importante que a mulher, o resto é bobagem. É ou não é?” (Citações de Oscar Niemeyer)

Álvaro Siza Vieira (nascido em Matosinhos em 1933): ““Sou um introvertido, como é que posso ser uma estrela? Uma estrela tem um desejo de extroversão. Eu pessoalmente não sou, humanamente não tenho o perfil psicológico de uma estrela, de maneira nenhuma. Passo despercebido em toda a parte. Agora, como a televisão me fez duas entrevistas, é que já não”. “…A arquitectura é uma coisa que engloba vida, espaço interior, contradições. Contextos diferentes dão edifícios diferentes. Embora eles não sejam tão diferentes como isso.”. Autor do mausoléu do poeta.

Eugénio de Andrade (1923-2005). Nasceu no Fundão, no seio de uma família de camponeses. A sua infância foi passada com a mãe, na aldeia natal. Mais tarde, viveu em Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, para continuar os estudos. Em 1947 entrou para a Inspecção Administrativa dos Serviços Médico-Sociais, em Lisboa. Em 1950 foi transferido para o Porto, onde fixou residência. Ao longo da vida, colaborou em numerosas revistas literárias como Cadernos de Poesia, Vértice, Seara Nova, Colóquio, Revista de Artes e Letras, O Tempo e o Modo e Cadernos de Literatura. Foram-lhe atribuídos numerosos prémios e distinções como o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores; o Prémio Extremadura de criação literária; o Prémio Celso Emilio Ferreiro, para autores ibéricos; Prémio Celso Emilio Ferreiro, na Galiza; homenagem no Carrefour des Littératures, em França; e o Prémio Camões. (fotografia de Gageiro).

Os autores agradecem a colaboração de Nacional Filmes Lda.

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Douro: o mosto e o gosto (ou a vinha e a vida)

O Douro atravessa o noroeste da Península Ibérica, desde Duruelo de la Sierra, a mais de 2100 metros de altitude, até desaguar junto ao Porto. Com os seus 897 Km, depois do Tejo e do Ebro, o Douro é o terceiro maior rio ibérico. Cerca de 2/3 da sua extensão situa-se nas províncias espanholas de Soria, Burgos, Valladolid, Zamora e Salamanca.
Ainda do lado espanhol passa por numerosas cidades que atestam a sua importância histórica e cultural – Soria, “cidade dos poetas” que acolheu Antonio Machado, Tordesilhas onde foi assinado o Tratado que delimitava a pertença dos Descobrimentos Marítimos, Zamora capital do estilo românico e muitos locais ligados à gastronomia e à produção vinícola.
No seu trajecto o rio conformou espaços lindíssimos que deram origem a reservas de flora e fauna, como os Picos de Urbión, em plena Cordilheira Ibérica, os Arribes del Duero, o parque natural onde o rio abandona Castela. Em Portugal, passa-se outro tanto. Duero ou Douro, tanto faz.
Foi sobretudo a partir do século XVIII, quando os ingleses “descobriram” o vinho do Porto, que se iniciou a grande produção de vinha, no Douro português. Os barcos rabelos conduziam as pipas até aos armazéns de Gaia, mas há provas da existência de vinhedos desde os Romanos.
Moldar e conter as encostas do rio para a produção da vinha foi uma actividade hercúlea. Tiveram de arrancar-se arbustos, rasgar o xisto, e construir quilómetros de socalcos, com muros feitos de rocha moída, lodos e estrume.
A história do homem e das vinhas do Douro é feita de abastança e penúria, de largos proventos e de falências e pobreza. As relações entre produtores e exportadores em Gaia foram muitas vezes conflituosas. Os preços e o volume das pipas exportados sofreram grandes oscilações ao longo dos anos; as pragas de oídio, filoxera e míldio levaram à destruição das vinhas de numerosas quintas; por vezes a cupidez levou á mistura de mosto de outras proveniências que não o Douro ou à adição de produtos estranhos para dar cor ao vinho (baga de sabugueiro, por exemplo). Entre o regime proteccionista implantado pelo Marquês de Pombal (que delimitava a região produtora e regulava a produção e comércio dos vinhos, assegurando a sua proveniência) e o estabelecimento de mercado livre, acabou sempre por serem os próprios lavradores a exigirem um órgão que controlasse a produção e lhes garantisse o escoamento do vinho.
Mas a história dos homens do Douro não é só a dos proprietários, é a dos assalariados e pequenos lavradores. Os homens, desde há séculos, muitas vezes mal alimentados, debaixo dum clima extremo de noites muito frias de Inverno e de calor abrasador no Verão, ali abriram covas até um metro e meio para oxigenar o solo, construíram terraços e muros para impedir a erosão e conservar a água das chuvas. Os homens que adubavam, tratavam as vinhas, faziam as vindimas, transportavam os cachos e pisavam as uvas.

Independentemente das inovações tecnológicas, a produção do Vinho do Porto segue os mesmos passos. É no lagar ou em modernas cubas, que tudo começa. É breve a curtimenta (contacto do mosto com as películas das uvas de onde sairá boa parte do corpo, da cor e dos aromas). Segue-se a beneficiação (adição de aguardente vínica), que implica a separação final do mosto das películas, grainhas e engaços. Transporte para as caves de Vila Nova de Gaia. Aí, os lotes são separados consoante as suas características e potencial. Os lotes especiais são conservados em cascos de carvalho. Sofrem várias trasfegas, destinadas a “refrescá-lo” e a libertá-lo  das borras originais. É o longo processo de envelhecimento durante o qual são criados a partir das várias amostras, lotes com a mesma identidade. O resultado serão os Tawny e Colheita, os Ruby e LBV e os Vintage.
Hoje, não é só o Vinho do Porto, mas os de mesa da Região Demarcada, que têm fama em todo o mundo. Os enólogos têm conseguido vinhos, sobretudo tintos, que rivalizam com quaisquer outros vinhos europeus. O vinho traz o sol e o xisto – e a cor, aroma de frutos e flores, conforme as castas.
Percorrer as margens do Douro, contemplar as paisagens deslumbrantes (como Galafura, Casal de Loivos, S. Salvador do Mundo), mas que de modo quase ininterrupto se sucedem desde Miranda até à foz, impregnarmo-nos delas, sentir as suas diferenças – o terreno de granito com os seus pinheiros, giestas e urze e, na zona vinhateira, o xisto, a esteva e o alecrim. As cores, consoante a região – verde, castanho, terra queimada. As amendoeiras, os sobreiros, as oliveiras, quando nos afastamos. As paisagens são a epiderme da geografia, escreveu Manuel Carvalho. E observar os cumes do Marão, subir as encostas íngremes, visitar aldeias retiradas, ouvir os pequenos lavradores que restam, apreensivos quanto ao futuro, e maravilharmo-nos. A região vinhateira é uma paisagem cultural, classificada pela UNESCO como Património Mundial.

A linha-férrea nas margens do rio vive um declínio melancólico: presentemente, apenas o troço Porto/Pocinho está aberto à circulação. Mas as estradas melhoraram e o comboio histórico, quando disponível, com as suas carruagens centenárias, permite um regresso ao passado. Não é o Expresso do Oriente, mas uma espécie de Correio do Douro. A navegação fluvial, por seu lado, tem vindo a ser intensificada. Os cruzeiros são inesquecíveis. Os turistas acorrem.

Porém, o rio é mais: ao olhar para os edifícios das quintas ou para ruínas no Porto, ocorrem-nos romances ou filmes que tiveram como cenários estas paisagens ou como protagonistas gente do Douro. É o imaginário de cada um. A perspectiva hiper-romântica de Camilo, que em “Amor de Perdição” utilizou as margens do Douro como cenário das várias tragédias da novela, que, aliás, quase toda ela decorre na região; a escrita de Agustina, com um lado “torrencial, genial, por vezes assustador”, como escreveu Pedro Mexia; o olhar aristocrático de Manoel de Oliveira, o seu apego ao norte, donde é natural, desde o primordial “Douro Faina fluvial”; a elegância de Eça de Queiroz na sua incursão pela vida rural, como sucedeu em “A Cidade e as Serras” e “A ilustre Casa de Ramires”; Torga que regularmente revisitou as serras de Trás-os-Montes com as suas penedias, as suas antas, e que deve ter escrito as páginas mais eloquentes sobre a dureza da paisagem do Douro e sobre a tenacidade e perseverança do trabalhador rural; e, sempre, as reflexões de António Barreto acerca da necessidade de disciplina e rigor, indispensáveis à saúde da economia da região.

São perspectivas diferentes, claro, mas que permitem uma visão multi-dimensional do Douro – das famílias do século XIX com suas rivalidades e conflitos e dos fidalgos, magistrados, boémios e poetas. E do esforço solitário e corajoso dos homens que trabalham a terra, a sua vida. Pelo meio sempre a vinha, o gosto pelo mosto, seja qual for o seu destino.

FM

 

O rio Douro não teve cantores. Teve-os o Mondego e o Tejo também. Mas para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cacheiro da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira da neve que cobria os barrancos de Sabroso.

Douro/Espanha “…O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorgeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e à beira de água lavam os pés e os pecados. E, no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro…

“…Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à má-cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada…

“…Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante tê-lo-ia amado, e preferido; como preferiu os estaleiros incandescentes de Veneza e os túmulos abertos das arenas de Arles, para descrever o inferno. Por cá, são brandas as liras; com o aguilhão da fome, às vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias são raras, as musas são mimosas não ardentes” (Agustina Bessa-Luis in Fanny Owen)

Agustina Bessa-Luís nasceu em Amarante em 1922. Publicou mais de 50 obras. Entre vários prémios e testemunhos de reconhecimento internacional, o Prémio Camões em 2004. Vários dos seus romances foram já adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira, de quem é amiga: Fanny Owen (“Francisca”), Vale Abraão e As Terras do Risco (“O Convento”), para além de “Party”, cujos diálogos foram igualmente escritos pela escritora.

“…El Duero cruza el corazón de roble /de Iberia y de Castilla. /¡Oh, tierra triste y noble, /la de los altos llanos y yermos y roquedas, /de campos sin arados, regatos ni arboledas;/decrépitas ciudades, caminos sin mesones, /y atónitos palurdos sin danzas ni canciones /que aún van, abandonando el mortecino hogar, /como tus largos ríos, Castilla, hacia la mar!...” (Antonio Machado)

..”Porém havia nas margens do Douro uns nativos especiais que se alimentavam de bacalhau cozido com ovos à ceia, refeição com tradições da mesmice gastronómica. Às nove e meia, e à luz metálica dos gasómetros ou das velas em castiçais de dois braços, sentava-se à mesa o lavrador do Douro, homem no geral de génio ponderado e de trato soberbo. Tinha quatro filhas e dois rapazes um deles morgado, entroncado e bebedor; antes dos vinte anos ficava órfão e deixava a herança nos botequins da Régua, onde se jogava o monte com obstinação que, de não ser viciosa, seria espartana…”(AB-L)

Foi o Marquês de Pombal quem, em 1756, lançou as bases da constituição da Região Demarcada do Douro e de um sistema de regulação da produção e comércio dos seus vinhos, através do alvará régio de instituição da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Foi a primeira zona demarcada para a produção de vinho do mundo, tendo em conta os regulamentos, controlos e disciplina, como hoje estão estabelecidos.

Peso da Régua – “Acto visionário”, assim lhe chamou Antonio Barreto, que permitiu que só os vinhos ali produzidos pudessem ostentar designações de Douro e Porto. “A defesa de um produto implica o seu carácter e este só se garante se estiver definida a sua origem e as suas características”

Miranda – Na Região Demarcada do Douro, produzem-se os vinhos correspondentes às denominações de origem “Porto” e “Douro”, a qual abrange 250 mil hectares, dos quais 48 mil são ocupados por vinha. Um décimo dessa área, que engloba treze concelhos, foi classificado pela UNESCO como Património Mundial.

Contudo, a zona classificada é representativa da diversidade do Douro, uma vez que inclui espaço do Baixo Corgo, do Cima Corgo e do Douro Superior. Outros dois locais do Douro foram também considerados Património da Humanidade – o Vale do Côa e o velho burgo da cidade do Porto.

Os treze concelhos que fazem parte da zona do Alto Douro, distinguida pela UNESCO, são Alijó, Armamar, Carrazeda de Ansiães, Lamego, Mesão Frio, Peso da Régua, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, São João da Pesqueira, Tabuaço, Torre de Moncorvo, Vila Nova de Foz Côa e Vila Real, estendendo-se ao longo das encostas do rio Douro e dos seus afluentes, Varosa, Corgo, Távora, Torto e Pinhão.

A Região Demarcada estende-se de perto de Barqueiros, junto à Régua, a Barca de Alva, próximo de Espanha.

Alto Douro – É da conjugação das qualidades do solo, características do clima e trabalho do homem que resulta o vinho do Porto. Em Setembro, no momento da vindima, as uvas são transportadas pelos homens até modernos centros de vinificação ou até a antigos lagares, que aqui e ali ainda existem.

Actualmente, o processo produtivo concilia as técnicas mais sofisticadas com séculos de rigorosa tradição, em que a pisa e a maceração são totalmente mecanizados. Porém, ainda se podem encontrar locais onde a vinificação é realizada segundo a técnica ancestral.

O resultado final não é um Porto, mas vários Portos, com cores que vão do branco ao retinto e sabores variados. Antonio Barreto: Um produto “feito pelo homens. E refeito. E rei ventado”, Um produto que nasceu à custa da labuta “dos lavradores, dos Galegos, dos assalariados rurais, dos comerciantes, dos holandeses e dos ingleses”, de uma panóplia de gente tão vasta e diversa quanto o seu valor e reconhecimento: desde clientes que o beberam, técnicos e enólogos que o fizeram, políticos e autarcas, entre muitos e muitos outros que gastaram vidas a favor da conquista de dimensão do “néctar dos deuses”

A desertificação das freguesias ribeirinhas do Douro e o envelhecimento da população são problemas graves. Só nas últimas duas décadas, o Alto Douro Vinhateiro perdeu quinze por cento dos seus habitantes Para combater a falta de mão-de-obra, muitos proprietários rurais recorreram ao trabalho de imigrantes.

Alto Douro – Os Durienses moldaram, como se de artesãos se tratasse, a “paisagem natural (…) humana e feita pelos homens”. “Do rio domesticado às encostas em socalcos, das quintas aos armazéns, dos caminhos aos lagares, das oliveiras à amendoeiras, dos muros aos patamares e à vinha ao alto, tudo é feito pelo homem. Tudo, no Douro, é humano”. Embalados pela mudança, mas com consciência e respeito pelo valor legado, os homens, no Douro, souberam “aproveitar o melhor” que a Natureza lhes deu, ao ponto de serem “capazes de corrigir e transformar, sem destruir”. (Antonio Barreto)

Rio Douro em Miranda

Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar….

…”Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas; e, de entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebere que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sobre as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas...”(AB-L/Fanny Owen)

Vila Real

Amarante

A Régua em 1840 era um pouco Saint Louis do Missouri, só que com menos europeus. Havia ingleses, é certo; mas para cá da Mancha um inglês sofre uma rebaixa de cinquenta por cento. Para chegar onde quero chegar direi que em 1845, nos altos de Baião e num lugar chamado Santa Cruz do Douro, vivia um desses morgados bizarros, que cumprem o seu destino seduzindo uma costureira, casando com uma prima e endividando-se quase sem sair de casa – a comer e a administrar mal as terras. Mas José Augusto Pinto de Magalhães, o jovem proprietário da Quinta do Lodeiro, tinha uma particularidade mais ruinosa: fazia versos”

Em Novembro de 1849, Camilo estava na casa do Lodeiro e era hóspede de José Augusto. É uma época desmantelada, no Douro. As vinhas apresentavam-se de cabeleiras dispersas, a redra não se fez ainda. As folhas apodrecem e perdem o seu ruivo esplendor. Chove; e dos armazéns ouve-se o gemido da prensa que espreme os últimos bagaços. Nas réstias de sol aberto seca a grainha em cima de sacos tingidos de mosto. A terra barrenta pega-se às grossas botas de atanado, salpica as calças justas do morgado do Lodeiro que se apeia do seu cavalo à porta do salão” (Agustina Bessa-Luis in Fanny Owen)

Torre de Moncorvo

Francisca não é uma adaptação de Fanny Owen de Agustina Bessa-Luis. O filme foi construído sobre diálogos escritos por encomenda, mas como conta a escritora “Para escrever os diálogos tive que conhecer as circunstâncias que os inspirassem, e a história que os comporta. Assim nasceu o livro e o escrevi». Este facto exemplifica a cumplicidade entre Agustina e Oliveira.

O filme baseia-se em factos verídicos ocorridos depois da derrota dos miguelistas na Guerra Civil, que deixa os jovens fidalgos tradicionalistas entregues a “paixões Funestas”. Figuras centrais são Camilo Castelo Branco, escritor ainda pouco conhecido e pobre, José Augusto (poeta sem talento, decadente e triste, mas abastado), e Fanny Owen (filha dum antigo conselheiro militar de D. Pedro)

A acção decorre no Porto e no Douro. “-Quem é ele? /Não estremeceu quando Camilo disse, com precipitação: /-É um homem de temperamento funesto -Funesto porquê? /-Não tem alma /-O que é a alma? Uma borboleta também não tem alma, e ela sabe como ninguém tocar nas flores./…-A alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é…/-É um vício. A alma é um vício/-O quê? /Não me trate como uma ignorante. Pode se ser inocente sem se ser ignorante”

Camilo escreve a Francisca várias cartas, que mais tarde servirão para destruir a relação dela com o futuro marido, José Augusto. Estes morrerão de “amor”, pela tragédia do triângulo de que Camilo faz parte.”O que faz com que amemos alguém?”, pergunta José Augusto, no momento em que já não há nada mais a fazer. O que fazer, então? “Gerar um anjo na plenitude do martírio”, o que significa construir um amor eterno no meio de toda a adversidade do mundo…

S. João da Pesqueira -“Daí para diante é só esse vício (figurado por memória, elipses, sonhos) que Francisca persegue em José Augusto e ele nela. Mais uma vez, a união deles só pode dar-se no sono total, na morte inexplicável de Fanny. “Morreriam por não serem uma só pessoa” diz Agustina. Só nos sonhos se morre assim. / A propósito deles (sonhos) escreve Agustina – e filma Oliveira – citando Holderlin, que “o homem que sonha é um deus, o que pensa é um mendigo”. E ao morrer (com José Augusto, oniricamente, fora e dentro do plano) Fanny diz que a memória se lhe foi com a alma, ou seja, em termos dela, com o vício.” (J. Bénard da Costa / Muito lá de casa)

Que sabemos da aristocracia nortenha do final do séc. XIX, no rescaldo da derrota dos miguelistas e da guerrilha do Zé do Telhado? Como decorriam as relações entre filhos de oficiais ingleses (que tinham apoiado o General Saldanha e que por cá ficaram) e os jovens endinheirados, descendentes dos fidalgos que tinham participado nas forças sitiantes do Porto?

Como era o ambiente cultural, social e boémio no Porto da época: o teatro S. João ou o Príncipe Real, o café Águia d’Ouro e o Guichard (onde se recitava Lamartine ou Soares de Passos), as festas em casas de fidalgos abastados onde comparecia a melhor sociedade da época ou os jantares nos solares e nas quintas do Douro?

Pouco, sabemos pouco. Mas a câmara de Manoel de Oliveira transporta-nos a essa época. As figuras de fraque e chapéu alto nos admiráveis diálogos de Agustina vão discorrendo sobre a alma, a vida, a paixão, os sonhos, as contradições, as dúvidas, as obsessões. As referencias históricas estão lá. Os planos em Francisca são imóveis, mas, apesar disso, a acção decorre viva. Como em teatro, Oliveira filma quadros, submetidos ao texto, excessivo, definitivo. A cor acentua a melancolia e as palavras. Oliveira filma as palavras através dos rostos.

Alijó

Santa Cruz do Douro

Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro.”…(Vista da eira da Casa de Tormes)

.. “Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco carregado de pipas. Para além, outros socalcos, dum verde pálido de resedá, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul.” (Eça de Queiroz in A cidade e as serras)

Quinta da Romaneira

Camilo Castelo Branco (1825-1890)

Amor de perdição. É a história do amor proibido entre Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, a quem o ódio entre as famílias, irremediavelmente separa. A acção começa em Viseu. Simão estuda em Coimbra, é corajoso, defende ideais liberais. Nos breves encontros clandestinos, Simão e Teresa fazem planos de casamento. Mas o namoro é descoberto. Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, manda chamar de Castro Daire um sobrinho, Baltasar, a quem incentiva a cortejar a filha planeando um futuro enlace.

Castro Daire (Ponte do Cerveira) Porém, a recusa de Teresa enfurece o pai que decide mandá-la para um convento. Baltasar com dois criados monta uma emboscada a Simão, que está acompanhado por um ferrador João da Cruz e um arreeiro. João da Cruz tem uma dívida de gratidão para com o pai de Simão, magistrado de profissão, que o livrara da forca. No embate, Simão é ferido e passa uma temporada de recuperação na casa do ferreiro. É tratado por Mariana, sua filha, que silenciosamente se apaixona por Simão.

Simão tenta raptar Teresa. Agredido verbalmente por Baltasar, reage e, quando o rival avança, responde com um tiro de pistola. Neste momento, surge o ferrador que incita Simão a fugir. Este, recusa-se. Confessa tudo, sem alegar legítima defesa. O crime chega ao conhecimento da família Botelho. O pai é duro: espera que a lei se cumpra com rigor. Nega qualquer auxílio na cadeia e decide mudar com a família de Viseu, para que ninguém facilite a situação de Simão.

Na Cadeia da Relação no Porto, Simão recebe a visita de João da Cruz. Mariana vai servir a Simão. Uma decisão judicial permite-lhe que cumpra a sua pena na prisão de Vila Real, mas o preso recusa-se a aceitar tal mudança. Prefere a liberdade de poder ver o céu e sentir o vento no degredo.

Em princípio de Março de 1805, soube minha mãe, com grande prazer, que Simão fora removido para as cadeias da Relação do Porto, vencendo os grandes obstáculos que opuseram a essa mudança os queixosos, que eram Tadeu de Albuquerque e as irmãs do morto.”

Mas Teresa tenta convencê-lo a ficar e a esperança persiste: “Dez anos! dizia-lhe a enclausurada de Monchique – Em dez anos terá morrido meu pai e serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vais ao degredo, para sempre, te perdi, Simão, porque morrerás ou não acharás memória de mim, quando voltares”

Passam-se ainda alguns meses até que Simão embarca para a Índia. Mariana consegue um lugar a bordo. Seu pai fora, entretanto, assassinado. Simultaneamente, no convento, Teresa relê as cartas de Simão e pede que lhe sejam entregues. Às nove da manhã sobe para o mirante, de onde é possível assistir à partida dos navios.

Simão pede a Mariana que lhe mostre o convento. “- Onde é Monchique? – É acolá, senhor Simão – respondeu. indicando-lhe o mosteiro, que se debruça sobre a margem do Douro, em Miragaia. /Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto. Era Teresa.”

Quando viu, a dois a dois, entrarem, amarrados, no tombadilho, os condenados, Teresa teve um breve acidente, em que a já frouxa claridade dos olhos se lhe apagou, e as mãos conclusas pareciam querer aferrar a luz fugitiva. //Foi então que Simão Botelho a viu. E ao mesmo tempo atracou à nau um bote em que vinha a pobre de Viseu, chamando Simão. Foi ele ao portaló, e, estendendo o braço à mendiga, recebeu o pacotinho das suas cartas. Reconheceu ele que a primeira não era sua, pela lisura do papel, mas não a abriu. //Ouviu-se a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se à amurada da nau, com os olhos fitos no mirante. //Viu agitar-se um lenço, e ele respondeu com o seu àquele aceno. //Desceu a nau ao mar, e passou fronteira ao convento. ..”

…”Distintamente Simão viu um rosto e uns braços suspensos das reixas de ferro; mas não era de Teresa aquele rosto: seria antes um cadáver que subiu da claustra ao mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da sepultura. /- É Teresa? – perguntou Simão a Mariana. /É, senhor, é ela – disse num afogado gemido a generosa criatura, ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condenado iria breve no seguimento daquela por quem se perdera.”

Lá mesmo no mirante, Teresa morre. O capitão do navio promete a Simão que, caso algo lhe aconteça, reconduzirá Mariana a Portugal. “O capitão prosseguiu: – Quando em Miragaia me contaram a morte daquela senhora, pedi a uma pessoa relacionada no convento que me levasse a ouvir de alguma freira a triste história. Uma religiosa ma contou; mas eram mais os gemidos que as palavras. Soube que ela, quando descíamos na altura do Oiro, proferia em alta voz: – “Simão, adeus até à eternidade!” – E caiu nos braços duma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante, e a trouxeram meia-morta para baixo, ou morta, melhor direi, que nenhuma palavra mais lhe ouviram. Depois, contaram-me o que ela penara em dois anos e nove meses naquele mosteiro; o amor que ela lhe tinha, e as mil mortes que ali padeceu, de cada vez que a esperança lhe morria. Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é! – Por pouco tempo… – disse Simão, como se o dissesse a si próprio, ou própria imaginação estivesse dialogando consigo.”

Diálogo entre Simão e Mariana, quando a procura dissuadir a não o acompanhar para o degredo e onde explicita o afecto entre ambos “- Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte àquela desgraçada senhora? /- E dai? Quem lhe diz menos disso? / – Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade. /- Eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?! /- Nada me pediu, Mariana; mas obriga-me tanto, que me faz mais infeliz / o peso da obrigação. / Mariana não respondeu; chorou./ – E por que chora? – tornou Simão carinhosamente. /- Isso é ingratidão… e eu não mereço que me diga que o faço infeliz. /- Não me compreendeu… Sou infeliz por não poder fazê-la minha mulher.”

Jardim da Cordoaria – Nesta noite, Simão lê a derradeira carta de Teresa. Nove dias depois de febres e delírio, pela manhã, morre Simão Botelho no alto-mar. No mesmo instante que os marujos arremessam o corpo de Simão ao mar, Mariana mergulha e morre também.

Do romance de pouco mais de 200 páginas, fez Manoel de Oliveira um filme com mais de 4 horas de duração, o qual foi dividido em episódios para apresentação na RTP (que subsidiara a produção). O acolhimento foi desastroso, com comentários a roçar o ordinário. E, no entanto, João Bénard da Costa considera-o o filme mais importante de Oliveira…(embora se não saiba quantos mais filmes fará o realizador e JbC já cá não estar para os apreciar)

A história hiper-romântica de Camilo dos amores proibidos de Teresa e Simão e depois da paixão silenciosa de Mariana que tudo abandona para poder servir Simão e minorar-lhe o sofrimento, a dedicação de João da Cruz, a intriga que acaba com a morte de todos os protagonistas. A acção, depois do assassínio de Baltazar, passa-se no Porto, nas margens do Douro, entre a Cadeia da Relação e o Mosteiro de Monchique. Para contar a história ficou Camilo. Os diálogos entre os protagonistas são poucos e muitas vezes mais importantes pelo que não dizem. As lágrimas tão eloquentes como os silêncios.

Mas há abundância de cartas que narram os acontecimentos passados ou anunciam os que se seguem. Manoel de Oliveira fugiu à voz off usual nestas situações e introduziu duas personagens o Delator e a Providência que relatam a acção, substituindo a escrita. Os planos são fixos. O filme atravessa o universo camiliano, traz-lhe as vozes e as sombras. Nenhum outro filme pode ser tão camiliano como este. Excessivo, trágico. Fimar teatro? Mas não é só isso. É filmar como quem escreveu

Amor de Perdição é, simultaneamente e ao mesmo nível, pintura (quadros que nos dão a imagem visual que o livro não pode dar) teatro (acção dramática, conduzida pelos diálogos) e narração romanesca (pela sucessão temporal desses quadros e dessa acção e pelo encadeamento entre eles). Mas como o olhar da câmara é o olhar que tudo comanda (comanda, até, na sequência fulcral — a do assassinato de Baltazar — a repetição da acção, para reforçar a instância fatal que a partir dela se instaura), como é aos movimentos ou fixidez da câmara ou dos personagens que é confiado o movimento radical, pintura, teatro e romance subsomem-se na totalidade do cinema, única arte capaz de assim as transfigurar e de assim as elevar à síntese total…”

Lamego“Nunca mais, depois deste filme, o cinema pôde ser o mesmo, quer nas suas relações com as outras artes, quer na significação que a si próprio se atribuiu e por si próprio alcançou.” (JB da Costa/Os filmes lá de casa)

Catedral de Lamego

Régua Corre, caudal sagrado,/Na dura gratidão dos homens e dos montes!/Vem de longe e vai longe a tua inquietação…/Corre, magoado,/De cachão em/cachão,/A refractar olímpicos socalcos/De doçura/Quente./E deixa na paisagem calcinada/A imagem desenhada/Dum verso de Frescura/Penitente” (Miguel Torga).

RéguaQuando fui abordado para falar do homem duriense no encerramento desta feira, fiquei indeciso. Tudo o que em mim há de esquivo, de informal e de desencantado mandava-me recusar. Outras razões ainda mais profundas, porém, teimavam que sim, que aceitasse o convite. O tema corria-me nas veias…

Foz CôaE não é impunentemente que se faz orelhas moucas aos argumentos do sangue. Filho, neto, bisneto e tetraneto de obscuros cavadores, carreiros e almocreves, que séculos a fio saibraram, sulcaram e palmilharam as encostas do Doiro, criado a ouvir a crónica deles e a de quantos os acompanhavam na via-sacra – e Deus sabe até que ponto ela era dolorosa -, atento, por conta própria, a um destino que sempre me pareceu exemplar, no seu dramatismo, como poderia eu escusar-me a depor no tribunal severo do presente, pondo no meu testemunho letrado, o único a que me obriguei na vida, todo o calor e sinceridade de que sou capaz?”…

…”Não tinha na mão nenhum lenitivo para suavizar o sofrimento que as palavras só podem denunciar, nenhum epítote para acrescentar à nobreza de um nome que se basta na sua grafia”…

…”Herói modesto, despretencioso e proteico que, mal comido, mal bebido e mal agasalhado, aos rigores de um inverno de gelo e de um verão de fornalha, surriba, planta, enxerta, tesoura, poda, ergue, enxofra, sulfata, vindima, pisa e trasfega num afã sem descanso“…

…”Protagonista de um drama milenário, que já nos tempos de Roma representava, o seu palco é largo e majestoso. Basta olhá-lo do miradoiro de S. Brás, de S. Domingos da Queimada, de S. Leonardo de Galafura, do alto da quinta das Carvalhas, de Vilarinho de Cotas ou de S. Salvador do Mundo…

S. Leonardo da Galafura – …Só quem não tiver sensibilidade e humanidade dentro de si é que ficará indiferente à beleza de panoramas sem comparação possível e à grandeza de um esforço incansável e criativo que os cultiva e arquitecta jardins suspensos na mais agreste paisagem de Portugal” (Miguel Torga in Diário XIII)

Armamar

Vila Real (Mateus)

Alto Douro…”Pôr toda a parte a água sussurrante, a água fecundante… espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, de entre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava pôr uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados… Todo um cabeço pôr vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes.,,,”

…”Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando: – ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, pôr cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espelhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas…” (Eça de Queiroz in A cidade e as serras)

Tamega/Douro

Carrazeda de Ansiães

MarãoVenham como vierem, cobertos dos favores do mundo ou simples mortais, procedo sempre da mesma maneira. Mostro-lhes o que nunca viram: panoramas que são autênticas obras-primas da ecúmena, onde a geografia física e a geografia humana se complementam.”…

Marão/Alto do Velão…”A ossatura telúrica e a epiderme elaborada. O natural e o cultural em conjugação perfeita. E fico desobrigado. O resto é da conta deles. Se prestam, vão mais ricos. Dilataram o espírito à proporção dos horizontes. Se não prestam, vão mais pobres. Mediram-se com a grandeza e perderam” (Miguel Torga in Diário XIII)

Espigueriro e Castelo do Lindoso

Vinhas depois das vindimas.

Tabuaço

À proa dum navio de penedos,/A navegar num doce mar de mosto,/Capitão no seu posto/De comando,/S. Leonardo vai sulcando/As ondas/Da eternidade,/Sem pressa de chegar ao seu destino./Ancorado e feliz no cais humano,/É num antecipado desengano/Que ruma em direcção ao cais divino.//Lá não terá socalcos/Nem vinhedos/Na menina dos olhos/deslumbrados;/Doiros desaguados/Serão charcos de luz/Envelhecida;/Rasos, todos os montes/Deixarão prolongar os horizontes/Até onde se/extinga a cor da vida.//Por isso, é devagar que se aproxima/Da bem-aventurança./É lentamente que o rabelo avança/Debaixo dos seus pés de marinheiro./E cada hora a mais que gasta no caminho/É um sorvo a mais/de cheiro/A terra e a rosmaninho” (Miguel Torga, in Diário IX).

S. Martinho da Anta

Cai o sol nas ramadas./O sol, esse Van Gogh desumano…/E telas amarelas,calcinadas,/Fremem nos olhos como um desengano.//A cor da vida foi além de mais!/Lume e poeira, sem que o verde possa/Refrescar os craveiros e os tendais/De uma paisagem mais secreta e nossa.//Apenas uma fímbria namorada,/Vermelha e roxa, se desenha ao fundo/O mosto de uma eterna madrugada/Que vem do incêndio refrescar o mundo. “

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Sintra, o musgo e as sombras

Sintra conserva ruínas e outros vestígios com origem desde a Pré-história. A época de maior riqueza situa-se no final do séc. XVIII e durante todo o século seguinte. Aristocratas cultos, escritores e músicos, portugueses e estrangeiros, aqui se instalaram, seduzidos pelo ambiente mágico das paisagens, e construíram palácios, jardins, chalets, quintas, naquilo que hoje é considerado Património Cultural da Humanidade. Chamam-lhe Vila Romântica. Realmente, a zona histórica não só pelos seus edifícios como pelas paisagens em que estão inseridos são gatilhos para emoções e sonhos – o imaginário romântico.

Os monumentos foram edificados em estilos diferentes e apresentam em comum a recriação de estilos históricos. Elementos neo-góticos, neo-manuelinos, mas também hindus, maometanos, árabes, deram origem a conjuntos exóticos e diversificados. No Palácio da Regaleira o estilo neo-manuelino evoca a grandeza da Pátria, nomeadamente os Descobrimentos marítimos, mas em numerosos recantos, torreões, escadarias descendo às profundezas e em numerosas criptas estão presentes símbolos do Além, do oculto, do transcendente, mesmo de inspiração cristã. Em Monserrate existem elementos de raiz gótica nas fachadas, portas e janelas, coexistindo com cúpulas, cornijas, minaretes, arcos e azulejos de matrizes orientais.

Talvez o Outono seja a estação rainha em Sintra, não porque dure mais, mas apenas porque representa a despedida do Verão caduco que deixa o chão pejado de folhas e ao mesmo tempo antecipa a desolação do frio. O Outono faz o balanço estival e o anúncio do Inverno. Áparte isso, acrescenta melancolia aos muros e às pessoas. Ao deambular pelos caminhos estreitos, a luz côa-se entre as folhas das árvores e desenha sombras sobre o musgo que certifica a humidade.

As árvores ligam as pessoas aos lugares. Algumas pela sua imponência são consideradas de interesse público, como é o caso dum sobreiro defronte do Palácio da Regaleira ou de um castanheiro com mais de quinhentos anos, próximo do centro da Vila. Mas toda a paisagem de Sintra é feita de vegetação luxuriante. Plátanos, tílias, faias, acácias, carvalhos, cedros, eucaliptos estão espalhados pela região.

Têm sido expeditamente amputados ou mesmo abatidos plátanos no Largo de S. Pedro ou em Colares, supostamente por razões fitossanitárias. O resultado das podas são espantalhos envergonhados, donde até os pássaros desertam, não por pavor, mas apenas porque as árvores, simples cotos grotescos, deixam de ser albergue. É preciso que todas as intervenções tenham a supervisão de especialistas em arboricultura. As árvores como os edifícios são património cultural e artístico.

Nos miradouros a luz e a imperceptível aragem traçam pinceladas de verdes e castanhos, que se modificam a cada momento, telas de Degas ou Monet, impressionismo dos nossos olhos, nas emoções duma tarde em que o sol, de repente, se desvenda.
Seguimos na estrada que vai de Sintra, direitos a Colares. Os plátanos de ambos os lados esboçam um túnel dourado. Os carris dos eléctricos, meio cobertos pelas folhas outonais, seguem paralelos ao asfalto.

Mesmo no Verão, o sol nem sempre dissipa o nevoeiro. As águas são frias. Na Praia das Maçãs há famílias estacionadas sob toldos coloridos, que o banheiro aluga à época. Nos restaurantes os lavagantes de pinças em riste capitaneiam esquadrões de sapateiras, ostras, navalheiras; no interior, as lagostas aguardam a transferência do aquário para o tacho.

No café da Várzea de Colares lê-se o jornal, cavaqueia-se, há travesseiros e queijadas. Ao lado passa um riacho, nascido no Lourel, a caminho da foz próxima e baptizado Rio das Maçãs. Da margem atiram comida a um bando de patos, talvez na expectativa duma improvável metamorfose em cisnes. Mas, eis que Lohengrin voga no Rio das Maçãs! Os castelos da Baviera estão próximos.

FM

Sintra e o seu Palácio da Vila, numa aguarela de Roque Gameiro. O Palácio com as suas duas chaminés é o ex-libris da Vila.

“Já a vista, pouco e pouco, se desterra /Daqueles pátrios montes, que ficavam; /Ficava o caro Tejo e a fresca serra de Sintra, /e nela os olhos se alongavam /Ficava-nos também na amada terra /O coração, que as mágoas lá deixavam; /E, já despois que toda se escondeu, /Não vimos mais, enfim, que mar e céu.” Camões/Lusíadas (Canto V)

Vista da Peninha. Num dia de boa visibilidade observa-se desde o Cabo Espichel até às Berlengas. É uma vista obtida de um palacete construído no início do séc. passado, próximo de uma ermida, por sua vez eregida sobre as ruínas de S. Saturnino.

Sintra é uma vila que apesar da sua extensão e demografia, se tem recusado à categoria de cidade. É sede de um município que ocupa uma área de 317 km² com 445 872 habitantes (2008), subdividido em 20 freguesias.

Entre elas incui-se o Centro Histórico daquilo que é considerado a vila romântica. Palácios, castelos, quintas, jardins, chalets, fazem parte do Centro Histórico, classificado em 1995 pela UNESCO como Património da Humanidade na categoria de Paisagem Cultural

Deste Centro Histórico fazem parte a designada Vila Velha, a Quinta da Regaleira, o Palácio Nacional de Sintra, o Palácio Nacional da Pena e o Palácio de Seteais

A Vila Velha foi construída numa zona de grande declive, no sopé da Serra, entre o Palácio Nacional e a própria Serra, cujo coração é a praça adjacente ao Palácio, donde irradiam as vias para o restante Centro Histórico. Esplanadas, pastelarias, antiquários envolvem a Praça. Pequenos autocarros conduzem os visitantes aos locais turísticos.

Os edifícios obedecem à mesma volumetria, o que dá à zona um aspecto harmonioso. Apesar dos cartazes de publicidade e toldos que nada têm a ver com o estilo arquitectónico dos imóveis, o conjunto é equilibrado.

À medida que nos afastamos da praça e caminhamos em direção à periferia, vão surgindo habitações mais espaçosas, resguardadas por muros cobertos de musgo e fetos e algum arvoredo.

“Sintra é um aquário, Joana, o fundo do mar povoado de casas antigas imersas na ondulação do nevoeiro, em que peixes côr-de-rosa e azuis flutuam por entre as cómodas, os retratos, o perfil geométrico dos armários, balindo suavemente como um rebanho de ovelhas, fusiformas, de longas pestanas trémulas e atentas…

…A luz não vem do sol mas das árvores, oblíqua e imóvel, uma claridade que se diria nascer dos nossos próprios ossos, dos nossos próprios dentes, dos nossos cabelos, dos nossos gestos, das palavras que dizemos, e se espelha em círculos concêntricos no ar, rodopiando e vibrando, à maneira de uma folha enorme” Antonio Lobo Antunes/ Conhecimento do inferno

Casa do Cipreste, da autoria de Raul Lino (1879-1974). Referência incontornável da arquitectura portuguesa, projectou vários edifícios notáveis em Sintra. A influência que a paisagem exerceu na sua obra, bem como a importância do seu estilo, nem uma nem outra podem ser omitidas. Defendia que a arte e a arquitectura são um produto do homem e para os homens, com história, genealogia, características e funcionalidades próprias do espaço e do tempo em que se inserem e da comunidade para que são produzidas. Deixou importante produção teórica

“A paisagem de Sintra, quer pela sua estrutura, quer pelo seu significado, representa claramente o arquétipo da paisagem romântica. É um lugar onde se sentem intensamente as forças naturais, aparecendo como um terreno descontínuo, de relevo muito variado, onde o céu nunca se vê num hemisfério total, com grandes variações de luz e sombra e uma vegetação que funciona como diferentes filtros do olhar.”…

…”Ao mesmo tempo Sintra, está recheada de monumentos históricos, dados arqueológicos e ruínas. Tudo isto lhe confere uma aura de maravilhoso encantamento e de mistério que vai expressivamente ao encontro do que de mais íntimo e e constante caracterizava o espírito do arquitecto (Raúl Lino)” Irene Ribeiro

As ruas são estreitas e quase sem bermas. A atmosfera é húmida, adensada pelas sombras das árvores, pelas neblinas frequentes. Os contrastes verdes e castanhos constituem cenários mágicos

Porém, quando nos afastamos da Vila Velha, deparamos com edifícios degradados a requererem urgente reabilitação. Não se fala de ruínas, mas de edifícios deixados ao abandono, seja por incúria dos proprietários ou entraves judiciais.

Palácio da Vila: vista da entrada principal.

O Palácio da Vila começou a ser construído no século XV, com traça de autor desconhecido. Apresenta características de arquitectura medieval, gótica, manuelina, renascentista e romântica. É composto por um conjunto de corpos aparentemente separados, mas que fazem parte de um todo articulado entre si, através de corredores, escadas, pátios e galerias.

Até ao final da monarquia foi utilizado pela Família Real

Janela manuelina. A D. Manuel I se devem obras importantes no Palácio da Vila

Sala dos Brasões no Palácio Nacional de Sintra

Torre da Câmara Municipal. Este é outro edifício emblemático.

Na Estefânia de Sintra

O Palácio da Pena foi construído no Séc. XIX, cerca de 30 anos antes do célebre Castelo de Neuschwanstein, este edificado por Ludwig da Baviera e inspirado na obra de Wagner. O Palácio português é considerado o 1º Palácio Romântico da Europa e uma das sete maravilhas de Portugal

O Palácio não foi construído de raiz. No Terramoto de 1755, um velho mosteiro erigido no tempo de D. Manuel que aí existia, caiu em ruínas, à excepção da Capela. D. Fernando de Saxe Coburgo-Gota, casado com a Rainha Maria II., era um homem culto e erudito, apaixonado pela paisagem da serra de Sintra, e em 1838 mandou realizar obras de reconstrução do mosteiro.

Dois anos depois, D. Fernando decidiu ampliar o Convento, de modo a transformá-lo em castelo, que pudesse albergar a família real. O projeto foi encomendado a Guilherme von Eschwege, mineralogista prussiano e amador de arquitetura. Homem viajado fizera viagens de estudo em Inglaterra e França, Argélia e Espanha (Córdova, Sevilha e Granada). Não é, pois de estranhar, a profusão de elementos decorativos de inspiração árabe.

Mas, o próprio Rei interveio diretamente no projeto, introduzindo arcos ogivais e torres de inspiração medieval. Na fachada norte foi incluída uma imitação do Capítulo do Convento de Cristo em Tomar, desenhada por ele-próprio.

Janela do Tritão, que encabeça o pórtico do mesmo nome. Tritão: meio-peixe, meio-homem, saindo de uma concha com a cabeça coberta por cabelos que se transformam num tronco de videira. Foi desenhado por D. Fernando como um «Pórtico allegórico da creação do mundo»

D. Fernando II sempre se interessou mais pelas manifestações artísticas do que pela política, o que lhe valeu o cognome de Rei-Artista. Por diversas ocasiões foi regente do reino, nos impedimentos da Rainha. Casou, após a morte de D.Maria II, com uma cantora de ópera e mãe solteira, a quem deixou como herança o Palácio da Pena.

Depois da morte de D. Fernando verificou-se uma disputa pela posse do palácio – que se fora propriedade do monarca,tinha sido considerado monumento nacional. Passado a património do Estado tornou-se local de veraneio da família real, até ao fim da Monarquia.

Foi também D. Fernando quem mandou plantar o parque que circunda o castelo. Carvalhos, pinheiros mansos, ciprestes, acácias e muitas outras espécies avivam-lhe o caráter romântico. Palácio e parque constituem um todo magnífico no cume da serra. Terá sido dos seus aposentos que a rainha D. Amélia, viúva de D. Carlos, assistiu aos desenvolvimentos militares em Lisboa, que conduziram à proclamação da República

O Palácio patenteia grande profusão de estilos que recriam gótico, manuelino, islâmico e outras influencias orientais. Esta diversidade estilística tem a ver com a mentalidade da época de fascínio pelo exotismo.

“Eu creio que Sintra pertence áquela classe de valores míticos de primeira grandeza do nosso firmamento espiritual, cujo culto é fervorosamente exercido por uma pequeníssima confraria de apaixonados…” (Raúl Lino)

Este hotel de “fachada banal” como o definiu Eça, é um local que acolheu outros nomes grandes da literatura, como Alexandre Herculano, Camilo Castelo-Branco, Ramalho Ortigão, além de estrangeiros como Lord Byron. Procurariam aqui, na proximidade das sombras, do silêncio, dos cenários deslumbrantes, as condições para que a escrita melhor fluísse.

“Sempre gostara muito de Sintra! Logo ao entrar, os arvoredos escuros e murmurosos do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz!” Eça de Queiroz / Primo Basílio

“Chegaram às primeiras casas de Sintra, havia lá verduras na estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da Serra./ E a passo o break foi penetrando sob as árvores do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e embaladora sussurração de ramagens, e como o difuso e vago murmúrio de águas correntes…

…Os muros estavam cobertos de heras e musgos: através da folhagem faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e aveludado circulava rescendendo às verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, pássaros chilreavam de leve; e naquele simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já sem ver, a religiosa solenidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cai das penedias e o repouso fidalgo das quintas de verão” Eça de Queiroz /Os Maias

Palácio de Seteais. Começou a ser construído como casa de habitação no final do Séc. XVIII, por iniciativa de Daniel Gildemeester, cônsul da Holanda em Portugal, nuns terrenos de «ginjais e serrados» que possuiam uma vista paradisíaca. Na época apenas foi edificada a ala esquerda e algumas dependências anexas, do que é hoje o Palácio de Seteais.

Em 1800, a Quinta de Seteais foi adquirida pelo Marquês de Marialva, o qual acrescentou uma nova ala de aposentos e uniu os dois corpos por um magnífico arco triunfal. Este evoca a visita de D. João VI, então Príncipe Regente, e de D Carlota Joaquina. É um edifício imponente em estilo neo-clássico

Pormenor do Jardim de buxo do Palácio

Das lendas associadas a Seteais duas delas remontam ao tempo de Afonso Henriques, à conquista de Lisboa aos mouros e à rendição de Sintra. A palavra Seteais resultaria dos sete gemidos de uma bela princesa moura, sobre a qual pendia a maldição de morrer no dia em que deixasse escapar os fatídicos sete ais. As outras personagens são um cavaleiro cristão D. Mendo e a velha ama da princesa. As circunstancias são diferentes, mas em ambas, na ausência do cavaleiro, os mouros que voltavam (ou o antigo noivo da princesa, a qual se apaixonara pelo cavaleiro cristão) já quando a princesa suspirara várias vezes, perante a adaga que lhe assomava ao pescoço, expirou, ao soltar o sétimo ai.

Outra lenda, relatada por Camilo Castelo-Branco, tem a ver com o armistício assinado por Junot, depois da 1ª invasão e das batalhas de Roliça e Vimeiro, perdidas pelos franceses. Segundo uns, a chamada Convenção de Sintra teria sido firmada em Queluz, mas outros indicam o Palácio do Marquês de Marialva, no edifício que nos ocupa.

Dadas as características do terreno, as vozes ecoavam repetidamente e, depois da assinatura, o vozear dos oficiais em Hurras ou ais, originara os sete…ais. (Mas, a quem pertenceriam os ais? Possivelmente aos portugueses, impedidos de participar na negociação entre os plenipotenciários ingleses e franceses, que permitiu a estes últimos, depois de militarmente derrotados pelas forças anglo-lusas, regressar a França com um enorme espólio de bens e obras valiosas roubadas, sob a protecção e transporte das forças inglesas!… A Convenção legalizou o saque praticado pelos invasores.) 

O Castelo dos Mouros foi erguido sobre um maciço rochoso num dos cumes da serra. Do alto das suas muralhas desfruta-se uma vista privilegiada com o Oceano Atlântico em fundo. A sua fundação deverá ter ocorrido no Séc IX, durante a ocupação muçulmana da Península Ibérica. Julga-se não ter sido palco de qualquer batalha, pois tanto cristãos como muçulmanos se rendiam, logo que Lisboa era conquistada

O destino de Sintra esteve, pois, sempre associado ao de Lisboa. Após várias vicissitudes, o castelo foi tomado pelas forças de D. Afonso Henriques em 1147. O rei mandou proceder a reparações nas suas defesas e dotou-a de um templo, a Igreja de São Pedro de Penaferrim. Idênticas preocupações militares tiveram os seus sucessores, muito embora o Palácio Nacional de Sintra, passasse a desempenhar papel preponderante, relegando o castelo para lugar subalterno.

Este entrou, assim, em decadência, principalmente após a expulsão dos judeus do país, então seus únicos habitantes, ficando o castelo desabitado. A queda de um raio causou-lhe danos à Torre de Menagem (1636), os quais se agravaram como consequência do terramoto de 1755.

As ruínas do Convento dos Capuchos, originalmente chamado Convento da Santa Cruz, são outro ponto de interesse histórico na serra de Sintra. O convento foi fundado por D. Álvaro de Castro, filho do vice-rei da Índia D. João de Castro, no ano de 1560, que tê-lo-á mandado construir para satisfazer um voto de seu pai, que não viveu o suficiente para o cumprir.

Foi habitado por frades franciscanos. Ocupa uma área reduzida e os seus habitantes viviam em ambiente de grande desapego e pobreza. Conta-se que D.Filipe I de Portugal ao visitar o convento, em 1581, terá comentado : “De todos os meus reinos, há dois lugares que muito estimo, o Escorial por tão rico e o Convento de Santa Cruz por tão pobre”. A abolição das Ordens Monásticas, determinada pela vitória dos liberais, obrigou os franciscanos a abandonar o convento. Este encontra-se hoje em avançado estado de degradação

“Praia das Maçãs 21.Setembro.1981. – A Regina e eu fomos depois do almoço à Praia das Maçãs tomar o café e olhar o mar. Praia quase deserta A armação de algumas barracas agrupadas a um lado. Os panos listrados de azul já arrumados. Um ou outro banhista ainda despido por exemplarismo ou falta de resignação. O mar com uma cor já fria de inverno e muito batido de espuma da ondulação. Sentamo-nos na esplanada do café, ao sol!” Vergílio Ferreira

“A Praia das Maçãs , a seguir, ao Banzão, é um aglomerado de vivendas leprosas empoleiradas sobre o mar furibundo, raivoso de dor de dentes e de azia, a bater em vão contra a muralha como uma porta para sempre fechada…

…Conhecem-se os lojistas pelas alcunhas e os veraneantes pelos roupões que ano após ano se desbotam do mesmo modo que os olhos envelhecem, e adejam de café em café, no nevooeiro perpétuo, numa leveza transida de aparições.” Antonio Lobo Antunes/ Conhecimento do Inferno…

O eléctrico de Colares à Praia das Maças. As folhas testemunham o Outono

Os vinhos de Colares correm risco de desaparecer. A grande pressão imobiliária reduz as zonas de cultivo. Os solos são de areia e a casta plantada –Ramisco precisa de terreno argiloso, que se encontra a alguns metros de profundidade. É preciso escavar e, por outro lado, proteger as vinhas do vento atlântico. É um vinho que dá muito trabalho, é caro e de baixa produtividade

“Depois de Colares os adeuses tornavam-se impossíveis por culpa do nevoeiro: percebiam-se a custo telhados de chalés e cumes vagos de pinheiros uma bruma desfocada, o mar invisível chiava um mecanismo ferrugento de berço, alcançávamos ao anoitecer uma vivenda desconhecida e húmida, cercada de arbustos horrivelmente tristes que as ondas se esqueceram de levar, adormecíamos em cobertores molhados”…

“…a ronca do farol a baralhar-nos os sonhos, e no dia seguinte, às nove da madrugada, a nossa mãe, em roupão, vinha ao convés do jardim observar o nevoeiro com um sobrolho de almirante garantia: -levanta à uma.” António Lobo Antunes /Crónicas

Cabo da Roca “aqui onde a terra se acaba e o mar começa” (Camões) 1.Julho.1979 – Hoje acordámos sob um grande nevoeiro. É raro um nevoeiro cá em cima. Os pinheiros da mata apagam-se dentro da neblina, ouve-se ao longe, no Cabo da Roca, a “ronca” de aviso à navegação. Não há vento, os pinheiros imobilizam-se na névoa como espectros. Silêncio. Nem uma ave se ouve. E irresistivelmente lembro- me de um mundo nos começos da génese, antes de um ser vivo surgir à sua face. E então, mais evidente, assola-me o absurdo de um universo sem razão, sem sequer um ser pensante que o fizesse existir.” Vergílio Ferreira

Oh! Sintra! Oh saudosíssimo retiro/ Onde se esquecem mágoas, onde folga/ De se olvidar no seio à natureza/ Pensamentos que embala adormecido /O sussurro das folhas c´o murmúrio/ Das despenhadas linfas misturado (Almeida Garrett)

O Palácio de Monserrate na sua traça actual foi projectado pelo Arquitecto James Knowles e construído em 1858, por encomenda de um rico comerciante e colecionador de arte britânico (Sir Francis Cook), para residência de Verão. Erguido sobre as ruínas duma mansão neo-gótica edificada por outro comerciante inglês, Gerard de Visme. Também aqui viveu William Beckford que realizou obras no palácio.

Interior do Palácio de Monserrate, presentemente em obras de restauro

Ruínas da Capela do Parque de Monserrate. Mais de duas mil e quinhentas espécies de plantas, provenientes dos cinco continentes encontram-se distribuídas pela área do parque, por entre lagos, pequenas cascatas, ruínas, caminhos sinuosos, recantos que proporcionam cenários deslumbrantes.

Plantas vulgares em Portugal, como medronheiros ou sobreiros, contrastam com yucas e palmeiras evocando o México (existe mesmo um jardim com esse nome) ou redodendros e bambus, próprios do Japão.

O resultado é um espaço exótico, fascinante, próprio da concepção romântica dos jardins.

Alfredo Roque Gameiro, talvez o mais importante aguarelista português, viveu entre 1883 a 1886. Aluno de Bordalo Pinheiro, estudou em Leipzig, ganhou a medalha de ouro da Exposição Universal de 1900, em Paris. No que se refere a Sintra, destaque para paisagens da Praia das Maçãs, Praia Grande, Colares, Quinta de Monserrate, Almoçageme (na figura) e o Palácio da Vila.

As Azenhas do Mar, aguarela de Helena Roque Gameiro (1895-1984), filha de Alfredo

Cinco Artistas em Sintra, é um óleo sobre tela da autoria de João Cristino da Silva, realizado propositadamente para a Exposição Universal de 1855. Foi comprada pelo Rei D. Fernando II e actualmente faz parte do espólio do Museu do Chiado. No quadro o pintor representava-se a si próprio e a amigos, os pintores José Rodrigues, Francisco Metrass e Tomás da Anunciação e o escultor Victor Bastos, que com ele se batiam pela introdução de novas práticas no ensino da Academia de Belas-Artes

Azenhas do Mar 3.Setembro.1982 – Mas de toda a nossa tarde na casa das Azenhas sobre o mar, foi o mar que uma vez mais me deslumbrou de fascinação. Havia sol, as águas alargavam-se até a um horizonte de neblina, as ondas quebravam num rolar manso e dormente sobre a breve areia da praia. Cerro os olhos ainda agora, ao cintilar da planura, ao largo rumor marinho, todo aberto ao seu aceno de infinitude” Vergílio Ferreira

A Quinta da Regaleira é um lugar mágico. Nela coexistem edifícios de diversos estilos, nomeadamente gótico, manuelino e renascença. Entre eles, particular destaque para o Palácio. O conjunto aparece plantado no meio de vegetação luxuriante.

O Palácio foi mandado construir no início do Séc. XX por António Augusto Carvalho Monteiro, homem rico e culto que procurou naquele espaço glorificar a história de Portugal e, simultaneamente, criar um ambiente esotérico. Os edifícios são de autoria do arquitecto-cenógrafo italiano Luigi Manini.

O resultado foi este cenário deslumbrante de mistério, exotismo e serenidade, propícios a uma certa espiritualidade. A diversidade da quinta da Regaleira é enriquecida com vastíssima iconografia referente aos reis portugueses nos frisos, como também com o imaginário maçónico, no teto pintado da Sala das Virtudes, onde se encontram as personificações da Força, da Beleza e da Sabedoria.

Muitos símbolos evocam o divino, o transcendente e o invisível. A passagem da dimensão terrena à divina por meio de rituais de carácter mágico, nos quais o neófito é iniciado e aceita a filiação no grupo de companheiros.

O poço. Acredita-se que a Regaleira tivesse sido sede de rituais de iniciação maçónica. O Palácio está ligado por várias galerias ou túneis a outros pontos da quinta. O acesso ao fundo do poço é feito por uma escadaria em espiral, sustentada por colunas esculpidas. A escadaria é constituída por nove patamares separados por lanços de 15 degraus cada um.

Mas não são só os símbolos maçónicos que estão patentes na Regaleira. A cruz templária no fundo do poço iniciático, a cruz da Ordem de Cristo bem como todas as outras cruzes dispostas na Capela, testemunham a influência do espírito do templarismo.

Há ainda, na Regaleira referências à Ordem Rosa-Cruz (movimento que propunha reformas sociais e religiosas e exaltava a humildade, a justiça, a verdade e a castidade, utilizando os símbolos conjuntos da rosa e da cruz)

Também a mitologia grega está representada, como é o caso de A gruta de Leda, (a Rainha de Esparta, esposa de Tíndaro foi seduzida por Zeus que se transformara em cisne…)

“Sintra é em tudo excepcional – no clima, na paisagem, na História, nos monumentos. Portanto, a ambiência daquelas serras, daqueles vales é muito particular; a luz é doce, cor de cidra, cintilante de suaves gorgeios de claridade, desde que o Sol se levanta até ao desmaiar das ave-marias; a finura da sua atmosfera, nascida – como Afrodite . das ondas do mar, côa-se pelos bosques de ericácias e sai perfumada com aromas de mato que floresce nas encostas, sabe a murtinhos e ao medroso capitoso…”

“…E os frequentes nevoeiros, tão caluniados e detestados, são como dobras de renda branca a roçar pelo colo dos montes, a enredar-se nas fidalgas cameleiras de jardins decadentes” (Raúl Lino)

“Sintra é o mais belo adeus da Europa quando enfim encontra o mar. Camões o soube quando os seus navegadores a fixaram como a última memória da terra, antes de não verem mais que “mar e céu”. E no entanto, ou por isso, o espaço que ela nos abre não é o da infinitude mas o do que a limita a um envolvimento de repouso. Alguém a trouxe de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma serenidade de amar. Ela é assim o refúgio de nós próprios e de todo o excesso que nos agride ou ameaça” Vergílio Ferreira

Recomendados:

http://www.cm-sintra.pt

http://pt.wikipedia.org/wiki/Sintra

http://www.apha.pt/boletim/boletim3/pdf/IreneRibeiro.pdf

http://riodasmacas.blogspot.com/2010/01/arvores-de-sintra_18.html

Veja os vídeos:

 

 

 

 

 

Eça os fez, nós os juntámos

Eça fez uma crítica impiedosa à sociedade portuguesa do final do séc. XIX. Em Uma Campanha Alegre estão reunidos textos que, na sua maioria, mantêm toda a actualidade. Aí, passa à lupa (ou ao monóculo…) deputados, membros do Governo, padres, jornalistas…A decadência da vida portuguesa – pessoas e instituições, sem excepção, são magistralmente satirizados. Admirável o facto de a poder ter publicado – em forma de folhetim, com plena liberdade.
Porém, foi na ficção que Eça melhor denunciou vícios de carácter, não só na sociedade de Lisboa, como da província – mesquinhez, vaidade, hipocrisia, cobardia e tantos outros. Um catálogo de misérias humanas. Ele não foi só analista, tinha também uma faceta moralista: ao denunciar e ridicularizar os defeitos aguardava que tal permitisse corrigir os portadores.
São muitas as figuras que simbolizam esses defeitos, os quais não são só dessa época. Com diferentes roupagens e exuberância, existiram desde sempre, fazem parte da natureza humana. A genialidade da escrita de Eça fez que algumas das suas personagens fossem mesmo adoptadas como adjectivos que qualificam características precisas – um discurso “acaciano” é uma charla gongórica, redundante, vazia…
Cada figura é minuciosamente recortada. À medida que a narrativa avança os traços da sua personalidade e o seu aspecto físico tornam-se nítidos. São verdadeiros retratos, muitas vezes de gente grotesca e desprezível. Entre as mais hilariantes, talvez a figura de Teodorico Raposo de A relíquia, velho estudante coimbrão, amigo de estúrdia e mulheres, que no regresso a Lisboa se vê obrigado a fazer o papel de devoto papa-missas para tentar conquistar a confiança da tia…Engendra um esquema para lhe herdar a fortuna, ela que é uma beata fanática e desconfiada. Parte para a Terra Santa em peregrinação na mira de uma relíquia do Santo Sepulcro, mas o azar fá-lo trocar a coroa de espinhos pela camisa de noite de uma meretriz com quem se divertira em Alexandria…
A própria titi, D. Patrocínio das Neves. Alta, “muito seca”, sempre vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito, e um lenço roxo sobre a cabeça a apertar no queixo. Solteira e rica. Implacável, com ódio visceral ao sexo, vive no Campo de Santana, rodeada por padres (seus consultores espirituais),.. Morre, pouco depois de ter expulsado o sobrinho de casa, após a troca da “relíquia”. A sua fortuna é repartida por padres e beatas, ficando para Teodorico apenas um óculo. Para ver a fortuna da titi – por um canudo!
Em Os Maias, outra figura exemplar – Palma Cavalão, personagem secundária, que desempenhará um papel fulcral na evolução da trama. Jornalista corrupto, cujo principal atributo seria saber lidar com prostitutas espanholas. É caricatura duma certa imprensa e de certos jornalistas que hoje titulam em letras garrafais escândalos  e vida privada do “jet-set”, “apimentando-os” quanto baste ou promovendo os seus protagonistas, à medida do marketing…“Vil bolinha de matéria pútrida”, assim é descrito Palma Cavalão. Como também “sujeito baixo, gordo, sem pescoço, com a cabeça sobre o prato, babujando uma metade de laranja”. A  pedido de outro crápula (Dâmaso Salcede), escreve uma notícia caluniosa com instruções para fazer divulgar o jornal junto de personalidades importantes. Porém, a troco de cem mil réis denuncia o mandante… Publica folhetins de baixo nível.
Há muitas outras figuras vis na galeria queiroziana, umas mais cínicas, outras mais fingidas, ou gananciosas, gabarolas, cobardes ou simplesmente patéticas. O padre Amaro e o Cónego Dias (de O Crime do Padre Amaro), Basílio e a criada Juliana (em O Primo Basílio), Artur Curvelo (em A Capital), etc. …
Vamos aqui apenas referir Dâmaso Salcede (Os Maias) e o Conselheiro Acácio (O Primo Basílio), retirando excertos da prosa de Eça de Queiroz. Esses textos são ilustrados com caricaturas de artistas de várias gerações, imagens de adaptações teatrais ou para cinema e fotografias actuais de Lisboa (quase todas), relacionadas com as narrativas.
Para concluir inventámos um pequeno folhetim em que estas duas personagens, como que saídas dos respectivos romances, passaram a ter vida própria. Em Lisboa de fim de século e à beira de mudança de regime (não de vícios), frequentando os mesmos locais, acabavam por conhecer-se. E conheciam-se, passavam nas mesmas ruas e falavam-se…


FM e PP

 

Os Maias retratam a vida lisboeta no final do Séc. XIX, num meio entre aristocrata e boémio. O enredo centra-se no envolvimento de Carlos da Maia e Maria Eduarda. Ele, jovem médico, “belo cavaleiro da Renascença”, regressado de Coimbra, onde fizera o Curso, e que vai viver com o avô, que o criara, após o suicídio do pai. Provem de uma família aristocrata. Culto, requintado, corajoso e frontal. Maria Eduarda vem de Paris com uma filha pequena e um brasileiro (Castro Gomes), seu suposto marido e que, afinal, não o era. “Divina”, doce, com grande sentido de dignidade. Apaixonam-se, ele aluga-lhe uma casa nos Olivais (A Toca). As peripécias são muitas até se descobrir que Maria Eduarda era, afinal, a irmã que a mãe de ambos levara quando abandonara o marido…

Na roda de amigos do Ramalhete (casa do avô, Afonso da Maia) pontificam João da Ega, anarquista excêntrico, cínico e provocador; Alencar, poeta romântico e temperamental; e Crujes, maestro e pianista, “com uma pontinha de génio”.Todos são idealistas e diletantes. A eles junta-se Dâmaso Salcede que vem a sentir-se despeitado pela aproximação entre Carlos e Maria Eduarda, ele que inicialmente fora visto com o casal Castro Gomes e insinuara a proximidade de romance com a mulher… Fanfarrão, presumido, intriguista, invejoso e cobarde. Autor de cartas anónimas para prejudicar Carlos da Maia e mandante de um artigo calunioso publicado em jornal. Instado a retratar-se ou a um duelo, prefere escrever uma carta, desculpando-se com o alcoolismo (de que não sofre)

O Primo Basílio é outra sátira, esta incidindo sobre a média burguesia de Lisboa, na mesma época dos Maias. Relata a história de um casal banal (Jorge e Luísa), em que o marido, engenheiro, tem de viajar para o Alentejo em trabalho. Um primo de Luísa, Basílio Brito, com quem namorara em jovem, regressa de Paris. É um conquistador e acaba por seduzi-la. Porém, o adultério é descoberto pela criada da casa que passa a exercer chantagem. Exigências de dinheiro, inversão de papeis (com a Senhora a servir a criada), a partida do primo para França – o qual se sentia já entediado, vão desesperando Luísa. A morte súbita da criada não resolve as dificuldades pois o marido descobre a traição. Luísa doente, acaba também por morrer.

No círculo de amizades da família destaca-se o Conselheiro Acácio, exemplo de hipocrisia, convencido, enfatuado, formalista, cultivando uma pose grandiloquente. O seu discurso é feito de banalidades, que profere em tom professoral. Ex- Director-Geral, fora nomeado conselheiro por carta régia, agraciado com a Comenda de Cavaleiro da Ordem de Santiago. Na sociedade era um moralista, com declarações a favor da sã moral e dos bons costumes. Vivia secretamente “amigado” com uma criada, que o atraiçoava.

(Ilust. de Bernardo Marques) “- Bom rapaz, este Dâmaso, dizia Alencar, travando de braço de Carlos….É lá muito dos Cohens, muito querido na sociedade. Rapaz de fortuna, filho do velho Silva, o agiota, que esfolou muito teu pai; e a mim também. Mas ele assina Salcede; talvez nome da mãe; ou talvez inventado. Bom rapaz… O pai era um velhaco! Parece que estou a ouvir o Pedro dizer-lhe com o seu ar de fidalgo, que o tinha e do grande: «Silva judeu, dinheiro, e a rodo!»… Outros tempos, meu Carlos, grandes tempos. Tempos de gente!”

“…E no silêncio que se fez, Dâmaso, que desde as informações sobre a rapariga do Ermidinha emudecera, ocupado a observar Carlos com religião, ergueu a voz pausadamente, disse, com um ar de bom senso e de finura: – Se as coisas chegassem a esse ponto, se pusessem assim feias, eu cá, á cautela, ia-me raspando para Paris… Ega pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no lábio sintético de Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português! Raspar-se, pirar-se!… Era assim que d’alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde El-rei nosso Senhor até aos cretinos de secretaria!…”

– Vimos agora lá em baixo – disse Craft indo sentar-se no divã, uma esplêndida mulher, com uma esplêndida cadelinha griffon, e servida por um esplêndido preto! O Sr. Dâmaso Salcede, que não despregava os olhos de Carlos, acudiu logo: Bem sei! Os Castro Gomes…Conheço-os muito…Vim com eles de Bordéus…Uma gente muito chique que vive em Paris. Carlos voltou-se, reparou mais nele, perguntou-lhe, afável e interessando-se – O Sr. Salcede chegou agora de Bordéus?”

~”Então essa senhora brasileira vive aqui?.. – [Dâmaso]Vive lá do outro lado. Estão aqui há quinze dias…Gente chique…E ela é de apetecer, Vossa Excelência reparou? Eu a bordo atirei-me…E ela dava cavaco! Mas tenho andado muito preso desde que cheguei, jantar aqui, soirée acolá, umas aventurazitas…Não tenho podido cá vir, deixei-lhe só bilhetes; mas trago-a debaixo de olho, que ela demora-se…Talvez cá venha amanhã, estou cá agora a sentir umas cócegas…E se me pilho só com ela, zás, ferro-lhe logo um beijo! Que eu cá, não sei se Vossa Excelência é a mesma coisa, mas eu cá, com mulheres, a minha teoria é esta: atracão!”

Vermute? Perguntou-lhe o criado, oferecendo a salva. -Sim, uma gotinha para o apetite. V. Exa. não toma Sr. Maia? Pois eu, assim que posso, é direitinho para Paris! Aquilo é que é! Isto aqui é um chiqueiro…Eu, em não indo lá todos os anos, acredite Vossa Excelência, até começo a andar doente. Aquele Boulevarzinho, hem!…Ai, eu gozo aquilo!…E sei gozar, sei gozar, que eu conheço aquilo a palmo…Tenho até um tio em Paris…

-E que tio! – exclamou Ega, aproximando-se. –Íntimo do Gambetta, tratam-se por tu, até vivem quase juntos…E não é só com o Gambetta; é com o Mac-Mahon, com o Rochefort, com o outro de que me esquece agora o nome, com todos os republicanos, enfim!…É tudo quanto ele queira. Vossa Excelência não o conhece? É um homem de barbas brancas…Era irmão de minha mãe, chamava-se Guimarães. Mas em Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran…”

(Ilust. de Marly Mota) “Logo na manhã seguinte ao jantar do Central, o Sr. Salcede fora ao Ramalhete deixar os seus bilhetes, objectos complicados e vistosos, tendo ao ângulo, numa dobra simulada, o seu retratozinho em fotografia, um capacete com plumas por cima — DÂMASO CÂNDIDO DE SALCEDE, por baixo as suas honras — COMENDADOR DE CRISTO, ao fundo a sua adresse – Rua de S. Domingos, à Lapa; mas esta indicação estava riscada, e ao lado, a tinta azul, esta outra mais aparatosa – GRAND HÔTEL, BOULEVARD DES CAPUCINES, CHAMBRE N.°103.

Em seguida, procurou Carlos no consultório, confiou ao criado outro cartão. Enfim, uma tarde, no Aterro, vendo passar Carlos a pé, correu para ele, pendurou-se dele, conseguiu acompanhá-lo ao Ramalhete. Aí, logo desde o pátio, rompeu em admirações extáticas, como dentro de um museu, lançando, diante dos tapetes, das faianças e dos quadros, a sua grande frase: «Chique a valer!» Carlos levou-o para o fumoir, ele aceitou um charuto; e começou a explicar, de perna traçada, algumas das suas opiniões e alguns dos seus gostos…

…Considerava Lisboa chinfrim, e só estava bem em Paris — sobretudo por causa do género «fêmea» de que em Lisboa se passavam fomes: ainda que nesse ponto a Providência não o tratava mal. Gostava também do bricabraque; mas apanhava-se muita espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo, não lhe pareciam cómodas para a gente se sentar. A leitura entretinha-o, e ninguém o pilhava sem livros à cabeceira da cama; ultimamente andava às voltas com Daudet, que lhe diziam ser muito chique, mas ele achava-o confusote. Em rapaz perdia sempre as noites, até às quatro ou cinco da madrugada, no delírio! Agora não, estava mudado e pacato; enfim, não dizia que de vez em quando não se abandonasse a um excessozinho; mas só em dias duples… E as suas perguntas foram terríveis…

…O Sr. Maia achava chique ter um cab inglês? Qual era mais elegante, assim para um rapaz da sociedade que quisesse ir passar o Verão lá fora, Nice ou Trouville?… Depois ao sair, muito sério, quase comovido, perguntou ao Sr. Maia (se o Sr. Maia não fazia segredo) quem era o seu alfaiate”

“E desde esse dia, não o deixou mais. Se Carlos aparecia no teatro, Dâmaso imediatamente arrancava-se da sua cadeira, às vezes na solenidade de uma bela ária, e pisando os botins dos cavalheiros, amarrotando a compostura das damas, abalava, abria de estalo a claque, vinha-se instalar na frisa, ao lado de Carlos, com a bochecha corada, camélia na casaca, exibindo os botões de punho que eram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entrara casualmente no Grémio, Dâmaso abandonou logo a partida, indiferente à indignação dos parceiros, para se vir colar à ilharga do Maia, oferecer-lhe marrasquino ou charutos, segui-lo de sala em sala como um rafeiro…

…Numa dessas ocasiões, tendo Carlos soltado um trivial gracejo, eis o Dâmaso rompendo em risadas soluçantes, rebolando-se pelos sofás, com as mãos nas ilhargas a gritar que rebentava! Juntaram-se sócios; ele, sufocado, repetia a pilhéria; Carlos fugiu vexado. Chegou a odiá-lo; respondia-lhe só com monossílabos; dava voltas perigosas com o dog-cart, se lhe avistava de longe a bochecha, a coxa roliça. Debalde: Dâmaso Cândido de Salcede filara-o, e para sempre.”

“Depois, um dia, Taveira apareceu no Ramalhete com uma extraordinária história. Na véspera, no Grémio (tinham-lhe contado, ele não presenciara) um sujeito, um Gomes, num grupo onde se comentavam os Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos era um asno! Dâmaso, que estava ao lado, mergulhado na “Ilustração”, levantou-se, muito pálido, declarou que, tendo a honra de ser amigo do Sr. Carlos da Maia, quebrava a cara com a bengala ao Sr. Gomes se ele ousasse balbuciar outra vez esse cavalheiro; e o Sr. Gomes tragou, com os olhos no chão, a afronta, por ser raquítico —e porque era inquilino de Dâmaso e andava muito atrasado na renda. Afonso da Maia achou este feito brilhante; e foi por que desejo seu que Carlos trouxe o Sr. Salcede uma tarde a jantar ao Ramalhete.”

“Este dia pareceu belo a Dâmaso, como se fosse feito de azul e ouro. Mas melhor ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco incomodado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes… Daí datava a sua intimidade: começou a tratar Carlos por você. Depois, nessa semana, revelou aptidões úteis. Foi despachar à Alfândega (Vilaça achava-se no Alentejo) um caixote de roupa para Carlos. Tendo aparecido num momento em que Carlos copiava um artigo para a “Gazeta Médica”, ofereceu a sua boa letra, letra prodigiosa, de uma beleza litográfica; e daí por diante passava horas à banca Carlos, aplicado e vermelho, com a ponta da língua de fora, redondo, copiando apontamentos, transcrições de revistas, materiais para o livro… Tanta dedicação merecia um tu de familiaridade. Carlos deu-lho.”

(Ilust. de Julio de Sousa) – “Dâmaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade inquieta, desde a barba, que começava agora a deixar crescer até à forma dos sapatos. Lançara-se no bricabraque. Trazia sempre o coupé cheio de lixos arqueológicos, ferragens velhas, um bocado de tijolo, a asa rachada de um bule… E se um conhecido, fazia parar, entreabria a portinhola como um ádito de sacrário, exibia a preciosidade:— Que te parece? Chique a valer!… Vou mostrá-la ao Maia. Olha-me isto, hem! Pura Meia Idade, do reinado de XIV. O Carlos vai-se roer de inveja!…

…Nesta intimidade de rosas havia todavia para Dâmaso horas pesadas. Não era divertido assistir em silêncio, do fundo de uma poltrona, às infindáveis discussões de Carlos e de Craft sobre arte e sobre ciência. E, como ele confessou depois, chegara a encavacar um pouco quando o levaram ao laboratório para fazer no seu corpo experiências de electricidade… «Pareciam dois demónios engalfinhados em mim>>, disse ele à senhora condessa de Gouvarinho; «e eu então que embirro com o espiritismo!…»

“— Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, bricabraque, discutimos… Um dia chique! Amanhã tenho uma manhã de trabalho com o Maia… Vamos às colchas.”

(Ilust. de Antonio) “Dâmaso era interminável, torrencial, inundante a falar das “suas conquistas», naquela sólida satisfação em que vivia de todas as mulheres, desgraçadas delas, sofriam a fascinação da sua pessoa e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado na sociedade, com coupé e parelha, todas as meninas tinham para ele um olhar doce. E no demi monde, como ele dizia, «tinha prestígio a valer». Desde moço fora célebre, na capital, por pôr casas a espanholas; a uma dera carruagem ao mês; e este fausto excepcional tornara-o bem depressa o D. João V dos prostíbulos…

(Ilust. brasileira)…Conhecia-se a sua ligação com a viscondessa da Gafanha, uma carcaça esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos os homens válidos do país: ia nos cinquenta anos, quando chegou a vez do Dâmaso — e não era decerto uma delícia ter nos braços aquele esqueleto rangente e lúbrico; mas dizia-se que em nova dormira num leito real, e que augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou Dâmaso, e colou-se-lhe às saias, com uma fidelidade tão sabuja, que a decrépita criatura, farta, enojada já, teve de o enxotar à força e com desfeitas. Depois gozou uma tragédia: uma actriz do Príncipe Real, uma montanha de carne, apaixonada por ele, numa noite de ciúme e de genebra, engoliu uma caixa de fósforos; naturalmente daí a horas estava boa, tendo vomitado abominavelmente sobre o colete de Dâmaso, que chorava ao lado — mas desde então este homem de amor julgou-se fatal! Como ele dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida, quase tremia, tremia verdadeiramente de fitar uma mulher…”

“Esta é boa! — exclamou Dâmaso ao mesmo tempo, com uma palmada na coxa. — Olha quem aqui me aparece! A Susana! A minha Susana! Carlos não despegara os olhos da página.— Ó Carlos — acrescentou ele — fazes favor? Ouve. 0uve esta que é boa. Esta Susana é uma pequena que eu tive em Paris… Um romance! Apaixonou-se por mim, quis-se envenenar o diabo!… Pois diz aqui o Figaro, que debutou nas Folies-Bergères. Fala nela… É boa, hem? E era rapariguita chique… E o Figaro diz que ela teve aventuras, naturalmente sabia o que se passou comigo… Todo o mundo sabia em Paris…, a Susana! Tinha bonitas pernas. E custou-me a ver livre dela— Mulheres! — murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundo da revista. “

…— Passaram-se cenas com esta Susana! — murmurou ele, de um silêncio em que estivera catando películas nos beiços”

(Ilust. de Alberto de Sousa) “A sala de esgrima era uma casa térrea, debaixo dos quartos de Carlos, com janela gradeadas para o jardim, por onde resvalava, através das árvores, uma luz esverdinhada. Em dias enevoados era necessário acender os quatro bicos de gás. Dâmaso seguiu, atrás dos dois, com uma lentidão de rês desconfiada. Aquelas lições, que ele solicitara por amor do chique, iam-se-lhe tornando odiosas. E nessa tarde como sempre, apenas se enchumaçou com o plastrão de anta, se cobriu com a caraça de arame, começou a transpirar, a fazer-se branco. Diante dele Craft de florete na mão, parecia-lhe cruel e bestial, com aqueles seus ombros de Hércules sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferros rasparam. Dâmaso estremeceu todo.”

“Dâmaso largara o Figaro para meter um charuto na boquilha; depois desapertou os últimos botões do colete, deu um puxão à camisa para mostrar melhor a marca que era um S enorme sob uma coroa de conde, e de pálpebra cerrada, com o beiço trombudo, ficou mamando gravemente a boquilha. -Tu estás hoje em beleza, Dâmaso — disse-lhe Carlos, que deixara também a revista e o contemplava com melancolia. Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, à meia cor de carne, e revirando para Carlos o bugalho azulado da órbita: -Eu agora ando bem… Mas, muito blasé. E foi realmente com um ar blasé que se ergueu a ir buscar a uma mesa de jardim, ao lado, onde estavam jornais e charutos, a «Gazeta Ilustrada», «para ver o que ia pela pátria. Apenas lhe deitou os olhos soltou uma exclamação…

“Ora essa! Queria ver, se fosse contigo… É uma besta. É um selvagem. E repetiu mais uma vez a Carlos a história que o magoava. Desde a sua chegada de Bordéus, logo que o Castro Gomes se instalara no Hotel Central, ele fora deixar-lhe bilhetes duas vezes— a última na manhã seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, Sua Excelência não se dignara agradecer a visita! Depois eles tinham partido para o Porto; fora aí que, passeando só na Praça Nova, vendo a parelha de uma caleche desbocada, duas senhoras em gritos, Castro Gomes se lançara ao freio dos cavalos — e, cuspido contra as grades, tinha deslocado um braço. Teve de ficar no Porto, no hotel, cinco semanas. E ele imediatamente (sempre com o olho na mulher) mandara-lhe dois telegramas: um de sentimento, lamentando; outro de interesse, pedindo notícias. Nem a um, nem a outro, o animal respondeu! Não, isso — exclamava Salcede, passeando pelo terraço, e recordando estas injúrias – hei-de-lhe fazer uma desfeita!…Não pensei ainda o quê, mas há-de amargar-lhe…

…Não pensei ainda o quê, mas há-de amargar-lhe…Lá isso, desconsiderações não admito a ninguém. A ninguém! Arredondava o olho, ameaçador. Desde o seu feito no Grémio, quando o raquítico apavorado emudecera diante dele, Dâmaso ia-se tornando feroz. Pela menor coisa falava em “quebrar caras”. -A ninguém! Repetia ele, com puxões ao colete. –Desconsiderações, a ninguém!”

“Apenas o coupé partiu, Carlos, cerrando a vidraça, fez a pergunta que desde a aparição do Dâmaso lhe faiscava nos lábios.— Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse Gomes?…O Dâmaso contou logo tudo, triunfante. Fora tudo equívoco! Ah, as explicações do Castro Gomes tinham sido de um gentleman. Se não, quebrava-lhe a cara. Isso não, desconsiderações, a ninguém! A ninguém! Mas fora assim: os bilhetes que ele lhe deixara conservavam a sua adresse do Grande-Hôtel de Paris. E o Castro Gomes, supondo que ele vivia lá, obedecendo à indicação, mandara para lá os seus cartões, hem? É de estúpido… E a falta de resposta aos telegramas fora culpa de madame, descuido, naquele momento de aflição vendo o marido com o braço escavacado… Ah, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora eram íntimos, estava lá quase sempre… -Enfim, menino, um romance…Mas isto é para mais tarde!”

“Uma tarde [Carlos da Maia e Maria Eduarda] falaram do Dâmaso. Ela achava-o insuportável com a sua petulância, os olhos bugalhudos, as perguntas néscias. Vossa Excelência acha Nice elegante? Vossa Excelência prefere a capela de S. João Baptista a Notre-Dame? — E então a insistência de falar de pessoas que eu não conheço! A senhora condessa de Gouvarinho, e os chás da senhora condessa de Gouvarinho, e a frisa da senhora condessa de Gouvarinho, e a preferência que a senhora condessa Gouvarinho tem por ele… E isto horas! Eu às vezes tinha medo de adormecer…

…Para sacudir logo de entre eles esse nome, [Carlos] começou a falar de. Guimarães, o famoso tio de Dâmaso, o amigo de Gambetta, o influente da República… —0 Dâmaso tem-me dito que Vossa Excelência o conhece muito…Ela ergueu os olhos, com um fugitivo rubor no rosto. — Mr. Guimarães… Sim, conheço muito… Ultimamente menos, mas ele era muito amigo da mamã. E depois de um silêncio, de um curto sorriso, recomeçando a puxar o seu longo fio de lã:— Pobre Guimarães, coitado! A sua influência na República é traduzir notícias dos jornais espanhóis e italianos para o “Rappell”, que disso é que vive… Se é amigo de Gambetta, não sei. Gambetta tem amigos tão extraordinários… Mas o Guimarães, aliás bom homem e homem honrado, é um grotesco, uma espécie de Calino republicano. E tão pobre, coitado! O Dâmaso, que é rico, se tivesse decência, ou o menor sentimento, não o deixava viver assim tão miseravelmente… Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que fala o Dâmaso? Ela escolheu mudamente os ombros.

“Ega tomou então um ar grave. Escolheu lentamente na caixa uma cigarette, abotoou devagar o jaquetão. Tu não tens visto o Dâmaso? -Nunca mais me apareceu — disse Carlos. — Creio está amuado… Eu sempre que o encontro, aceno-lhe de amigavelmente com dois dedos…Devia ser antes com a bengala. O Dâmaso anda aí por toda a parte, falando de ti e dessa senhora, tua amiga… A ti chama-te «pulha», a ela pior ainda. É a velha história; diz que te apresentou, que te meteste de dentro, e como para senhora é uma questão de dinheiro, e tu és o mais rico, ela lhe passou o pé… Vês daí a infamiazinha. E isto tagarelado pelo Grémio, pela Casa Havanesa, com detalhes torpes, envolvendo sempre a questão de dinheiro. Tudo isto é atroz. Trata de lhe pôr cobro. Carlos, muito pálido, disse simplesmente: -Há-de-se fazer justiça.”

Anteontem estava eu a cear no Silva, ele veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e começou logo com umas coisas a teu respeito, umas ameaças… -Ameaças! Que disse ele? -Diz que te dás ares de espadachim, e de valentão, mas hás-de encontrar dentro em pouco quem te ensine… Que se está aí preparando um escândalo monumental… Que se não admirará de te ver brevemente com uma boa bala na cabeça… -Uma bala? -Assim o disse. Tu ris, mas eu é que sei… Eu, se fosse a ti, ia-me ao Dâmaso e dizia-lhe: «Damasozinho, flor, fique avisado que, de ora em diante, cada vez que me suceder uma coisa desagradável, venho aqui e parto-lhe uma costela; tome as suas medidas.”

“Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo falou-lhe logo no Dâmaso . Não tornara a ver essa flor? Pois essa flor andava por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo explicações humildes, cobardes…Terrível, aquele Dâmaso! Tinha figura, interior e natureza de péla! Com quanto mais força se atirava ao chão, mais ele ressaltava para o ar, triunfante… — Em todo o caso é uma rês traiçoeira, e deves ter cautela com ele…Carlos encolheu os ombros, rindo.— Não, não — dizia o Taveira muito sério. — Eu conheço o meu Dâmaso. Quando foi da nossa pega, em casa da Lola Gorda, ele portou-se como um poltrão, mas depois ia-me atrapalhando a vida… É capaz de tudo…”

“Imediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um punhado de libras, que começou a deixar cair em silêncio uma a uma dentro de um prato. E Palma «Cavalão>>, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetão, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monograma de prata sobre uma enorme coroa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeu três papéis sobre a mesa. Ega, que com o monóculo sôfrego, teve um brado de triunfo. Reconhecera a letra do Dâmaso! Carlos examinou os papéis lentamente. Era uma carta do Dâmaso ao Palma, curta e em calão, remetendo o artigo, recomendando-lhe «que o apimentasse». Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo Dâmaso, com entrelinhas. Era a lista, escrita pelo Dâmaso, das pessoas que deviam receber a “Corneta”: vinha lá o Gouvarinho, o ministro do Brasil, D. Maria da Cunha, el-rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, várias autoridades, e a Fancelli prima-dona…

…Palma, no entanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear os olhos aos documentos por cima do ombro de Carlos. — Recolha o bago, amigo Palma! Negócios são negócios e o baguinho está aí a arrefecer!”

“Em resumo, Dâmaso, desdiz-se ou bate-se? Desdizer-me? — tartamudeou o outro, empertigando se, num penoso esforço de dignidade, a tremer todo. — E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou lá homem que me desdiga! -Perfeitamente, então bate-se… Dâmaso cambaleou para trás, desvairado: -Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu cá é a soco. Que venha para cá, não tenho medo dele, arrombo-o… Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados em riste. E queria Carlos ali, para o escavacar! Não lhe faltava mais senão bater-se… E então duelos em Portugal que acabavam sempre por troça!…

…Ega, no entanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoara a sobrecasaca e recolhia os papéis espalhados sobre a Bíblia. Depois, serenamente, fez a última declaração de que fora incumbido. Como o Sr. Dâmaso Salcede recusava retractar-se e rejeitava também uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse, daí por diante, fosse uma rua, fosse um teatro lhe escarraria na face…

… -Escarrar-me! — berrou o outro, lívido, recuando, como se o escarro já viesse no ar. E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor. precipitou-se sobre o Ega, agarrando-lhe as mãos, numa agonia:- Ó João, ó João, tu, que és meu amigo, por quem és livra-me desta entaladela!”

“Exmo. Sr.” Está claro, você dá-lhe ”Excelência” porque é um documento de honra…”Exmo. Senhor – tendo-me Vossa Excelência, por intermédio dos seus amigos João da Ega e Vitorino Cruges, manifestado a indignação que lhe causara um certo artigo da Corneta do Diabo, de que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho declarar francamente a Vossa Excelência que esse artigo, como agora reconheço, não continha senão falsidades e incoerências e a minha desculpa única está em que o compus e enviei à redacção da Corneta no momento de me achar no mais completo estado de embriaguez”…

…”Agora que voltei a mim, reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que é Vossa Excelência um carácter absolutamente nobre; e as outras pessoas que nesse momento de embriaguez ousei salpicar de lama são-me só merecedoras de veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a suceder soltar eu alguma palavra ofensiva para Vossa Excelência, não lhe devia Vossa Excelência ou aqueles que a escutassem mais importância do que se dá a uma involuntária baforada de álcool – pois que, por um hábito hereditário que reaparece frequentemente na minha família, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez…De Vossa Excelência, com toda a estima, etc.”

(Ilust. de Santana) “Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca — e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio. Fora, outrora, director-geral do ministério do reino, e sempre que dizia — El-Rei! — erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre “o nosso Garrett, o nosso Herculano”. Citava muito. Era autor. E sem família, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política…

…:tinha composto os ELEMENTOS GENÉRICOS DA CIÊNCIA DA RIQUEZA E SUA DISTRIBUIÇÃO, segundo os melhores autores, e como subtítulo: Leituras do serão! Havia apenas meses publicara a RELAÇÃO DE TODOS OS MINISTROS DE ESTADO DESDE O GRANDE MARQUÊS DE POMBAL ATÉ NOSSOS DIAS, COM DATAS CUIDADOSAMENTE AVERIGUADAS DE SEUS NASCIMENTOS E ÓBITOS.”

(Ilust de Júlio de Sousa) “Foi por esse tempo que, num sábado, o Diário do Governo publicou a nomeação do Conselheiro Acácio ao grau de cavaleiro da Ordem de S. Tiago, atendendo aos seus grandes merecimentos literários, às obras publicadas de reconhecida utilidade, e mais partes…

“Na noite seguinte, ao entrar em casa de Jorge, todos o cercaram, felicitando-o com alarido; o conselheiro, depois de os abraçar um por um numa pressão nervosa e comovida, caiu no sofá, exausto, e murmurou: — Não o esperava tão cedo da real munificência! Não o esperava tão cedo! — e acrescentou, pondo à mão espalmada sobre o peito: — Direi como o filósofo: Esta condecoração é o melhor dia da minha vida!”

“E às onze e meia descia o Moinho de Vento, quando viu a figura digna do Conselheiro Acácio que subia da Rua da Rosa, devagar, com o guarda-sol fechado, a cabeça alta. Apenas a avistou apressou-se, curvou-se profundamente: — Que encontro verdadeiramente feliz!… — Como está, Conselheiro? Ditosos olhos que o vêem! — E V. Exª, minha senhora? Vejo-a com excelente aspecto! Passou-lhe à esquerda com um movimento solene; pôs-se a caminhar ao lado dela. — Permite-me decerto que a acompanhe na sua excursão -Decerto, com o maior prazer. Mas que tem feito? Tenho muito que lhe ralhar… — Estive em Sintra, minha querida senhora. — e parando: — Não sabia? O Diário de Notícias especificou-o!…

…Tinham entrado em S. Pedro de Alcântara; um ar doce circulava entre as árvores mais verdes; o chão compacto, sem pó, tinha ainda uma ligeira humidade; e, apesar do sol vivo, o céu azul parecia leve e muito remoto. O Conselheiro então falou do estio; tinha sido tórrido! na sua sala de jantar tinha havido 48 graus à sombra! 48 graus! — E com bonomia, querendo logo desculpar a sala daquela exageração canicular: — Mas é que está exposta ao sul! Façamos essa justiça! Está muito exposta ao sul! Hoje porém está verdadeiramente restaurador. Convidou-a mesmo a dar uma volta embaixo no jardim…

— Mas depois de vir de Sintra? Ele acudiu: — Ah! Tenho estado ocupadíssimo! Ocupadíssimo! Inteiramente absorvido na complicação de certos documentos que me eram indispensáveis para o meu livro… — E depois de uma pausa: — Cujo nome não ignora, creio. Luísa não se recordava inteiramente. O Conselheiro então expôs o título, os fins, alguns nomes de capítulos, a utilidade da obra: era a DESCRIÇÃO PITORESCA DAS PRINCIPAIS CIDADES DE PORTUGAL E SEUS MAIS FAMOSOS ESTABELECIMENTOS. – É um guia, mas um guia científico. Ilustrarei com um exemplo: V. Exª quer ir a Bragança; sem o meu livro é muito natural (direi, é certo) que volta sem ter gozado das curiosidades locais; com o meu livro percorre os edifícios mais notáveis, recolhe um fundo muito sólido de instrução, e tem ao mesmo tempo o prazer. Luísa mal o escutava, sorrindo vagamente sob o seu véu branco. — Está hoje muito agradável! — disse ela. — Agradabilíssimo! Um dia criador! — Que bom fresco aqui! …

— Grande panorama! — disse o Conselheiro com ênfase. — E encetou logo o elogio da cidade. Era uma das mais belas da Europa, decerto, e como entrada, só Constantinopla! Os estrangeiros invejavam-na imenso. Fora outrora um grande empório, e era uma pena que a canalização fosse tão má, e a edilidade tão negligente! — Isto devia estar na mão dos ingleses, minha rica senhora! — exclamou. Mas arrependeu-se logo daquela frase impatriótica. Jurou que “era uma maneira de dizer”. Queria a independência do seu país, morreria por ela, se fosse necessário; nem ingleses nem castelhanos!… Só nós, minha senhora! — E acrescentou com uma voz respeitosa: — E Deus! — Que bonito está o rio! — disse Luísa.

…Acácio afirmou-se, e murmurou em tom cavo: — O Tejo! Quis então dar uma volta pelo jardim. Sobre os canteiros borboletas brancas, amarelas, esvoaçavam; um gotejar de água fazia no tanque um ritmozinho de jardim burguês; um aroma de baunilha predominava; sobre a cabeça dos bustos de mármore, que se elevam dentre os maciços e as moitas de dálias, pássaros pousavam. Luísa gostava daquele jardinzinho, mas embirrava com as grades tão altas… — Por causa dos suicídios! — acudiu logo o Conselheiro. — E todavia, segundo a sua opinião, os suicídios em Lisboa diminuíam consideravelmente; atribuía isso à maneira severa e muito louvável como a imprensa os condenava… — Porque em Portugal, creia isto, minha senhora, a imprensa é uma força! — Se fôssemos andando?… — lembrou Luísa…

…O Conselheiro curvou-se, mas vendo-a a ir colher uma flor, reteve-lhe vivamente o braço: — Ah, minha rica senhora, por quem é! Os regulamentos são muitos explícitos! Não os infrinjamos, não os infrinjamos! — E acrescentou: — O exemplo deve vir de cima…

…Apressou o passo, ao Loreto parou. O Conselheiro olhou-a, sorrindo, esperando. — Ah! pensei que ia para casa, Conselheiro! — Já agora quero acompanhá-la, se V. Exª me permite. Decerto não sou indiscreto! — Ora essa! De modo nenhum. Uma carruagem da Companhia passava, seguida de um correio a trote. O Conselheiro, com um movimento ansioso, tirou profundamente o chapéu. — É o presidente do conselho. Não viu? Fez-me um sinal de dentro. — Começou logo o seu elogio: Era o nosso primeiro parlamentar; vastíssimo talento, uma linguagem muito castigada! — E ia decerto falar das coisas públicas, mas Luísa atravessou para os Mártires, erguendo um pouco o vestido por causa de uns restos de lama. Parou à porta da igreja, e sorrindo: — Vou aqui fazer uma devoçãozinha. Não o quero fazer esperar. Adeus, Conselheiro, apareça. — Fechou a sombrinha, estendeu-lhe a mão.”

(Ilust de Rocha Vieira) Sebastião lembrava-se de um primo seu, deputado pelo Alentejo, um gordo, da maioria, um pouco fanhoso. Se Julião queria, falava-lhe… Mas sempre ouvira dizer que a Escola não era gente de empenhos e de intriga… De resto tinham o Conselheiro Acácio…— Uma besta! — fez Julião. — Um parlapatão! Quem faz lá caso daquilo? O teu primo, hein! O teu primo parece-me bom!

(Ilust de Bernando Marques) “Não havia que estranhar aquelas opiniões católicas do conselheiro, ia observando Julião, porque tinha duas imagens de santos pendentes à cabeceira da cama… A calva de Acácio fez-se rubra: O Savedra do Século exclamou com a boca cheia: — Não o sabia carola, conselheiro! Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e acudiu: — Eu peço ao meu Savedra que não tire desse fato ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Creio em Deus. Mas reconheço que a religião é um freio…

O conselheiro continuava, explicando: — Como dizia, sou liberal, mas entendo que algumas litografias ou gravuras, alusivas ao mistério da Paixão, têm o seu lugar num quarto de cama, e inspiram de certo modo sentimentos cristãos. Não é verdade, meu Jorge? Mas o Savedra interrompeu ruidosamente, com a face acesa numa jovialidade libertina:— Eu, num quarto de dormir, as únicas pinturas que admito são uma bela ninfa nua, ou urna bacante desenfreada! — Isso, isso! — bradou o Alves Coutinho. A boca dilatava-se-lhe numa admiração sensual. — Este Savedra! Este Savedra! — E baixo para Sebastião: — Tem um talento! tem um talento! O conselheiro voltou-se para Julião, e puxando o guardanapo para o estômago: — Espero que não sejam esses os painéis imorais que se vêem no seu gabinete de estudo…

Rua Vitor Cordon -… Julião emendou: No meu cubículo. Ah! não, conselheiro! Tenho apenas duas litografias — um é um homem sem pele para representar o sistema arterial, o outro é o mesmo indivíduo igualmente sem pele para se ver o sistema nervoso… O conselheiro teve com a sua mão branca um vago gesto enojado, e exprimiu a opinião — que na medicina, aliás uma grande ciência! Havia coisas bastante asquerosas. Assim, ouvira dizer que nos teatros anatômicos, os estudantes de idéias mais avançadas levavam o seu desprezo pela moral, até atirarem uns aos outros, brincando, pedaços de membros humanos, pés, coxas, narizes… — Mas é como quem mexe em terra, conselheiro! — disse Julião, enchendo o copo — é matéria inerte! — E a alma, Sr. Zuzarte? — exclamou o conselheiro. Fez um gesto de vaga reticência; e julgando tê-lo aniquilado com aquela palavra suprema, abriu para Sebastião um sorriso cortês e protetor:

…— E que diz o nosso bondoso Sebastião? — Estou a ouvir, senhor conselheiro. — Não dê ouvidos a estas doutrinas! — com o garfo mostrava a figura biliosa de Julião. — Mantenha a sua alma pura. São perniciosas. Que o nosso Jorge (o que é de lamentar num homem estabelecido e empregado do Estado) também vai um pouco para estas exagerações materialistas! Jorge riu; afirmou que sim, que tinha essa honra… — Então o conselheiro quer que eu, um engenheiro, um estudante de matemática, acredite que há almas que vivem no céu, com asinhas brancas, túnicas azuis, e tocando instrumentos? O conselheiro acudiu: — Não, instrumentos não! — E como apelando para todos: Não creio que tivesse falado em instrumentos. Os instrumentos são uma exageração. São, podemos dizê-lo, táticas do partido reacionário… Ia fulminar a doutrina ultramontana — mas a Sra Filomena colocou-lhe diante a travessa com a perna de vitela assada…”

“Beberam com ruído. Acácio, depois de limpar os beiços, passou a mão trêmula pela calva, levantou-se comovido, e começou: — Meus bons amigos! Eu não me preparei para esta circunstância. Se a soubesse de antemão, teria tomado algumas notas. Não tenho a verbosidade dos Rodrigos ou dos Garretts. E sinto que as lágrimas me vão embargar a voz. Falou então de si, com modéstia: reconhecia, quando via na capital tão ilustres parlamentares, oradores tão sublimes, tão consumados estilistas, reconhecia que era um zero! — E com a mão erguida formava no ar, pela junção do polegar e do indicador, um O: um zero! Proclamou o seu amor à pátria: que amanhã as instituições ou a família real precisassem dele — e o seu como, a sua pena, o seu modesto pecúlio, tudo oferecia de bom grado! Quereria derramar todo o seu sangue pelo trono!…

… E, prolixo, citou o Eurico, as instituições da Bélgica, Bocage e passagens dos seus prólogos. Honrou-se de pertencer à Sociedade Primeiro de Dezembro… — Nesse dia memorável — exclamou — eu mesmo ilumino as minhas janelas, sem o luxo dos grandes estabelecimentos do Chiado, mas com uma alma sincera! E terminou dizendo: — Não esqueçamos, meus amigos, como portugueses, de fazer votos pelo ilustrado monarca, que deu às neves da minha fronte, antes de descerem ao túmulo, a consolação de se poderem revestir com o honroso hábito de São Tiago! Meus amigos, à família real!…

…— e ergueu o copo — à família modelo, que sentada ao leme do Estado, dirige, cercada dos grandes vultos da nossa política, dirige… — Procurou o fecho; havia um silêncio ansioso — dirige… — Através das lunetas negras, os seus olhos cravavam-se, à busca da inspiração, na travessa de aletria — dirige… — Coçou a calva aflito; mas um sorriso clareou-lhe o aspecto, encontrara a frase; e estendendo o braço: — …dirige a barca da governação pública com inveja das nações vizinhas! À família real! — À família real! — disseram com respeito. O café foi servido na sala. As velas de estearina punham uma luz triste naquela habitação fria; o conselheiro foi dar corda à caixa de música; e, ao som do coro nupcial da Lúcia, ofereceu em redor charutos.”

(Ilust de Fernandes da Silva) “E a alta figura de Acácio adiantou-se, com as bandas do casaco de alpaca deitadas para trás, a calça branca muito engomada caindo sobre os sapatos de entrada baixa, de laço. Apenas Luísa lhe apresentou o primo Basílio, disse logo, respeitoso: — Já sabia que V. Ex. a tinha chegado; vi-o nas interessantes notícias do nosso high-life. E do nosso Jorge? Jorge estava em Beja… Diz que se aborrece muito… Basílio, mais amável, deixou cair: — Eu realmente não tenho a menor idéia do que se possa fazer em Beja. Deve ser horroroso! O Conselheiro, passando sobre o bigode a sua mão branca onde destacava o anel de armas, observou: — É todavia a capital do distrito! Mas se já em Lisboa se não podia fazer nada, e era a capital do reino! — E Basílio puxava, todo recostado, o punho da camisa. — Morria-se positivamente de pasmaceira!

Luísa, muito contente da afabilidade de Basílio, pôs-se a rir: — Não digas isso diante do Conselheiro. E um grande admirador de Lisboa. Acácio curvou-se: — Nasci em Lisboa, e aprecio Lisboa, minha rica senhora. E com muita bonomia: — Conheço porém que não é para comparar aos Parises, às Londres, às Madris… — Decerto — fez Luísa. E o Conselheiro continuou com pompa: — Lisboa porém tem belezas sem igual! A entrada, ao que me dizem (eu nunca entrei a barra) é um panorama grandioso, rival das ConstantinopIas e das Nápoles. Digno da pena de um Garrett ou de um Lamartine! Próprio para inspirar um grande engenho!… Luísa, receando citações ou apreciações literárias, interrompeu-o; perguntou-lhe o que tinha feito. Tinham estado domingo no Passeio, ela e D. Felicidade; tinham esperado vê-lo, e nada! Nunca ia ao Passeio, ao domingo — declarou. — Reconhecia que era muito agradável, mas a multidão entontecia-o…

Tinha notado, — e a sua voz tomou o tom espaçado de uma revelação, — tinha notado que muita gente, num local, causa vertigens aos homens de estudo. De resto queixou-se da sua saúde e do peso dos seus trabalhos. Andava compilando um livro e usando as águas de Vichy…

O Passeio ao domingo é simplesmente idiota!… O Conselheiro refletiu e respondeu: — Não serei tão severo, Sr. Brito! — Mas parecia-lhe que com efeito antigamente era uma diversão mais agradável. — Em primeiro lugar — exclamou com muita convicção, endireitando-se — nada mas nada, absolutamente nada pode substituir a charanga da Armada! — Além disso havia a questão dos preços… Ah! Tinha estudado muito o assunto! Os preços diminutos favoreciam a aglomeração das classes subalternas… Que longe do seu pensamento lançar desdouro nessa parte da população… As suas idéias liberais eram bem conhecidas. — Apelo para a Srª D. Luísa! — disse.

— Mas, enfim, sempre era mais agradável encontrar uma roda escolhida! Quanto a si nunca ia ao Passeio. Talvez não acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! Nesses dias, sim, ia ver por fora das grades. Não por economia! Decerto não. Não era rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta. Mas é que receava os acidentes! E que os receava muito! Contou a história de um sujeito, cujo nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furara o crânio. — E além disso nada mais fácil que cair uma fagulha acesa na cara, num paletó novo… — E conveniente ter prudência — resumiu, compenetrado, limpando os beiços com o lenço de seda da Índia muito enrolado.”

(Ilust. de David) Imaginemos, então, que os 2 romances (Os Maias e o Primo Basílio) não são ficção ou que os relatos ficaram incompletos. E que Dâmaso e Acácio, numa cidade provinciana, como era Lisboa no final do Séc. XIX, estavam condenados a conhecer-se. Os meandros dessa aproximação são desconhecidos, mas ocorreram já depois de Dâmaso se ter casado com uma filha do Conde de Águeda – e ao que disseram as más-línguas, ter sido “enfeitado”. Coisas da vida… Estava mais gordo, mais barrigudo, com a eterna flor ao peito…

“No começo da rua João de Deus, Dâmaso Salcede quase tropeça no Conselheiro. Cumprimenta-o com alguma cerimónia:- “Meu nobre amigo! Fui agora à Basílica, por causa do peditório para as vítimas das cheias do Ribatejo. Estava lá muita rapaziada dos jornais! Até estão a publicar os nomes dos beneméritos. E eu, não é pela propaganda, que não ligo a essas coisas, tinha de contribuir!. Eu, quando toca a obras de caridade, estou sempre pronto, sou um mãos-largas! É de família, já o meu pai, que Deus tenha em descanso” – e levou a mão à testa, “- era o mesmo. Muitas famílias, ajudou! Não havia infeliz que estivesse aflito e lhe batesse á porta, que não saísse sem uma ajuda!”…

…Acácio eleva o dedo indicador direito: -Tem Vossa Excelência um semblante radioso. Parece que a maleita que sei vos tem vindo a atormentar, não  retirou a bela aparência. Julgo isso um apanágio dos espíritos superiores, a quem o ruinoso relógio da vida não esmorece a jovialidade ou a pujança intelectual. No pouco tempo que a actividade política me concede, tenho publicado uma série de crónicas na “Gazeta”, que V. Exa, certamente não ignora. Aí espraio-me em divagações filosóficas ácerca do primado da mente sobre as astúcias e os ardis da carne. Que a mim me tem servido, nesta vida de castidade em que sempre vivi.” Dâmaso toma-lhe familiarmente o braço e começam a descer a Calçada da Estrela…

…”- Gota, é essa mortificação. Cada vez que belisco um salmãozinho fumado ou uma perdiz estufada, tudo coisas catitas, as juntas das mãos ficam inchadas e doem-me”. O Conselheiro interrompe-o: “-É, de facto, uma penitência. Mas deve considerá-la como certificação do refinado apetite e das esmeradas iguarias com que V. Exa se tem deleitado. Soube, há dias que o Sr. Palma Cavalão, se queixa também do mesmo. Conhece-o V. Exa?” “-Sim, sim: em tempos tivemos um negociozinho…” aquiesceu Dâmaso. “É um insigne jornalista a quem o Partido muito deve. Teve uma actividade notável, pondo a nu as torpezas dos nossos adversários, sem receio de escândalos. Foi também secretário particular do Carneiro, aquele que foi ministro!…Mas, agora é uma pessoa a quem até o nosso Primeiro-Ministro ouve com atenção!

…Dâmaso esboça um sorriso: -“O Palma, próximo do José Luciano?! Chique!. Vou meter-lhe um empenho!”

Dom Pedro d’Alcântara: uma peça à procura de autor

No alto do pedestal implantado na Praça que tem o seu nome, D. Pedro observa o Tejo. Nas suas costas a fachada do teatro que, sua filha, D. Maria II, mandara erigir.

O teatro foi construído sobre as ruínas do Palácio da Inquisição, que o terramoto abatera. Soterrados estão, pois, destroços da repressão odiosa. Sobre eles ergueu-se um espaço onde se representam os conflitos eternos do Homem. Pressente-se a figura corajosa de Almeida Garrett, que se não vislumbra, mas está tão presente como a memória dos fanatismos e atrocidades, enterrados mas não esquecidos.

D. Pedro foi um Príncipe liberal. Regente do Brasil, após o regresso da Corte a Portugal, percebeu a revolta dos brasileiros às tentativas portuguesas de recolonização e apoiou-os. Apesar da variedade de facções, grupos sociais e interesses económicos, o seu grito “liberdade ou morte!” foi de encontro às pretensões da maioria. Gesto teatral, imagem edipiana dum Príncipe no fio da História, teve na Europa o aplauso dos defensores do liberalismo.

Depois, os seus maiores esforços foram  assegurar a manutenção da independência contra as reacções de parte dos portugueses, militares e  civis, e dotar o novo país de uma Lei Geral que assegurasse as liberdades, semelhantes às que a revolução francesa trouxera à Europa. Mas 2/5 da população brasileira era constituída por escravos e a produção dependia do seu trabalho. A redacção da nova Constituição passou a ser pretexto para confrontos entre interesses regionais não confessados e vinganças pessoais. Era o poder dos coronéis, esclavagistas ou liberais radicais que estava em jogo, não o texto constitucional em si. A luta política foi acesa e pouco escrupulosa. Diversos grupos pretenderam tornar o Imperador figura decorativa, o que D. Pedro rejeitou.
Peripécias dramáticas rodearam a aprovação da Constituição. Outras circunstancias como a derrota do exército brasileiro no conflito para a manutenção do que hoje constitui o Uruguai, foram desgastando o prestígio do Imperador. Foi-lhe atribuída a culpa pela secessão, ele que, até, decidira intervir em pessoa no conflito… Certamente desiludido com os acontecimentos, abdica do trono brasileiro em favor de seu filho, D. Pedro II.
O direito sucessório de D. Pedro ao trono português é posto em causa, por já antes ter sido Rei de outro país. Decide lutar pelos direitos de sua filha D. Maria da Glória, contra o que considera a usurpação de seu irmão Miguel. Mais importante que a disputa familiar, está a luta entre as concepções absolutista e liberal do Poder. A guerra não é fácil. O Portugal profundo é tradicionalista e religioso e desconfia dos estrangeirismos. Se passou pela cabeça de D. Pedro que desembarcava no Mindelo e tinha aos pés um país grato, que ansiava por se libertar, iludiu-se. Teve de se bater valentemente para vencer a Guerra Civil. E, quando o conseguiu, abdicou.
Esta trajectória de coragem, despojamento, verticalidade, de crença em valores de justiça e liberdade, fizeram dele um modelo para as forças liberais em luta em vários países europeus. Borbon pelo lado da mãe, Bragança pelo lado paterno, e familiar da maioria das Casas reinantes europeias, tornou-se um Príncipe “desejado”. O seu fim foi o epílogo simbólico dum Rei romântico: morrer tuberculoso, no Quarto D. Quixote.

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A vida de D. Pedro tem todos os atributos de um drama Shakespeariano. São personagens principais:

A Rainha/Carlota Joaquina que não se sabe se envenenou o Rei/D. João VI ou não, mãe de vários filhos, cuja paternidade oferece dúvidas, com comportamento licencioso, a quem se atribuem amantes variados, desde camareiros a nobres e que conspira a favor de D. Miguel.

O Rei é um pícnico hesitante, que se viu Regente sem o desejar, guarda pedaços de frango nas algibeiras para satisfazer a sua bulimia, é obrigado a tomar decisões graves pressionado pelos antagonismos que se extremam à sua volta – na Corte e no mundo.

Um Príncipe/D. Miguel a quem a lei vigente atribui o direito à Coroa, apoiado pelos fidalgos da província, párocos e populares que aspiram a um rei forte capaz de regenerar o país, devastado pelas invasões francesas. Adopta um comportamento contraditório. Jura a Carta, aceita o esponsal com sua sobrinha para melhor chegar à Coroa, mas depois rasga os compromissos, conspira contra seu pai, encabeça movimentos militares para repor o absolutismo.
O outro Príncipe é D. Pedro d’Alcântara.
A guerra fratricida personifica duas concepções de Poder com relevo para a ambição sem escrúpulos, tibieza, oportunismos e traições. É uma peça à procura de autor.

FM

 

O Infante que havia de ser D. João VI, nasceu em 1767, segundo filho de D. Maria I de Portugal. Ascendeu ao trono, por seu irmão mais velho ter morrido criança ainda, de varíola. É depois Príncipe Regente – dada a doença mental de sua mãe, príncipe Real do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, rei de Portugal e Imperador Titular do Brasil, além de muitos outros títulos. Proclamado Rei em 1818, no Rio de Janeiro, 2 anos após a morte de D. Maria I. Como é descrito por brasileiros: “D. João era muito feio, baixo, gordo, bonacheirão, comilão chegando a devorar 3 frangos seguidos, acompanhados por água, uma vez que raramente bebia vinho, era sossegado e sem vaidades, não gostava de roupas novas” (óleo de Domingos Sequeira)

D. João VI morreu em 1826. Factos políticos de importancia excepcional marcaram o seu governo, quer como Regente quer como Rei. Cronologicamente: a Campanha do Rossilhão (1793 — 1795), campanha militar em que Portugal participou ao lado da Espanha e do Reino Unido contra a França revolucionária; a ascensão ao Poder de Napoleão (1804); o Bloqueio Continental imposto por Napoleão para impedir o acesso aos portos de mar a navios ingleses (1806); a transferência da Corte portuguesa para o Brasil (1807); e as Invasões francesas (1807-1810).

Carlota Joaquina era filha primogénita do rei Carlos IV de Espanha e da esposa Maria Luísa de Parma. O seu casamento foi planeado tinha ela apenas dez anos de idade, com o então Infante D. João. Em 1788, tornou-se princesa-regente consorte de Portugal. É-lhe atribuída grande inteligência e um carácter ambicioso e violento (“A Megera de Queluz”). Chantagem, intriga e pressão conjugal foram métodos para intervir nos negócios do Estado. Em 1805, ainda em Portugal, D. João descobriu uma conspiração tramada pela esposa que planeava tirá-lo do poder. Depois do regresso do Brasil Carlota Joaquina aliou-se ao filho Miguel contra as ideias liberais. Foi a figura mais notável a recusar-se jurar a Constituição de 1822. Teve grande responsabilidade nos pronunciamentos conhecidos como Vilafrancada e Abrilada, que visavam abolir o constitucionalismo, afastar D. João VI do governo e colocar no trono o Infante D. Miguel. Foi, de facto, a cabeça do partido absolutista em Portugal. (óleo de Domingos Sequeira)

D. João VI e Carlota Joaquina tiveram nove filhos. Lêm-se documentos que duvidam que parte dos descendentes fossem filhos de D. João, nomeadamente D.Miguel, futuro Rei. Durante vários períodos os Reis estiveram separados, tendo Carlota Joaquina vivido no Palácio de Queluz e depois no Ramalhão. Há muitas sátiras à vida licenciosa da Rainha e aos seus múltiplos amantes.

A transferência da corte portuguesa (numa estimativa de 15000 pessoas, entre nobres e servos) fez-se por meio de uma esquadra composta por 6 Naus, 3 fragatas, 3 brigues e 2 escunas, que zarparam de Lisboa a 29 de Novembro, escoltada por navios ingleses. 50 dias foi a duração da viagem até à Bahia. O Infante D. Pedro de Alcântara tinha na época 9 anos de idade

Ao evitar-se que a Família Real fosse aprisionada em Lisboa pelas tropas francesas, inviabilizou-se o projecto de Napoleão para a península Ibérica, que consistia em estabelecer nela famílias reais da sua própria família, como ainda se tentou em Espanha com a deposição de Fernando VII e Carlos IV, colocando no trono José Bonaparte, irmão de Napoleão.

As embarcações chegaram à costa da Bahia a 18 de Janeiro de 1808 e, no dia 22, os habitantes de Salvador já puderam avistar os navios da esquadra. A corte por aqui permaneceu um mês

As condições de vida a bordo eram inimaginaveis. Quando Carlota Joaquina desembarcou, levava um lenço à volta da cabeça por causa dos piolhos. O sucesso que causou entre os naturais foi enorme e diz-se ter sido esta a origem dos turbantes que ainda hoje as mulheres baianas envergam.

pelourinho

Vista atual do Pelourinho no Centro Histórico de Salvador da Bahia, reconhecido pela Unesco em 1985 como Património da Humanidade. De antigo antro de criminalidade e prostituição, a área do pelourinho dos antigos escravos tornou-se num centro cultural dos maior importancia do Brasil, indissociável de nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Gilberto, Doryval Caymmi ou Maria Bethânia…para não falar da Casa-Fundação de Jorge Amado.

Mas, eis a chegada da família real ao Brasil

Paço do Vice-Rei – Os membros da Família Real ficaram alojados em três prédios no centro da cidade, entre eles o paço do vice-rei (que não foi considerado ter dignidade para acolher uma família Real europeia). Os demais agregados ficaram espalhados pelas melhores residencias, as quais foram confiscadas à população e assinaladas com as iniciais “P.R.” (“Príncipe-Regente”), o que deu origem ao trocadilho “Ponha-se na Rua”, ou “Prédio Roubado”.

Faculdade BahiaMas houve aspetos positivos: entre eles, logo em 1808, ao chegar a Salvador, o Príncipe Regente criou a Escola Superior de Cirurgia, terminando assim com a proibição de cursos superiores no Brasil. No local funcionava na época o Hospital Real Militar da Bahia, que foi adaptado para abrigar o ensino de medicina. O edifício atual resultou da reconstrução de parte das instalações destruídas por um incêndio em 1905.

Museu Histórico Nacional Rio de Janeiro

Paço Real Imperial Rio de Janeiro

Tres de mayo (óleo de Goya): soldados franceses executando patriotas espanhois. A 2 de Maio de 1808 a população madrilena sublevou-se contra os franceses, seus anteriores aliados, em virtude de Carlos IV e seu fiho Fernando (ambos a disputarem o trono espanhol) estarem cativos de Napoleão, em Bayonne. A rebelião foi esmagada e este quadro recorda os fuzilamentos que assinalaram a repressão. Mas, como em Espanha, Portugal sofreu com as Invasões francesas. A passagem das tropas de Junot, como, mais tarde, as de Soult e de Massena, ficou marcada por massacres, pilhagens e actos de enorme crueldade. Por tais atrocidades ficou particularmente célebre o General Loison, de alcunha o Maneta, que delas se gabava. Ir para o Maneta foi uma expressão que ficou no léxico português…

Libertado Portugal da ocupação francesa, formou-se em Lisboa um movimento, integrado por oficiais do Exército e Maçons, com o objectivo de tirar os britânicos do controlo militar do país. O movimento foi denunciado e a sua repressão levou à prisão e condenação à morte de numerosos patriotas, acusados de conspirarem contra a monarquia de D. João VI, em Portugal continental, representada pela Regência.

A acusação da responsabilidade de Lord Beresford, regente de facto do reino de Portugal, levou a protestos e intensificou a tendência anti-britânica no país. Após a execução dos acusados, o general Beresford deslocou-se ao Brasil para pedir mais recursos e poderes para a repressão do “jacobinismo”. Porém, na sua ausência, eclodiu a Revolução do Porto (1820) de modo que, quando do seu regresso – depois de obter do soberano os poderes pedidos, foi impedido de desembarcar em Lisboa.

Rio de Janeiro na época. Em 1821 a Corte regressou a Portugal à excepção de D. Pedro de Alcântara, que ficou como Regente

Depois do regresso da Família Real, as Cortes portuguesas tentaram transformar de novo o Brasil numa colónia e exigiram o regresso imediato de D. Pedro de Alcântara. Confrontado com as movimentações dos liberais brasileiros a favor da sua permanência, D. Pedro aquiesceu “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico“.

Independência do Brasil (óleo sobre tela de Pedro Américo) – A 7 de Setembro de 1822, nas margens do Rio Ipiranga, em São Paulo, Pedro de Bragança tomou conhecimento de ordens vindas da corte portuguesa para que abandonasse o Brasil e regressasse a Portugal ou seria acusado de traição. Exclamou: “Independência ou Morte!”

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Museu do Ipiranga que faz parte do conjunto arquitetonico do Parque da Independência na Universidade de S. Paulo. Uma das suas obras mais significativas é o quadro representado no post anterior de Pedro Américo.

Imperador Dom Pedro (óleo de François-René Moreau). No mês de Dezembro seguinte, D. Pedro de Alcântara foi declarado imperador do Brasil. Tinha 24 anos.

D. Pedro I, Imperador do Brasil – Segundo a Wikipédia, D. Pedro não terá recebido a educação desejada para um futuro Rei, mas foi melhor do que a recebida pela maior parte dos seus contemporâneos. Pôde, no entanto, compensar certas lacunas com esforço autodidacta. Tinha vocação musical. Compôs diversas obras, entre as quais O Hino da Carta, considerado até 1911 o Hino Nacional português. Tocava vários instrumentos, entre os quais piano, flauta, fagote, cravo. Simultâneamente, interessava-se por atividades que requerem destreza manual, como pintura ou escultura. Era também excelente mecânico, marceneiro e torneiro. Isto, numa época em que os trabalhos manuais eram atribuídos aos servos…

D. Pedro I compondo o Hino Nacional (hoje Hino da Independência), em 1822 (óleo de Augusto Braga).

O Liberalismo em Portugal surgiu como reação ao absolutismo real, à preponderância social da fidalguia, ao reacionarismo da maioria do clero e ao protagonismo da colónia brasileira. A ideologia libertária da Revolução francesa, mesmo com os excessos jacobinos, as devastações causadas pelas invasões napoleónicas e o poderio inglês na nossa sociedade foram factores que estiveram na sua origem.

A Constituição de 1822 foi a Lei fundamental votada pelas Cortes Constituintes reunidas, em Lisboa em 1821 e jurada por D. João VI. Teve dois períodos de vigência: o primeiro de Setembro de 1822 a Junho de 1823, data em que as Cortes fizeram declaração da sua impotência após o golpe de D. Miguel e o segundo entre 1836 e 1838. Para a época era um texto evoluído onde se estabeleciam os direitos e deveres dos cidadãos (liberdade de expressão, proibição de prisão sem culpa formada, abolição de tortura), o princípio da separação dos poderes, o príncipio de larga autonomia política e administrativa para o Brasil, com o qual se estabelecia uma União Real. Porém, esta união era uma ficção pois o Rei deixara um Regente. E o novo texto constitucional feria interesses corporativos e económicos, além da conjuntura europeia ser favorável ao poder absolutista dos Reis. Os tumultos sucederam-se.

Vilafrancada – Pronunciamento militar absolutista contra o regime liberal, ocorrido em Maio/Junho de 1823.

Abrilada (1824) – outro pronunciamento militar desencadeado pelos apaniguados de D. Miguel, de 20 para 30 de Abril de 1824. D. João VI, sob pressão diplomática, desautorizou D. Miguel, retirando-lhe o cargo de comandante do exército. A 13 de Maio, o Infante partiu para o exílio.

Paço da Bemposta, actualmente Academia Militar, foi construído para residência de D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV. Depois do regresso da Família Real, D. João VI, que já aqui vivera enquanto Regente, voltou a habitar na Bemposta e aqui morreu em 1826. No palácio ocorreram momentos políticos importantes como os que advieram dos pronunciamentos da Vila-Francada e os da Abrilada.

D. Pedro I e a coroa imperial do Brasil (óleo de Henrique José da Silva). D. Pedro I não acreditava em diferenças raciais nem na presumível inferioridade do negro, como era comum na época e combatia publicamente a escratura. A maioria da população brasileira, no entanto, era hostil às ideias abolicionistas. Segundo a historiadora Isabel Lustosa, D. Pedro I foi um governante muito à frente da elite brasileira do seu tempo. Afrontou os valores da escravatura, combatendo com vigor o hábito de alguns funcionários públicos mandarem escravos para trabalhar em seu lugar. Para José Murilo de Carvalho, D. Pedro era “comandado por emoções, às vezes contraditórias, a que não aprendera a impor barreira alguma. Era impulsivo, romântico, autoritário, ambicioso, generoso, grosseiro, sedutor. Era capaz de grandes ódios e grandes amores“.

A Carta constitucional foi redigido por D. Pedro no Brasil e representou um compromisso entre os Liberais defensores da Constituição de 1822 e os Absolutistas partidários do retorno a um regime autocrático. Principais características: a soberania residia no Rei e na Nação; garantia a existência de uma nobreza hereditária, com todas as regalias e privilégios; preservava o princípio da separação dos poderes legislativo, executivo, judicial e consignava um poder “moderador” ao Rei; os direitos e deveres individuais dos cidadãos, no tocante à liberdade, à segurança individual e à propriedade, já consagrados na Constituição de 1822, foram mantidos praticamente, embora com menor destaque; conservava, como forma de governo, a Monarquia Constitucional e Hereditária; permanecia inalterado o príncipio da ausência de liberdade religiosa (de novo se definiu a religião Católica como religião de Estado).

Infanta D. Maria. Porém, tanto o liberalismo mais radical (Constituição de 1822) como moderado (Carta de 1826), consagravam o princípio da “soberania nacional” o que limitava o poder unitário e independente do rei e o âmbito da esfera eclesiástica. Por outro lado, a divisão de poderes era incompatível com o princípio do rei absoluto. Evidentemente, qualquer dos textos constitucionais, não serviam os interesses que se perfilavam por detrás de D. Miguel.

A Carta seria vista como “um diploma tímido, frustrado e frustrante, cheio de compromissos entre princípios jurídico-filosóficos antagónicos” (João Medina) ou “representava o direito divino dos reis; era uma concessão do senhor, em vez de um pacto social…” (Alexandre Herculano). Tanto a Carta como a Constituição de 1822 nunca foram aceites por todas as partes. A sua não aceitação, bem como de outras medidas promulgadas pelas Cortes Constituintes, originou inúmeros levantamentos militares.

Porém, Alexandre Herculano, ao criticar os movimentos políticos e sociais do Vintismo, comentava de modo irónico: “entre revoluções e contra-revoluções, passava a caravana e os cães ladravam“.

Para poder voltar a Portugal, D. Miguel aceitou ficar noivo da sobrinha, D. Maria da Glória e, para poder ser nomeado Regente na menoridade desta, jurou a Carta Constitucional, primeiro perante a corte de Viena (estava exilado na Áustria) e depois em Lisboa. Convocou as Cortes que, em 1828, o proclamaram Rei e anularam a vigência da Carta, repondo as Leis constitucionais tradicionais. D. Miguel era um homem de ideais católicos e tradicionalistas. Gozava de popularidade entre o povo, que via num rei forte a figura do salvador. Tinha ainda o apoio maioritário da Igreja. A burguesia, no entanto, estava mais aberta ao ideário liberal. E, também, a conjuntura política europeia se tornava, na época, favorável a D. Pedro.

Sabe-se hoje que D. João VI morreu envenenado com arsénico. A sua morte levantou um problema sucessório. O Infante D. Pedro, seu primogénito e herdeiro, tinha proclamado a independência do Brasil e, de acordo com as Leis Fundamentais do Reino, um príncipe-herdeiro que levantasse armas contra Portugal ou ascendesse ao trono de um estado estrangeiro, perderia o direito ao trono português. D. Miguel, por outro lado, mais de uma vez se erguera contra o Rei, que o desterrou, e era adversário das ideologias liberais que avançavam na Europa. (óleo de Domingos Sequeira).

D. Pedro I do Brasil (Simplício Rodrigues de Sá). Morto D. João VI, a regência de D. Isabel Maria, em Lisboa, considerou o imperador do Brasil, D. Pedro, herdeiro do trono de Portugal. No Brasil, o imperador D. Pedro foi chamado a assumir o trono português, mas abdicou em favor de sua filha mais nova, D. Maria da Glória (depois D. Maria II) e outorgou a Carta Constitucional ao reino de Portugal.

A Família Real Portuguesa: D. Amélia Augusta, D. Pedro IV e D. Maria da Glória.

Diversas circunstâncias foram afastando D. Pedro. Na Assembleia Constituinte havia, várias facções: os deputados que defendiam uma monarquia forte, mas constitucional e centralizada; outros, uma monarquia absoluta e centralizada; e por último, os que advogavam uma monarquia meramente figurativa e descentralizada.

“Noite da agonia”. Foram muitas as intrigas. D. Pedro que não aceitava ser uma figura meramente simbólica, entrou em choque com a Constituinte, e após várias vicissitudes, mandou o Exército invadir o plenário e acabou por dissolver a Constituinte.

De seguida, o Imperador incumbiu o Conselho de Estado de redigir um novo projeto de Constituição. Este utilizou o esboço anterior que foi aceite facilmente pelas Câmaras Municipais. Era a nova Constituição brasileira, na linha dos princípios mais liberais da Europa.

Mas fora um afrontamento entre rei e deputados que deixara marcas.

Ocorreu, entretanto, uma revolta de liberais federalistas pernambucanos contra o governo central, que ficou conhecida por “Confederação do Equador”. A sua repressão originou várias prisões e condenações à morte.

Também o desenvolvimento daquilo que ficou conhecido pela “Guerra da Cisplatina” lhe minou o prestígio. Um número reduzido de nativos revoltou-se e declarou a união da Cisplatina (atual Uruguai e que, na época, fazia parte do Brasil) com as Províncias Unidas do Rio da Prata (futura Argentina). Este facto levou à declaração formal de guerra. Apesar do Brasil possuir Exército e marinha de guerra poderosos, era incapaz de derrotar os rebeldes.

No campo político, a oposição dos liberais federalistas manipulava a opinião pública, através de jornais e discursos na Assembleia. O Imperador decide comandar ele próprio as operações e dirige-se para o Rio Grande do Sul, mas teve de regressar pouco tempo depois ao Rio ao receber a notícia do falecimento da esposa. Na capital ocorrem tumultos com centenas de mortos. O tratado de paz é assinado, com a perda da província Cisplatina e um saldo de 8 mil brasileiros mortos, além de custos materiais pesados. D. Pedro é acusado pelos políticos que estavam contra a guerra pelo desmembramento do território.

Foram estes os factos mais salientes que terão feito abdicar D. Pedro. E, o período de hesitação, ter-lhe-á diminuído, ainda mais, o prestígio. Em 7 de Abril de 1831 abdica, então, do trono do Brasil em favor deu filho, D. Pedro II e parte para a Europa.

As finanças dos emigrados portugueses estavam depauperadas. Valeu a intervenção de Juan Alvarez Mendizábal, um espanhol rico e decidido, que dedicou a vida ao triunfo do liberalismo. D. Pedro consegue, assim, armas e dinheiro, reúne em Inglaterra uma força de cerca sete mil soldados britânicos, e regressa a Portugal para liderar pessoalmente o partido liberal. O arquipélago dos Açores é tomado.

Fernando VII (óleo de Goya). Por duas vezes D. Pedro foi sondado por liberais espanhois para reclamar a coroa espanhola. Na primeira ocasião (1826), recusou. Subira ao trono Fernando VII, que perfilhava um ideário absolutista e foi responsável por um período de prisões em massa dos defensores do liberalismo. Na segunda, após a morte de Fernando VII (1833), que alterara as regras sucessórias e impedira, assim, a ascensão de D. Carlos, seu irmão e herdeiro da coroa. D. Carlos aliou-se aos absolutistas e a aliança entre estes e carlistas esteve na origem de graves convulsões. Desta vez D. Pedro aceitou. Seria uma coroa imperial da Península Ibérica (o que correspondia à fusão Portugal/Espanha). Mas tinha, primeiro, que derrotar D. Miguel e os absolutistas portugueses…

Baía de Angra. Angra foi o centro do movimento liberal em Portugal. Aqui se estabeleceu em 1828 a Junta Provisória, em nome de D. Maria II. Foi nomeada capital do reino em Março de 1830. Foi aqui que D. Pedro organizou a expedição que levaria ao desembarque do Mindelo. Foi em Angra que promulgou alguns dos mais importantes decretos do novo regime.

Forte de São João Baptista, Monte Brasil, Angra do Heroismo. Erguido durante a dinastia dos Filipes para proteger o porto de Angra e aquartelar as tropas espanholas. Durante a Guerra Civil foi aqui hasteado, pela primeira vez, o pavilhão azul e branco da monarquia constitucional.

Forte de Santa Catarina. Localiza-se no concelho da Praia da Vitória, na ilha Terceira. É a primeira fortificação à entrada da baía. Pelo seu porte, era a principal da linha defensiva.

Esquadra de partida de S. Miguel para o Norte do país. O desembarque far-se-ia no Mindelo em 8/7/1832. No dia seguinte as tropas liberais ocuparam o Porto.

Desembarque do Mindelo é a designação dada ao desembarque das tropas liberais perto do Porto em 8 de Julho de 1832. O desembarque, que envolveu cerca de 7.500 homens, entre os quais se contavam Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Joaquim António Aguiar, transportados por 60 navios, permitiu às forças liberais tomar a cidade do Porto no dia 9 de Julho, apanhando de surpresa o exército miguelista que haveria, no entanto, de as submeter a prolongado cerco.

Serra do Pilar, Gaia, Porto. A chegada de D. Pedro foi acolhida com indiferença e por vezes hostilidade. Apenas algumas centenas de “voluntários” e um bando guerrilheiro apareceram. Era manifestamente pouco. Os golpes militares anteriores e a repressão subsequente tinham tornado as populações cautelosas. Milhares de pessoas fugiram, incluindo autoridades. O exército miguelista era mais poderoso e estava intacto. Nenhuma cidade proclamara D. Pedro…Restava apenas a solução de derrotar militarmente as forças inimigas ou tentar provocar deserções que as enfraquecessem.

O que se seguiu foram vários afrontamentos sem resultados nítidos, até que as forças “liberais” ocuparam a serra do Pilar. Ocorreram, então, várias tentativas para expulsar os invasores, que dispunham de efectivos francamente mais reduzidos (7500 homens contra um exército organizado de 80000). Dão-se violentos combates. As forças liberais estão sitiadas no Porto. A Serra do Pilar, é valorosamente defendida, iniciando-se o bombardeamento da cidade, que muitos outros iria suportar durante o cerco.

Palácio da Batalha – serviu de Hospital durante o Cerco do Porto. Para resolver a contenda, o general miguelista Gaspar Teixeira prepara um assalto em força, prometendo aos seus soldados o saque da cidade. As forças sitiantes avançaram pelos lados de Campanhã, travando-se combates violentos noutros pontos. Às forças sitiadas foram reconhecidos actos da maior bravura. 4000 baixas por parte das forças miguelistas contra 650 dos liberais. Gaspar Teixeira reconheceu a impossibilidade de esmagar a cidade e ordenou a retirada.

Serra do Pilar – A pedido do General sitiante, D. Miguel parte para o Norte. Antes da sua chegada ocorrem novos e violentos assaltos à Serra do Pilar, sempre repelidos. D. Miguel estabelece o seu quartel-general em Braga, a cidade fiel, onde é recebido apoteoticamente. O cerco aperta-se. Na cidade, as condições de vida são extremas: fome e frio, a que se juntam a varíola e o tifo. Todas as árvores são abatidas para lenha. Admite-se capitular. Aí o General Saldanha opõe-se tenazmente. As tropas mercenárias inglesas causam desacatos e reclamam soldos atrasados. A esquadra inglesa que transportara o exército libertador levanta ferro e abandona o Porto.

Estátua de D. Pedro IV, Porto. Em Londres, outra figura liberal, o duque de Palmela procura dinheiro, voluntários e novos navios. Organiza-se nova esquadra com novo Comando. Realiza-se um desembarque no Algarve. Os miguelistas tentam uma vez e outra mais destruir as forças sitiadas, sem êxito. São combates ferozes. Entretanto, o Imperador está em Lisboa, onde chegaram as forças liberais. D. Miguel retira do Porto com o seu Estado-Maior, deixando as tropas sob o comando dum general francês, que substituira Gaspar Teixeira. Após nova vitória de Saldanha, que obrigou os miguelistas e levantar o cerco em vários pontos, o comandante sitiante manda retirar, não sem antes ordenar incendiar os armazéns de vinhos do Porto em Gaia. Um prejuízo tremendo. Saldanha levantara o cerco do Porto.

Duque de Saldanha. Foi sob o seu comando que as forças liberais levantaram o cerco.

O pintor Domingos Sequeira retratou muitas das grandes figuras de época.

Almeida Garrett, é uma das maiores figuras do romantismo português, foi ele quem propôs a edificação do Teatro Nacional de D. Maria II e a criação do Conservatório de Arte Dramática. Autor de Frei Luís de Sousa e de outras peças de teatro. Poeta e romancista. Teve uma actividade política intensa, participando nomeadamente com Alexandre Herculano e Joaquim António de Aguiar, no Desembarque do Mindelo e no Cerco do Porto.

A última batalha travou-se em Asseiceira a 16 de Maio. Em Londres, no mês anterior tinha-se firmado um tratado pelo qual a França e a Inglaterra se comprometeram a impor e manter na Península as instituições parlamentares. As forças de D. Miguel, onde se registaram numerosas traições e deserções nos seus oficiais, foram derrotadas. D. Miguel dirigiu-se para o Alentejo com o resto do exército.

Évora Monte. Estabelecem-se conversações. É assinada a convenção com o nome da vila alentejana onde decorreu, e pela qual D. Miguel deveria abandonar o país. A 1 de Junho parte para o exílio, donde não regressará. Porém, se a vitória militar lhe escapara, a sua figura continuou a ser a bandeira das forças mais tradicionalistas. E que continuaram a causar motins e revoluções.

As ideias liberais em Portugal tinham pequena audiência. Havia um contraste demasiado entre o país profundo e o país emergente. As populações rurais e grande parte da nobreza não se reviam nas inovações políticas e institucionais, consideradas estrangeiradas.

D. Pedro IV. Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Rei-Soldado ou Rei Imperador. Em Portugal e Brasil é também conhecido por O Libertador — em Portugal do governo absolutista; do Brasil do domínio português.

Gravura de Nicolas-Eustache Maurin, representando D. Pedro no leito de morte, na altura já só usando o título de duque de Bragança. Morreu de tuberculose, no quarto D. Quixote, onde também nascera. Foi a 24 de Setembro de 1834. Tinha 36 anos.

Estátua do Imperador D. Pedro no Museu Imperial

Após a vitória liberal criou-se um clima de violência e descriminação sobre os vencidos. Fomentaram-se fidelidades generosamente recompensadas (Lei das Indemnizações); exerceu-se vigilância ideológica severa no recrutamento dos quadros; os bens das Ordens religiosas (extintas), passaram para os “amigos” do Ministério. Era o início do “Devorismo”. A morte de D. Pedro coincidiu com o início dum novo ciclo da vida portuguesa.

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David e os amores felizes

Chamo-lhe David, como diria Sophia ou Eugénio. São poetas de cabeceira, os arautos dos nossos sonhos, aqueles que mais nos enternecem, os nossos íntimos. Aqueles que melhor exprimiram os afectos, os que perceberam a imensidade de tantas coisas pequenas: um búzio do tamanho do mar, uma anémona como um entardecer ou a descoberta do corpo amado, tão grande como uma vida, que com ele nasceu e que com ele morre. Outros grandes poetas são-nos mais distantes. Não chamo Fernando ao Pessoa ou Luís ao Camões.
Artesão das palavras, as frases foram construídas como aguarelas, com suas cores, seus contrastes, sua riqueza de matizes. Expõem ideias como definem emoções que se projectam no leitor feito cúmplice. Nas novelas e contos, as frases são depuradas. Há contenção verbal, raros os adjectivos. Os diálogos estão escritos como em teatro (e ele foi também autor de teatro). Mas, a poesia é a sua arte maior. Poeta dos sentidos, a sua escrita é erótica, sensual, como elegante e erudita.
No jogo entre dois corpos, o relato do marinheiro a navegar da boca à nuca e seio e anca, a descoberta das correntes, das enseadas e marés, a assombração e a tempestade, a brisa e a linha do horizonte. É um marinheiro que percorre uma e outra vez aquelas costas, que as conhece pelo tacto e pela voz, com a segurança da cabotagem.
O marinheiro tem os olhos inundados não só de mar como das vidas aportadas. Em muitas fundeou e de muitas trouxe notícia. E a todas elas acrescentou uma marca vitalícia. O marinheiro é mágico. Tudo em que toca se enobrece. É uma alquimia que faz do corpo amado, do seu rugido, do esplendor dos seus seios, sexo, língua, um mapa de volúpia e de desejo, onde a lascívia é um borbulhar de palavras sábias, rítmicas e medidas.
Foi Erhos quem iluminou David, porque o seu olhar enfeitiça quem o perscruta. E foi esse fulgor que se lhe estendeu aos sentidos. Só raros são contemplados. Chamam-lhe excepcional sensibilidade. Mas, David, foi mais além. Trabalhou amorosamente as palavras, feito ourives da língua portuguesa. E leu, estudou, traduziu e ensinou. A erudição metamorfoseou-a em conhecimento ao serviço dos olhos. Ele viu e ensinou algumas gerações a semiologia dos sentidos.
A mulher é o centro do mundo, para David. A mulher, cada mulher amada, é o ponto de partida para a aventura de viver, que se repete a cada ciclo ou que pode coexistir com outras histórias. Os pormenores dos encontros clandestinos (o copo de água, a fruta, a toalha) e os diálogos breves – mostram os vários protagonistas ligados pela cumplicidade, pelos projectos de vida em comum que não virão a concretizar-se. Em “Um amor feliz” os protagonistas têm percursos semelhantes – vivem adultérios com amigos dos cônjuges, cujas referências são as mesmas e que mais não são que as imagens ao espelho uns dos outros. Cujas histórias deixam em aberto a questão de saber se são amores felizes.

FM

 

Está feita a biografia de David Mourão-Ferreira (DM-F), nada temos a acrescentar. Sobre ele foram publicados numerosos ensaios, artigos e monografias académicas.Dum excelente programa, apresentado pela RTP2, após a sua morte em 1996, apresentamos uma versão “fatiada” pelas exigências do YouTube. Assim, apenas destacaremos os dados mais relevantes, convidando-os a visionar o referido programa

Poeta, professor universitário, ficcionista, ensaísta, crítico literário, dramaturgo, jornalista, tradutor e homem de televisão. “Imagens da Poesia Europeia » foi o programa que apresentou na RTP, e que o tornaram mais próximo do público. Aqui, recorria ao seu traquejo de professor-sedutor, lendo poemas na sua voz bem modulada, alguns dos quais ele mesmo traduzira. Foi uma presença à altura de João de Freitas Branco, que anos antes fora responsável pela mais fascinante divulgação da música dita clássica realizada na TV em Portugal. Ou de Vitorino Nemésio, de quem foi aluno.

Ficcionista, deixou alguns livros notáveis, como esse “Um amor feliz”. A sua escrita evoca a de Claude Roy, seu contemporâneo e com quem teve outras afinidades, como a de crítico, não de pintura, mas de poesia. E é a poesia o seu legado mais importante. A matriz erótica é uma característica importante, talvez a que mais perdura, mas não exclusiva.

DM-F deve ter sido o único grande poeta português que escreveu de propósito para ser cantado, mesmo que isso lhe merecesse reparos por parte da aristocracia académica. Ignorou-os. E, com isso, lucrou o fado que deixou de ser exclusivamente canção de marialvas e de tragédias de faca-e-alguidar. Com isso ganhou Amália ao saber saborear os versos frescos de DM-F e, depois, ela mesmo a exigir outros poemas e autores. Ganhámos todos.

“Deixa ficar comigo a madrugada, /para que a luz do Sol me não constranja. /Numa taça de sombra estilhaçada, /deita sumo de lua e de laranja. /Arranja uma pianola, um disco, um posto, /onde eu ouça o estertor de uma gaivota… /Crepite, em derredor, o mar de Agosto… /E o outro cheiro, o teu, à minha volta! /Depois, podes partir. Só te aconselho que acendas, para tudo ser perfeito, /à cabeceira a luz do teu joelho, /entre os lençóis o lume do teu peito… /Podes partir. De nada mais preciso /para a minha ilusão do Paraíso.” (Paraíso)

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“Calidamente nua, /sob o vestido leve, /tua carne flutua /no desejo que teve.//Timidamente nua, /revelas, num /olhar, /em minhas mãos a lua /que te fez oscilar.” (Teoria das marés)

“Deitada és uma ilha E raramente /surgem ilhas no mar tão alongadas com tão prometedoras enseadas /um só bosque no meio florescente //promontórios a pique e de repente /na luz de duas gémeas madrugadas o fulgor das colinas acordadas /o pasmo da planície adolescente //Deitada és uma ilha Que percorro /descobrindo-lhe as zonas mais sombrias /Mas nem sabes se grito por socorro //ou se te mostro só que me inebrias /Amiga amor amante amada eu morro /da vida que me dás todos os dias “(Ilha)

“Desejei-te pinheiro à beira-mar /para fixar o teu perfil exacto. //Desejei-te encerrada num retrato /para poder-te contemplar. /Desejei que tu fosses sombra e folhas /no limite sereno desta praia. //E desejei: “Que nada me distraia /dos horizontes que tu olhas!”/ Mas frágil e humano grão de areia /não me detive à tua sombra esguia. //(Insatisfeito, um corpo rodopia na solidão que te rodeia.)” (Paisagem)

“Tudo que sou, no imaginado /silêncio hostil que me rodeia, /é o epitáfio de um pecado /que foi gravado sobre a areia. //O mar levou toda a lembrança. /Agora sei que me detesto: /da minha vida de criança /guardo o prelúdio dum incesto. /O resto foi o que eu não quis:/perseguição, /procura, enlace, /desse retrato feito a giz /pra que não mais eu me encontrasse. //Tu foste a noiva que não veio, /irmã somente prometida! /— O resto foi a quebra desse enleio. /O resto foi amor, na minha vida.” (Memória)

Professor convidado da Faculdade de Letras chegou a Catedrático sem ter feito doutorameneto, tal o prestígio que obteve. A sua actividade docente foi reconhecida internacionalmente, com a criação de cátedras pela Europa com o seu nome

Licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1951. Foi professor do Ensino Técnico e Liceal. Entre 1957 e 1963 foi assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde após afastamento político foi readmitido, como professor auxiliar, em 1970. O seu papel na regência das cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura Portuguesa marcou várias gerações de estudantes. A actividade docente posterior apenas foi interrompida para o exercício do cargo de Secretário do Estado da Cultura.

“Todo o amor que nos prendera/como se fora de cera se quebrava e desfazia ai funesta primavera /quem me dera, quem nos dera /ter morrido nesse dia//E condenaram-me a tanto /viver comigo meu pranto /viver, viver e sem ti/vivendo sem no entanto/eu me esquecer desse encanto /que nesse dia perdi //Pão duro da solidão /é somente o que nos dão /o que nos dão a comer /que importa que o coração /diga que sim ou que não /se continua a viver //Todo o amor que nos prendera /se quebrara e desfizera /em pavor se convertia /ninguém fale em primavera /quem me dera, quem nos dera /ter morrido nesse dia”

A persistência da memória – Salvador Dali (1931) “E por vezes as noites duram meses /E por vezes os meses oceanos /E por vezes os braços que apertamos /nunca mais são os mesmos E por vezes //encontramos de nós em poucos meses /o que a noite nos fez em muitos anos /E por vezes fingimos que/lembramos /E por vezes lembramos que por vezes //ao tomarmos o gosto aos oceanos /só o sarro das noites não dos meses /lá no fundo dos copos encontramos //E por vezes sorrimos ou choramos /E por vezes por vezes ah por vezes /num segundo se envolam tantos anos. (E por vezes as noites duram meses)”

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A sua obra poética é extensa. De salientar: Tempestade de Verão (1954, Prémio Delfim Guimarães), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), In Memoriam Memoriae (1962), Infinito Pessoal ou A Arte de Amar (1962), Do Tempo ao Coração (1966), A Arte de Amar (1967, reunião de obras anteriores), Lira de Bolso (1969), Cancioneiro de Natal (1971, Prémio Nacional de Poesia), Matura Idade (1973), Sonetos do Cativo (1974), As Lições do Fogo (1976), Obra Poética (1980, inclui as obras À Guitarra e À Viola e Órfico Ofício), Os Ramos e os Remos (1985), Obra Poética, 1948-1988 (1988) e Música de Cama (1994, antologia erótica com um livro inédito).

A bibliografia de ensaísta é também rica, com a atribuição de numerosos prémios. No que se refere à ficção: estreia em 1959 com as novelas de Gaivotas em Terra (Prémio Ricardo Malheiros), os contos de Os Amantes (1968), e ainda As Quatro Estações (1980, Prémio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários), Um Amor Feliz, romance que o consagrou como ficcionista em 1986 e que lhe valeu vários prémios, entre os quais o Grande Prémio de Romance da APE e o Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, e Duas Histórias de Lisboa (1987).

Nu de Gala, mulher de Salvador Dali (1945) “Quantos em ti lagos e rios /Quantos em ti os oceanos //Água vermelha que aos ouvidos /traz o aviso /de nenhuns campos //É bom sondarmos os abismos /que nunca vão cicatrizando //E ao som da água pressentirmos /de onde provimos /aonde vamos” (XXV)

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“É isto vivemos dentro /de grandes blocos de gelo /sem aquecermos ao menos /com os dedos outros dedos /No fundo de nós temendo /que um dia se quebre o gelo ” (Blocos)

“Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo. /Que dizer do pescoço, às vezes mármore, /às vezes linho, lago, tronco de árvore, /nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco … ?//E o ventre, inconsistente como o lodo? … /E o morno gradeamento dos teus braços? /Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne: /é também água, terra, vento, fogo …//É sobretudo sombra à despedida; /onda de pedra em cada reencontro; /no parque da memória o fugidio//vulto da Primavera em pleno Outono … /Nem só de carne é feito este presídio, /pois no teu corpo existe o mundo todo!” (Música)

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“Desvio dos teus ombros o lençol, /que é feito de ternura amarrotada, /da frescura que vem depois do sol, /quando depois do sol não vem mais nada …//Olho a roupa no chão: que tempestade! /Há restos de ternura pelo meio, /como vultos perdidos na cidade /onde uma tempestade sobreveio …//Começas a vestir-te, lentamente, /e é ternura também que vou vestindo,/para enfrentar lá fora aquela gente //que da nossa ternura anda sorrindo … Mas ninguém sonha a pressa com que nós /a despimos assim que estamos sós!”

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A Távola Redonda foi uma revista literária que apareceu nos anos 50, criada por um grupo de jovens poetas, entre os quais António Manuel Couto Viana (recentemente falecido) e David Mourão-Ferreira. Sem ter uma linha programática definida, pretendia-se sem reservas ideológicas ou preconceitos de ordem estética. Insurgia-se contra a literatura empenhada e social que, segundo eles, imperava no panorama poético português. A originalidade da publicação consistiria em procurar dar voz a uma poesia mais próxima da tradição lírica portuguesa.

Talvez que pelo seu afastamento do neo-realismo e da literatura politicamente engajada, DM-F não tivesse sido “banido” pelo Estado Novo, mesmo tendo sido membro do MUD Juvenil. No entanto, foi afastado do ensino entre 1963 e 1970, na sequencia da Crise Académica de 62

Fac-similae de Vértice

“Sem sombra de pecado” (1982), filme de José Fonseca e Costa, a partir de conto de DM-F. Baseado em “Um amor feliz”, Artur Ramos realizou uma série televisiva de quatro episódios, apresentada pela RTP em 1990.

“Os Amantes”, livro de contos

“Deixa ficar a flor, /a morte na gaveta, /o tempo no degrau. /Conheces o degrau: /o sétimo degrau /depois do patamar; /o que range ao passares; /o que foi esconderijo /do maço de cigarros /fumado às escondidas… /Deixa ficar a flor. /E nem murmures. Deixa/o tempo no degrau, /a morte na gaveta. /Conheces a gaveta: /a primeira da esquerda, /que se mantém fechada. /Quem atirou a chave /pela janela fora? /Na batalha do ódio, /destruam-se, fechados, /sem tréguas, os retratos! /Deixa ficar a flor. /A flor? Não a conheces. /Bem sei. Nem eu. Ninguém. /Deixa ficar a flor. /Não digas nada. Ouve. /Não ouves o degrau? /Quem sobe agora a escada? /Como vem devagar! /Tão devagar que sobe… /Não digas nada. Ouve: /é com certeza alguém, /alguém que traz a chave. /Deixa ficar a flor.” (As últimas vontades)

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Colectânea da Obra Poética

“Nem o Tempo tem tempo /para sondar as trevas //deste rio correndo/entre a pele a pele //Nem o Tempo tem tempo /nem as tréguas dão tréguas //Não descubro o segredo /que o teu corpo segrega.” (Segredo)

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“Que importa o gesto não ser bem /o gesto grácil que terias? /— Importa amar, sem ver a quem… /Ser mau ou bom, conforme os dias. //Agora, tu só entrevista, /quantas imagens me trouxeste! /Mas é preciso que eu resista /e não acorde um sonho agreste. //Que passes tu! Por mim, bem sei /que hei-de aceitar o que vier, /pois tarde ou cedo deverei de sonho e pasmo apodrecer. //Que importa o gesto não ser bem /o gesto grácil que terias? /— Importa amar, sem ver a quem… /Ser infeliz, todos os dias!” (Canção amarga)

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A Itália era para David uma paixão. Sobre Roma: “Há cidades que nos voltam as costas, sem chegarem sequer a olhar para nós. Há outras que nos sacodem a mão, cordialmente, num sóbrio shake-hand de boas-vindas, e que depois lá seguem para os seus afazeres, os seus divertimentos, os seus labirintos em que nunca haveremos de penetrar. Há também as que discutem connosco, logo desde o primeiro encontro, mas que por isso mesmo se nos tornam indispensáveis. E as que nos provocam; as que nos irritam; as que se divertem à nossa custa. Há ainda as que sabem de cór os mais secretos dialectos do desejo – para nos deixarem enrodilhados, insatisfeitos e melancólicos, na madrugada de frios arrabaldes. Há todavia, pelo contrário, as que nos vestem de música e de luz; que nos fazem lembrar, a cada passo, as irmãs mais velhas que não tivemos; que nos escutam com atenção – quando ficamos em silêncio – nas esplanadas do crepúsculo. Mas há apenas uma, entre todas, longe ou perto, que maternalmente nos estende os braços.”

Tentei fugir da mancha mais escura /que existe no teu corpo, e desisti. /Era pior que a morte o que antevi: /era a dor de ficar sem sepultura.//Bebi entre os teus flancos a loucura /de não poder viver longe de ti: /és a sombra da casa onde nasci, /és a noite que à noite me procura.//Só por dentro de ti há corredores /e em quartos interiores o cheiro a fruta /que veste de frescura a escuridão…//Só por dentro de ti rebentam flores. /Só por dentro de ti a noite escuta /o que sem voz me sai do coração. (Música)

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Ainda sobre Roma: “Mas como hei-de explicar, perante mim próprio, a inquietante fascinação que me produzem as formas elípticas de algumas destas praças, as cúpulas e as abóbadas da maior parte destes templos, os vermelhos vivos e os ocres quentes de que estão pintados tantos destes prédios? Sento-me na esplanada de um café, em plena Via Nazionale, e basta-me contemplar o alto de um edifício, onde essas duas cores tão depressa se contrapõem como logo se fundem uma na outra, para imediatamente experimentar uma estranha sensação de paz e de segurança, um halo de intimidade, uma espécie de abrigo contra o frenético movimento que vai na rua. Mais tarde, na Piazza Navona, surpreendo-me a girar como que dentro de um aquário, a sentir-me incapaz de me arredar dali…

Após a revolução, DM-F foi director do jornal A Capital e depois director-adjunto de O Dia, sob a direcção de Vitorino Nemésio; entre 1984 e 1986 foi presidente da Associação Portuguesa de Escritores, entre 1984 e 1992 vice-presidente da Association Internationale des Critiques Littéraires e, em 1991, presidente do Pen Club Português; foi responsável pelo Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian a partir de 1981; e dirigiu, desde 1984, a revista Colóquio/Letras, da mesma instituição.

DM-F (1927-1996) pôde assistir à sua própria entronização. O reconhecimento público não necessitou do futuro. Já doente, as homenagens sucederam-se. Conseguira uma quase unanimidade. O seu talento multifacetado tinha-o feito atingir todas as camadas sociais. Agora, passados 14 anos sobre a sua morte, deve sublinhar-se aquilo que de facto é mais importante: a poesia. A poesia da sensualidade, do gosto assumido pela mulher pelo seu corpo pelo seu amor e pela memória dele. Poucos são os que deambulam pelas margens do fogo com a distinção de um cavalheiro.

Chamo-lhe David, como diria Sophia ou Eugénio. São poetas de cabeceira, os arautos dos nossos sonhos, aqueles mais nos enternecem, os nossos íntimos. Aqueles que melhor exprimiram os afectos, os que perceberam a imensidade de tantas coisas pequenas: um búzio do tamanho do mar, uma anémona como um entardecer ou a descoberta do corpo amado, tão grande como uma vida, que com ele nasceu e que com ele morre. Outros grandes poetas são-nos mais distantes. Não chamo Fernando ao Pessoa ou Luís ao Camões.
Artesão das palavras, as frases foram construídas como aguarelas, com suas cores, seus contrastes, sua riqueza de matizes. Expõem ideias como definem emoções que se projectam no leitor feito cúmplice. Nas novelas e contos, as frases são depuradas. Há contenção verbal, raros os adjectivos. Os diálogos estão escritos como em teatro (e ele foi também autor de teatro). Mas, a poesia é a sua arte maior. Poeta dos sentidos, a sua escrita é erótica, sensual, como elegante e erudita.
No jogo entre dois corpos, o relato do marinheiro a navegar da boca à nuca e seio e anca, a descoberta das correntes, das enseadas e marés, a assombração e a tempestade, a brisa e a linha do horizonte. É um marinheiro que percorre uma e outra vez aquelas costas, que as conhece pelo tacto e pela voz, com a segurança da cabotagem.
O marinheiro tem os olhos inundados não só de mar como das vidas aportadas. Em muitas fundeou e de muitas trouxe notícia. E a todas elas acrescentou uma marca vitalícia. O marinheiro é mágico. Tudo em que toca se enobrece. É uma alquimia que faz do corpo amado, do seu rugido, do esplendor dos seus seios, sexo, língua, um mapa de volúpia e de desejo, onde a lascívia é um borbulhar de palavras sábias, rítmicas e medidas.
Foi Erhos quem iluminou David, porque o seu olhar enfeitiça quem o perscruta. E foi esse fulgor que se lhe estendeu aos sentidos. Só raros são contemplados. Chamam-lhe excepcional sensibilidade. Mas, David, foi mais além. Trabalhou amorosamente as palavras, feito ourives da língua portuguesa. E leu, estudou, traduziu e ensinou. A erudição metamorfoseou-a em conhecimento ao serviço dos olhos. Ele viu e ensinou algumas gerações a semiologia dos sentidos.
A mulher é o centro do mundo, para David. A mulher, cada mulher amada, é o ponto de partida para a aventura de viver, que se repete a cada ciclo ou que pode coexistir com outras histórias. Os pormenores dos encontros clandestinos (o copo de água, a fruta, a toalha) e os diálogos breves – mostram os vários protagonistas ligados pela cumplicidade, pelos projectos de vida em comum que não virão a concretizar-se. Em “Um amor feliz” os protagonistas têm percursos semelhantes – vivem adultérios com amigos dos cônjuges, cujas referências são as mesmas e que mais não são que as imagens ao espelho uns dos outros. Cujas histórias deixam em aberto a questão de saber se são amores felizes.

FM